Até a sexta geração

Walter Jon Williams


Parte Dois

Uma corrente de ar congelante abateu a cidade, vindo diretamente da Sibéria. Assolava os vãos entre os prédios, empurrando as tímidas decorações de Natal que a cidade montara, espalhando minúsculos pedaços de partículas radioativas russas nas ruas. Era o inverno mais frio em anos. O Enxame de Nova Jersey/Pensilvânia foi oficialmente declarado morto dois dias antes, e os ases, fuzileiros e o Exército voltaram para uma parada na Quinta Avenida. Poucos dias depois, tropas americanas e todo tipo de ás que pudesse ser persuadido a juntar-se a elas estariam voando de norte a sul para lidar com invasões do Enxame na África, no Canadá e na América do Sul.

O androide enfiou um dedo recém-revestido de carne na fenda do telefone público e sentiu algo clicar. Alguém simplesmente tinha de entender dessas coisas. Ele discou um número.

— Olá, Cyndi. Como está a busca por trabalho?

— Mod! Ei… queria dizer… ontem foi maravilhoso. Nunca pensei em estar numa parada ao lado de um herói de guerra.

— Desculpe se demorou tanto para eu ligar de volta.

— Acho que combater o Enxame era um tipo de prioridade. Não se preocupe. Você compensou o tempo perdido. — Ela riu. — Noite passada foi incrível.

— Ah, não. — O androide estava recebendo outra chamada da polícia. — Acho que preciso ir.

— Não estão invadindo de novo, estão?

— Não. Acho que não. Te ligo, ok?

— Estarei esperando.

Algo que lembrava uma massa gelatinosa verde-mucosa irrompeu de um buraco nas ruas do Bairro dos Curingas, um broto do Enxame que tinha escapado do confronto diante do rio Hudson. O broto conseguiu devorar dois fregueses natalinos e um vendedor de pretzel antes de a emergência ser chamada e os rádios da polícia começarem a tocar.

O androide chegou primeiro. Quando mergulhou no cânion urbano, viu algo que parecia uma tigela de dez metros de largura de gelatina que havia ficado no refrigerador tempo demais. Na gelatina estavam as frutas pretas que eram as vítimas que ela digeria lentamente.

O androide pairou sobre a criatura e começou a disparar o laser, tentando evitar as frutas na esperança que pudessem ser reavivadas. A gelatina começou a ferver onde os raios silenciosos e invisíveis a atingiam. O broto fez um esforço inútil de alcançar seu torturador voador com um pseudópodo, e falhou. A criatura começou a rolar na direção de um beco, buscando escapatória. Estava faminta ou era estúpida demais para abandonar a comida e procurar abrigo nos esgotos.

A criatura espremeu-se no beco e correu para dentro dele. O androide continuou a disparar. Pedaços eram chamuscados e a coisa parecia perder energia rapidamente. Modular olhou para a frente e viu uma figura curvada adiante no beco.

A figura era uma mulher branca, vestida com camadas de roupas, todas esfarrapadas, todas sujas. Um chapéu de feltro frouxo estava enfiado sobre um antigo gorro da Marinha. Algumas sacolas de compras caíram de seus braços. Cabelos grisalhos embaraçados pendiam da testa. Ela estava revirando uma caçamba de lixo, lançando jornais amassados sobre os ombros no beco. Modular aumentou a velocidade, lançando tiros direcionados por radar sobre os ombros quando ele pairava rapidamente através do ar frio que chuviscava. Desceu na calçada em frente à caçamba, seus joelhos amortecendo o impacto.

— Então, eu falei pra Maxine, falei… — a senhora dizia.

— Perdoe-me — disse o androide. Ele agarrou a mulher e voou ligeiro. Atrás dele, murchando sob a chuva de micro-ondas coesas, o broto do Enxame começou a evaporar.

— Maxine fala, minha mãe quebrou o quadril de manhã, você não vai acreditar… — A senhora debatia-se contra ele enquanto continuava o monólogo. Silenciosamente ele aguentou um cotovelo no maxilar e flutuou para uma aterrissagem no telhado seguinte. Deixou a passageira. Ela virou para ele, enrubescida de ódio.

— Tudo bem, babaca — disse ela. — Hora de ver o que a Hildy tem na bolsa.

— Mais tarde eu desço a senhora — disse Modular. Ele já estava virando para perseguir a criatura quando, de canto de olho, viu a senhora abrir a bolsa.

Havia algo preto lá dentro. O objeto preto estava ficando maior.

O androide tentou se mover, fugir voando. Algo o segurava e não o deixava escapar.

Fosse lá o que houvesse na sacola de compras, estava aumentando. Crescia com grande rapidez. Fosse o que segurasse o androide, puxava-o na direção da sacola de compras.

— Pare — disse ele, simplesmente. A coisa não parava. O androide tentou lutar contra ela, mas as descargas de laser lhe custaram muita energia, e ele não parecia ter força de sobra.

A escuridão cresceu até envolvê-lo. Ele sentiu como se estivesse caindo. Então, não sentiu mais nada.

Os ases de Nova York, respondendo à emergência, finalmente dominaram o broto do Enxame. O que restou dele, borbulhas verde-escuras, congelou-se em pedaços de gelo sujo. Suas vítimas, parcialmente comidas, foram identificadas pelos cartões de crédito não digeríveis e carteiras de identidade plastificadas que carregavam.

Ao cair da noite, os habitantes insensíveis do Bairro dos Curingas estavam chamando a criatura de O Incrível e Colossal Monstro de Meleca. Nenhum deles percebeu quando a mendiga desceu a escada de incêndio e vagou pelas ruas congelantes.

O androide acordou numa caçamba em um beco atrás da 52nd Street. As verificações internas mostraram danos: o laser de micro-ondas havia sido curvado numa onda senoidal, o monitor de fluxo estava quebrado, o módulo de voo ficou retorcido como se fosse pelas mãos de um gigante. Ele lançou a tampa da caçamba para trás com um estrondo. Cuidadosamente, olhou em volta no beco.

Ninguém à vista.

O deus Amon brilhava na mente de Hubbard. Os olhos de carneiro cintilavam com ódio, e o deus segurava a cruz ansata e o bastão com os pulsos cerrados.

— TIAMAT foi derrotado — disse ele. Hubbard recuou com a força da raiva de Amon. — O dispositivo Shakti não foi preparado a tempo.

Hubbard encolheu os ombros.

— A derrota foi temporária — disse ele. — A Irmã Obscura voltará. Poderia ser em qualquer ponto do sistema solar… os militares não têm como encontrá-la ou identificá-la. Não vivemos em segredo todos esses séculos apenas para sermos derrotados agora.

O apartamento estava bem-arrumado se comparado ao caos anterior. As notas de Travnicek foram reunidas com esmero e classificadas, ao máximo possível, por assunto. Travnicek começou folheando-as. Eram difíceis de entender.

— Então — disse Travnicek. Sua respiração congelava na frente do rosto e condensava-se nos óculos de leitura. Ele os tirou. — Você foi deslocado espacialmente cerca de cinquenta quarteirões e uma hora à frente no tempo, certo?

— Aparentemente, sim. Quando saí da caçamba, descobri que a luta no Bairro dos Curingas havia acabado quase uma hora antes. A comparação com meu relógio interno mostrou uma discrepância de 72min15,333s.

O androide tinha aberto o peito e havia substituído alguns componentes. Não era possível recuperar o laser, mas restituiu sua habilidade de voo e conseguiu improvisar um monitor de fluxo.

— Interessante. Você diz que a mendiga não parecia estar trabalhando com a tal bolha?

— Muito provavelmente foi uma coincidência estarem na mesma rua. O monólogo dela não parecia ser estritamente racional. Não acho que seja mentalmente sã.

Travnicek virou o controle de aquecimento na roupa de paraquedista. A temperatura havia caído sete graus em duas horas e o gelo se formava nas claraboias do apartamento no meio da tarde. Travnicek acendeu um cigarro russo, ligou o fogão de uma boca para esquentar água para o café, e então enfiou as mãos nos bolsos quentinhos da roupa.

— Quero olhar sua memória — disse. — Abra o peito.

Modular obedeceu. Travnicek tirou um par de cabos de um minicomputador encaixado sob uma série de equipamentos de vídeo e ligou-os aos soquetes no peito do androide, próximo de seu cérebro eletrônico blindado.

— Faça o backup da memória no computador — disse. Efeitos tremeluzentes do gerador de fluxo brilharam nos olhos atentos de Travnicek. O computador sinalizou tarefa concluída. — Pode fechar — ordenou Travnicek. Enquanto o androide removia os fios e fechava o peito, Travnicek ligou o vídeo, então apertou botões nos controles. Uma imagem em vídeo começou a correr ao contrário.

Ele chegou ao ponto onde a mendiga apareceu e correu a imagem diversas vezes. Foi até um terminal de computador e digitou instruções. A imagem do rosto da mendiga preencheu a tela. O androide olhou o rosto marcado e sujo da mulher, seus cabelos bagunçados, as roupas rasgadas e esfarrapadas. Pela primeira vez percebeu que lhe faltavam alguns dentes. Travnicek levantou-se, foi até o quarto nos fundos do apartamento e voltou com uma câmera Polaroid surrada. Usou as três fotos remanescentes e deu uma à sua criação.

— Aqui. Você pode mostrá-la para as pessoas. Pergunte se a viram.

— Sim, senhor.

Travnicek pegou um percevejo e afixou as outras duas fotos nas colunas baixas do teto.

— Quero que descubra onde a mendiga está e pegue o que está na bolsa dela. E quero que descubra onde ela achou. — Ele balançou a cabeça, jogando cinzas de cigarro no chão, e murmurou. — Não acho que tenha inventado isso. Acho que encontrou essa coisa em algum lugar.

— Senhor? O Enxame? Combinamos que eu partiria para o Peru em dois dias.

— Fodam-se os militares — Travnicek retrucou. — Não pagaram um centavo pelos nossos serviços. Nada além de uma parada nojenta, e os militares nem pagaram por isso, e sim a prefeitura. Vamos deixá-los perceber como é fácil combater o Enxame sem você. Então, talvez, nos levem a sério. — A verdade era que Travnicek não estava nem próximo de ser capaz de reconstruir sua obra. Levaria semanas, talvez até meses. Os militares exigiam garantias, planos, conhecimento da sua identidade. O problema da mendiga era mais interessante, de qualquer forma. Ele começou a repassar preguiçosamente a memória do androide.

Modular retraiu-se profundamente em sua mente computadorizada. Começou a falar rapidamente, esperando distrair seu inventor das imagens.

— No que diz respeito à mendiga, eu poderia tentar os centros de refugiados, mas poderia levar um tempo. Meus arquivos me dizem que existem normalmente 20 mil sem-teto em Nova York, e agora existe um número incontável de refugiados de Jersey…

— Puta merda! — exclamou Travnicek em alemão. O androide sentiu outra contração a caminho. Travnicek olhou para a televisão, surpreso.

— Você está transando com aquela atriz! — disse ele. — Aquela Cyndi Sei-lá-o-quê!

O androide resignou-se àquilo que estava prestes a vir.

— Sim — disse ele.

— Você não passa de uma torradeira — disse Travnicek. — O que te fez acreditar que poderia foder?

— Você me deu o equipamento — o androide disse. — E implantou emoções em mim. Além disso, você me criou com boa aparência.

— Hum — Travnicek tirou os olhos de Modular para o vídeo e de volta para ele. — Te dei o equipamento para que pudesse se passar por humano se precisasse. E dei emoções para que pudesse entender os inimigos da sociedade. Não achei que você faria qualquer coisa. — Ele jogou a ponta de cigarro no chão. Um olhar malicioso cruzou seu rosto.

— Se divertiu? — ele perguntou.

— Foi agradável, sim.

— Parece que a putinha loira gostou muito — Travnicek riu, cacarejando, e pôs as mãos no controle. — Quero começar essa festa do início.

— Não quer olhar para a mendiga novamente?

— Vamos às prioridades. Pega uma Urquell pra mim. — Ele olhou para cima, como se um pensamento lhe ocorresse. — Temos pipoca aí?

— Não! — O androide lançou a resposta abrupta sobre os ombros.

Modular trouxe a cerveja e observou enquanto Travnicek tomava o primeiro gole. O tcheco ergueu os olhos, incomodado.

— Não gosto do jeito que você está olhando para mim — disse ele.

O androide fez suas considerações.

— Prefere que olhe de outro jeito? — perguntou.

Travnicek ficou vermelho.

— Vai para aquele canto, forno de micro-ondas comedor! — berrou. — Vire a cabeça pra lá, videocassete tarado!

Pelo resto da tarde, enquanto sua criação estava em pé num canto do apartamento, Travnicek assistiu ao vídeo. Ele se divertiu imensamente. Assistiu às melhores partes diversas vezes, gargalhando com o que via. Então, aos poucos, suas gargalhadas se turvaram. Uma sensação fria, incerta subiu por trás de seu pescoço. Começou lançando olhares para a figura impassível do androide. Tirou os olhos da unidade de vídeo, deixou cair a ponta do cigarro na garrafa de Urquell, então acendeu outro.

O androide estava mostrando um nível surpreendente de independência. Travnicek analisou os elementos de sua programação, concentrando-se no arquivo ETCETERA. O abstrato da emoção humana de Travnicek foi compilado de uma variedade de fontes de especialistas que se estendiam de Freud ao Dr. Spock. Foi um desafio intelectual para Travnicek fazer a programação — transformar as irracionalidades do comportamento humano na retórica fria de um programa. Realizou a tarefa durante o segundo ano na A&M do Texas, quando mal saiu do quarto durante todo o ano e sabia que tinha uma missão imensa para não enlouquecer com o ambiente lunático de uma universidade que parecia uma incorporação das fantasias do inconsciente coletivo de Stonewall Jackson e Albert Speer. Não teria ficado na A&M por dez minutos se soubesse antes que era um erro — os estudantes de cabeça raspada com seus uniformes, botas e sabres lembravam muito a SS que mal deixara Travnicek vivo embaixo do corpo de sua família em Lídice, sem mencionar as forças de segurança soviéticas e tchecas que seguiram os alemães. Travnicek sabia que para sobreviver no Texas precisaria encontrar algo imenso para trabalhar e não permitir que suas memórias o engolissem vivo.

Travnicek nunca se interessou particularmente por psicologia humana dessa forma — paixão, decidira havia muito, não era apenas algo bobo, mas genuinamente enfadonho, perda de tempo. No entanto, colocar paixão num programa, sim, isso era interessante.

Mal conseguia se lembrar daquele período. Quantos meses gastou no transe criativo, um canal para o próprio espírito mais profundo? O que forjou durante esse tempo? Que diabos havia no ETCETERA?

Por um momento, um tremor de medo percorreu o corpo de Travnicek. O fantasma da criação de Victor Frankenstein avultou-se por instantes em sua mente. Uma rebelião por parte do androide era possível? Paixões hostis poderiam desdobrar-se contra o criador? Mas não, havia imperativos predominantes que Travnicek inscrevera no sistema. Modular não poderia se desviar de suas diretivas primárias enquanto sua consciência computadorizada estivesse fisicamente intacta, assim como um ser humano não poderia, desassistido, evoluir sua constituição genética em uma única vida.

Travnicek começou a sentir um conforto crescente. Olhou para o androide com uma espécie de admiração. Sentiu orgulho em ter programado um pupilo tão rápido.

— Você não é ruim, torradeira — disse ele, finalmente, desligando o vídeo. — Lembra a mim mesmo nos velhos tempos. — Ele levantou um dedo admoestador. — Mas nada de transar hoje à noite. Vá encontrar a mendiga.

A voz do Modular saiu abafada, pois estava de frente para a parede.

— Sim, senhor — disse ele.

Neon lançou seu brilho sobre o respirar congelado dos integrantes da gangue de limpos que estava na frente da placa em tons pastéis que indicava o Run Run Club. O detetive John F. X. Black, dirigindo sua viatura sem identificação e esperando o semáforo abrir para virar na Schiff Parkway, automaticamente correu os olhos sobre a multidão, registrando rostos, nomes, possibilidades… Acabara de encerrar o expediente e saiu com um carro sem identificação, pois deveria passar o dia seguinte congelando o traseiro num plantão, o que na TV chamavam de vigilância policial. Ricky Santillanes, ladrãozinho liberado com fiança desde o dia anterior, sorriu para Black com uma boca cheia de dentes cobertos de aço e deu o dedo para o detetive. Deixa curtir, Black pensou. As gangues de limpos eram malhadas pelos Príncipes Demoníacos do Bairro dos Curingas toda vez que se encontravam.

Black viu num pôster que a banda que tocava naquela noite chamava Mãe do Enxame — ninguém poderia dizer que os grupos hardcore eram lentos na percepção do zeitgeist. Foi puro acaso que Black tivesse olhado o pôster no momento em que o policial Frank Carroll cambaleou na luz. Carroll parecia maluco — estava com o quepe na mão, cabelo bagunçado, e o sobretudo respingado com algo que reluzia num amarelo brilhante sob a placa reflexiva. Parecia estar a caminho da delegacia a poucos quarteirões dali. Os limpos riram quando passaram por ele. Black sabia que o setor atribuído a Carroll estava a quarteirões de distância e não o traria nem próximo desta esquina.

Carroll estava na corporação havia dois anos, entrou assim que acabou a escola. Era um homem branco com cabelos ruivo-escuros, um bigode aparado, constituição média levemente corpulenta por treinamento irregular de musculação. Parecia sério com o trabalho na polícia, era diligente e metódico, e fazia muita hora extra desnecessária. Black o definia como dedicado, mas sem imaginação. Não era do tipo que perambulava por aí com olhos arregalados à meia-noite numa noite de inverno.

Black abriu a porta, levantou-se e chamou Carroll. O policial virou-se, olhando de forma enlouquecida, e então uma expressão de alívio surgiu em seu rosto. Correu para o carro de Black e puxou de uma vez a porta do passageiro quando Black a destrancou.

— Jesus Cristo! — Carroll disse. — Acabei de ser lançado num monte de lixo por uma mendiga.

Black riu por dentro. O semáforo mudou, e ele fez a volta.

— Ela te pegou de surpresa? — perguntou.

— Foi isso. Estava num beco no fim da Forsyth. Tinha uma caixinha de fósforo e um monte de papel embolado, e estava tentando botar fogo numa caçamba inteira para se aquecer. Disse para ela parar e tentei fazê-la entrar na viatura para levá-la ao abrigo perto do Rutger Park. E, então, ! A bolsa me pegou. — Ele olhou para Black e mordeu o lábio. — Acha que ela pode ser algum curinga, TN?

“TN” era tenente no Departamento de Polícia de Nova York.

— Como assim? Ela bateu em você com a bolsa, certo?

— Não. É a bolsa… — O olhar amalucado estava novamente nos olhos de Carroll. — A bolsa me comeu, TN. Algo me puxou para dentro da bolsa e me engoliu. Era… — Ele buscava as palavras. — Sem dúvida, paranormal. — Ele olhou para o uniforme. — Olha isto aqui, TN. — Seu distintivo tinha sido retorcido de uma maneira estranha, como um relógio numa pintura de Dalí. Assim como dois dos botões. Ele os tocava com uma espécie de assombro.

Black entrou numa zona de carga e puxou o freio de mão.

— Me fale mais sobre isso.

Carroll parecia confuso. Esfregou a testa.

— Senti algo me agarrar, TN. E, então… fui sugado direto para a bolsa. Vi a bolsa ficando cada vez maior e… a próxima coisa que sei é que estava nesse monte de lixo em Ludlow, a norte de Stanton. Estava correndo para a delegacia quando você me parou.

— Você foi teletransportado da Forsyth para a Ludlow, a norte da Stanton.

— Teletransportado. Isso aí, essa é a palavra. — Carrol parecia aliviado. — Então, você acredita em mim. Meu Deus, TN, tinha certeza de que ia tomar um gancho por isso.

— Estou há muito tempo no Bairro dos Curingas, vi um monte de coisas estranhas. — Black deu partida no carro novamente. — Vamos achar a tal mendiga — disse ele. — Foi há poucos minutos, certo?

— Sim. E minha viatura ainda está lá. Merda. Os curingas provavelmente já a depenaram.

O brilho da caçamba em chamas, laranja nas paredes de tijolos do beco, era visível da Forsyth. Black parou numa zona de embarque.

— Vamos a pé.

— Não é melhor ligarmos para os bombeiros?

— Ainda não. Pode não ser seguro para eles.

Black na frente, caminharam até o fim do beco. A caçamba queimava, as chamas subindo a quase cinco metros no meio de uma nuvem de cinzas pairando. A viatura de Carroll estava intacta, como se por mágica, mesmo com a porta traseira aberta. Em pé, na frente da caçamba, trocando o peso do corpo de um pé para o outro, estava uma mulher branca e pequena com uma sacola de compras cheia em cada mão. Vestia diversas camadas de roupas maltrapilhas. Parecia estar murmurando consigo mesma.

— É ela, tenente!

Black observou a mulher e não disse nada. Ele se perguntava como abordá-la.

As chamas subiam ainda mais, estalando, e de repente luzes estranhas e piscantes, como fogo de santelmo, planaram em círculos em volta da mulher e de suas bolsas. Então, algo numa das bolsas pareceu se erguer, uma sombra escura, e o fogo curvou-se como a chama de uma vela ao vento forte, e foi sugado pela bolsa. Num instante, fogo e sombra desapareceram. As luzes estranhas coloridas brincavam gentilmente sobre a figura da mulher. Cinzas oleosas caíam na calçada.

— Puta merda — murmurou Carroll. Black tomou uma decisão. Fuçou no bolso e pegou a carteira e as chaves de sua unidade sem identificação. Deu uma nota de dez para Carroll.

— Pegue minha viatura. Vá até o Burger King na West Broadway e pegue dois hambúrgueres duplos, duas batatas grandes e um café grande para viagem.

Carroll ficou olhando para ele.

— Normal ou forte, TN?

— Vai logo! — Black ralhou. Carroll saiu depressa.

Atrair a mulher da bolsa para a viatura sem identificação de Black custou os dois hambúrgueres, o café e um pacote de fritas. Ele pensou que ela provavelmente não entraria num azul e branco como o de Carroll. Havia trancado o casaco do uniforme e a arma de Carroll no porta-malas para não alarmar a mulher, e Carroll estava tremendo quando se sentou no banco do passageiro.

No banco de trás, a mulher estava murmurando para si mesma e devorando as batatas. Seu cheiro era terrível.

— Para onde agora? — Carroll perguntou. — Um dos centros de refugiados? A clínica?

Black deu partida no carro.

— Algum lugar especial. Na parte alta. Existem coisas sobre essa mulher que não sabemos.

Carroll gastou a maior parte de sua energia tremendo enquanto Black saía a toda velocidade do Bairro dos Curingas. A mendiga dormiu no banco de trás. Seu ronco assobiava por entre os dentes faltantes. Black parou na frente de um prédio com fachada de arenito pardo na East 57th.

— Espere aqui — disse. Desceu as escadas até uma entrada de apartamento de porão e apertou a campainha. Uma guirlanda natalina de plástico estava pendurada na porta. Alguém olhou pelo olho mágico na porta, que se abriu em seguida.

— Não estava esperando você — disse Coleman Hubbard.

— Tenho alguém com… poderes… no banco de trás. Ela não está em sã consciência. Pensei que poderíamos colocá-la no quarto dos fundos. E tem um policial comigo que não consegue saber o que acontece.

Os olhos de Hubbard voejaram na direção do carro.

— O que você disse a ele?

— Disse para ficar no carro. É um bom garoto, e é isso que vai fazer.

— Tudo bem. Vou pegar um casaco.

Enquanto Carroll observava com curiosidade, Hubbard e Black atraíram a mendiga para o apartamento de Hubbard, usando como isca a comida de sua geladeira. Black perguntou-se o que Carroll diria se pudesse ver a decoração no apartamento especial trancado ao lado, o escuro quarto à prova de som, com velas, altar, o pentagrama pintado no chão, as calhas de liga embutidas, as correntes brilhantes fixadas a ganchos… Não era tão elaborado quanto o templo que a Ordem tinha no centro antes de ele explodir, mas de qualquer forma era apenas uma sede temporária, até o novo templo na cidade alta ser terminado.

No apartamento de Hubbard havia dois quartos prontos para hóspedes, e a mendiga foi colocada num deles.

— Ponha um cadeado na porta — Black disse. — E chame o Astrônomo.

— Lorde Amon já chamou — Hubbard comentou, e deu um tapinha na própria cabeça.

Black voltou ao carro e seguiu novamente para o Bairro dos Curingas.

— Pegaremos sua viatura — Black falou. — Então, seguimos para a delegacia para o seu relatório.

Carroll olhou para ele.

— Quem era aquele cara, tenente?

— Um especialista em doenças mentais e curingas.

— Aquela senhora pode machucá-lo.

— Ele estará mais seguro que nós dois.

Black parou na frente da viatura de Carroll. Saiu e abriu o porta-malas, tirando o casaco e o quepe de Carroll, e passou-os para o jovem policial. Então pegou uma flauta — no Departamento de Polícia de Nova York, uma garrafa inocente de refrigerante cheia de bebida alcoólica — que planejava usar para se manter aquecido durante o plantão do dia seguinte. Ofereceu a flauta para Carroll. O patrulheiro, agradecido, aceitou a garrafa. Black esticou a mão até o coldre de Carroll.

— Foi sorte encontrar você, TN.

— Sim, foi mesmo.

Black atirou quatro vezes no peito de Carroll com a arma deste, então, após o policial estar caído, deu mais dois tiros na cabeça. Limpou as impressões digitais da arma e jogou-a no chão, pegou a garrafa de Coca-Cola e voltou para o carro. Talvez, com o rum derramado, pareceria que Carroll parou um bêbado, e este conseguiu tomar a arma dele.

O carro cheirava a cheeseburger. Black lembrou-se de que não havia jantado.

A mendiga ignorou a cama e foi dormir num canto do quarto. As bolsas estavam empilhadas à frente e em cima dela como uma fortaleza. Hubbard estava sentado num banco, observando-a intensamente. Seu sorriso deformado havia congelado numa paródia desagradável de si mesmo. A dor pulsava no seu cérebro. O esforço de ler sua mente lhe custava.

Sem voltar atrás, ele pensou. Tinha de ver isso até o fim. Seu fracasso com o capitão McPherson lhe custou a estima da Ordem e de Amon; e quando Black apareceu com a mendiga, Hubbard percebeu que esta era a chance de reaver seu lugar. Hubbard mentiu para Black quando disse ao detetive que tinha alertado Amon.

Havia poder ali. Talvez o suficiente para fornecer energia ao dispositivo Shakti. E, se o dispositivo Shakti fosse energizado pela coisa na sacola, então Amon não seria mais necessário.

A coisa na sacola podia engolir pessoas, Hubbard sabia disso. Talvez pudesse até comer Amon. Hubbard pensou no incêndio no velho templo, Amon andava a passos largos pelas chamas com os discípulos atrás dele, ignorando os gritos de Hubbard.

Sim, Hubbard pensou. Valeria o risco.

O detetive Harry Matthias, conhecido na Ordem como Judas, estava sentado na cama, de queixo nas mãos. Ele deu de ombros.

— Ela não é um ás. Nem aquilo que está na bolsa.

Hubbard falou mentalmente para ele. Sinto duas mentes. Uma é a delaé desordenada. Não consigo tocá-la. A outra está na bolsaestá em contato com ela, de alguma forma… existe uma ligação empática. A outra mente também parece estar danificada. Como se estivesse adaptada a ela.

Judas levantou-se. Estava vermelho de ódio.

— Por que, em nome de Deus, não pegamos a maldita bolsa e pronto?

Ele foi até a mendiga com as mãos fechadas.

Hubbard sentiu um estalo elétrico de consciência na mente. A mendiga acordou. Por meio do seu elo mental com Judas, sentiu o homem hesitar com a malevolência súbita nos olhos da velha. Judas alcançou a bolsa.

A bolsa alcançou Judas.

Uma escuridão mais rápida que o pensamento cresceu no quarto. Judas desapareceu nela. Hubbard encarava o espaço vazio. Na sua mente, a loucura afiada da mulher dançava.

Judas estremeceu e seus lábios estavam azuis. O enfeite de natal estava pendurado em seu cabelo. Um pedaço de papelão grudou na sola do sapato. Fora transportado para uma caçamba na Christopher Street e deixou de existir por cerca de vinte minutos. Pegou um táxi de volta.

Poder, Hubbard pensou. Poder incrível. A coisa na sacola distorce de alguma forma o espaço-tempo.

— Por que no lixo? — Judas disse. — Por que pilhas de merda? E olhe para minha arma… — Ele viu o papelão e tentou arrancá-lo do sapato. Ele se descolou com um ruído grudento.

— Ela está estabelecida no lixo, eu acho — disse Hubbard. — E, às vezes, parece retorcer objetos inanimados. Consegui sentir que está quebrado — talvez haja um problema com ele.

Ele precisava descobrir alguma forma de dominar a mendiga. Esperar até ela dormir não adiantou — ela acordou no primeiro movimento ameaçador de Judas. Ele imaginou vagamente um gás venenoso, e então foi acometido por uma ideia.

— Você tem acesso a uma arma de tranquilizantes na delegacia?

Judas balançou a cabeça.

— Não. Acho que talvez os bombeiros tenham alguma para quando lidam com animais fugitivos.

A ideia cristalizou-se na mente de Hubbard.

— Quero que você e Black roubem uma para mim.

Na verdade, ele faria Black atirar — se a coisa na sacola retaliasse, atacaria Black. E, então, com a mendiga dormindo, Hubbard pegaria o dispositivo…

E então, seria a vez de Hubbard. Poderia usar todo o tempo necessário, jogando com a mente da mendiga, e ela teria o suficiente no cérebro para se deixar saber o que estava acontecendo com ela. Ah, sim.

Poderia testar o poder do dispositivo capturado nas pessoas que ele agarrasse na rua. E, depois disso, talvez fosse a vez de Amon.

Lambeu os lábios. Mal podia esperar.

As legiões da noite pareciam infinitas em quantidade. O conhecimento abstrato do androide da classe baixa de Nova York, o fato de que havia milhares de pessoas que perambulavam entre as torres de vidro e fachadas sólidas de arenito numa existência quase tão remota para os habitantes dos prédios quanto aquela dos alienígenas de Marte… Os fatos abstratos digitalizados não eram, de alguma forma, adequados para descrever a realidade, os aglomerados de homens que passavam garrafas em torno de fogos em latas de lixo, os despossuídos cujos olhos refletiam luzes cintilantes de Natal, enquanto viviam atrás de paredes de papelão, os insanos que se abraçavam em becos ou entradas de metrô, entoando a litania dos loucos. Era como se um feitiço do mal tivesse caído sobre a cidade, aquela parte da população que fora exposta à guerra ou à devastação, feitos refugiados sem-teto, enquanto outros foram encantados para que não os vissem.

O androide encontrou dois mortos, o resto de seu calor saindo deles. Ele os deixou em seus caixões de jornal e prosseguiu. Encontrou outros que estavam morrendo ou doentes e os levou para o hospital. Outros correram dele. Alguns fingiam olhar para a imagem da mendiga, levantando a foto Polaroid para olhar a imagem contra a luz do fogo na lata de lixo, e então pediam dinheiro em troca de relacionar uma visão que era obviamente falsa.

A tarefa, ele pensou, era quase inútil.

Seguiu em frente.

Black e Hubbard esperaram fora do quarto trancado da mendiga. Black estava tomando sua flauta de rum e Coca-Cola.

— Sonhos, cara. Sonhos incríveis. Jesus. Monstros como você não acreditaria… corpos de leão, rostos humanos, asas de águia, todo tipo de coisa que possa imaginar… e todos estavam famintos, e todos queriam me devorar. E, então, havia aquela coisa gigante atrás deles, como uma sombra, como, e daí… Jesus. — Ele abriu um sorriso nervoso e bateu na própria testa. — E daí percebi que todos os monstros estavam de alguma forma conectados, que eram todos uma parte daquela coisa. Foi quando acordei gritando. Acontecia repetidamente. Estava quase pronto para ver os psicólogos do departamento.

— Sua mente sonhadora tocou TIAMAT.

— Sim. É o que Matthias… Judas… me disse quando me recrutou. De alguma forma, ele sentiu TIAMAT chegando em mim.

Hubbard deu seu sorriso torto. Black ainda não sabia que o Espectro entrava na sua mente todas as noites, colocando sonhos em sua mente, fazendo-o acordar gritando noite após noite, e levou-o à beira de uma psicose, de forma que, quando Judas explicou aquilo que acontecera a ele e como a Ordem poderia fazer os sonhos desaparecerem, os maçons pareceriam a única resposta possível. Tudo porque a Ordem precisava de alguém de posto mais alto que o de Matthias no Departamento de Polícia de Nova York, e Black era um policial corajoso, marcado para progredir…

— E então fui vetado. — O detetive balançou a cabeça. — Balsam e os outros, maçons da velha guarda, não queriam um cara que tivesse criação católica. Filhos da mãe. E TIAMAT já estava a caminho. Ainda não consigo acreditar.

— Ter o nome em homenagem a Francisco Xavier não ajudou, eu suponho.

— Ao menos nunca descobriram que minha irmã é freira. Isso teria acabado comigo de uma vez. — Ele terminou a flauta e caminhou na direção da sala de estar para jogar a garrafa no lixo.

— E eu consegui na segunda tentativa.

Você nunca saberá por quê, pensou Hubbard. Você nunca saberá que Amon estava usando sua associação como ferramenta contra Balsam, que ele queria o ex-Mestre, com seus preconceitos irracionais e maneiras de velho e estupidez mística herdada, totalmente fora do caminho. Como usou a decisão contra Black para convencer Kim Toy, Red e o Espectro de que Balsam precisava sair. E, então, houve o incêndio no velho templo, de alguma forma orquestrado por Amon, e Amon salvou os seus das chamas, e Balsam e todos os seus seguidores morreram.

Hubbard lembrou-se da explosão, do incêndio, da dor, do jeito que sua carne enegreceu na chama de maçarico. Ele gritou por ajuda, vendo a figura astral gigante de Amon liderando os próprios discípulos para fora, e se Kim Toy não tivesse insistido em voltar por ele, teria morrido naquele momento. Amon não confiava plenamente nele, não naquela época. Hubbard tinha acabado de entrar na Ordem, e Amon não tivera a chance de jogar com ele ainda, de entrar em seu cérebro e fazê-lo se retorcer, fazer jogos mentais infinitos e torcê-lo em nós com uma longa série de humilhações… Sim, pensou, assim é Amon. Eu sei, porque também sou assim.

Bateram à porta. Hubbard supôs que fosse Judas, que trazia a arma tranquilizadora roubada em sua caixa de metal vermelha com os adesivos APENAS PARA USO OFICIAL.

— Ufa. Que saco. Pensei que o capitão McPherson nunca me deixaria sair.

Black e ele tiraram a grande pistola de ar preta da caixa, colocando em seguida um dardo na câmara.

— Isso deve apagá-la por horas — Black disse, confiante. — Vou dar um pouco de comida, então acertá-la da porta quando estiver comendo.

Ele prendeu a pistola na parte de trás do cós da calça, pegou um prato de papel de pizza fria do refrigerador, e caminhou até a porta da mendiga. Destrancou o cadeado pesado e, cuidadosamente, abriu a porta. Hubbard e Matthias, de forma inconsciente, deram um passo para trás, meio que esperando Black desaparecer em qualquer estranheza de espaço-tempo que habitava a bolsa… mas a expressão de Black mudou, ele enfiou a cabeça no quarto, olhou para a direita e para a esquerda. Quando voltou para o corredor, sua expressão era de perplexidade.

— Ela sumiu — disse ele. — Não está em nenhum lugar do quarto.

Modular olhou para os drinques alinhados no bar diante dele. Irish coffee, martíni, margarita, boilermaker, conhaque Napoleon. Queria experimentar a sério esses novos gostos naquele momento e perguntou-se se ter suas peças esmagadas pela engenhoca da mendiga despertara nele um sentido de mortalidade.

— Estou começando a perceber — disse o androide, levando o Irish coffee até os lábios — que meu criador é um sociopata sem cura.

Cyndi refletiu sobre aquilo.

— Se você não se importa com um pouco de teologia, acho que isso só te coloca no mesmo barco que todos nós.

— Ele está começando a… bem, deixa isso pra lá. Mas acho que o homem é doente. — O androide limpou o creme do lábio superior.

— Você poderia fugir. Pelo que eu saiba, escravidão é ilegal. Ele não te paga nem um salário mínimo, eu suponho.

— Não sou uma pessoa. Não sou humano. Máquinas não têm direitos.

— Isso não significa que precisa fazer tudo que ele diz, Modular.

O androide balançou a cabeça.

— Não vai funcionar. Tenho inibições estruturais contra desobediência a ele, desobediência a instruções ou revelação da identidade dele de qualquer maneira.

Cyndi parecia assustada.

— Ele é meticuloso, preciso admitir isso. — Ela olhou para Modular cuidadosamente. — Por que ele te construiu?

— Ia me produzir em massa e vender para os militares. Mas acho que está se divertindo tanto brincando comigo que pode chegar a nunca vender meus direitos para o Pentágono.

— Eu agradeceria, se fosse você.

— Eu não saberia. — O androide pegou outra bebida, então mostrou a Polaroid da mendiga para Cyndi.

— Preciso encontrar esta pessoa.

— Parece uma mendiga.

É uma mendiga.

Ela riu.

— Você não ouviu o noticiário? Sabe quantos milhares de mulheres assim existem nesta cidade? Tem uma recessão acontecendo lá fora. Bêbados, fugitivos, pessoas sem emprego ou sem sorte, pessoas que foram chutadas das instituições para doentes mentais por conta dos cortes no financiamento do Estado… Os abrigos dão preferência aos refugiados do Enxame e não aos sem-teto. Meu Deus… e numa noite como esta também. Sabe que já é a noite de dezembro mais fria da história? Tiveram de abrir igrejas, delegacias… todo tipo de lugares para que os errantes não morressem de frio. E muitos deles não vão para qualquer tipo de abrigo, porque estão muito assustados com as autoridades ou porque são loucos demais para perceber que vão ajudá-los. Não invejo você, Modular, não mesmo. As caçambas de lixo estarão cheias de cadáveres amanhã.

— Eu sei. Encontrei alguns.

— Se quiser encontrá-la antes de ela morrer congelada, tente as latas de lixo com fogueiras, depois os abrigos. — Ela franziu a sobrancelha novamente para olhar a foto. — Por que quer encontrá-la?

— Acho… que ela pode ser testemunha de algo.

— Certo. Muito bem. Boa sorte, então.

O androide olhou sobre o ombro para o deck de observação com sua camada brilhante de gelo. Além do parapeito, Manhattan cintilava friamente para ele, com uma claridade que não tinha visto antes, como se os prédios, as pessoas, as luzes, todas estivessem congeladas dentro de um imenso cristal. Era como se a cidade não estivesse mais perto que as estrelas, e como se fosse tão incapaz de dar calor quanto elas.

Dentro da sua mente, o androide teve um tremor puramente mental. Queria ficar ali, no aconchego do Aces High, experimentando os movimentos perfeitamente abstratos — para ele — de levantar uma bebida quente até os lábios. Havia algo reconfortante nisso, apesar da inutilidade lógica do ato. Não entendia completamente o impulso, apenas o conhecia. Provavelmente a parte humana de sua programação.

Contudo, havia restrições impostas sobre seus desejos, e uma delas era a obediência. Poderia ficar no Aces High apenas se isso pudesse ajudá-lo na missão de encontrar a mendiga.

Terminou a fileira de bebidas e se despediu de Cyndi. A menos que um milagre acontecesse e encontrasse a mendiga logo, passaria o resto da noite nas ruas.

Quatro horas da manhã. O carro passou por uma valeta e derrubou café quente na coxa de Coleman Hubbard. Ele ignorou. Levantou o copo grande de isopor do meio das pernas e tomou apressadamente. Tinha de ficar acordado.

Procurava pela mendiga, passando em cada abrigo, descendo cada rua escura, vasculhando com a mente, esperando encontrar o padrão de loucura e raiva que tinha visto no cérebro perturbado dela.

Estava fazendo isso por boa parte das últimas 24 horas. O aquecedor no carro velho alugado já pifara. Seu corpo era uma massa de cãibras e o crânio pulsava num ritmo de bate-estaca lento. O fato de que Black e Judas estivessem congelando na mesma missão não servia de consolo.

Hubbard esmagou o copo de café entre as coxas, ligou a luz interna do carro e olhou para o papel com a lista de abrigos. Havia uma escola para meninas cheia de refugiados nas proximidades, e ele ainda não a havia rastreado.

Quando se aproximou do local, Hubbard começou a sentir uma familiaridade perturbadora, algo como um déjà vu. A dor de cabeça pulsava em seus olhos. O estômago embrulhou. Demorou poucos segundos antes de ele reconhecer a sensação.

Ela estava ali. A euforia o arrebatou. Ele desviou a mente dos padrões deturpados da mente da mendiga e a expandiu para onde Black patrulhava, a arma de dardo carregada no assento ao lado dele.

Rápido! — gritou. — Encontrei a mulher!

Modular caminhou pelas longas fileiras, rastreando à esquerda e à direita. Oitocentos refugiados foram socados no ginásio da escola secundária. Havia catres para a metade, aparentemente trazidos de algum depósito da Guarda Nacional, e o restante dos refugiados dormia no chão. O grande salão ecoava o som de roncos, gritos e choramingos das crianças.

E ela estava lá. Caminhando entre as fileiras de catres, murmurando consigo mesma, arrastando as bolsas pesadas. Ela ergueu os olhos no mesmo momento em que o androide a viu, e houve um choque mútuo de reconhecimento, um sorriso de dentes corroídos, malevolente.

O androide levantou voo num picossegundo de seu pensamento na velocidade da luz. Queria estar longe de qualquer inocente, se ela soltasse aquela coisa que tinha na bolsa. Mal tinha saído do chão antes de o campo de fluxo de força conectar-se, estalando em volta do seu corpo. A coisa na bolsa não conseguiria agarrar qualquer coisa sólida.

O radar fez a busca, o lançador de granada de gás em seu ombro esquerdo zumbiu enquanto mirava. Seu ombro absorveu o tranco. A granada tomou substância assim que saiu do campo de fluxo, mas manteve a velocidade. O gás opaco cercou a mendiga.

Ela sorriu para si mesma. Uma escuridão estendeu-se ao redor dela, e o gás mergulhou no escuro, sugado pela bolsa como por uma calha.

O pânico ergueu-se entre os refugiados, quando acordaram com a batalha.

A mendiga abriu a sacola de compras. O androide conseguiu ver a escuridão que havia lá dentro. Sentiu algo frio passar por ele, algo que tentava puxar sua forma insubstancial. As vigas de aço que sustentavam o teto tilintaram como sinos sobre a cabeça dele.

O sorriso deformado da mendiga desapareceu.

— Filho da puta — disse ela. — Você lembra o Shaun.

Modular ergueu voo até se aproximar do teto. Mergulharia até ela, se solidificaria no último segundo, agarraria a bolsa e esperaria que ela não o engolisse.

A mendiga começou a esgarçar os dentes num sorriso novamente. Quando o androide chegou ao ponto de mergulho logo acima dela, ela abriu a bolsa sobre a cabeça.

Ela foi engolida. Sua cabeça desapareceu dentro da sacola, seguida pelo restante do corpo. Suas mãos, agarradas nas bordas, puxou a bolsa atrás dela para o vazio. A bolsa dobrou-se em si mesma e desapareceu.

— Não é possível — alguém disse.

O androide buscou cuidadosamente pela sala. A mendiga havia sumido.

Ignorando a perturbação crescente lá embaixo, alçou voo, atravessando o teto. As luzes frias de Manhattan surgiram ao seu redor. Ele voou sozinho noite adentro.

Hubbard olhou por um longo tempo, infinito, para o espaço onde a mendiga estava. Então, é assim que ela faz, pensou.

Esfregou as mãos geladas e pensou nas ruas, as ruas com o frio sem fim, as longas horas gélidas de sua busca. A mendiga deve ter ido para Jersey, pelo que ele podia prever.

Aquela seria uma longa noite.

— Mulherzinha maldita! — disse Travnicek. Sua mão, que segurava uma carta, tremia de ódio. — Estou sendo despejado! — Ele brandia a carta. — Perturbações! — murmurou. — Equipamento sem segurança! Sessenta dias, que merda! — Ele começou a pisotear com suas botas pesadas, tentando deliberadamente trepidar o apartamento de baixo. Sua respiração congelava a cada palavra. — Aquela puta! — urrou. — Conheço o jogo dela! Quer que eu arrume o apartamento com dinheiro do meu bolso para que ela possa me despejar e então cobrar um aluguel maior. Não gastei uma fortuna em benfeitorias para agora ela querer encontrar outro babaca. Algum membro da classe dos malditos aburguesados.

Ele olhou para o androide que, pacientemente, esperava com um pacote de croissants e café quentes.

— Quero que vá até o escritório dela hoje à noite e acabe com aquele lugar — disse Travnicek. — Não deixe nada intacto, nem um pedaço de papel, nem uma cadeira. Quero apenas móveis estraçalhados e confete. E quando ela estiver limpando o escritório, faça o mesmo com o apartamento.

— Sim, senhor — o androide disse, resignado.

— O estúpido Lower East Side — Travnicek falou. — O que vai restar, se este bairro começar a ficar pretensioso? Vou ter que me mudar para o Bairro dos Curingas para ter um pouco de paz. — Pegou o café da mão do androide, enquanto continuava a pisotear o chão de compensado.

Ele olhou sobre o ombro para sua criação.

— E você? — rugiu. — Está procurando pela mendiga ou o quê?

— Sim, senhor. Mas como o lançador de gás não funcionou, pensei em mudar para a luz ofuscante.

Travnicek pulou para lá e para cá várias vezes. O som ecoava pelo apartamento.

— Como quiser. — Ele parou de pular e sorriu. — Tudo bem — disse ele. — Sei o que fazer. Vou ligar os geradores grandes!

O androide pousou o saco de papel na bancada de trabalho, trocou as armas e voou silenciosamente até atravessar o teto. Lá fora, o vento frio continuava a chicotear a cidade, inundando os espaços entre os prédios altos, sacudindo as pessoas como juncos na água. A temperatura mal subira além do congelamento, e o frio do vento derrubava a temperatura efetivamente abaixo de zero.

Mais pessoas, o androide sabia, morreriam.

— Ei — disse Cyndi. — Que tal fazermos uma pausa?

— Tudo bem.

Cyndi levantou as mãos, tomando a cabeça do androide entre elas.

— Todo esse esforço — ela falou. — Você não sua nem um pouco?

— Não. Só ligo minhas unidades de refrigeração.

— Incrível. — O androide deslizou para fora dela. — Fazer isso com uma máquina — ela comenta, pensativa. — Sabe, teria pensado que isso é, no mínimo, um pouco bizarro. Mas não é.

— Legal da sua parte dizer isso. Eu acho.

Modular procurou pela mendiga durante 48 horas e concluiu que precisaria de algumas horas para si. Justificou a parada como necessária para o seu moral. Planejava mover o corpo da memória noturna de seu local sequencial para outro lugar, e preencher o espaço vazio com uma reprise chata da patrulha da noite anterior atrás da mendiga. Com sorte, Travnicek apenas passaria rápido a patrulha e não procuraria a parte pornô da memória.

Ela se sentou na cama, esticando a mão para pegar algo no criado-mudo.

— Quer coca?

— Para mim é desperdício. Vá em frente.

Ela ajustou o espelho cuidadosamente à sua frente e começou a alinhar o pó branco. O androide observava enquanto ela cheirava algumas carreiras e se recostava nos travesseiros com um sorriso. Olhou para ele e pegou sua mão.

— Você não precisa mesmo ser tão ligado em desempenho, viu? — disse ela. — Quer dizer, você poderia ter gozado se quisesse.

— Eu não gozo.

O olhar dela estava um pouco opaco.

— Quê? — ela perguntou.

— Eu não gozo. Orgasmo é uma complexa descarga aleatória de neurônios. Não tenho neurônios e nada que faço é realmente aleatório. Não funcionaria.

— Puta merda — Cyndi piscou para ele. — Então, como é?

— Agradável. De uma forma muito complicada.

Ela tombou a cabeça e pensou sobre essa frase por um momento.

— É isso, então — disse ela. Ela fungou outro par de carreiras e olhou para ele com vivacidade. — Consegui um emprego — falou. — Por isso consegui pagar a coca. Um presente de Natal para mim mesma. — Ela sorriu.

— Parabéns.

— É na Califórnia. Um comercial. Eu fico na mão desse gorila gigante, sabe, e sou resgatada pelo Bud Man. Sabe, o cara dos comerciais de cerveja. E, então, no final… — Ela revira os olhos. — No final ficamos todos felizes e bêbados, o Bud Man, o gorila e eu, e pergunto pro macaco como ele está, e o macaco arrota. — Ela franziu a sobrancelha. — É meio nojento.

— Eu ia dizer isso.

— Mas então há uma chance para atriz convidada no Twenty-Dollar Hotel. Preciso ter um caso com um valentão ou algo assim. Meu agente não explicou direito. — Ela deu um risinho. — Pelo menos não há nenhum gorila gigante nesse. Digo, um foi o bastante.

— Vou sentir saudades — o androide disse. Ele não estava bem certo em como se sentia a esse respeito. Ou mesmo se o que sentiu poderia de qualquer forma ser descrito como sentimento. Cyndi pressentiu seus pensamentos.

— Você vai precisar salvar outras mulheres bacanas.

— Acho que sim. Mas nenhuma mais bacana que você.

Ela riu um pouco mais.

— Você é bom de elogio — disse ela.

— Obrigado.

Ela deu um tapinha em sua cúpula.

— Ainda vai demorar mais ou menos uma semana até eu ir embora. Podemos passar algum tempo juntos.

— Eu adoraria. — O androide estava pensando no anseio por experiências, a maneira estranha que sua ocupação tinha de fornecê-la, um jeito que parecia para ele que a experiência fornecida não era suficiente, nunca se mostraria suficiente.

Os detectores infravermelhos ligavam e desligavam nos olhos plásticos do androide enquanto ele flutuava sobre a rua. Rajadas de vento tentavam lançá-lo na direção dos prédios. Exceto pelas poucas horas que passou com Cyndi, estava fazendo aquilo havia quatro dias sem parar.

Lá embaixo, na rua, alguém lançou um copo de isopor pela janela de um Dodge azul. Modular perguntou-se onde ele tinha visto aquela cena antes.

Interruptores macroatômicos realizaram um filtro superliminar silencioso de dados. E o androide percebeu que estava vendo aquele Dodge azul demais, e em muitos dos mesmos lugares que Modular esteve nos últimos dias — centros de refugiados, abrigos, um patrulhamento incessante das ruas à meia-noite. O androide perguntou-se se o Dodge estaria procurando a mendiga. Modular decidiu manter o Dogde sob observação.

A busca do carro era mais lenta que a do androide — assim, Modular começou a cortar, buscando ruas à esquerda e à direita do carro, voltando ao Dodge de vez em quando. No centro do Exército da Salvação do Bairro dos Curingas, deu uma boa olhada no ocupante do Dodge — um homem branco de meia-idade, o rosto deformado exausto e perturbado. Memorizou a placa do carro e subiu novamente ao céu.

E, então, horas depois, lá estava ela — bem na frente do Dodge, aconchegada ao lado dos degraus de entrada de uma casa com as bolsas empilhadas sobre ela. O androide pousou no telhado e esperou. O Dodge estava reduzindo a velocidade.

— E Shaun diz para mim, ele diz, eu quero que você vá ao médico…

Hubbard encurvou-se em seu sobretudo. Parecia que o vento estava soprando através do seu corpo, viajando diretamente entre sua carne e ossos. Seus dentes batiam. Estava dirigindo pelo que parecia anos a fio, novamente tendo aquela sensação terrível e nauseante de déjà vu.

— Não tem nada errado com sua mãe que uma dose de uísque irlandês não cure…

Black, eu a encontrei. Lower West Side.

A resposta de Black foi cínica. Tem certeza de que nada vai dar errado desta vez?

O robô não está aqui. Ficarei fora da visão.

Dez minutos.

Traga comida, disse Hubbard. Tentaremos pegá-la de surpresa.

— Vai se foder, Shaun, eu digo. Vai se foder. — A mendiga levantou-se num pulo, estava sacudindo o punho para o céu.

Hubbard olhou para ela.

— Estou com você, minha senhora — ele murmurou. E, então, olhou para cima. — Ai, merda — ele falou.

Modular flutuou para fora do telhado. Não conseguia dizer se a mendiga estava gritando para ele ou para o céu de modo geral. O motorista do Dodge estava a muitas casas de distância, escondido atrás de outra escadaria. Não parecia que o homem pretendia fazer alguma coisa.

Pensou sobre o jeito como ela retorceu seus componentes, na obliteração da existência que aconteceria se esmagasse seus geradores ou cérebro. As memórias surgiram em sua mente; o estalo do single malt no nariz, o gordo com o rifle, Cyndi gemendo suavemente em seus braços, o rugir espumante do gorila… Ele não queria perder nada daquilo.

— Ai, merda — disse Hubbard, olhando para cima, horrorizado. O androide flutuava a menos de 15 metros sobre a mendiga. Ela estava gritando para ele, pegando a bolsa. A coisa na bolsa não conseguiu agarrá-lo da última vez.

Em fúria repentina, Hubbard expandiu a mente. Ele tomaria o controle do androide para batê-lo na calçada diversas vezes até não sobrar nada além de componentes estilhaçados…

Sua mente tocou o cérebro macroatômico frio do androide. O fogo floresceu na consciência de Hubbard. Ele começou a gritar.

Havia algo preto na sacola de compras da mendiga. Estava crescendo.

O androide mergulhou direto até a coisa. Seus braços estavam bem abertos. Se a mulher movesse a bolsa no último minuto, as coisas ficariam muito complicadas.

O negror crescia. O vento o arrastava, tentando tirá-lo do curso, mas o androide corrigiu.

Quando atingiu o negrume do portal, sentiu novamente a nulidade destruidora dominá-lo. Mas, antes que perdesse o controle sobre si mesmo, sentiu as mãos se fechando nas bordas da bolsa, prendendo-as, sem deixar escapar.

Por uma pequena fração de segundo, ele se sentiu satisfeito. Então, conforme esperado, não sentiu mais nada.

Os ventos siberianos não esfriaram o ar quente sobre o aterro sanitário próximo de St. Petersburg, na Flórida. O lugar tinha um cheiro horrível. Modular perdera quase quatro horas do seu tempo. Suas verificações não mostraram nenhum dano interno. Teve sorte.

Ele se levantou no meio do lixo fedorento e o revirou em busca da sacola de compras. Trapos, pedaços de roupa, de comida, e então a coisa, fosse lá o que fosse. Uma esfera preta com cerca de dois quilos, do tamanho de uma bola de boliche. Não havia nenhum interruptor aparente ou meio de controlá-la.

A superfície era morna. Prendendo-a ao peito, o androide rumou para o céu agradável.

— Ótimo — disse Travnicek. — Bom trabalho, torradeira. Eu me parabenizo pelo excelente trabalho de programação.

O androide trouxe para ele uma xícara de café. Travnicek riu, deu um gole, e virou-se para contemplar o orbe alienígeno, sentado na bancada de trabalho. Tentou manipulá-lo com diversos tipos de controles remotos, mas não conseguiu nada.

Travnicek moveu-se na direção da bancada e estudou a esfera de uma distância respeitosa.

— Talvez seja necessária proximidade para acioná-la — o androide sugeriu. — Talvez você deva tocá-la.

— Talvez você deva cuidar da porra da sua vida. Não vou me aproximar desse treco.

— Sim, senhor. — O androide ficou em silêncio por um momento. Travnicek bebericava do café. Então, balançou a cabeça e afastou-se da bancada.

— Você pode voar para o Peru amanhã e juntar-se aos seus amigos do Exército. E faça contato com os governos sul-americanos enquanto estiver lá. Talvez paguem mais do que o Pentágono.

— Sim, senhor.

Travnicek esfregou as mãos.

— Quero comemorar, batedeira. Vá até a loja e me traga uma garrafa de champanhe e algumas rosquinhas com geleia.

— Sim, senhor. — O androide, sem expressão, tornou-se insubstancial e atravessou o teto voando.

Travnicek entrou no pequeno quarto aquecido no qual dormia, ligou a televisão e sentou-se na poltrona gasta. No meio da agitação de último minuto da noite de Natal para os compradores atrasados, o aparelho exibia um desenho japonês sobre um androide gigante que lutava contra lagartos cuspidores de fogo. Travnicek amava isso. Recostou-se para assistir.

Quando o androide voltou, encontrou Travnicek dormindo. Reginald Owen estava fazendo papel de Scrooge na tela. Modular pousou a sacola em silêncio e retirou-se.

Talvez Cyndi estivesse em casa.

Coleman Hubbard estava sentado com as roupas institucionais em sua ala em Bellevue. Pessoas mentalmente perturbadas caminhavam, brigavam, jogavam cartas. Uma pequena árvore de plástico piscava na ala das enfermeiras. Sem ser visto por ninguém, exceto o detetive John F. X. Black, Amon flutuava majestosamente sobre a cabeça de Hubbard, ouvindo-o enquanto ele falava.

— Um, um, zero, um, zero, zero, zero, um, um, zero, um, um, um…

— Vinte e quatro horas — Black disse. — Não conseguimos nada dele além disso.

— Um, zero, zero, zero, um, zero…

A imagem de Amon pareceu sumir por um momento, e Hubbard viu de soslaio a figura de um velho magro com olhos de sombras quebradiças. Então, Amon estava de volta.

Não consigo entrar em contato com ele. Nem mesmo causar dor. É como se a mente dele estivesse em contato com… algum tipo de máquina. Suas mãos cerradas. O que aconteceu com ele? Que tipo de máquina fez contato com ele lá fora?

Black ergueu uma sobrancelha. TIAMAT?

Não. TIAMAT não é assim… TIAMAT é mais vivo do que qualquer coisa que você já tenha visto.

— … zero, um, um, zero, zero, zero, um, zero…

Quando o encontrei, vi a mendiga, coloquei-a para dormir e não encontrei nada em suas bolsas. Seja lá o que tenha acontecido, outra pessoa está com a coisa agora.

— … um, zero, zero, um, zero…

Os olhos do carneiro se incendiaram, e então seu corpo se contorceu, ficando na forma esguia de um galgo com um focinho curvado e presas à mostra, um rabo gigante bifurcado erguendo-se das costas. O medo escalou o pescoço de Black. Amon tornou-se Setekh, o destruidor. A ilusão astral era assustadoramente real. Black esperava ver o sangue pingando do focinho do animal, mas não aconteceu. Ainda não, de qualquer forma.

Ele te usou numa missão não autorizada, disse Setekh. Como parte de uma trama que provavelmente tinha a mim como alvo. Agora, ele é um perigo para todos nós. Se sair deste estado, poderá dizer algo que não deve.

Destrua-o, Mestre, Black disse.

Uma espuma respingava do focinho daquela coisa, esfumaçando no assoalho. Os outros pacientes não prestavam atenção. O grande cão hesitou.

Se eu entrar na mente dele poderia ver… o que ele viu.

Black deu de ombros. Quer que eu faça isso?

Sim. Acredito que seja melhor.

Já plantei o testamento no apartamento dele. Aquele que deixa tudo para nossa organização.

A língua da fera se desenrolou. O olhar dela se suavizou. Você pensa adiante. Gosto disso. Talvez possamos lhe dar uma promoção.

A milhões de quilômetros da Terra, quase eclipsada pelo sol, a Mãe do Enxame contemplava seus brotos sobreviventes, espalhados. Observadores na Terra teriam ficado surpresos de saber que o Enxame não considerava seu ataque uma falha. Havia sido lançado mais como um teste do que como uma tentativa séria de conquista, e o Enxame, analisando os dados recebidos de sua criatura, desenvolveu diversas hipóteses.

O Enxame traciano foi confrontado por três reações que falharam totalmente em cooperar uma com a outra. Era possível, o Enxame considerou, que a Terra fosse dividida entre diversas entidades, equivalentes à Mãe do Enxame, que não se ajudaram mutuamente nos seus esforços.

Grandes quantidades do Enxame siberiano foram destruídas de uma vez, transmitindo sua agonia telepática à sua matriz. Era óbvio que as mães da Terra possuíam alguma forma de arma devastadora, que, no entanto, estavam relutantes em usar, exceto em áreas desabitadas. Talvez os efeitos ambientais fossem penosos.

Possivelmente, o Enxame ponderou, se as mães da Terra fossem divididas e todas possuíssem essas armas, poderiam se voltar umas contra as outras. Se a Terra fosse, dessa forma, desolada, o Enxame estaria disposto a esperar milhares de anos necessários para a Terra tornar-se útil novamente. O período não seria nada se comparado aos anos que o Enxame já esperara.

O Enxame, dessa maneira eclipsado pelo sol, decidiu concentrar as atividades de monitoramento para confirmar essas hipóteses.

Sentia oportunidades ali.

— Então eu digo para Maxine, eu digo, quando você vai fazer alguma coisa sobre sua doença? Eu digo, é hora de ir ao médico…

A mendiga, com uma sacola de compras pendurada no braço, enquanto espreme uma segunda sacola contra o peito, caminhava lentamente pelo beco, lutando contra o vento siberiano.

Os cabelos loiros de Cyndi debatiam-se na brisa, enquanto tremia dentro de uma jaqueta de pele de cordeiro. Ela viu quando Modular tentou falar com a mulher, lhe dar um pacote cheio de comida chinesa, mas a mendiga continuava a murmurar consigo mesma e caminhar com pesar pelo beco. Finalmente, o androide enfiou o pacote de comida na sacola da mulher e voltou até onde Cyndi o esperava.

— Desista, Mod. Não há nada que você possa fazer por ela.

Ele a tomou nos braços e voou em espiral na direção do céu.

— Continuo achando que posso.

— Poderes super-humanos não são respostas para tudo, Mod. Você precisa aprender a lidar com suas limitações.

O androide se calou.

— O que você precisa entender, se esse negócio não deixar você maluco, é que ninguém inventou um poder carta selvagem que possa fazer qualquer porcaria por senhoras que estão fora de si e que carregam o mundo todo com elas em sacolas de compra e vivem em latas de lixo. Não tenho nenhum poder, e até eu sei disso. — Ela fez uma pausa. — Está me ouvindo, Mod?

— Sim. Eu te ouvi. Sabe de uma coisa, você é teimosa demais para ser uma garota que acabou de chegar de Minnesota.

— Ei! Hibbing é uma cidade difícil durante a recessão.

Subiram, pairando na direção do Aces High. Cyndi pôs a mão no bolso da jaqueta e mostrou um pacotinho enrolado em fita vermelha.

— Seu presente — disse ela. — Acho que é nossa última noite juntos. Feliz Natal.

O androide parecia envergonhado.

— Não pensei em comprar nada para você.

— Tudo bem. Você estava bastante ocupado.

Modular abriu o pacote. O vento agarrou a fita brilhante e a rodopiou para dentro da escuridão. Dentro do embrulho havia um broche dourado no formato de uma carta de baralho, o ás de copas, com as palavras MEU HERÓI gravadas.

— Achei que poderia usar para se sentir melhor. Pode usar na sua cueca boxer.

— Obrigado. Bela dica.

— De nada. — Cyndi o abraçou.

O Empire State lançava um feixe de luzes coloridas para dentro da noite. O casal aterrissou no terraço de Hiram. Dava para ouvir os sons de agitação do bar, mesmo com as rajadas de vento. Uma multidão natalina comemorava. Cyndi e Modular olharam por um bom tempo através da janela.

— Ei — disse ela. — Estou cansada de comida chique.

O androide pensou por um momento.

— Eu também.

— Que tal um restaurante chinês? Depois podemos ir para o meu apartamento.

Ele foi preenchido pelo calor humano, mesmo ali, na corrente de vento siberiana. Numa fração de segundo, estava no ar.

Lá embaixo, no beco, algo brilhante chamou a atenção da mendiga. Ela se curvou e apanhou um fio da fita vermelha. Enfiou-o numa sacola e continuou sua caminhada.

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