Nota final

Apesar de ter desempenhado um papel na confirmação do massacre de Wiriyamu, nunca à minha frente o meu pai falou sobre o que viu no dia em que visitou a aldeia destruída. Em bom rigor, não tinha por hábito trazer para casa as questões e os problemas que enfrentava no trabalho.

Aconteceu uma ou outra vez fazer diante de mim uma referência bem-humorada a um qualquer aspecto da sua vida profissional no mato, como a amizade que estabelecia com os feiticeiros das aldeias ou aquela vez em que lhe ofereceram um elefante bebé para lhe agradecer a ajuda que prestava, mas jamais uma exposição estruturada de tudo o que fez ou lhe aconteceu.

Assim, tudo o que sei sobre a sua vida até ao dia do massacre resulta do que me disseram as pessoas que o conheceram e com ele viveram essas situações. Lembro-me, porém, de viajar com o meu pai de e para o Songo no Piper Cherokee do Serviço Médico Aéreo, de sobrevoar o Zambeze do Songo até Tete e observar lá em baixo o espantoso espectáculo do banho dos elefantes e dos hipopótamos e dos antílopes e dos crocodilos, e de uma vez ter feito o périplo semanal do serviço na companhia do meu amigo Nuno Canhão, filho mais velho do comandante da PSP de Tete.

Como facilmente se depreende das minhas palavras, esta obra é pois inspirada em factos reais, embora livremente ficcionados. As narrativas amorosas são puras invenções, uma vez que coisas dessas raramente alguém relata a um romancista, mas decerto que em África, e naquele tempo, decorreram muitas histórias semelhantes. Afinal não havia televisão para entreter... As outras histórias são quase decalcadas da realidade ou ficções inspiradas em coisas que realmente aconteceram e que comprimi aqui e ali para o romance.

A ficção é particularmente livre no final do livro. Embora tenha sido levado para Nampula e permanecido incomunicável durante meses, nunca o meu pai contou o que lá se passou, para além de que havia sido "bem tratado". Sei que fez um protesto na qualidade de presidente da Cruz Vermelha de Tete e há múltiplas informações de que ele terá de facto preparado um relatório sobre o que testemunhou em Wiriyamu, mas nunca vi esse documento.

O inspector Joaquim Sabino, da DGS em Tete, afirmou ter- lhe ordenado que não mostrasse o relatório a ninguém. Não sei se o fez ou não. O facto é que o padre Hastings, que denunciou o massacre no The Times, o cita como fonte de informação. E, na preparação deste romance, cruzei-me no Hotel Polana, em Maputo, com um velho conhecido do meu pai que me disse que, pouco tempo depois do massacre, ele lhe contou pormenorizadamente tudo o que vira na aldeia, sinal de que não cumpriu a ordem de silêncio.

Para todos os efeitos, e embora Wiriyamu tenha constituído o maior embaraço público de Portugal na guerra em África, esta obra não é exclusivamente sobre os trágicos acontecimentos nessa aldeia. E antes um romance sobre os Portugueses na África onde nasci, um registo ficcional de um pedaço da nossa história que procurei abordar nas suas múltiplas contradições e evitando as colorações ideológicas que tendem a simplificar os factos e as suas causas. A história é feita de histórias e são elas que a tornam viva.

Devo agradecimentos a um conjunto de pessoas que se disponibilizaram para me ajudar na reconstituição dos factos e sobretudo do espírito daquele tempo. Obrigado à minha mãe, Maria Manuela Matos; à minha tia Rosalina Rodrigues dos Santos; ao meu tio coronel Mário Rodrigues dos Santos — todos pelas narrativas de família que serviram de inspirarão a este romance. Ao meu primo Carlos Marques, que comigo partilhou a sua experiência de guerra em Tete; a Djamila, a enfermeira que com o meu pai e a irmã Lúcia foi a Wiriyamu logo a seguir ao massacre; ao Augusto Macedo Pinto, pela ajuda e pelo entusiasmo e também pelo caloroso acolhimento no meu regresso a Moçambique. A Antonino Melo, o homem que comandou a 6." Companhia de Comandos de Moçambique na operação que culminou no massacre de Wiriyamu e que me relatou ao pormenor tudo o que fez, mandou fazer e testemunhou; a Vinte Pacanate, um dos sobreviventes, que me descreveu o que se passou no dia do massacre; a Lúcio Jeremias, funcionário da PIDE em Tete. A Margarida Canhão, viúva do comandante da PSP de Tete; a Castro Fontes, chefe da Missão de Fomento e Povoamento do Zambeze e do seu sucessor, o GPZ; a Augústo Coutinho, antigo médico em Cabora Bassa; a Joaquim Prazeres, fundador do Aero-Clube de Tete e piloto ocasional do Serviço Médico Aéreo; a Óscar Ribeiro, outro piloto ocasional do Serviço Médico Aéreo. A António Ferreira dos Santos, Leonardo Júnior, Armando Soares e Carlos Salvador, que me guiaram por Tete. A Serafim Guimarães, da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto; a Olga Magalhães, também da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto; a Amélia Ferraz, directora do Museu de História da Medicina; a Assunção Lima, do Gabinete do Antigo Estudante da Universidade do Porto. Aos funcionários do Arquivo Histórico-Militar, que me facilitaram o acesso à pasta da 6.a Companhia de Comandos de Moçambique; aos funcionários da Biblioteca Nacional; e a Leonor Vaz, da Fundação Calouste Gulbenkian, que me cedeu cópias das deliberações da fundação no apoio ao Serviço Médico Aéreo.

Entre as obras consultadas, destaque para Wiriyamu, de Adrian Hastings; Guerra Colonial, de Aniceto Afonso e Carlos de Matos Gomes; Guerra de África — Moçambique, de Francisco Garcia;


Caetano e o Ocaso do «Império» — Administração e Guerra Colonial em Moçambique durante o Marcelismo, de Amélia Neves de Souto; Memória das Guerras Coloniais, de João Paulo Guerra;

Massacres em Africa, de Felícia Cabrita; Memórias do Colonialismo e da Guerra e A PIDE/DGS na Guerra Colonial, de Dalila Cabrita Mateus; A História da P1DE, de Irene Flunser Pimentel; e A Guerra de África, de José Freire Antunes.

O último agradecimento, e o mais importante, vai para a Florbela, como sempre a primeira leitora.


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