Satisfeito, fez sinal aos dois homens da DGS e depois olhou interrogadoramente para Diogo.
"Vens?"
"Onde?"
"Vou inspeccionar as posições do meu pessoal", explicou Angelino. "Não quero cá surpresas."
O amigo hesitou. Estava tentado a seguir o comandante, conforme aliás ficara combinado previamente, mas nunca tinha visto a DGS em acção num interrogatório e queria saber como era.
"Deixa estar", decidiu. "Eu fico."
*Os dois operacionais da DGS, Francisco e Maurício, aguardaram que Angelino se afastasse para cruzarem o cordão de comandos. Passaram mesmo ao lado de Diogo e só se detiveram quando chegaram à beira dos habitantes da aldeia. O silêncio na clareira de Wiriyamu tornara-se absoluto.
"Viram bandido aqui?", perguntou Francisco.
As cabeças dos populares abanaram num movimento de negação que parecia sincronizado.
"Não, patrão."
"Isso é mentira!", rugiu o homem da DGS, erguendo a voz e falando com o sotaque local para facilitar a compreensão. "Há bandido aqui! Os turra andam aqui na aldeia! Atacam a tropa!
Disparam sobre avião! Eles andam aqui! Onde estão os turra?"
A multidão permaneceu silenciosa, receando provocar a ira daquele homenzarrão branco com fama de ter um temperamento violento. Francisco esperou ainda um instante, os olhos pequenos a saltitar entre um aldeão e outro, como se tivesse o poder de assim lhes arrancar a verdade. Nem um único olhardos aldeãos se cruzou porém com o seu; todos evitavam o contacto com os olhos do interrogador.
"Há turra na aldeia!", insistiu Francisco. "Onde está ele? Aponta para mim quem aqui é bandido!"
Os populares mantiveram-se calados, os olhos pousados no chão ou a passear apreensivamente pelos soldados que os cercavam. O homem da DGS impacientou-se e carregou as sobrancelhas, assumindo uma expressão ainda mais ameaçadora.
"Se vocês não apontam é porque vocês também são bandido! Ouviram? Se não dizem onde estão os turra é porque vocês são os turra!" Fez uma pausa, deixando a ameaça assentar. "Onde estão os turra?"
Sentindo a tensão crescer, a multidão agitou-se, nervosa, mas ninguém disse nada. Cruzavam-se olhares e apenas isso. Francisco respirou fundo, preparando-se para avançar para os grandes meios, e estudou o rosto dos homens mais velhos. Um deles parecia ocupar uma posição dominante e, pela forma como os restantes o rodeavam, o interrogador percebeu que só podia ser o chefe da aldeia.
"Tu aí", indicou. "Como te chamas?"
"Wiriyamu."
"Es o fumo Wiriyamu?"
"lá, patrão."
Fez-lhe com o dedo sinal de que se levantasse e aproximasse. O homem obedeceu e foi ter com o interrogador da DGS.
"Onde estão os turra?"
"Aqui não há turra, patrão."
"Claro que há turra!", cortou Francisco com rispidez. "Maningue turra, até!" Mudou de repente o tom de voz, como se algo tivesse acabado de lhe ocorrer. "Disseram-me que o Raimundo anda por aqui. Onde está ele?"
O homem abanou a cabeça com ênfase.
"Eu não vi, patrão."
"O Mendes dos cabritos diz que marcou encontro com o Raimundo ali junto à pedra tombonhapangara."
O fumo hesitou um tudo-nada, evidentemente surpreendido por essa informação estar na posse do seu interrogador.
"Eu... eu não sei nada, patrão."
Francisco fixou o chefe da aldeia com intensidade, tornando claro que não se sentia minimamente satisfeito com as respostas que até ali lhe haviam sido dadas e muito menos convencido de tanta ignorância em relação à presença de guerrilheiros no sector. E a hesitação do fumo quando lhe falou no encontro de Mendes com os guerrilheiros provava que os aldeãos lhe estavam a ocultar coisas.
"Não sabes nada de nada?...", murmurou com uma tranquilidade sinistra, o tom de voz carregado de sarcasmo ameaçador. "Não viste o Raimundo por aqui? Não viste nenhum turra?"
"Nada, patrão."
"Estás-me a partir a vista!"
"Não estou, patrão. Aqui não tem turra."
O agente da DGS voltou a cabeça para a clareira, como se procurasse alguma coisa, e indicou um espaço vazio molhado por água tirada de um poço.
"Vai para ali e rebola no matope."
O homem arregalou os olhos, sem entender.
"Como, patrão?"
Francisco indicou o local com veemência, o braço estendido a apontar para o espaço.
"Rebola no matope!"
Espantado com a ordem, o fumo caminhou para a abertura na clareira e deitou-se no solo molhado. Olhou para Francisco para ver se era aquilo que queria e o interrogador fez-lhe sinal com o dedo de que girasse. O homem começou a virar-se para um lado e para outro, rolando pela terra enlameada. Os soldados desataram a rir, divertidos com o caricato de ver um chefe a rebolar e a dar cambalhotas, a pele negra coberta já de lama cor de laranja. Não havia muitas diversões no mato e aquele espectáculo inesperado era do mais engraçado que haviam presenciado nos últimos tempos.
Francisco deixou correr a cena durante alguns momentos, também ele divertido com a figura do fumo da aldeia a cabriolar pela lama, até que, percebendo que não podia desperdiçar muito tempo, fez ao homem sinal para parar.
"Levanta-te!", ordenou. "Se queres viver, foge!"
O fumo não percebeu o sentido da última frase, mas parou as cambalhotas e ergueu-se, expectante.
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Francisco virou-se para os comandos e apontou para o alvo.
"Mata a gazela!"
Os soldados viraram as G3 de imediato para o chefe da aldeia e abriram fogo. O corpo do fumo Wiriyamu foi sacudido pela súbita erupção de rajadas e tombou desarticulado como um trapo abandonado.
Um murmúrio de horror percorreu a multidão; se os soldados nem o fumo respeitavam, ninguém estava em segurança. Também Diogo se sentia estupefacto com o que acabara de testemunhar e a ideia de intervir cruzou-lhe a mente. No entanto, olhou em redor e percebeu pela expressão dos comandos que qualquer palavra sua teria efeitos contraproducentes; poderiam até matar mais gente só para o irritar. Optou pelo silêncio.
"Então? Tem aqui turra ou não tem?"
O homem da DGS esperava que a súbita execução do fumo soltasse algumas línguas, mas ninguém disse nada. A constatação fê-lo arfar de fúria. Virou o dedo na direcção de um homem novo, teria vinte e poucos anos e era decerto um guerrilheiro à paisana.
"Tu aí!", chamou. "Como te chamas?"
O homem tremia por se ver interpelado.
"Tinta, patrão."
"Onde estão os turra aqui?"
"Eu... eu não sei, patrão. Aqui não há turra."
Francisco pegou numa maça de madeira que habitualmente trazia consigo nos interrogatórios e aproximou-se do homem.
"Se dizes isso é porque és tu o turra!"
"Eu não sou turra, patrão. Eu sou..."
A frase não foi terminada porque, com um movimento rápido e inesperado, Francisco girou a maça e bateu com grande violência na cabeça de Tinta, que ficou logo ali estendido; ninguém conseguiria sobreviver a uma pancada daquelas. O interrogador pôs um pé sobre o corpo inerte e depois o outro, e, para espanto geral, começou a saltitar em cima do cadáver. Os comandos riram com o inusitado da situação; só mesmo da mente daquele homem poderiam vir ideias assim.
A estupefacção de Diogo não tinha limites. Se queria saber como era um interrogatório da DGS, o que se passava diante dele revelava-se eloquente. Sentiu vontade de vomitar e afastou- se, refugiando-se na orla da clareira, de onde observou à distância os acontecimentos que se seguiram.
Francisco retomou o interrogatório. Tinha a certeza absoluta de que os guerrilheiros estavam infiltrados naquela aldeia e precisava de os identificar para obter informações. Chamou um terceiro homem, que se apresentou como Kupensar, e fez-lhe as mesmas perguntas que havia feito aos anteriores. Como Kupensar nada disse, esmurrou-o e pontapeou-o até o deixar exangue. Nessa altura deu-lhe um tiro na cabeça e chamou o seguinte. O mesmo processo se repetiu com Chaphuka, com Djoni e com mais alguns homens em idade de combater, terminando sempre com as mesmas agressões e o inevitável tiro final.
"Parem lá com isso!"
O interrogatório foi interrompido por Angelino, que regressou da sua inspecção e entrou apressadamente na clareira.
"O quê?", perguntou Francisco, apoiando-se na maça enquanto arfava para recuperar o fôlego.
"O que foi?"
"Não temos muito tempo", avisou o comandante dos comandos, batendo com o indicador no mostrador do relógio. "Ainda é preciso limpar isto tudo e voltar para a estrada a pé antes que a noite caia."
Francisco passou as costas da mão pela testa e limpou o suor, deixando inadvertidamente um sulco de sangue a manchar-lhe a fronte.
"Eu sei."
"E não é só isso", acrescentou Angelino. "Uma posição estática é uma posição vulnerável. Temos de nos pôr em movimento se queremos evitar surpresas."
"E só mais um bocadinho."
A intervenção do amigo deu a Diogo a esperança de que tudo acabasse de imediato, mas não foi o que aconteceu. O comandante dos comandos fez tenção de se afastar e deteve-se quando pousou o olhar nos cadáveres estendidos no chão.
"Os gajos disseram alguma coisa?"
"Não", retorquiu Francisco. "A maior parte desta malta é turra. E os que não são têm medo de pôr a boca no trombone. Deve haver turras aqui no meio a vigiá-los."
"Eles têm medo dos turras?"
"Pelos vistos." O rosto do ex-legionário abriu-se num sorriso sem humor. "Mas a partir de agora vão ter mais medo de nós..."
O chefe dos comandos assentiu e deu meia volta. Diogo correu no seu encalço e agarrou-lhe no ombro, travando-o.
"Não paras isto?", perguntou, fazendo um gesto para a multidão. "Os gajos estão a matar civis a sangue frio!..."
Angelino lançou um novo olhar em direcção aos corpos estendidos no chão e abanou a cabeça com uma expressão severa.
"O interrogatório está a ser conduzido pela PIDE", disse, exprimindo o óbvio. "Nem te atrevas a intrometer-te. Se não queres participar, deixa-te estar quieto. Se te meteres, arriscas-te a sofrer as consequências."
"Mas..."
O comandante calou-o com um gesto peremptório.
"Não há 'mas' nem meio 'mas'!", vociferou. "Já te disse que a guerra não é um filme americano em que os bons poupam os maus." Indicou os cadáveres com a cabeça. "A guerra é isto." Colou o indicador ao peito do amigo, como se o dedo fosse o cano de uma arma. "Podes não ser um comando, mas vieste com os comandos e espero que te comportes como tal. Não quero ouvir da tua parte nem mais um 'mas' enquanto durar a porra desta operação, ouviste?"
Sem esperar pela resposta, Angelino virou costas e afastou- se, iniciando mais uma ronda; estava preocupado com a segurança do perímetro e não tinha disposição para aturar conversa de tropa macaca. O importante era assegurar-se da disciplina entre os seus homens. Já havia apanhado dois soldados a violarem uma mulher dentro de uma cubata e precisava de se certificar de que isso não voltava a acontecer; era perigoso abandonar posições de vigilância durante uma operação.
Diogo ficou a vê-lo desaparecer entre as palhotas e sentiu-se impotente para travar o que sucedia em seu redor; parecia-lhe que uma corrente brutal o arrastava para o fundo do rio, indiferente aos seus esforços de se salvar. Abanou a cabeça e deu meia volta, cabisbaixo e derrotado.
"Miúdos estúpidos", murmurou. "Metem armas nas mãos de miúdos estúpidos!..."
Pressentindo a urgência de terminar o interrogatório e sem ter ainda arrancado daquela gente quaisquer informações palpáveis, o inquisidor da DGS decidiu mudar de táctica. Afastou-se do grupo de homens e dirigiu-se para as mulheres, que se remexeram, inquietas, quando o viram aproximar-se. Francisco apontou para uma delas.
"Tu aí, levanta-te!"
Uma mulher com uma criança de nove meses ao colo ficou com a impressão de que o dedo a identificava e ainda olhou em redor, na esperança de que fosse outra a interpelada, mas como ninguém se acusou teve de se render à evidência.
"Eu, patrão?"
"Iá, tu. Põe-te em pé!"
A mulher ajeitou o filho ao colo, acomodando-o na capulana azul e dourada, e levantou-se.
Quando olhou na direcção do homem da DGS viu que ele lhe apontava uma espingarda automática.
Crack.
A mulher tombou com um buraco a meio da testa. A criança desenvencilhou-se da capulana e sentou-se ao lado do cadáver da mãe a chorar convulsivamente. O ranho escorria-lhe das narinas para o lábio superior e para dentro da boca. A multidão mostrava-se atordoada e ninguém se atreveu a levantar-se para ir buscar a criança. O choro desconsolado encheu a clareira.
"Quem é turra?", berrou Francisco para a multidão. "Aponta o turra para mim, porque senão és tu o turra!"
Os aldeãos pareciam paralisados pelo horror. Algumas pessoas choravam amargamente e as restantes não tinham reacção, pareciam estonteadas, talvez nem sequer acreditassem que estavam despertas e que o pesadelo decorria no mundo real.
"Quem é turra?", insistiu o homem da DGS. "Quem..."
"Chega!"
Regressado da inspecção, Angelino entrou apressadamente na clareira e de novo deteve o interrogatório, reavivando as esperanças de Diogo de que toda aquela loucura fosse travada.
Desagradado com a interrupção, Francisco acolheu o comandante dos comandos com mal disfarçada hostilidade.
"Que é agora?"
"Temos de limpar isto e ir embora", ordenou Angelino. "Já aqui estamos há demasiado tempo."
O operacional da DGS suspirou, frustrado; não tinha conseguido extrair nada de útil daquela gente. Porém, como antigo legionário, entendia a urgência do alferes.
"Está bem", rendeu-se. Fez um sinal para Samuel. "Comecem a liquidá-los."
O comando negro apontou para uma mulher.
"Tu! Levanta-te!"
A mulher obedeceu, apesar do medo que lhe tolhia os movimentos, e foi de imediato abatida.
"Agora tu!"
O homem apontado ergueu-se, algo atarantado, e foi logo morto. Outros soldados seguiram o exemplo, ordenando a uma e outra pessoa que se levantassem e abatendo-as de imediato.
Angelino decidiu intervir mais uma vez.
"Parem com isso!", ordenou. "O que estão vocês a fazer?"
As execuções foram suspensas e Francisco voltou-se para o comandante da 6.a Companhia, cada vez mais frustrado com aquelas interrupções contínuas.
"Temos de os liquidar."
"Mas isto não é maneira de proceder", insistiu Angelino. "Não será melhor levarmos esta gente toda para outro sítio?"
"Qual sítio?"
"Sei lá! Um aldeamento, por exemplo. Há por aí tantos..."
"Estás a sugerir que andemos no mato com esta malta toda, como cães a escoltar um rebanho?"
"Nós não, claro. Acho é que a ZOT não sabe da existência de tanta população por aqui. Se calhar era melhor informarmos a ZOT e eles depois tratavam de vir cá e aldear este pessoal todo."
"Estás a gozar?", admirou-se o homem da DGS, revirando os olhos. "Claro que a ZOT sabe da existência destas populações. Não te esqueças que o chefe mandou limpar toda esta zona. Ou não tens as mesmas ordens?"
Angelino hesitou. De facto havia recebido instruções na ZOT para limpar o teatro de operações.
Em toda aquela região só existiam guerrilheiros disfarçados de civis e civis afectos ao inimigo; até as crianças poderiam ser fontes de informação preciosas ou apoio para os turras. Além do mais, toda aquela gente era testemunha dos interrogatórios e dos métodos a que haviam recorrido. Estas testemunhas tinham de ser caladas.
O chefe dos comandos assentiu com a cabeça, dando luz verde a Francisco. Apesar de não ser ele a comandar aquele grupo de forças especiais, o operacional da DGS olhou para os homens da 6.a Companhia como se eles estivessem sob as suas ordens.
"P'ani wense!", ordenou-lhes em nhungué, a língua da maior parte dos comandos. "Matem-nos a todos! P'ani wense! Quem sobreviver vai denunciar-nos!"
Retomaram o mesmo processo de execuções. Os soldados diziam a um homem ou a uma mulher que se levantassem e, logo que os aldeãos se erguiam, abatiam-nos a tiro. Parecia um exercício de fogo real, tão real que usava alvos humanos vivos.
Samuel, todavia, acabou por se cansar daquele método um pouco repetitivo e decidiu inovar.
Aproximou-se de uma rapariga de quatro anos, acariciou-lhe a cabeça e ajoelhou-se diante dela, pondo-se ao mesmo nível.
"Tens fome?", perguntou com simulada compaixão. Sem esperar pela resposta, forçou o cano da G3 pela boca dá criança. "Toma o biberão." Empurrou a arma até ao fundo. "Chupa!"
Crack.
A rapariga tombou com a nuca desfeita. A ideia foi de imediato aproveitada pelos camaradas, que passaram a executar aldeãos com tiros na boca. Havia disparos por toda a parte e os habitantes da aldeia rolavam como alvos de caça. Tudo isto era de mais para Diogo, que vomitou pela terceira vez consecutiva e voltou o rosto para o mato, escutando apenas os gritos e os tiros.
No meio da confusão, Angelino ergueu as mãos e mais uma vez mandou suspender fogo.
"Eh pá, isto não pode ser assim!", interrompeu de novo o comandante da 6.a Companhia. "E
maningue gente e se os vamos matar todos a tiro nunca mais saímos daqui. Além disso, nem há balas que cheguem. Se os turras atacarem apanham-nos sem munições."
Francisco arremessou-lhe um olhar carregado de repreensão; já estava a ficar farto daquelas objecções constantes.
"O que sugeres?"
O chefe dos comandos procurou em redor e fixou a atenção nas cubatas que cercavam a clareira.
Concebeu a ideia quase instantaneamente e apontou com um gesto peremptório para as construções de palha com telhados cónicos.
"Toda a gente para as palhotas!", ordenou, pondo-se a empurrar as pessoas que estavam à sua frente. "Vamos! Toda a gente!"
Os soldados e os dois homens da DGS ficaram por momentos imóveis, sem perceber o que o comandante tinha em mente.
"O que estás a fazer?", perguntou Francisco.
Em resposta, Angelino bateu com a mão no cinto.
"Usamos as granadas."
Os olhos do interrogador da DGS brilharam pela primeira vez de aprovação.
"Boa ideia!"
Os militares começaram a imitar o alferes e a empurrar os aldeãos para as palhotas; pareciam pastores a conduzir o gado para o matadouro. As mulheres escondiam-se umas atrás das outras, muito juntas e a proteger os filhos com o corpo e os braços, mas obedeciam e, em passos pequenos, empurrando-se e encolhendo-se, foram-se enfiando nas cubatas como formigas em carreira.
Angelino, talvez satisfeito com a ideia que iria apressar o processo de limpeza da aldeia, pôs-se a cantarolar enquanto a massa humana fazia fila para entrar nas casas de palha.
"Quem quer casar comigo?", entoou, recorrendo à rima infantil da Carochinha. "Quem quer casar comigo, que sou formosa e bonitinha?"
Da fila saiu projectada uma menina de cinco anos que se abraçou à perna do comandante da 6.a Companhia.
"N'danhonho cufa!"
A menina chorava e balbuciava palavras em nhungué. Angelino olhou-a, estupefacto. Esperava tudo naquele sítio e naquele momento; tudo menos que uma criança o viesse abraçar a meio da rima da Carochinha.
líN'danhonho cufa!" , gemeu a pequena. " Faxa vore, lekani kundip'a! Lekani kundip'a! N'danhonho cufa!"
Sentiu-a tremer de pavor e, embora não falasse nhungué, estava familiarizado com algumas palavras. " Faxa vore", uma corruptela do português faz favor; e sobretudo " lekani kundip'a", que já ouvira inúmeras vezes da boca de pessoas que imploravam misericórdia quando os soldados se preparavam para lhes dar o tiro. " Lekani kundip'a!" "Não me mates!" Mas eram adultos que o diziam, não crianças como aquela menina de cara molhada e olhos a implorar-lhe misericórdia, a gritar " faxa vore" enquanto o abraçava pela perna.
"Lekani kundip'a!"
Angelino suspirou, de súbito angustiado. Como poderia ele matar uma criança que, apesar de tão tenra idade, sabia que ia morrer e lhe implorava misericórdia? Já matara crianças, mas não meninas que o abraçavam no desespero dos condenados a rogarem faxa vore por clemência; não crianças assim.
O chefe dos comandos encarou os seus homens.
"Esta não entra nas palhotas."
Os soldados entreolharam-se, desconcertados.
"Então o que lhe acontece? Deixamo-la sozinha no mato?"
A atenção de Angelino voltou-se para a mulher em lágrimas que, na fila da morte, observava à beira do pânico absoluto a filha agarrada ao militar, no horror de a ver ao pé de um homem tão perigoso.
"Não", decidiu o alferes. "Ela também fica de fora!"
Samuel foi buscar a mulher e arrastou-a para junto do comandante. Ainda sem perceber o que lhe ia acontecer, mas presumindo o pior, a aldeã abraçou a filha e ficaram ambas agarradas uma à outra; choravam de medo, convencidas de que iam ser mortas.
"Diz-lhes que fujam!", ordenou Angelino enquanto apontava para o mato. "Fujam!"
"Tauani!", traduziu Samuel, indicando a mesma direcção. "Tauani"
A mulher arregalou os olhos e voltou-se para Angelino, como em busca de confirmação. O
alferes fez um gesto tranquilizador com a cabeça e indicou-lhe o horizonte. A aldeã não hesitou mais; desconfiava de um truque, mas nada tinha a perder. Pegou na filha e correu pela clareira, correu com ela ao colo até cruzar a orla da aldeia, passar ao lado de Diogo e das poças ácidas dos seus vómitos, meter-se pelo capim e desaparecer no mato.
As atenções voltaram-se para as filas de pessoas arrebanhadas à porta das cubatas.
"Fechem-nas nas palhotas!", ordenou o comandante, recuperando o sangue frio. "Despachem-se com isso!"
Os soldados e os homens da DGS empurraram os últimos aldeãos para as cabanas e ficaram à espera que o processo se completasse por toda a aldeia. Ainda havia ordens berradas aqui e ali e ocasionais gritos de angústia ou súplicas de misericórdia, mas o som gradualmente dominante passou a ser o dos gemidos de pavor das pessoas encerradas dentro das cubatas.
Quando já não restava qualquer civil na clareira, os soldados agarraram nas granadas e fixaram a atenção no comandante, à espera da ordem.
"Agora!"
Num movimento sincronizado, tiraram as cavilhas das granadas, abriram uma frecha nas portas e lançaram os explosivos lá para dentro. Depois trancaram as portas e afastaram-se.
As explosões sucederam-se quase em simultâneo, irrompendo pelas cubatas como uma reacção em cadeia.
Quando o saracoteado de detonações terminou, fez-se silêncio na aldeia. As palhotas fumegavam e o ar cheirava a pólvora. Os soldados abriram as portas destroçadas e viram os corpos mutilados e espalhados pelo solo, o sangue escarrapachado contra a palha.
Cada comando inspeccionou uma palhota. Ao penetrar na sua, Angelino ouviu um gemido, identificou o sobrevivente e viu que era uma mulher gravemente ferida. Sem hesitar, apontou-lhe a G3 à cabeça e premiu o gatilho.
Ouviam-se tiros ocasionais por toda a aldeia; um disparo numa palhota e outro noutra.
"Mata-o!"
O berro numa cubata ali perto chamou a atenção do chefe dos comandos, que saiu de imediato para a clareira de modo a verificar o que se passava.
"Mata-o!"
Voltou-se na direcção do grito e viu um soldado de arma apontada para a orla da aldeia. No meio do fumo vislumbrou um garoto a correr; parecia uma impala aos saltos.
"Mata-o, caraças!"
Um camarada instava o furriel Bauke, o comando de G3 apontada, a abater o garoto, mas o tiro não partiu e o rapaz mergulhou por fim no capim e desapareceu no mato, escapando à mira da arma.
"Porra, pá! Deixaste-o fugir!"
O furriel baixou a espingarda automática e abanou a cabeça, quase desalentado.
"Não fui capaz..."
Era mais uma testemunha que se escapulia, reflectiu Angelino, preocupado com o tempo excessivo que estavam a passar naquela aldeia. Havia guerrilheiros por todo o sector e o garoto ia possivelmente cair-lhes nas mãos e dar-lhes a localização dos comandos, pondo em risco a segurança da unidade. Se não fosse o miúdo seriam as duas que ele próprio, num estúpido momento de fraqueza, deixara escapar. Uma emboscada ao grupo de comandos tornava-se provável se não actuassem com rapidez.
"Vamos embora!", gritou o comandante, fazendo com o braço sinal aos seus homens. "Toda a gente em movimento! Vamos sair daqui!"
Os soldados reagruparam-se e, enquanto uns homens rabiscavam uma mensagem final numa chapa de zinco que por ali encontraram, Angelino foi buscar Diogo. Arrastou-o pela clareira e lançou-o para o grupo, como se fosse um fardo. O amigo parecia um sonâmbulo; deixava-se puxar e empurrar, aparentemente atordoado. As palhotas ardiam em redor, num inferno de chamas e fumo, e havia corpos espalhados por toda a parte; alguns apresentavam-se em posições impossíveis, como manequins partidos, e um pendia de uma árvore.
Com a apatia de um ébrio, a atenção de Diogo descaiu para a frase garatujada na chapa que os soldados largaram ao lado de uma pilha de cadáveres. Leu-a num estado de letargia, entorpecido, como num sonho. Transporta mina tropa mata. Era um aviso e uma assinatura.
"Tá a andar."
Ao sinal do comandante, os homens enfiaram pelo capim com os olhos a dardejarem em todas as direcções e as G3 em riste, procurando sinais de presença inimiga, avaliando ameaças, inspeccionando o terreno.
Angelino conseguia abarcar com o olhar todo o grupo sob as suas ordens e contabilizou os soldados para se certificar de que não faltava ninguém. Um, dois, três, quatro... vinte e cinco. Vinte e cinco rapazes, nem uma baixa; não havia comandos mais duros do que aqueles. E certo que não tinha ocorrido combate e que os guerrilheiros que acreditava terem abatido eram os homens e rapazes da aldeia que se fingiam da população e que haviam sido apanhados desarmados; certamente tinham as Kalashnikov escondidas ali por perto. Mas quase sentiu orgulho nos seus comandos. Vinte e cinco bravos, para quem olhasse de fora eram cinco brancos e vinte negros e mulatos, mas entre eles a cor tornara-se invisível. Apenas via o Samuel e o Bauke e o Sebola; não havia ali raças, juntava-os uma amizade forjada pela guerra, irmãos para sempre unidos pelo sangue e pela morte.
Caminhando em silêncio no meio do grupo de combate, Diogo não via em seu redor irmãos de armas, mas miúdos a quem a tropa tinha desumanizado e transformado em ceifeiros de vida, algozes que haviam encharcado de sangue aquele dia fatídico. A noite despontava já no horizonte quando os soldados se abeiraram da estrada para serem recolhidos, os rostos transpirados iluminados pelo disco avermelhado do astro poente, como se até o Sol quisesse gravar no firmamento os feitos da jornada de carnificina.
As silhuetas quase cambaleavam na embriaguez da matança. A aldeia tornara-se uma memória difusa; não passava já de uma mão-cheia de palhotas varridas pelo fogo e cobertas por um manto de cinzas espectrais. Os soldados estavam reduzidos a figuras exangues recortadas contra o manto sanguíneo do céu crepuscular, como se as suas entranhas estivessem irremediavelmente impregnadas do hálito fétido da morte.
O primeiro sinal foi o estranho odor que impregnava o ar. José Branco preenchia uma requisição a solicitar uma nova remessa de algodão e mercurocromo para o hospital quando o cheiro familiar lhe invadiu o gabinete e o fez imobilizar a caneta. Seguiu a fonte do odor até à janela atrás dele e percebeu que vinha de fora.
"Que estranho", murmurou.
Identificou o cheiro como o que era produzido quando se queimavam vasos sanguíneos para os laquear. Apesar de intrigante, não era um odor anormal em instalações hospitalares e de imediato a sua atenção regressou aos papéis que rabiscava. Limitou-se a fazer uma nota mental. O doutor Feitor devia estar a proceder a alguma cirurgia de emergência; logo que pudesse teria de mandar verificar as fugas de ar da sala de operações. Só lhe faltava mais este problema!
Ainda hesitou, lembrando-se que o sector das cirurgias se situava no outro lado do perímetro hospitalar e que os cheiros vindos daí dificilmente chegariam ao seu gabinete, mas depressa concluiu que devia haver uma explicação lógica qualquer, talvez até uma corrente de vento, e decidiu remeter o assunto para mais tarde. A caneta continuou a deslizar pela folha da requisição, imparável e imperturbável no seu labor burocrático.
Alguns minutos depois, porém, o médico sentiu um burburinho no exterior. Os ares andavam decididamente agitados. Voltou a hesitar. Deveria ir ver o que se passava ou seria melhor terminar o que estava a fazer? Odiava a burocracia inerente às suas funções e aquele era um pretexto excelente para fugir ao estupidificante trabalho de amanuense. Mas o facto é que precisava urgemtemente de mais algodão e mercurocromo. Já que estava com a mão naquela tarefa administrativa, raciocinou, mais valia levá-la até ao fim e aviar toda a papelada de vez. Optou por isso por se concentrar nas requisições.
A porta abriu-se de repente e a irmã Lúcia entrou-lhe de rompante pelo gabinete.
"Doutor! Doutor!"
O director do hospital ergueu a cabeça, espantado com o alarme que via no rosto habitualmente sereno da sua enfermeira-chefe.
"Que é, Lúcia? O que se passa?"
A espanhola vinha afogueada e rubra como uma malagueta; parecia transtornada.
"Já viu que pasai"
O médico fez uma expressão de absoluta ignorância.
"Não. O que está a acontecer?"
A enfermeira-chefe pegou-o pela mão e puxou-o.
"Venga, por Dios! Venga ver."
Sempre em estado de grande agitação, a irmã Lúcia arrastou José pelo corredor do hospital até à porta principal. Uma vez no exterior indicou-lhe fios de fumo negro que galgavam o horizonte à direita, serpenteando pelo céu como fuligem vomitada por vulcões invisíveis. O director do hospital orientou-se e percebeu que algo estava a arder na zona da estrada para Vila Pery, mas não viu razão para tanto alarme.
"É um incêndio?"
Lúcia abanou a cabeça com impaciência.
" Ay, madre miar, exclamou num estado de grande agitação. "No siente el odor?"
José Branco inspirou o ar e voltou a identificar o cheiro característico da laqueação de vasos sanguíneos, típico das salas de operações, só que ainda mais forte ao ar livre.
"é uma cirurgia", constatou. "O Feitor está a operar alguém?"
A enfermeira-chefe reagiu à observação com um estalido nervoso da língua. Abanou a cabeça com vigor e apontou na direcção dos fios de fumo negro que se elevavam como minierupções sobre o mato longínquo.
"El odor vem dali, doutor!"
"Dali?", admirou-se ele. "Desculpe, mas o que..."
Lúcia ergueu a mão com vigor, fazendo-lhe sinal de que se calasse de imediato.
"Escuche! Escuche!"
O médico inclinou a cabeça naquela direcção e prestou atenção. Uns sons surdos pareciam reverberar no ar. Estranhou e concentrou-se; os barulhos longínquos lembravam-lhe os estampidos dos foguetes da sua infância em Penafiel em dias de S. Martinho. Mas foguetes ali? Após um instante de perplexidade, percebeu enfim que aqueles sons surdos eram detonações.
Detonações.
Olhou interrogadoramente para a espanhola, compreendendo enfim o alarme que ela manifestava mas sem perceber com exactidão o significado de tudo aquilo.
"Os turras estão a atacar?"
Um clima de efervescência febril tomou conta de Tete. Os boatos cruzavam-se como moscas.
Corriam informações contraditórias sobre a presença dos terroristas às portas da cidade; dizia-se muita coisa, mas ao certo ninguém sabia o que se passava. Os próprios militares que afluíam ao hospital, trazendo feridos ou de visita a um paciente internado, ignoravam o que sucedia e apenas forneciam conjecturas mais ou menos informadas.
Quando terminou o serviço, José Branco foi para casa. A vivenda no topo da colina estava vazia, uma vez que Mimicas permanecia na Beira e não dera ainda notícias. O médico foi para o jardim descontrair-se com um whisky com soda na mão. Ficou a contemplar o Zambeze, a atenção a dançar entre o rio e o ocasional Alouette que aterrava com o seu zumbido característico na pequena pista circular do hospital, a uns quinhentos metros de distância.
O funcionário da farmácia que substituía interinamente Mimicas, um indiano que por acaso vivia na vizinhança, apareceu pouco depois para saber "se a senhora doutora está melhor". É que José tinha justificado a ausência da mulher com uma doença que a forçara a receber tratamento na clínica do Macuti, na Beira. A meio da conversa, o funcionário deu-lhe conta dos boatos que circulavam na farmácia, mas também aí havia mais incertezas do que factos concretos.
"O senhor doutor não acha que estão a vir muitos helicópteros?", perguntou-lhe o homem com uma ponta de ansiedade. "é mais do que o habitual, não é?
Era uma boa pergunta. Um Alouette acabara de aterrar no hospital e o ar vibrava ainda ao ritmo da rotação das hélices. O médico avaliou o que observara até aí e comparou o movimento do dia com o que usualmente ocorria.
"Normal", acabou por concluir. "O tráfego de helicópteros parece-me o normal."
A constatação tranquilizou-os um pouco. O funcionário despediu-se e deixou o director do hospital entregue a ele mesmo no jardim da casa. O céu tingia-se de um azul cada vez mais escuro e José ficou a ver a noite descer sobre Tete. Depois recolheu a casa para jantar. Ernesto serviu-lhe a sua especialidade, o empadão de esparguete e carne, e foi quando estava a terminar a refeição que o telefone tocou.
"Senhor doutor, é para si", anunciou Ernesto do outro lado da sala. "é a irmã Lúcia."
O médico sentia-se cansado e o empadão estava-lhe a saber mesmo bem. A última coisa que lhe apetecia era levantar-se para ir resolver ainda mais um problema.
"Pergunta-lhe se lhe posso ligar daqui a pouco."
O criado abanou a cabeça.
"A irmã precisa de si no hospital", comunicou-lhe. "Diz que é urgente."
Uma pequena multidão enxameava o pátio interior do hospital e a atmosfera que José Branco encontrou era de grande excitação; havia gritos e choros, como por vezes acontece nos hospitais, só que dessa vez envolvendo um número anormalmente grande de pessoas.
Lobrigou o hábito azul-claro da enfermeira-chefe no meio de um grupo de mulheres esfarrapadas e foi ter com ela; o olhar exprimia surpresa com toda a agitação que encontrara.
"Llegaram agora no machibombo de Changara", explicou- lhe a irmã Lúcia, puxando-o pelo braço para o afastar do meio da multidão. "Dizem que a zona onde vivem fue destruída e que não sabem de los parentes."
"Changara foi destruída?", admirou-se o médico. "E depois da destruição apanharam o machibombo? Não estou a perceber..."
A freira emitiu um estalido impaciente com a língua.
"Ay, doutor, não é isso", corrigiu. "O machibombo que vénia de Changara encontrou esta multidão no meio da estrada, a unos quinze quilómetros aqui de Tete. La mayor parte eran mujeres y ninos e algunas estavam semi desnudadas. Dizem que houve ataques e mostravam-se em pânico."
"Foram atacadas?"
"Elas, não. Pero dizem que a região fue destruída."
"Pelos turras?"
Em resposta, a irmã Lúcia pegou-lhe na mão e, de passo muito decidido, levou-o pelos corredores do hospital.
"Venga."
Percorreram a enfermaria e foram para o banco de urgências, onde uma enfermeira cabo-verdiana fazia um curativo a um adolescente franzino e sujo. O rapaz fitou, assustado, os recém-chegados e José notou que tremia de medo.
"O que se passa?"
A enfermeira limpava uma ferida no joelho direito do rapaz.
"Ele só fala nhungué, doutor", esclareceu a cabo-verdiana. "Mas pelos gestos que fez consegui perceber que veio do sítio onde está o fumo."
"Ele veio de lá?"
"Parece que sim."
O médico fez uma expressão interrogativa na direcção da irmã Lúcia; sabia que a freira arranhava umas palavras de nhungué.
"O pobrecito está muy nervoso y no entendi quase nada", explicou a espanhola, sentindo-se interpelada pelo olhar do director do hospital. "Solo una palabra, que repete a todo o momento."
"O quê?"
"Tropa. Dice que é tropa."
"Tropa?"
"Si. Apontou para o sítio das explosiones e do fumo e dice tropa."
O médico fez um gesto na direcção do corredor. Duas senhoras da limpeza estavam imobilizadas ao fundo, os olhos colados no ferido; pareciam observá-lo com um receio supersticioso.
"E elas? Não podem traduzir o que diz o moço?"
"Tienen medo", devolveu Lúcia, sem sequer olhar para as mulheres do corredor. " Pero despues de escucharem el rapaz puseram-se a gemer e a dicer que a tropa está a matar gente."
José Branco estreitou os olhos enquanto digeria o que ouvia. Deu uns passos na direcção da janela e contemplou a multidão que se apinhava no pátio do hospital.
"Tropa a matar gente?"
A irmã Lúcia foi ter com ele.
"Doutor, tenemos que ir lá."
O médico permaneceu calado, a avaliar a situação. Tropa a matar gente? Se a tropa atacava, raciocinou, era porque havia turras. Mas também sabia que aquela zona estava cheia de aldeias e que inevitavelmente haveria civis apanhados no fogo cruzado. O rapazinho atrás dele, sentado na marquesa enquanto recebia um curativo, era a prova disso.
"Aquilo parece muy mal, doutor", insistiu a freira, quase numa súplica. " Tenemos que ir lá."
José deteve-se um instante mais a observar a multidão. Não era possível perceber com exactidão o que se passava, mas não havia dúvidas quanto aos contornos gerais do que sucedera na zona onde nessa tarde vira fumo e escutara detonações. Aquilo era um campo de batalha e só Deus sabia o que para lá ia. Mas, e os civis?
Respirou fundo e rodou os olhos pelo banco de urgências até fixar a atenção no rapaz ferido, a decisão já tomada.
"Eu sei, Lúcia."O cheiro a queimado que enchia o ar de Tete invadira a palhota de Sheila, mas era ainda manhã cedo e a rapariga não lhe prestou grande atenção. Havia combinado com a avó preparar um caril para o almoço e acordara cedo para matar e depenar uma galinha quando ouviu um motor em aproximação, o ronco cortado por uma buzinadela característica.
"Sheila!"
Era a voz do director do hospital a chamá-la. Apanhada de surpresa, a rapariga levantou-se com cuidado, sempre preocupada com a gravidez, e caminhou devagar até à porta. Deparou-se na rua com o Austin do hospital, o jipe verde com enormes cruzes vermelhas na carlinga, e uma nuvem de poeira no seu encalço. José Branco e a irmã Lúcia espreitavam-na dos lugares dianteiros.
"Por aqui, doutor? O que se passa?"
"Anda connosco."
Sheila limpou as mãos sujas ao avental.
"Onde?"
"Vamos ali visitar uns doentes e precisamos de ti."
A enfermeira consultou o relógio, atónita."A esta hora, doutor? São sete da manhã!"
"Nós trabalhamos quando há trabalho", retorquiu o médico. "Vá, anda daí!"
A rapariga lançou um olhar hesitante à avó, que do quintal ouvira a conversa. Aissa fez-lhe sinal com a cabeça a indicar que não fazia mal e que fosse ao seu trabalho. Sheila tirou o avental, vestiu a bata e, despreocupada, enfiou-se no jipe.
Meteram pela estrada de Vila Pery em direcção às colunas de fumo que serpenteavam pelo céu; já não eram negras como na véspera, mas esbranquiçadas. O odor, porém, permanecia; mais forte até, agora que se aproximavam.
A estrada estava estranhamente deserta e o silêncio era absoluto; apenas se escutava o ronco esforçado do jipe.
"O que aconteceu aqui, doutor?", perguntou Sheila com curiosidade. "Que fumo é este?"
O médico não lhe respondeu; era como se nem sequer tivesse escutado a pergunta. A rapariga sentia-se alegre e bem-disposta, tinha enfim tomado decisões sobre o futuro que transportava no ventre e mal podia esperar para contar tudo a Diogo, mas estranhou o silêncio dos dois companheiros de viagem. O doutor Branco, em particular, habitualmente falador e bem-humorado, agarrava-se ao volante com o rosto fechado; ia calado e limitava-se a perscrutar a estrada e o fumo com atenção.
Abeiraram-se do sector da fumarada e viram as colunas de fumo ascenderem para além do arvoredo no lado esquerdo. Chegou a dar a impressão de que iam contornar e deixar esse sector para trás, mas, ao avistar uma picada que se abria à esquerda, José abrandou e meteu o Austin pelo caminho de terra, mergulhando assim no mato. O trilho corria entre os arbustos, os embondeiros e as micaias, varridos pela nuvem de pó vermelho que o jipe levantava no seu rasto.
Em algumas centenas de metros a paisagem alterou-se radicalmente. A primeira coisa anormal que viram foi um embondeiro queimado; depois apareceram duas maçaniqueiras estorricadas.
O jipe rugiu de esforço para ultrapassar uma lomba, acelerou e aterrou com fragor numa pequena clareira. Os três olharam em volta e, entre a poeirada levantada pela viatura, avistaram duas palhotas queimadas.
Aos pés da palha cauterizada e fumegante recortavam-se vultos contorcidos que a Sheila pareceram troncos de árvore derrubados. José e a irmã Lúcia observaram longamente os troncos, como se os estudassem. O médico rodou o volante e retomou a marcha, fazendo o jipe aproximar-se devagar das palhotas, ronronando de mansinho até se imobilizar ao lado dos escombros.
Com horror, Sheila apercebeu-se de que os vultos contorcidos afinal nada tinham a ver com troncos de árvores.
Eram cadáveres carbonizados.
José puxou o travão de mão e apeou-se. Deu dois passos vacilantes, prostrou-se e começou a auscultar os corpos com o estetoscópio, manifestamente em busca de sinais de vida. A irmã Lúcia juntou-se-lhe e, como não tinha estetoscópio, pegou-lhes nos pulsos inertes e sentiu-lhes a pulsação com os dedos. Depois de verificados todos os corpos, o médico e a enfermeira-chefe abanaram a cabeça em silêncio e voltaram para a viatura. Estava explicado o cheiro a vasos laqueados que se sentia desde a véspera; era o odor de carne queimada.
O jipe recomeçou a rolar e seguiu novamente pela picada. Sheila estava estupefacta com o que acabara de observar. Tinha enfim tomado plena consciência de que não circulavam por um local qualquer.
"Doutor!", gemeu, angustiada. "Isto é um campo de batalha! Meu Deus, o senhor trouxe-me para um campo de batalha!"
O médico ignorou-a, continuando a sondar o terreno em redor; a irmã Lúcia fazia o mesmo. Ele olhava para um lado, ela para o outro; era a forma mais eficiente de cobrirem todo o campo de visão.
"Doutor!", insistiu a rapariga. "Porque me trouxe aqui? Não vê que estou grávida? Eu não posso andar por aqui, doutor!"
José Branco voltou a cabeça para trás. Transpirava com abundância e o seu olhar, habitualmente vivo, tornara-se baço.
"Ouve, Sheila", disse. "Precisamos de ti aqui."
"Mas porquê eu, doutor?"
"Um dia hás-de compreender."
A observação deixou Sheila sem saber o que dizer. Um dia haveria de compreender?
Compreender o quê? Tudo o que sabia é que tinha dezanove anos, estava grávida e o director e a enfermeira-chefe a haviam arrastado para um campo de batalha. Mas também percebia que naquele instante não havia nada a fazer, encontrava-se ali e não tinha volta a dar. Deixou-se por isso levar sem oferecer mais resistência.
A paisagem revelava-se de uma desolação desconcertante. O silêncio da bicharada era total; apenas o ronco teimoso do jipe preenchia o vazio perturbador. Mas o mais inquietante era a atmosfera que ali reinava. O ar parecia denso, quase misterioso, tão pesado que dava até impressão de oferecer resistência à lenta progressão da viatura. Custava respirar e uma certa coloração amarelo-torrado toldava o dia, pintando-o de tonalidades sinistras.
A atmosfera pesada parecia conferir àquele local um ambiente místico. O jipe progredia em esforço e aos solavancos, quase contrariado, e no meio daquela desolação, à medida que desfilavam mais e mais palhotas queimadas e corpos carbonizados, os três ocupantes da viatura pressentiam que nada voltaria a ser o mesmo nas suas vidas. Haviam cruzado uma fronteira invisível e penetrado numa nova dimensão, surreal e temível; um ponto para além do qual tudo mudava. O
médico e a freira percebiam o que estavam a ver, percebiam-no bem de mais, mas nenhum transformava esse entendimento em palavras, como se a simples articulação verbal do que observavam lhes estivesse vedada.
"Doutor."
A voz com sotaque espanholado da freira rompeu o silêncio pesado, devolvendo um traço de humanidade àquele momento irreal.
"O que é, Lúcia?"
A enfermeira-chefe apontou para uns destroços à direita.
"Está a ver aquele ali? Dios, parece que se mexeu..."
"Você viu?"
"Sim. Pienso que bay sobreviventes."
José Branco deteve o jipe, puxou o travão de mão e desligou-o. O silêncio mais absoluto instalou-se naquele troço; nem os pássaros nem os insectos se faziam ouvir, como se também eles tivessem sido exterminados. Parecia que o ar se enchera de vazio. O médico e a freira apearam-se e caminharam em direcção aos destroços, os passos a reverberarem com sons surdos na terra castanho-escura. Fazia calor, mais ainda do que em Tete, e a paisagem árida e quente do solo, recortada pelo perfil hercúleo dos embondeiros, contrastava com o céu azul-claro que as tiras brancas das nuvens rasgavam nas alturas.
Perturbada por se ver arrastada para aquele local infernal, Sheila deixou-se ficar no seu lugar, a observar os acompanhantes afastarem-se. Enquanto caminhava, José Branco examinava o vulto que a enfermeira-chefe lhe indicara. O corpo parecia imóvel, mas, quando se chegou a uns cinco metros de distância, apercebeu-se de que tremia como se estivesse enregelado.
"Tem razão!", constatou. "Está vivo!"
Precipitaram-se para o corpo. Tinha queimaduras graves e a pele esfolada, sobretudo nas costas em carne viva, mas não havia dúvidas de que não estava morto.
"É una mujer, doutor", constatou a irmã Lúcia.
Assim era, confirmou o médico, que estranhou a posição da sobrevivente. Encontrava-se de cócoras e enroscada sobre si mesma. Apercebendo-se de que ela estava consciente, José Branco pôs-lhe com cuidado as mãos no tronco e tentou erguê-la, mas aquela posição tornava a tarefa muito difícil.
"Assim não é possível!", exclamou em frustração. "Ela tem de se desenrolar para a podermos levar para o jipe."
Percebendo o problema, a irmã Lúcia tentou que ela se desenroscasse, começando por lhe puxar um braço, mas a mulher gemeu de medo e lutou por permanecer enrolada sobre si mesma.
"No entiendo."
O médico endireitou-se e olhou para o jipe.
"Sheila!", chamou, fazendo um gesto peremptório com a mão. "Anda cá!"
A enfermeira apeou-se com relutância e aproximou-se da palhota onde se acumulavam os corpos. A devastação era absoluta e Sheila teve de fazer um esforço para dominar o medo e continuar a caminhar.
"O que é, doutor?"
José Branco fez sinal em direcção à mulher de cócoras.
"Temos de pô-la no jipe mas ela está a resistir", explicou. "Explica-lhe que a queremos ajudar.
Ela que se desenrosque para a podermos levar."
Sheila pousou os olhos na mulher e constatou, pasmada, que aquele corpo em carne viva ainda respirava; tremia descontrolada, como se tivesse frio. A posição era estranha e a enfermeira percebeu que a paciente teria de facto de a desfazer para poder ser transportada para a viatura.
Ajoelhou-se diante da mulher e inclinou-se para a cabeça, junto ao ouvido direito.
"Tabuera d'zacutandizani" , murmurou. "Viemos aqui para ajudar. Deixa-nos levar-te para o carro."
A mulher permaneceu imóvel, embora os tremores tivessem abrandado; era evidente que estava consciente e entendera o que lhe fora dito. Encorajada, Sheila voltou a inclinar-se na direcção do ouvido da paciente.
"O doutor Branco é um homem de paz e a irmã Lúcia também", murmurou de novo em nhungué. "Queremos levar-te para o hospital para tratar de ti. Anda, vem comigo."
O gemido voltou um pouco mais prolongado. A mulher começara a chorar baixinho e Sheila trocou um olhar aliviado com o médico. Ambos perceberam que era um choro de rendição; a sobrevivente acreditara nas palavras que lhe haviam sido ditas na sua língua.
A enfermeira pegou numa mão da paciente e puxou-a com cuidado. Dessa feita ela não resistiu e deixou o braço abrir-se. Depois foi a vez de deixar ir o outro braço. A mulher soluçava de mansinho e as três figuras que a rodeavam viram emergir do seu corpo dobrado um vulto sombrio.
"Que é isto?", assustou-se Sheila, dando um salto para trás.
José Branco inclinou-se ainda mais e tentou identificar aquele vulto.
"O filho!", exclamou. "Ela estava a proteger o filho!"
Um menino escuro e delgado rolou para fora, os olhos remelosos e assustados. José pegou nele e estudou-o. Aparentava um ano de idade e tinha o cabelo chamuscado e as mãos e os pés com queimaduras ligeiras, mas à parte isso parecia intacto.
"Pobrecita!" , disse Lúcia. "Protegia o nino!"
A criança deu uns passos titubeantes e voltou para trás, agarrando-se à mãe. O médico fez um sinal a Sheila e a enfermeira pegou na mulher e ajudou-a a caminhar para o jipe enquanto segurava a criança com a outra mão.
"Vai falando com ela para lhe dar estímulo", recomendou José. "Mantém-na desperta, ouviste?"
Era difícil transportar os dois sobreviventes naquelas condições e, após uns passos, a jovem enfermeira voltou-se para trás, num gesto de protesto, mas viu o médico já de costas a auscultar um segundo corpo. Sheila virou-se para a irmã Lúcia, que entretanto se afastara, e ia pedir-lhe ajuda quando se apercebeu, com horror, de que a freira estava com um bisturi a abrir o ventre de uma grávida morta. Com um movimento rápido, a espanhola tirou das entranhas do cadáver um corpo minúsculo e sentiu-lhe a pulsação. Um longo instante depois pousou o corpo do bebé, sinal de que constatara que estava morto, desenhou uma cruz no ar, ergueu o hábito e limpou as mãos ensanguentadas às vestes brancas.
Sheila tomou consciência nesse momento de que cada um tinha ali a sua função; a sua era levar os dois sobreviventes para o jipe e ajudá-los o melhor que podia, o que enfim fez com calma.
Minutos mais tarde, José e a irmã Lúcia juntaram-se-lhe. Vinham ambos com as roupas brancas manchadas de sangue e o rosto pesado. O médico inspeccionou os dois sobreviventes que haviam sido transportados para o jipe e assegurou-se de que a mulher queimada se encontrava nas melhores condições possíveis.
"E se houver mais sobreviventes, doutor?", perguntou Lúcia. "Que vamos a bacer?"
José Branco passou as mãos pela testa para limpar o suor, mas no lugar da transpiração deixou um rasto de sangue. Depois instalou-se ao volante e pôs a viatura em marcha.
"Temos de ir buscar ajuda."
O jipe rugiu e arrancou com um coice. O Austin deu meia volta na clareira no meio de uma nuvem de pó fino e meteu com grande estrépito pelo caminho de onde viera. A mulher queimada gemia mais alto a cada solavanco, pelo que o médico, apercebendo-se do sofrimento que lhe estava a causar com a sua condução apressada, abrandou e procurou as partes do trilho menos acidentadas. Sabia, porém, que o tempo era crucial. Precisava de chegar o mais depressa possível a Tete para activar os meios de socorro aos sobreviventes da matança.
Logo que o jipe saiu da picada e meteu pela estrada de Tete, acelerou o mais que pôde.
"Que vamos a dicer quando llegarmos a Tete?", perguntou a irmã Lúcia quase aos gritos, sobrepondo a sua voz ao rugido do jipe agora em aceleração.
"Que estávamos a fazer o nosso trabalho", devolveu José. "Mais nada."
A freira fez um sinal para trás, indicando Sheila.
"No estoy preocupada comigo, pero com ela."
O director do hospital franziu o sobrolho, percebendo o alcance da observação e contrariado por não ter ainda pensado no assunto. Apesar de já ser enfermeira, sabia que Sheila não passava de uma rapariga e de certo modo era a mais vulnerável dos três. Depois de reflectir sobre o caso, José esperou que entrassem numa recta; quando ela apareceu, e apesar de o jipe estar em andamento, voltou-se para trás.
"Sheila, ouve-me com atenção", pediu. "Não fales do que viste com ninguém. Ouviste?"
"Sim, doutor."
O médico endireitou-se, controlando o percurso da viatura, mas voltou-se de novo para trás, gesto que foi repetindo sempre que lhe ocorria uma nova recomendação.
"Se alguém vier ter contigo e perguntar o que vieste aqui fazer, só dizes uma coisa: fui em serviço socorrer feridos numa aldeia que estava a arder. Percebeste?"
A rapariga assentiu com um movimento enfático da cabeça.
"Então repete lá."
Sheila mordeu o lábio e fez um esforço para reconstituir a frase.
"Fui em serviço a uma aldeia a arder para ajudar os feridos."
"Isso!"
Voltou-se e lançou um olhar inquieto para trás, contemplando o fumo que ainda se erguia sobre o arvoredo, branco e ténue.
"E se eles me perguntarem mais coisas, doutor? E se me perguntarem porque fui para uma zona de guerra sem autorização?"
"Repetes sempre a mesma coisa", sentenciou José, erguendo o dedo. "Vieste comigo porque eu te ordenei e porque tu és enfermeira e o nosso trabalho não conhece fronteiras. Entendeste?"
"E se quiserem saber porque estava a aldeia a arder?"
"Dizes que não sabes. A aldeia estava a arder, havia feridos e tu foste fazer o teu trabalho. Mais nada. O nosso trabalho não conhece fronteiras."
Momentos mais tarde o jipe entrou em Tete. O médico abrandou um pouco, adoptando uma velocidade vagamente tolerável em cidade, e subiu até ao hospital. Logo que a viatura invadiu a pequena rotunda diante do edifício pôs-se a buzinar com estrépito para chamar a atenção dos funcionários. Surgiram de imediato dois enfermeiros que foram auxiliar os sobreviventes a sair da viatura. Sheila ajudou-os a transportar a mulher e a criança e, num relance, apenas registou a imagem dos vultos níveos de José e da irmã Lúcia a desaparecerem, apressados, num corredor do hospital.
Não o podia saber nesse instante, mas guardaria para sempre aquela imagem na sua memória.
Ela tornar-se-ia importante, não porque José Branco e a irmã Lúcia estivessem a fazer algo de extraordinário, mas por uma razão muito mais importante.
E que foi a última vez que os viu.O ambiente no hospital de Tete fervilhava numa agitação mais caótica do que acontecia quando os Alouettes aterravam para descarregar feridos. As urgências pareciam entupidas de gente e, ao entrar no edifício, Diogo teve o pressentimento distinto de que, além da natural aflição dos pacientes em sofrimento, um sentimento diferente intoxicava o ar. Não sabia como defini- lo; era uma qualidade incorpórea, uma sensação imaterial que tudo perpassava e cuja natureza lhe escapava. Na busca dessa impressão indefinida, cravou os olhos na face de uma enfermeira e surpreendeu-lhe um esgar amedrontado enquanto tratava de uma mulher queimada.
Foi nesse preciso instante que entendeu o que pressentia.
Medo. Havia medo naquele hospital. O pessoal tratava os feridos num silêncio sepulcral, os trejeitos a denunciarem temor, os olhares a recearem o primeiro intruso que cruzasse as urgências.
O ar cheirava a medo, envenenado pela estranha e sinistra calma de uma ameaça palpável, mas difusa e traiçoeira. O visitante levou algum tempo a captar a origem desse medo. As enfermeiras e os médicos, começou por concluir, tinhamreceio dos feridos. A constatação surpreendeu-o. Como era possível que temessem os feridos? Que ameaça poderiam eles representar?
A perplexidade desencadeada por essa constatação levou-o a corrigir o raciocínio e a dar o passo seguinte. Não, não era dos feridos que tinham verdadeiramente medo. O terror que envenenava aquele hospital devia-se a uma convicção generalizada de que todos estavam a cometer uma perigosa infracção. O pessoal não tinha medo dos feridos; tinha era medo de os tratar.
Abandonou as urgências e esquadrinhou as enfermarias aos tropeções. Olhou para o próprio corpo, surpreendido, e apercebeu-se de que caminhava como um ébrio; sentia-se na verdade atordoado com a vertigem dos acontecimentos. Havia passado uma noite inteira sem dormir, acossado pelas imagens do que presenciara na aldeia, e só nessa tarde obtivera licença para abandonar o quartel do Mazoi e ir à cidade. Sentia os nervos embotados e experimentava uma sensação trôpega de irrealidade, como se tudo o que sucedia à sua volta fosse um sonho; até o caos que encontrou no hospital lhe parecia fantasia, uma encenação, e teve de fazer um esforço para não se dissociar da realidade que vivia.
"Diogo?!"
A voz de Sheila surgiu, também ela, envolta naquela estranha neblina de devaneio e realidade.
Voltou-se e, fixando-a no meio da névoa que lhe obscurecia a visão, lobrigou-a na sua bata de enfermeira. A bata tinha algo de estranho; era branca mas estava manchada de vermelho-vivo no peito e nas mangas. Sangue. A imagem era bizarra e o soldado voltou a perguntar a si mesmo se não estaria a sonhar com tudo aquilo.
A rapariga mudava um penso a uma figura envolta em tanto gesso que não se percebia se era homem ou mulher, mas passou a tarefa a uma outra enfermeira e veio a correr, anichando-se nos braços protectores do namorado.
"Diogo!", soprou, apertando-o com força. "Tenho tanto medo, tanto medo!..."
O furriel estreitou-a contra o peito, aliviado com a sensação de realidade que o contacto humano lhe suscitava, como se fosse a prova final de que nada daquilo era imaginação. Afagou-lhe o cabelo e colou-lhe os lábios aos ouvidos.
"Pronto", sussurrou. "Está tudo bem. Eu estou aqui. Não há razão para teres medo, eu estou aqui!..."
Sheila soluçava-lhe no ombro, o corpo a estremecer de pavor. O namorado deixou-a chorar e acariciou-lhe o rosto molhado enquanto aguardava que ela acalmasse. Com um movimento suave para não desfazer o abraço, puxou-a e levou-a pelo corredor até saírem do edifício pela porta traseira.
O ar no exterior, embora sempre quente, pareceu-lhes estranhamente retemperador. O vento tépido e seco ergueu-se rasteiro, agitando o tapete vegetal que decorava o pátio; as folhas saracotearam como borboletas nervosas, esvoaçando em movimentos oscilantes até voltarem ao chão.
Diogo ajudou-a a sentar-se nas escadas do pátio e acomodou- se ao lado dela, sempre a enlaçá-
la num abraço protector.
"Não imaginas o que aconteceu", disse Sheila mal recobrou o controlo das emoções. "Tu não imaginas!..."
"Estás a referir-te a estes feridos no hospital?"
A rapariga ergueu a cabeça com um movimento brusco e fitou-o nos olhos, como se assim lhe pudesse transmitir todo o horror que a estrangulava.
"Estão a chegar desde anteontem à noite", revelou. "Contam coisas horríveis, não imaginas."
Consumido pela culpa, Diogo teve dificuldade em suster-lhe o olhar. Engoliu em seco antes de fazer um gesto com a cabeça para a encorajar a prosseguir.
"O que dizem eles?"
"Os primeiros a chegar vieram de uma aldeia chamada Chawola. Contaram que a tropa obrigou toda a gente a bater palmas para se despedir da vida e depois começou a disparar." Fez uma pausa para limpar o rosto e fungar. "Depois juntaram os corpos, puseram capim sobre eles e deitaram-lhes fogo. Algumas pessoas atiradas para essa fogueira ainda estavam vivas. Viram a tropa voltar costas para incendiar as palhotas e violar algumas raparigas. Aproveitaram a ocasião e saíram da fogueira. Fugiram da aldeia e vieram aqui para o hospital, nem sei como."
Diogo respirou fundo. Não havia presenciado o que sucedera em Chawola, mas sabia agora que já não seria possível conter as informações. Isso deixava-o preocupado, mas, estranhamente, também aliviado. Acreditava que uma coisa daquela magnitude não poderia permanecer silenciada; tal já não era possível, nem isso seria justo.
"Pronto", murmurou, tentando reconfortá-la. "Acalma-te. Estas pessoas precisam de ti e tu ao menos podes ajudá-las."
"lá. Mas tenho medo."
"Medo de quê? Não há razão para teres medo. Não fizeste nada de mal, não precisas de te preocupar."
Ela abanou a cabeça, infinitamente triste.
"Estás enganado, Diogo. Há maningue razões para me sentir preocupada."
A declaração surpreendeu o namorado.
"Tu? Porquê?"
Sheila ergueu os olhos marejados de lágrimas; soluçava e o queixo tremia-lhe.
"Eu estive lá."
Diogo fez uma expressão interrogativa.
"Lá onde?"
"Nas aldeias onde tudo aconteceu. Eu estive lá."
O rosto do namorado permaneceu rígido durante dois longos segundos, enquanto a mente processava a inacreditável informação que acabara de escutar.
"O quê?"
"Fui com o teu tio e a irmã Lúcia." Recomeçou a chorar. "Foi horrível, meu Deus! Horrível!"
A revelação deixou-o atónito. A imagem da aldeia como a deixara ficara-lhe cravada na mente, com as palhotas a arder e os corpos carbonizados no interior, uns inteiros e outros despedaçados.
Sheila vira aquilo?
"Estiveste lá?"
Incapaz já de falar, a namorada fez que sim com a cabeça.
"O meu tio também?"
O choro de Sheila tornara-se descontrolado; era como se até ali se tivesse contido e agora o dique se quebrasse, libertando a torrente. Chorava com abandono, descarregando em soluços profundos e sucessivos os fantasmas que a assombravam desde que voltara da aldeia e começara a digerir o que havia visto.
"O meu tio também?", insistiu Diogo.
A rapariga, dobrando-se sobre o ventre como se tivesse todo o corpo dorido, assentiu de novo.
"Ele desapareceu."
"O quê?"
Sheila fez um esforço e dominou o choro apenas o tempo suficiente para conseguir completar a informação.
"A PIDE levou-o."
Saiu do hospital e percorreu apressadamente os quinhentos metros até chegar à casa do tio, na colina sobranceira ao Zambeze. Entrou pelas traseiras e encontrou Mimicas agarrada ao telefone e em estado de absoluta desorientação; tinha um cigarro aceso entre os dedos e deixara dezenas de beatas esmagadas em vários cinzeiros de pau-preto e dois maços de LM amarfanhados sobre a mesa da sala de jantar.
"Ai, Diogo!", exclamou Mimicas quando o viu, agarrando-se a ele em lágrimas. "Ainda bem que vieste! Cheguei agora da Beira. Vim logo que me deram a notícia sobre o... o Zé."
"Que notícia?"
"Não sabes? Ele desapareceu."
O furriel ajudou-a a sentar-se no sofá e tentou tranquilizá-la.
"Tenha calma, tia", disse-lhe na voz mais reconfortante de que era capaz. "Que aconteceu?"
Mímicas tinha os olhos pousados no telefone negro e abanava a cabeça sem cessar.
"Ninguém fala comigo", disse ela. "Ninguém, ninguém. Eu tinha tantas amigas, tantas, tantas!...
E ele também. Mas agora... agora ninguém fala comigo. E como se não me coisassem."
"O que aconteceu?"
"Dizem que não estão, dizem que não podem...", murmurou, sempre no mesmo registo. "A Marília até me desligou o telefone na cara. Acreditas nisso? Quando aqui cheguei, a primeira coisa que fiz foi ligar-lhe para saber do Zé e ela desligou-me o telefone na cara! Como é possível? Nós dávamo-nos tão bem, tão bem. E agora... agora ninguém me conhece!" A cabeça não parava de abanar, como se se negasse a aceitar a realidade. "Não compreendo isto, não compreendo!..."
Diogo segurou-a pelos ombros e abanou-a com força, tentando quebrar aquele transe.
"Tia!", chamou, a voz a sobrepor-se à ladainha dela. "Tia! Está-me a ouvir?"
Mímicas interrompeu a litania e olhou-o, surpreendida; parecia ter voltado a si.
"O que é?"
Diogo observou-a com atenção, certificando-se de que ela havia recuperado o controlo de si própria, mesmo que por apenas uns instantes.
"Conte-me o que aconteceu."
A tia baixou os olhos para o cigarro que lhe dançava entre os dedos amarelados de inquietação.
"Eu não estava cá, estava na Beira", disse num tom nervoso, quase culpado. "Mas o Ernesto contou-me que há duas noites o Zé foi chamado ao hospital. Tinham chegado uns coisos... uns feridos. Parece que ele voltou para casa com ar muito preocupado, mas não contou nada ao Ernesto, claro. Acordou no dia seguinte aí pelas seis da manhã e saiu logo a seguir. A Sheila disseme que ele e a irmã Lúcia foram buscá-la para visitar as aldeias de onde tinham vindo esses feridos.
Quando voltaram a Tete, o inspector Silva, da PIDE, foi ao hospital e levou-o. Desde então que não dá notícias. O Ernesto ficou muito nervoso e telefonou-me lá para a Beira. Eu apanhei o primeiro avião. Já liguei ao inspector, já liguei à mulher dele... ninguém me diz nada de nada. Não sei se o Zé está vivo, se está morto, o que fizeram dele. Não sei nada de nada, a não ser que o levaram."
Lançou um novo olhar angustiado para o telefone. "Estou farta de ligar a toda a gente e ninguém quer falar comigo. Pessoas que eram minhas amigas, Diogo!... Ninguém quer falar comigo."
O furriel respirou fundo.
"Estou a perceber", disse. Coçou a cabeça, pensativo. "Vou ver o que posso fazer."
Mimicas desviou a atenção do telefone e fitou-o com uma expressão incrédula.
"Tu, Diogo? O que podes tu fazer?" Pousou a mão no peito. "Olha para mim. Eu sou a mulher do director do hospital e do Serviço Médico Aéreo. Eu e o teu tio somos visitas de casa do inspector Silva, somos amigos do bispo, somos amigos do governador... e a mim ninguém diz o que quer que seja! O que podes tu fazer?"
Diogo devolveu-lhe o olhar. Sim, pensou; o que poderia ele fazer? Não passava de um furriel miliciano destacado para um quartel no meio do mato e transferido à má fila para uma companhia de comandos, a qual aliás estava por detrás de toda aquela confusão. Que iria ele fazer? Que cordelinhos poderia mexer? Apresentaria queixa a quem? A Angelino?
"Tem razão", murmurou por fim, rendendo-se à sua própria impotência. "Só nos resta aguardar."
A atenção de Mimicas regressou ao telefone pousado na mesinha ao lado do sofá.
"Eu não vou esperar quieta", disse com resolução, resvalando no sofá para se aproximar do telefone. "Podem fugir de mim, podem dizer que não estão, podem até fingir que não me conhecem, mas uma coisa te garanto: não os vou largar."
Vendo a tia agarrar-se ao aparelho, Diogo levantou-se e foi à cozinha. Podia ser que um chá a ajudasse. Quando atravessava a sala de jantar, porém, apercebeu-se de uma sombra recortada na luz da porta para o pátio traseiro e olhou naquela direcção. Um vulto perfilou-se diante da claridade, os cabelos envoltos num halo refulgente, e abriu a porta; as feições do rosto, escurecidas pelo contraste com a luz exterior, tornaram- se perceptíveis.
"Sheila!", exclamou, apanhado de surpresa. "O que estás aqui a fazer?"
A namorada deu dois passos hesitantes pela sala, lançando olhares amedrontados em todas as direcções.
"O doutor Branco? Já apareceu?"
Diogo fez um gesto negativo com a cabeça e aproximou-se dela, mas deteve-se quando a viu recuar um passo, quase como se a rapariga tivesse receio dele.
"O que foi?"
Sheila observava-o de um modo estranho; parecia uma impala a vigiar um predador que rondava a manada.
"Vim aqui porque... porque apareceu lá no hospital um pára- quedista para visitar um amigo que está lá internado." Falou muito devagar e fez uma pausa para sublinhar a importância do que dizia. "Eu estava a mudar um penso do amigo e ouvi esse pára-quedista dizer que a matança nas aldeias foi coisa dos comandos."
A rapariga fez mais uma pausa, desta feita para estudar a reacção do namorado. Diogo sentiu as gotas de transpiração brotarem-lhe do couro cabeludo e percebeu que chegara o momento da verdade. Não se sentia preparado para ele, queria mesmo adiá-lo, mas não havia fuga: o momento impusera-se à sua frente.
"Sim..."
O olhar de Sheila tornara-se de tal modo intenso que parecia soltar fagulhas.
"Ele falou na 6.a Companhia de Comandos."
Diogo baixou a cabeça em sinal de rendição, não se atrevendo sequer a encará-la.
"É verdade."
A confirmação foi dada num fio de voz quase imperceptível, tão baixo que parecia soletrada pela brisa, e, porém, insuportavelmente ruidosa. Fez-se o silêncio mais absoluto naquela sala.
"Tu estiveste lá?"
As lágrimas escorriam pela face do namorado, em ziguezague, como gotas de chuva quente.
Abriu a boca e tentou falar, mas a voz ficou estrangulada na garganta e apenas emitiu o que soou como um grunhido. Pigarreou e levantou os olhos molhados, reunindo toda a coragem que lhe restava para, por fim, a enfrentar.
"Estive."
Sheila susteve o olhar durante um longo segundo. Depois voltou-se e, ganhando vigor, carregou pela porta. Ao vê-la percorrer a varanda e começar a descer as escadas para o pátio traseiro, Diogo saiu da letargia em que parecia mergulhado e largou no encalço dela.
"Sheila!", chamou. "Espera! Espera!"
A rapariga percorria já o pátio e metia pelo carreiro para o hospital.
"Deixa-me!", disse ela sem se virar, percorrendo o carreiro com passo decidido. "Deixa-me em paz!"
Mas Diogo corria atrás dela.
"Espera!", implorou. "Deixa-me explicar!"
Sheila estacou e voltou-se com brusquidão, a fúria a incendiar-lhe o rosto com tanta intensidade que o furriel se deteve também. Ficou pregado à sombra da maçaniqueira do pátio traseiro e não se atreveu a dar mais qualquer passo, intimidado com a raiva que parecia cegá-la.
"Explicar?", gritou ela, fora de si. "Explicar?"
"Iá", insistiu ele, submisso mas convicto. "Há uma explicação."
A rapariga apontou para a casa. Diogo voltou a cabeça para trás e avistou Mimicas plantada na varanda, o espanto desenhado no rosto enquanto observava a cena.
"Explica-lhe a ela!"
Com um novo movimento brusco, Sheila virou-lhe as costas e retomou o caminho, levada pela fúria e pelo vento quente que descia pelo Zambeze e sufocava Tete.O ambiente na repartição de Tete da DGS era de embaraço absoluto perante a inesperada e desconfortável situação que se criara.
Os funcionários não sabiam se deviam bater os relatórios à máquina ou conversar com o detido que todos fingiam não estar detido.
Ninguém, a começar pelo próprio inspector Aniceto Silva, tivera coragem de encerrar José Branco numa cela ou algemá-lo sequer. Em vez disso sentaram-no numa cadeira em plena secretaria, como se ele não passasse de um visitante ocasional que ali fora apanhar o fresco das ventoinhas para se refugiar do calor sufocante da rua. A verdade é que José era o médico de toda a gente que trabalhava naqueles escritórios, e como podiam eles prender a pessoa que ainda há uns meses salvara a filha do paludismo ou resgatara a mulher da doença do sono?
Ofereceram-lhe capilé e umas bolachas, além de muitos sorrisos e uma ou outra palmadinha nas costas por entre murmúrios de "está tudo bem, não se preocupe" ou "isto é só um mal- entendido que o chefe já vai desfazer", como se o regresso à normalidade dependesse da mera vontade de quem ali trabalhava. Mas José Branco sabia que não havia mal-entendido nenhum e que aquela questão não se resolveria só com palmadinhas e boa vontade.
Como a confirmar essa impressão, o gigantesco Francisco aproximou-se com ar de poucos amigos, era talvez a única pessoa ali que não parecia incomodada com a situação, e fez-lhe sinal de que se levantasse.
"Venha daí ao chefe."
O inspector Silva estava sentado à secretária e nem cumprimentou o médico quando o viu entrar no gabinete. Limitou-se a fazer um sinal a Francisco de que os deixassem a sós. Quando a porta se fechou, indicou a José que se acomodasse na cadeira em frente.
"Doutor Branco, quantas vezes lhe pedi que não se metesse na política?", foi a primeira pergunta que atirou. "Quantas, doutor?"
"Desculpe, mas eu não me meti em política."
O chefe distrital da DGS inclinou a cabeça num gesto céptico, como um adulto a mostrar a uma criança que não acreditava nas patranhas que ela lhe contava.
"Ó doutor... francamente!"
"Não sei porque está a falar assim. Viu-me por acaso envolvido em alguma actividade política?"
Aniceto Silva assentou os cotovelos na secretária e enlaçou as duas mãos, apoiando o queixo sobre os dedos enleados.
"Há anos que o doutor não faz outra coisa."
"Como pode dizer uma coisa dessas? Alguma vez me ouviu uma palavra que fosse sobre política?"
"Os seus actos falaram por si", disse, apontando-lhe o indicador. "Pensa que não o tínhamos debaixo de olho? Até sabemos como o doutor se comporta na cama!"
O médico esboçou uma expressão de perplexidade, estranhando o despropósito da referência.
"Na cama?"
O inspector soltou um sorriso forçado.
"A nossa bifa é uma boa queca, não é?"
A perturbação do director do hospital acentuou-se ao escutar estas palavras. Bifa? José abriu a boca e tentou falar, mas o choque fora demasiado grande e por momentos não conseguiu proferir uma palavra que fosse. Teria ouvido bem?
"O... o que quer dizer com isso?"
"Ah! A palavra bifa parece-lhe familiar, estou a ver. Dáne tusa?"
"O senhor está a falar de Nicole?"
"Doutora Thorn", corrigiu-o. "Doutora Nicole Thorn. Uma prenda dos serviços secretos rodesianos. Boa médica, boas tetas, boa informadora. Como acha o senhor que eu soube imediatamente da assistência que prestou ao turra que encontrou no mato, do pretinho que pôs num quarto particular do hospital... eu sei lá, de tudo?" Suspirou, simulando melancolia. "é pena que o doutor a tenha largado. Perdeu umas grandes quecas e nós ficámos sem uma magnífica informadora."
José abanou a cabeça.
"O senhor devia ter vergonha..."
Aniceto Silva afinou a voz.
"Quem devia ter vergonha era o doutor." Endireitou-se na cadeira. "Mas chega desta conversa, que não nos leva a lado nenhum. O que foi o senhor fazer à aldeia?"
O médico sentia-se atordoado com a descoberta do papel de Nicole e a magnitude da dissimulação de que fora vítima. Como pudera ser tão parvo? Mas, ao ouvir a pergunta do inspector, a imagem do que vira em Wiriyamu varreu-lhe a rodesiana da mente.
"Qual aldeia?", perguntou sibilino, recuperando o sangue frio. "Aquela onde a tropa matou uma data de civis inocentes?"
Com um gesto brusco e quase instantâneo, o homem da DGS apontou-lhe o dedo, como se o tivesse apanhado a dar um passo em falso.
"Vê como está a fazer política?"
O tom acusador suscitou um esgar de espanto no médico.
"A fazer política? Qual política? Fui ontem a uma aldeia prestar assistência médica a uma população que foi massacrada pela tropa. O que eu fui lá fazer foi simplesmente o meu trabalho.
Nem mais, nem menos. Agora não escondo que fiquei chocado com o que lá vi. Mataram civis inocentes a tiro e à granada, e isso..."
"Como sabe que eram inocentes?"
"Bem... eu vi crianças mortas. Eram culpadas de quê?"
O inspector abanou a cabeça, recusando-se a deixar que a discussão seguisse por aquele caminho.
"A aldeia estava contaminada pelo in, doutor. Neste momento os turras encontram-se por todo o distrito e os únicos sectores não infectados são, ao que sabemos, a cidade de Tete e o perímetro de Cabora Bassa. A tropa faz o que pode para tentar readquirir o controlo da situação."
"Mas... matar crianças?"
Aniceto Silva encolheu os ombros.
"Bem sei, é terrível. Aqueles homens andavam já há muito tempo no mato e vieram tresloucados. Ainda por cima, apanharam na véspera uma emboscada naquele sector e, sendo comandos, estavam furiosos. Como é evidente, ninguém os mandou matar civis, não é verdade?
Nem é assim que o exército português combate. Mas o que está feito está feito. Agora queremos pôr uma pedra sobre este assunto."
Fez-se silêncio no gabinete, apenas quebrado pelo rumor letárgico do aparelho de ar condicionado na sua interminável batalha contra o calor.
"Não percebo o que deseja de mim", disse por fim José. "Agora vai repreender-me por ter tratado dos sobreviventes?"
O inspector da DGS prendeu um cigarro entre os lábios e acendeu-o com um isqueiro prateado.
"Quero pedir-lhe que não conte a ninguém o que viu", disse enquanto exalava uma baforada cinzenta. "O senhor fez o seu trabalho, aceito isso perfeitamente. Agora mantenha o bico calado."
A ordem fez José sorrir sem vontade.
"O senhor sabe muito bem que sou obrigado a escrever um relatório sobre tudo o que faço enquanto médico. Considerando a gravidade do que observei, diria que a minha obrigação é acrescida pelas circunstâncias."
"A sua obrigação é com a pátria."
"Talvez, mas não só. E, porém, também por causa da pátria que tenho de escrever o relatório."
Aniceto Silva aspirou de novo o cigarro, os olhos perdidos no infinito enquanto contemplava as suas opções. Depois desprendeu o fumo devagar e deixou-o adejar paulatinamente no ar, como se se deslocasse em câmara lenta.
"O senhor não percebe que um relatório desses vai embaraçar as Forças Armadas?", disse então.
"Pior ainda, vai embaraçar Portugal."
O médico abanou a cabeça.
"O que embaraça Portugal não é o meu relatório, mas o comportamento dos nossos soldados."
"Alguns soldados, doutor", corrigiu-o o homem da DGS, sempre num registo tranquilo, a ameaça contida no tom falsamente sereno que imprimia às palavras. "Desvairados."
"Admito que sim. Mas não há modo de negar que fizeram o que fizeram."
"Não lhe peço que negue. Peço-lhe apenas que se cale. A bem da nação."
José Branco baixou os olhos e contemplou as unhas, como se de repente a sujidade que trazia entranhada nos dedos fosse o grande problema do momento.
"Sabe, inspector, desde miúdo que ando a tentar perceber o que é isso do bem", disse de forma pausada, meditando em cada palavra que pronunciava. "De certo modo foi essa busca que me levou a esta profissão. Apercebi-me de que um médico é uma pessoa que faz o bem. O bem das pessoas ou, como o senhor diz, o bem da nação. O bem, porém." Inclinou-se na cadeira, os olhos presos no inspector. "Mas afinal o que é isso do bem? Se antes da guerra Hitler estivesse a morrer e eu o tivesse salvo, será que tinha praticado o bem? Se eu ajudar um amigo a obter um emprego, estarei a fazer o bem? Então e a outra pessoa que deixa de ir para esse emprego só porque pus lá o meu amigo? Ao fazer o bem a uma pessoa não estou a fazer o mal à sua concorrente ou às suas futuras vítimas?"
O inspector remexeu-se no seu lugar, impaciente.
"Onde quer o senhor chegar com essa conversa?"
"O que quero dizer é que a questão do bem e do mal sempre gerou mais perplexidades do que certezas." José recostou-se na cadeira. "O que é o bem e o que é o mal? Todos nós intuímos estes conceitos, mas a sua definição precisa escapa-nos. Até hoje." Apontou para a janela. "Tive a resposta a este enigma no momento em que vi o mal naquela aldeia. Vi-o impregnado nos corpos carbonizados que se espalhavam pelos escombros, vi-o quando me questionei sobre o que levaria os homens a fazerem uma coisa tão cruel. E depois deparei-me com uma criança que saiu viva e intacta de baixo do corpo queimado de uma desgraçada que os soldados quase haviam morto e percebi que há coisas que o mal, por mais que tente, não poderá conquistar. O amor daquela mãe foi mais poderoso do que o mal daqueles homens. Mas só agora, enquanto estava aqui a ouvi-lo falar, é que consegui transformar em palavras a ideia que desde então me andava a ruminar na mente." Cravou de novo os olhos penetrantes no seu interlocutor. "Sabe o que na verdade é o mal?"
Sentindo-se incomodado com a intensidade daquele olhar, Aniceto Silva abanou a cabeça.
"O doutor, agora não", disse. "Poupe-me a essa conversa."
"É a incapacidade de nos pormos no lugar do outro. Quando os soldados matam mulheres e crianças como quem mata formigas, estão possuídos pelo mal porque não conseguem pôr-se no lugar das vítimas, não conseguem perceber a posição delas nem sentir o que elas sentem. O mal é a incapacidade de imaginar os sentimentos do outro e de os sentir como se pudéssemos ser nós."
Deixou o olhar vaguear pelo gabinete, detendo-se aqui e ali. "O bem é por-mo-nos no lugar do outro. E actuar em conformidade, claro." José voltou a mirar o seu poderoso interlocutor. "E é por isso, caro inspector Silva, que não posso deixar de escrever o meu relatório. Esse texto será um acto de amor e quero escrevê-lo para que as pessoas se possam pôr no lugar das vítimas. Para que os responsáveis por aquele horror se envergonhem. Para que o amor derrote o mal."
O chefe distrital da DGS em Tete revirou os olhos com enfado e respirou fundo, como um saco que se esvazia. Abriu as mãos em sinal de impotência e deixou-as tombar sobre a mesa; parecia um juiz a martelar a madeira no momento soberano da sentença.
"Eu tentei", exclamou com uma expressão resignada. "Mas se é essa a sua posição irá discuti-la no sítio para onde terei de o mandar de imediato."Se a potência do motor correspondesse a metade do barulho que fazia, a Farnel Foguete de fabrico nacional seria um bólide imparável. Mas Diogo tinha consciência de que a motorizada que lhe trepidava nas mãos, apesar de estupidamente ruidosa, não era máquina de corrida; nem aliás precisava que o fosse, uma vez que ia em descida e só a usava para se deslocar.
Logo que nessa manhã havia chegado a Tete, o furriel fora alugar a motorizada ao Zambézia Comercial e dera um salto ao hospital para saber de Sheila, de quem não tinha notícias havia quase três semanas, tantas quantas passara no mato à espera da primeira oportunidade para vir a Tete.
Havia cumprido no Mazoi o final da sua comissão na 6.a Companhia de Comandos e, logo no primeiro dia de 1973, regressara ao Chioco para reintegrar as fileiras do BART. Envolvido numa série de procedimentos relacionados com a transferência e depois com a falta de pessoal no Chioco por causa das licenças de Natal e Ano Novo, durante todo esse tempo não havia sido autorizado a deslocar-se à cidade. As múltiplas tentativas que fizera à distância para localizar a namorada embateram num silêncio angustiante; nenhuma das inúmeras cartas que lhe enviou teve qualquer resposta.
O problema é que Sheila não era a única pessoa que desaparecera. Havia três semanas que ninguém sabia do tio e no hospital as enfermeiras tinham mesmo medo de falar do assunto. Fora visitar a tia Mimicas e dera com ela desesperada a preparar as malas para ir a Lourenço Marques tentar falar com o governador- geral, projecto que todos sabiam estar destinado ao fracasso.
O ar que lhe fustigava a face enquanto se anichava na moto semeou nele a dúvida. Seria o vento tão forte que fizesse voar o que levava nos bolsos? Deitou a mão ao bolso direito das calças e constatou que estava vazio. Alarmado, pôs a mão no outro bolso. Sentiu a textura do papel e exalou um suspiro aliviado; não o perdera. Era reconfortante saber que pelo menos trazia ali a informação que poria fim a quase três semanas de ansiedade em relação a Sheila. Fora difícil, mas após grande insistência o pessoal do hospital lá se compadecera e acabara mesmo por lhe dar a morada de casa da namorada.
A Farnel Foguete chegou ao cruzamento do Hotel Zambeze. Virou à direita para o posto do calhambeque e Diogo apercebeu- se de uma coluna de Berliets estacionada no sentido oposto com uma companhia de boinas vermelhas na carga a beber cerveja. Deteve-se nos rostos e reconheceu os homens da 6.a Companhia de Comandos; tinham um ar fatigado.
Hesitou, indeciso em relação ao que fazer. Deveria falar-lhes ou seria melhor fazer de conta que não os vira? A lembrança da grande matança na aldeia era demasiado dolorosa e inclinou-o para esta última decisão. Carregou na embraiagem e, com um movimento do pé, engatou a primeira.
"Então, grande campeão? Por aqui?"
Ainda pensou em fingir que não escutara a voz de Angelino e arrancar, mas uma ligeira hesitação deitou tudo a perder. O comandante dos comandos apareceu-lhe ao lado com uma garrafa de Laurentina preta na mão e a oportunidade esfumou-se.
"Olá, Angelino", cumprimentou Diogo sem sorrir. "Não é um pouco cedo para começar a beber?"
O boina vermelha contemplou a garrafa.
"Bebo para esquecer."
"Esquecer o quê? As mulheres e as crianças que mataste?"
"Também."
Uma forte essência de after-sbave atingiu Diogo com a força de uma lufada de vento. O furriel fez uma careta e desviou o rosto, tentando fintar o odor forte.
"Porra!", exclamou Diogo. "Tresandas a Old Spice, pá! Despejaste um frasco na cabeça ou quê?"
Angelino esboçou uma expressão agoniada e colou o nariz ao lenço verde.
"Ainda cheiro muito?" Estalou a língua, contrariado. "Que merda!..."
"O que aconteceu?"
O comando revirou os olhos, engoliu mais um trago de Laurentina e depois arrotou.
"Ah, pá! Nem me fales, caraças!" Novo arroto. "Sabes de onde venho agora?"
"Do Mazoi?"
Angelino abanou a cabeça.
"De Wiriyamu, porra!"
"O quê?", admirou-se Diogo. "Da aldeia onde?..."
"Essa mesmo."
"O que foste lá fazer?"
O comandante dos comandos voltou a colar o gargalo da garrafa aos lábios e, içando-a bem alta, engoliu o que restava da cerveja. Depois limpou a boca à manga da camisa e fez uma expressão de enjoo que culminou em mais um arroto.
"Fui outra vez chamado à ZOT, pá", disse. "Parece que houve um médico que foi à aldeia e viu aquela merda toda que para lá fizemos com os pides. A informação transpirou para os padres espanhóis e já há uns zunzuns a circular sobre o assunto. Por causa do filho da puta desse médico, o GPZ vai amanhã enviar um heli para sobrevoar a aldeia com uma equipa da delegação de saúde."
Até aí a sustentar a conversa apenas por delicadeza, estas referências despertaram a atenção de Diogo.
"Disseram-te onde está esse médico?"
"Com a PIDE, acho eu. Então, por causa do heli que o GPZ vai..."
"A PIDE aqui em Tete?"
Angelino franziu as sobrancelhas, admirado e irritado com a insistência.
"Sei lá!", exclamou com um encolher de ombros. "Ouvi dizer na ZOT que o gajo foi despachado para Nampula, ou o raio que o parta. Mas que interessa isso?"
A informação fez Diogo estreitar inadvertidamente os olhos. Nampula? Isso queria dizer que o tio fora enviado para o quartel- general do general Kaúlza de Arriaga. Mas o que lhe quereriam em Nampula? Era de qualquer modo uma informação preciosa, que teria de comunicar à tia Mimicas antes de ela partir para Lourenço Marques; talvez pudessem fazer alguma coisa para chegar até ao tio. Preocupado de momento em manter o seu interlocutor na ignorância quanto à sua ligação familiar com o médico indiscreto, o furriel esboçou um gesto de indiferença.
"Continua."
"Como te estava a dizer, por causa do voo amanhã do heli do GPZ recebi ordens para voltar à aldeia e limpar aquela merda toda."
"Mas isso já foi feito", admirou-se Diogo. "Maior limpeza do que aquela parece-me impossível..."
"Desta vez limpar significa enterrar os mortos e pôr tudo num brinco", esclareceu Angelino. "De modo que eu e os meus homens tivemos de lá voltar esta manhã, vinte dias depois da operação."
Fez um gesto vago para cima. "Estás-me a topar este calor? Agora imagina o cheiro de centenas de corpos a apodrecerem durante vinte dias com esta temperatura." Revirou os olhos. "Puf, era um fedor que não se podia!" Tocou no lenço verde. "Tive de encharcar o lenço de after-shave e tapar a cara com ele para aguentar o cheirete. E os corpos eram um nojo... Estavam inchados e com nuvens de moscas à volta, vê lá tu! Abrimos uma vala e atirámos para lá toda aquela porcaria, mas não foi fácil, pá. Nem imaginas a sorte que tiveste em já não estares connosco. Olha, sabes o que me aconteceu? Pus-me a puxar um cadáver e o braço do tipo desprendeu-se-lhe do tronco e fiquei com ele na mão." Soltou um risinho nervoso. "Estás-me a ver esta merda? Fiquei com a porra do braço na mão! Agh, que nojo!" Mirou a garrafa vazia que ainda agarrava. "Venho de lá agora e já emborquei duas Laurentinas para ver se descontraio."
O relato deixou Diogo agoniado. Sentiu uma necessidade imperiosa de sair dali quanto antes, mas percebeu que, para o poder fazer, teria primeiro de mudar de assunto. Desviou por isso os olhos para a coluna de Berliets estacionada ao longo da rua.
"Onde vão vocês agora?"
"De férias para a Ilha de Moçambique. Sol, praia, camarões... O Kaúlza quer-nos fora de Tete o mais depressa possível. Por mim, maravilha!"
Reequilibrando-se na motorizada, Diogo engatou a primeira, fez força com o pedal para testar o motor, forçou um sorriso, ergueu a mão, acenou.
"Então boas férias!"
E arrancou, afastando-se no meio de grande estrépito e da nuvem de fumo azulado que a Farnel Foguete ia deixando no seu rasto.
As ruas esburacadas dos subúrbios obrigaram Diogo a abrandar. Tete nunca fora famosa pela qualidade das suas artérias, mas aquela faixa poeirenta tinha tantos buracos que lhe deu a impressão de estar a fazer um motocross entre as crateras da Lua. Teve assim de ziguezaguear em torno das covas, como se a Farnel Foguete estivesse embriagada, e progrediu a um ritmo tão lento que era acompanhado pelas pessoas a pé.
Com uma pontada de nostalgia em pleno peito, reconheceu de repente a picada que saía da rua.
Vacilou um instante, tempo apenas para se refazer das emoções que aquele lugar lhe suscitava, e enfiou pelo trilho. Fora ali, escondidos atrás de um arbusto e iluminados pelo hálito suave das estrelas, que ele e Sheila tinham feito amor pela primeira vez. Buscou com o olhar o recanto onde isso acontecera, mas à luz do dia era tão diferente que desistiu. Fora por ali, e era tudo.
A picada desaguou numa clareira cercada de palhotas e ao lado de uma estrada grande e muito movimentada. Diogo percebeu que o trilho constituía apenas uma maneira de cortar caminho e que a estrada esburacada onde desembocara era a mesma na qual havia circulado minutos antes.
Imobilizou a motorizada e, apoiando-se na perna apesar de permanecer sentado na Farnel Foguete, tirou do bolso o papel com as indicações que lhe haviam dado no hospital. Consultou a folha e ergueu a cabeça, comparando a informação com o que via. As cubatas alinhavam-se em filas mais ou menos ordenadas e a casa de Sheila, a acreditar naquelas indicações, deveria estar na primeira fila, à beira da estrada.
Percorreu as palhotas com o olhar e avistou uma mulher a sair de uma delas com um bebé atado às costas e um balde de plástico equilibrado na cabeça.
"Desculpe, minha senhora", interpelou-a. "Onde é a casa da Sheila?"
A mulher hesitou perante a farda, mas depois apontou para a terceira casa da primeira fila.
"É na Aissa, patrão."
Diogo agradeceu e estacionou diante da palhota. Tratava-se de uma cubata grande, cercada por uma vedação baixa e com algumas partes mal pregadas, embora fosse suficiente para circunscrever a circulação de várias galinhas do mato que deambulavam pelo perímetro; os contornos da vedação davam a impressão de que existia um quintal traseiro.
Depois de deixar a motorizada, o soldado deu uns passos vacilantes, ajeitou a farda, sacudiu uma mancha de pó que lhe sujava o peito e plantou-se diante da palhota.
"Sheila!", chamou. Depois mais alto: "Sheila! Estás aí?"
A cabeça de uma idosa emergiu da sombra da palhota. A mulher observou-o com ar indagador.
"Boa tarde. Posso ajudá-lo?"
"Desculpe, minha senhora", disse Diogo numa voz subitamente suave e adocicada. "Estou à procura da Sheila. Ela está?"
A idosa estreitou os olhos, desconfiada.
"O que lhe deseja o senhor?"
"Precisava de falar com ela. É um assunto da maior importância."
"A Sheila não está."
"Não me sabe dizer quando volta?"
A mulher pareceu interessar-se pelo estranho que lhe aparecera à porta. Deu dois passos trémulos e inclinou-se na direcção de Diogo, estudando-lhe o rosto mais de perto.
"Quem é o senhor?"
"Eu?" A pergunta atrapalhou o furriel, que não sabia o que devia revelar. Teria Sheila contado tudo àquela velha? Ou não teria revelado nada nem queria que ela soubesse o que quer que fosse?
O melhor, concluiu, seria improvisar uma desculpa. "Eu sou... uh... um amigo. Um amigo que... que a enfermeira Sheila tratou no hospital. Vinha-lhe agradecer."
"Um paciente?"
"Isso." Foi a vez de ele se inclinar na direcção da idosa. "E a senhora? Quem é?"
"Eu sou a Aissa. A avó da Sheila."
A face de Diogo abriu-se num sorriso caloroso e sincero.
"Ah, muito prazer!", exclamou com jovialidade. "A Sheila falou-me muito de si."
"Ai sim? E disse bem?"
"Com certeza", assentiu o soldado. Espreitou a entrada da porta da palhota. "A senhora disse que a Sheila não está. Sabe -me dizer quando é que ela volta?"
Aissa abanou a cabeça.
"Não volta."
A notícia fez Diogo sentir um baque.
"Não volta? Porquê?"
"A Sheila foi para Lourenço Marques."
O furriel abriu a boca de surpresa. A informação deixou-o pasmado, mas ao mesmo tempo explicava muita coisa, em particular o silêncio dela em resposta às muitas cartas que lhe remetera nas últimas semanas. Isso era importante, considerou, porque lhe indicava que o mutismo de Sheila resultava simplesmente de a namorada não ter recebido as missivas em que ele explicava em detalhe o que sucedera na aldeia e o seu papel nos acontecimentos. Diogo acreditava firmemente que, quando ela lesse ou escutasse essas explicações, saberia perdoar-lhe. Essa convicção foi reforçada quando se apercebeu de que a rapariga partira para Lourenço Marques e portanto não havia lido as cartas. A sua primeira reacção foi por isso de alívio.
Porém, a atenção deteve-se de novo na informação que a avó da namorada lhe dera e descobriu-lhe um ângulo intrigante que não valorizara à primeira. Sheila partira para Lourenço Marques?
"Ó dona Aissa, o que foi ela lá fazer?"
Um sorriso luminoso, embora desdentado, rasgou o rosto enrugado da velha Aissa, os olhos pequenos e negros a brilharem com a emoção de quem sentia que havia cumprido enfim o seu desígnio nesta vida.
"A minha Sheila casou-se anteontem."
"O quê?"
A face da velha irradiava uma alegria incontida, como o Sol do meio-dia a brilhar sobre o Zambeze.
"Ela e o Ismael vão-me dar um bisneto, graças a Deus."O rosto do homem eternizado na estatueta de pau-preto apresentava-se recortado por traços rasgados na face e na testa, os dentes afiados em triângulo como os de um tubarão. Era possivelmente a quinta vez que José Branco visitava o Museu Etnográfico, mas já estava em Nampula havia mês e meio e aquela parecia-lhe a melhor maneira de passar o tempo.
Deu uns passos para o lado e observou a figura seguinte. Tratava-se de outra estatueta maconde em pau-preto, desta feita de uma mulher a pilar o pilão com uma criança às costas. Quantas vezes não vira ele uma imagem assim, mas em carne e osso, nas suas deambulações pelo distrito de Tete?
Apreciou o olhar do artista maconde e a forma como captara a postura da mulher.
"Olá, tio."
A voz apanhou-o de surpresa. Voltou-se para trás e viu um militar de camuflado e uma boina castanha nas mãos.
"Diogo! O que estás aqui a fazer?"
O sobrinho olhou em redor, certificando-se de que não havia ninguém suspeito nas redondezas. O
museu estava vazio àquela hora da manhã e apenas se lobrigava em redor um empregado que languescia numa cadeira, a cabeça tombada de sonolência, o queixo a colar-se ao peito e um pingo de saliva a espreitar do canto da boca entreaberta.
"Temos andado maningue preocupados consigo", murmurou Diogo. "O tio está bem?"
"Iá, têm-me tratado bem."
"O que lhe querem eles?"
"Eh pá, ainda não percebi. A PIDE trouxe-me para aqui e alojaram-me num quarto do quartel sem poder comunicar com ninguém. Nem telefonemas, nem cartas... nada. Estou em isolamento total. Depois uns oficiais chamaram-me e pediram-me que descrevesse o que vi na aldeia. Não se passou mais nada."
"Ah, ainda bem."
Acossado pela saudade, o médico vacilou, quase como se receasse formular a pergunta.
"Tens notícias da Mímicas?"
"Tem andado raladíssima consigo. Ia apanhar o avião para Lourenço Marques para tentar saber de si, mas logo que descobri que o tio tinha sido enviado aqui para Nampula fui falar com ela e andámos uma semana a congeminar um plano."
"Foste à Beira falar com ela?"
"Qual Beira? A tia Mimicas está em Tete..."
A novidade extraiu de José um suspiro de alívio.
"Graças a Deus que voltou", murmurou. Hesitou, como se reordenasse os pensamentos. "Tenho andado preocupado com a irmã Lúcia e a Sheila, que foram comigo a uma aldeia que... enfim, que está na origem de toda esta chatice. Tens notícias delas?"
"A freira foi expulsa e recambiada para Espanha", anunciou o sobrinho. O olhar turvou-se e a voz fraquejou-lhe quando a seguir teve de se referir à ex-namorada. "A Sheila foi para Lourenço Marques e... e casou."
O médico limitou-se a assentir com a cabeça enquanto digeria as novidades, os olhos pejados de emoção mas a boca comprimida num silêncio meditativo. Em condições normais aquelas novidades seriam espantosas, mas nesse momento já nada o assombrava. Sentiu-se até aliviado por elas. Se a irmã Lúcia tinha sido expulsa, estava já fora do alcance da PIDE, e o casamento de Sheila punha-a também em segurança em Lourenço Marques.
"E tu?", perguntou por fim. "Que estás aqui a fazer?"
"Consegui uma licença de uma semana e vim cá a mando da tia Mimicas."
"Ai sim?", admirou-se José. "Isso tem alguma coisa a ver com o plano de que falaste há pouco?"
Diogo aquiesceu e lançou novas miradas inquietas em redor, sempre preocupado em assegurar-se de que ninguém os estava a escutar.
"Se não fizermos nada, temos medo que lhe possa suceder alguma coisa", disse num tom tenso.
"Os gajos já foram limpar a aldeia e fazer desaparecer os cadáveres. Não sabemos que destino querem dar às testemunhas. A freira e a Sheila não parecem problemáticas, mas o tio é diferente. Se o director do hospital de Tete, que ainda por cima também é delegado de saúde, presidente da Cruz Vermelha e director do Serviço Médico Aéreo, vier a público falar numa coisa destas... está a ver a chatice, não está? Foi por isso que o trouxeram aqui para Nampula e o mantêm incomunicável. Achamos que estão a decidir o que lhe irão fazer." Fez um gesto vago com as mãos.
"Por isso fui com a tia Mimicas à Beira falar com um advogado que ela conhece e que activou..."
"O Rouco."
"Isso. Ele activou uns contactos que tem no estrangeiro e obteve uma informação muito interessante. Parece que uns padres espanhóis de uma missão perto de Tete, a missão de... de São Paulo, acho eu..."
"São Pedro."
"Ou isso... disseram-lhe que já escreveram um relatório sobre o que se passou na aldeia. Ao que consta, o texto encontra- se nas mãos de jornalistas importantes."
A novidade surpreendeu José.
"A sério? Então isso vai rebentar a qualquer momento!..."
O sobrinho fez uma careta e abanou a cabeça.
"Não necessariamente", disse. "Parece que os jornalistas acham o relatório demasiado fantasioso e perguntaram aos padres se eles foram à aldeia ver se efectivamente lá estavam os cadáveres. Os espanhóis admitiram que nunca estiveram lá e explicaram que os relatos que constam dos seus relatórios foram feitos apenas com base em testemunhos de sobreviventes. Acontece que os jornalistas desconfiam que esses sobreviventes sejam turras e que tudo isto não passe de uma acção de propaganda." Diogo falou muito depressa e teve de fazer uma pausa para recuperar o fôlego. "O
doutor Rouco foi informado de que nada será publicado."
O desfecho inesperado da narrativa desapontou o médico, a esperança a fugir-lhe como pó lançado ao vento, a decepção a gotejar-lhe na voz fatigada.
"Nada de nada?"
O furriel fez um gesto veemente com a mão.
"Nada." Respeitou um curto silêncio. "A não ser..."
Aquele início de frase ficou em suspenso, destrancando uma porta sem contudo a abrir.
"A não ser o quê?", atalhou José, como se a esperança emitisse um derradeiro sopro. "Publicam ou não publicam?"
O sobrinho olhou mais uma vez em redor, certificando-se de novo de que ninguém os escutava, e inclinou-se na direcção da orelha direita do médico.
"Eles dizem que publicam só numa condição", sussurrou, tão baixo que o tio, apesar de ter o ouvido quase encostado aos lábios de Diogo, teve dificuldade em escutá-lo. "Precisam de uma testemunha independente e credível que lá tenha estado, alguém que não possa de modo algum ser associado aos turras."
O furriel afastou a cabeça e ficaram os dois a fitar-se. José digeria em toda a sua extensão as implicações e as ramificações daquela condição.
"Ou seja", concluiu o médico, "precisam do meu testemunho."Diogo remexeu nervosamente a boina castanha que tinha nas mãos.
"Eu também podia testemunhar."
"Tu?"
"Estive na aldeia e vi tudo", admitiu, baixando a cabeça. "é uma história muito complicada que lhe contarei depois. Só que estive lá como soldado e o doutor Rouco disse-me que eu poderia acabar morto se abrisse a boca. Como sou tropa, levavam-me para uma missão no mato, davam-me um tiro nas costas e diziam que tinha sido um turra. Tem por isso de ser um civil respeitado."
Voltou a encarar o seu interlocutor. "O tio Zé."
"Querem então publicar o meu testemunho."
"Querem publicar o relatório dos padres", corrigiu o sobrinho. "O seu testemunho destina-se apenas a garantir que esse relatório não é fantasioso. Claro que também pode ser publicado, mas o doutor Rouco opõe-se. Acha que seria demasiado perigoso para si e, além disso, desnecessário.
Basta que valide o relatório da missão de São Pedro e os jornalistas publicam tudo."
José considerou os problemas logísticos que a questão suscitava.
"E como farão vocês para fazer chegar o meu testemunho a esses jornalistas? Olhem que o Rouco está sob vigilância da PIDE..."
Diogo afinou a voz.
"Será o Ernesto", revelou. "Ele tem uns contactos no mato e levará em mãos a sua confirmação até à Zâmbia. Um padre inglês que se encontra em Lusaca encarregar-se-á do resto."
Ficaram os dois a fitar-se, tio e sobrinho, ambos plantados naquela esquina do Museu Etnográfico de Nampula, as palavras enfim trocadas, o que havia a dizer já dito, a decisão final tinha agora de ser tomada. Sentindo que chegara o instante da verdade, talvez aquele para o qual nascera e se preparara a vida inteira, José desviou a atenção para a janela e respirou fundo, os olhos presos às folhas de uma palmeira que ondulavam ao vento, a retina a captar uma sucessão de rostos que lhe desfilaram pela mente. Dizem que se revê a vida no momento anterior ao da morte, o tempo vertido como areia que uma ampulheta despeja na eternidade, mas ao médico isso aconteceu nos segundos que precederam a decisão.
A maneira de um filme acelerado, as imagens a sucederem-se como silhuetas projectadas pela luz ténue da sua memória, lembrou-se do pai, que lhe ensinara a diferença entre o bem e o mal, do professor Pina, que lhe explicara os seus deveres enquanto médico, de Domingos a ser expulso do hospital de João Belo pela afronta de ser preto, de Mimicas a responder com um acto de amor à sua traição, de Ernesto, que salvara e que agora o queria salvar, do sobrinho que atravessara o Norte de Moçambique para lhe levar a redenção, talvez sem consciência de que a buscava também, e sobretudo da criança, do menino que naquela manhã fatídica vira emergir do abraço protector da mãe carbonizada como se tivesse nascido uma segunda vez, devolvido à vida por um branco trajado de branco, resgatado da morte por um acto de amor.
Nesse instante José poderia ter chorado. As lágrimas chegaram ainda a brotar-lhe no olhar embaciado, trémulas e teimosas, e uma tristeza lassa derramou-se num suspiro profundo. Mas resistiu. Suportou a comoção que ameaçava afogá-lo e o medo que lhe tolhia os movimentos, e, com a força de quem enfrenta a sombra mais aterradora, mergulhou na treva sabendo que ela era afinal a luz. O seu rosto abriu-se devagar e os lábios, mesmo vacilantes, acabaram por formar um sorriso, primeiro tímido, depois luminoso, um sorriso tão vivo que se tornou certeza e a seguir determinação, como se tivesse afundado o dedo no anel e assim ficado invisível, confrontado enfim com ele mesmo, a sua consciência, o sentido de decência, o dever de proceder bem fossem quais fossem as consequências, porque forte é aquele que enfrenta os fortes quando a causa é justa.
Chegara a hora de José Branco cumprir o seu destino.
Epílogo
A pequena mesa estava preparada com uma elegância simples, como era hábito naquele palacete, com um copo de sumo de laranja fresco, umas fatias de pão de Mafra ainda quente, um frasco dourado de mel transmontano, manteiga açoriana, um queijo da serra da Estrela derretido no prato e uma cafeteira de café acabado de fazer. O homem impecavelmente vestido de fato e gravata entrou na salinha, ocupou o seu lugar habitual e ajeitou o guardanapo no regaço.
"O dona Conceição!", chamou. "Dona Conceição?!"
Uma mulher rechonchuda, de bochechas coloridas como uma camponesa, entrou na salinha a esfregar as mãos anafadas no avental.
"Sim, senhor presidente do Conselho?"
"Não me arranja umas torradinhas?", disse o homem. "Estavam-me mesmo a apetecer..."
"Com certeza, senhor presidente do Conselho. Vou já preparar."
Dona Conceição saiu em passo lesto em direcção à cozinha, deixando o presidente do Conselho sozinho na sala. O governante desviou a atenção para a verdura que se estendia para lá das janelas; a manhã nascera tépida, embalada pelo trinfar melodioso das andorinhas que saudavam o novo dia e iluminada pelo Sol que espreitava ainda baixo sobre as árvores do jardim do palacete. Que dia bonito, pensou com melancolia. Apeteceu-lhe ir lá para fora gozar a manhã de Verão, mas sabia que o desejo não passava de fantasia; sentia-se demasiado tolhido por obrigações para se poder distrair com prazeres frívolos.
Suspirou com resignação e pegou numa pasta que o seu chefe de gabinete lhe havia deixado, como de costume, na mesinha ao lado da cadeira. Abriu-a e pôs-se a reler o decreto que tinha preparado para assinar. O documento, identificado no topo da folha como "Decreto-Lei n.° 353/73", autorizava os oficiais milicianos do quadro de oficiais a ultrapassarem os do quadro permanente das Forças Armadas nas suas promoções, desde que frequentassem um curso intensivo na Academia Militar equiparado aos cursos normais. Era uma medida necessária, uma vez que o Exército não conseguia produzir capitães em número suficiente para as necessidades operacionais, pelo que urgia ir buscá-los aos milicianos. O problema é que a solução colidia com o princípio da antiguidade. Os oficiais de carreira não iriam gostar, pensou, mas que poderiam fazer? Uma revolução?
Fez deslizar os olhos pelo documento e pousou-os no espaço em branco por baixo de "O
Presidente do Conselho de Ministros". Tirou a caneta do bolso do casaco e garatujou a sua assinatura.
Marcello Caetano.
O telefone tocou e ouviu uma voz masculina atender. Era o chefe de gabinete, que entrara ali no palácio de São Bento logo pelas seis da manhã para lhe preparar a agenda do dia. Escutou-lhe os sapatos a calcorrearem o soalho em crescendo, sinal evidente de que se aproximava, e viu-o invadir a salinha do pequeno-almoço com uma bandeja a sustentar o telefone negro, o fio enrodilhado a desdobrar-se pelo chão.
"Bom dia, Augusto", cumprimentou Marcello Caetano. "Nem o pequeno-almoço me deixam tomar em sossego, hem?"
"É verdade, senhor professor."
O presidente do Conselho assentou o olhar desanimado no telefone pousado na bandeja; sabia que quando lhe ligavam era só para resolver problemas ou para comunicar aborrecimentos. Ou eram chatices relacionadas com a guerra no Ultramar, ou eram os protestos nas Nações Unidas, ou era um novo encarecimento do petróleo, cujo preço por barril quadruplicara desdp o início do ano e fizera disparar a inflação. Enfim, raramente dali vinham boas notícias.
"O que é agora?"
O chefe de gabinete depositou a bandeja na mesa, mesmo ao lado do copo de sumo de laranja.
"É o senhor embaixador em Londres, senhor professor", anunciou. "Diz que tem muita urgência em falar com o senhor."
"Ah!", exclamou Marcello Caetano, subitamente entusiasmado. "é por causa da minha ida a Londres na próxima semana. São os seiscentos anos do Tratado de Aliança. Ah, vai ser uma rica comemoração!" Indicou uma cadeira vazia. "Sente-se aí, Augusto. Ponha-se à vontade, homem.
Coma alguma coisa!"
"Obrigado, senhor professor."
O chefe de gabinete ocupou o lugar à mesa e o presidente do Conselho agarrou o telefone. Com tantos problemas aborrecidos na governação, quase todos derivados da guerra no Ultramar, era um verdadeiro bálsamo poder falar de coisas agradáveis. A visita a Londres para celebrar a velha aliança, pressentiu, seria uma delas.
"Senhor embaixador, bom dia!", saudou com jovialidade. "Já tem tudo engalanado para a visita?"
"Bom dia, senhor presidente do Conselho", retorquiu a voz do outro lado da linha. "Sim, está tudo a andar."
"E o encontro com a rainha? Tudo afinado?"
"A recepção vai ser no Palácio de Buckingham. O protocolo está todo tratado."
"E a imprensa? Vamos ter uma cobertura em grande?"
A voz do outro lado hesitou."Pois, senhor presidente do Conselho, a imprensa... enfim, é justamente por isso que lhe estou a ligar."
O tom sombrio que só então detectou na voz do embaixador constituiu um sinal de alerta.
Marcello Caetano franziu o sobrolho, subitamente preocupado.
"O quê!? Não me diga que os jornalistas não vão dar atenção à visita!... Só nos faltava mais essa!"
Nova hesitação do embaixador.
"O problema não é bem esse, senhor presidente do Conselho", devolveu. "Receio até que eles nos venham a dar demasiada atenção..."
"Demasiada atenção? Ó homem, desde quando é que a atenção da imprensa é demasiada?"
O embaixador fez um estalido contrariado com a língua.
"é por causa do Times, senhor presidente do Conselho. O jornal encheu toda a primeira página desta manhã com uma notícia... enfim, desagradável. E também o editorial. Isto é um problema. As rádios não falam de outra coisa e já recebi aqui uma data de telefonemas da imprensa. Os telefones não param de tocar, parece um concerto. Um horror! Até a BBC quer uma declaração para o Nine 0'Clock News! Já tratei de remeter para Lisboa vários exemplares do Times, claro. Devem seguir no primeiro voo da TAP e espero que estejam aí ao princípio da tarde, se Deus quiser. Convinha talvez dar instruções para alguém ir ao aeroporto buscar a encomenda. Ainda há pouco eu dizia aqui ao meu attacbé que a TAP, por vezes, não revela o devido cuidado com as malas diplomáticas e que..."
A forma como o embaixador falava sobre o assunto, dizendo que havia um problema mas evitando explicá-lo e perdendo-se até em minudências irrelevantes, constituiu um novo sinal de alerta. E dos grandes. Por esta altura já Marcello Caetano não tinha dúvidas de que, fosse o que fosse o que aí vinha, não seria agradável. Mais um aborrecimento! Respirou fundo, como habitualmente quando se preparava para as más notícias, e enfrentou o bocal do telefone.
"Ó senhor embaixador, deixe-se lá de rodeios", murmurou numa voz subitamente despida de emoção, mero registo monocórdico tão gelado quanto o olhar que ostentava nesse momento. "Que notícia é essa que o Times publicou?"
O embaixador manteve-se um tudo-nada silencioso, provavelmente também ele a ganhar coragem para lidar com a informação, e pigarreou antes de voltar a falar.
"Senhor presidente do Conselho", começou por dizer. "Por acaso já ouviu falar de um lugar chamado Wiriyamu?"