"Nem pensar!", exclamou com grande convicção. "O doutor não sabe com quem está a lidar!

Este tipo é um turra! A primeira oportunidade pisga-se e vai juntar-se aos outros." Apontou o dedo ao seu interlocutor. "E se não lhe cortar o pescoço antes de se ir embora já o senhor está com muita sorte!..."

"Isso não vai acontecer", retorquiu José com igual firmeza. "De qualquer modo é problema meu.

Eu responsabilizo-me por ele e o senhor fica com o seu problema resolvido."

O inspector abalou pelo corredor e começou a caminhar em direcção à saída, indicando assim que a conversa terminara e que o seu convidado se devia ir embora. José percebeu que o caso estava quase perdido, mas intuiu que a única maneira de inverter as coisas era jogar a sua carta mais alta. Se ela não resultasse, nada resultaria. Por isso não acompanhou Aniceto Silva, preferindo permanecer plantado no lugar onde se encontrava.

"Se não me entregar este homem", atirou para a figura que se afastava, "o Serviço Médico Aéreo acaba."

A carta tinha sido lançada e era forte, pelo menos o suficiente para o responsável da DGS

estacar ao fundo do corredor e girar sobre os calcanhares.

"O quê?"

"E como eu lhe disse. Se não me entregar o recluso, acaba-se o Serviço Médico Aéreo."

Aniceto Silva ficou momentaneamente sem palavras. Tentava perceber a relação causa-efeito entre as duas coisas, o guerrilheiro e o Serviço Médico Aéreo, mas não conseguia estabelecer a menor ligação e o seu semblante reflectia a maior das perplexidades.

"O doutor ensandeceu?", perguntou com genuína sinceridade. "Quer acabar o Serviço Médico Aéreo por causa de... de um turra? Não estou a perceber!..."

Foi só neste instante que José Branco saiu do seu lugar e, num gesto quase conciliador, começou a percorrer o corredor em direcção ao chefe distrital da DGS.

"É muito simples", disse num tom sereno e profissional, como se expusesse uma evidência. "Os turras entregaram-me um ferido no mato. Eu prometi tratá-lo e trouxe-o aqui para Tete. O que eles vão concluir é que eu o entreguei à PIDE, a PIDE entregou-o aos comandos e os comandos mataram-no. Está a ver a situação?"

"Sim. E então?"

O médico chegou diante do inspector e imobilizou-se; dir-se- ia que o queria enfrentar em duelo.

"O que irá acontecer da próxima vez que o meu avião aterrar no mato e os turras vierem ter comigo? O que irá suceder quando eles me disserem: confiámos em si, entregámos-lhe um ferido e vocês mataram-no? O que acha que os turras me vão fazer? Acha que nessas circunstâncias o Serviço Médico Aéreo tem condições de segurança para continuar a funcionar?"

As perguntas deixaram Aniceto Silva abalado; os seus olhos pareciam vidrados enquanto considerava aquele cenário inesperado. Como era possível que aquilo não lhe tivesse ocorrido?

"Porra!"

Sentindo nesse instante que a partida estava ganha, José evitou mesmo assim sorrir; sabia que era importante nunca humilhar um derrotado, especialmente tão poderoso como aquele. Em vez disso pousou-lhe a mão no ombro, quase como se o quisesse reconfortar, mas não conteve uma ponta de prazer, orgulho até, no momento em que formulou a pergunta seguinte.

"Quando é que venho buscar o preso?"O lodo escuro e pegajoso tinha algo de repelente, mas Diogo Meireles não dispunha de alternativa. Rastejou no meio da erva, esfregando-se naquela lama nojenta, até se posicionar no ângulo que lhe pareceu mais favorável, mesmo no limiar da crista de uma pequena elevação. Apontou a G3 na direcção onde sabia esconder-se o alvo e aguardou. As moscas aproximaram-se, zumbindo a rasar o lodo, teimosas e enervantes, mas Diogo ignorou-as, determinado a não perder a oportunidade que se avizinhava.

A figura emergiu de repente, saltando por cima da erva, e Diogo voltou para ela a arma e disparou uma rajada. A placa de madeira recortada com o perfil de um homem armado tombou, sinal seguro de que fora atingida.

"Toma!", rosnou. "Um já está!"

Após três meses nas Caldas da Rainha a fazer o curso de miliciano, Diogo tinha sido transferido para Tavira, onde começara um novo curso, de atirador. Passou esses três meses a acordar de madrugada para se enterrar no lodo das salinas em exercícios diários de combate e emboscadas, agarrado à suaprimeira G3 e a disparar balas reais, como nessa ocasião em que rastejou pelo lodo para atingir uma placa de madeira que os instrutores haviam ocultado na erva.

No início da recruta em Tavira teve alguma dificuldade em habituar-se à arma, devido ao coice dos disparos e ao trovejar que lhe parecia rasgar os tímpanos, mas três meses mais tarde, quando foi dado como apto para a guerra, já tratava a G3 com a familiaridade com que lidava com uma bola de voleibol.

Aprendeu tácticas de contra-guerrilha, desenvolvidas com base numa mescla das experiências francesa, britânica e americana, e quase decorou o manual em vigor, O Exército na Guerra Subversiva, e em particular a doutrina de que "a guerra subversiva era, essencialmente, um problema de conquista da população". O combate, sustentava o manual, podia ser a faceta mais dramática da guerra de contra-subversão, mas não era a mais importante; a chave estava no apoio das populações.

Passou então para o quartel da Guarda, onde ficou à espera de colocação, presumivelmente num qualquer posto no Ultramar. Inquiriu camaradas e leu tudo o que havia na imprensa. O

cruzamento das informações permitiu-lhe esboçar uma ideia do que o esperava, mas foi o avô quem lhe fez um retrato mais claro quando, no fim-de-semana da Páscoa de 1971, Diogo foi a Penafiel e com ele conversou sobre os vários cenários possíveis para onde poderia ir.

"Os piores são a Guiné e o Norte de Moçambique", disse-lhe o capitão Mário Branco, o rosto riscado pelas rugas e a cabeça reluzente já quase sem cabelo. "Se fores para Angola, rapaz, podes ir a Fátima agradecer a Nossa Senhora."

"E Cabo Verde?"

"Ui, isso merecia uma peregrinação a Roma!", sorriu o velho capitão. "Nos tempos que correm, Cabo Verde, São Tomé, Macau e Timor são verdadeiros paraísos para quem anda na tropa."

A conversa decorria no escritório do rés-do-chão, onde se havia concentrado toda a família para aguardar a chegada do compasso. Amélia, que seguia o diálogo e se sentia igualmente preocupada com o destino do neto, não se conteve.

" Mário, sendo tu do exército e tendo amigos no Estado- Maior, lá em Lisboa, não podias ir dar uma palavrinha para ver se... se safavas aqui o nosso Dioguinho?"

Avô e neto entreolharam-se.

"Nem pensar!"

»

A dúvida durou ainda alguns meses, como se os deuses estivessem demasiado ocupados com outros assuntos ou talvez a magicar-lhe alguma partida, mas a longa espera terminou finalmente à entrada de 1972, numa manhã em que Diogo se encontrava deitado na sua camarata, enroscado numa manta para se proteger do agreste frio serrano.

"Ainda a dormir?"

A voz irrompeu-lhe no sono. Estremunhado, ergueu a cabeça e viu o alferes do serviço postal debruçado sobre a sua cama a estender-lhe um envelope.

"Hã? Que é isso?"

"O que havia de ser, pá?", perguntou o alferes, abanando o sobrescrito. "é a tua guia de marcha!"

"O quê?"

"Pega lá nessa merda!"

Num gesto mecânico, quase sem pensar, Diogo estendeu a mão e tentou segurar o envelope, mas ele caiu-lhe aos pés da cama. Mesmo assim o alferes deu a entrega como consumada e fez meia volta, volatilizando-se tão depressa como se materializara.

"Boa sorte, pá!"

Diogo levou meio segundo a despertar por completo. Sentou- se na cama e, de repente alheio ao frio, fitou longamente o envelope castanho, os dedos a coçarem o cabelo desgrenhado, o coração aos saltos de ansiedade. Como era possível que um sobrescrito tão ridiculamente minúsculo, pensou, encerrasse a chave do seu futuro? Quase teve receio de voltar a pegar nele, nem sequer lhe quis tocar, mas depressa considerou que, se tinha medo de uma coisa tão simples e inofensiva, o que faria quando um dia estivesse diante do inimigo?

A interrogação serviu para derrotar as hesitações. Pegou no envelope e rasgou-o pelo canto.

Extraiu a folha que ele guardava e desdobrou-a; era de facto a guia de marcha. O documento anunciava-lhe que passava à condição de rendição individual, o que significava que ia substituir um soldado caído; talvez se tratasse de um ferido ou, quem sabe, um morto.

Os olhos deslizaram pela folha, deambulando entre as palavras frias e formais do burocratês militar, em busca do essencial, o destino que lhe haviam reservado e cujo nome se recortou por fim a quatro letras na penúltima linha do texto impessoal.

Tete.A consulta da manhã decorria como habitualmente no hospital de Tete. Havia já algum tempo que José Branco fixara as deambulações aéreas pelo distrito em quatro dias, arrancando à terça e regressando na sexta-feira, de modo a assegurar as consultas no hospital às segundas-feiras.

Acontecia até com frequência voltar a Tete a meio da semana, ou até todos os dias, uma vez que o número de pacientes diminuíra no mato. O facto é que as campanhas de vacinação tinham produzido resultados espectaculares e conseguira mesmo erradicar algumas doenças, feito festejado a whisky no bar do hospital.

A meio dessa manhã, e depois de ter lidado com alguns casos de diarreia e dois de paludismo, entrou-lhe no gabinete um militar que se identificou como o alferes Fonseca. No seu encalço vinha uma mulher com um bebé ao colo. O interessante neste caso é que a mulher era negra e ele branco.

"É a nossa menina, senhor doutor", disse o militar com a angústia no olhar, apontando para a criança que se encontrava no colo da mulher. "Está muito doente e já não sabemos o que lhe havemos de fazer.""O que tem ela?"

"Começou com febre, mas esta noite pôs-se a vomitar com alguma violência e nós assustámonos."

O médico dirigiu-se à marquesa, onde a mãe deitou a criança. Bastou um olhar e a identificação de duas pústulas na boca para José diagnosticar a doença.

"Isto é varíola."

Disse-o de uma forma ligeira, como se estivesse a falar de uma mera constipação, mas o alferes era um homem observador e apercebeu-se da perturbação no olhar conhecedor do médico.

"Tem cura, não tem?"

José Branco não respondeu imediatamente. Ficou a fitar a criança, como se tentasse tomar uma decisão.

"A menina ainda é latente?"

"lá, senhor doutor", confirmou o alferes, tentando ler-lhe na expressão o que pensava. "Tem apenas seis meses. Porquê?"

O médico fez um estalido com o canto da boca, como se a informação não fosse do seu inteiro agrado.

"A varíola é complicada no caso dos latentes", sentenciou. "Vamos ter de a internar."

O casal reagiu com alarme à decisão, com a mulher a puxar a filha para o colo, como se assim a protegesse, e o alferes a mostrar-se surpreendido.

"Mas... mas ela só tem seis meses, doutor!..."

"Precisamente por isso."

Mantendo sempre o semblante de quem achava tudo aquilo normal, José foi à porta do gabinete e espreitou para o corredor, mas não avistou nenhuma enfermeira. Fez então sinal ao casal de que o acompanhasse e levou-o até à enfermaria. Os pais da criança mostravam-se muito inquietos com a decisão de internamento, pelo que percebeu que teria de os acalmar. A melhor forma era distraí-

los.

"A sua mulher que fique descansada. Vamos deixá-la permanecer cá no hospital com a menina."

"Agradeço-lhe, senhor doutor", retorquiu o alferes, subitamente embaraçado. "Sabe, a Mariana...

enfim, ela não é minha mulher. Queremos casar, claro, mas o exército está a levantar uns obstáculos... é uma chatice!"

O director do hospital deitou um olhar perscrutador à negra, que apertava a filha entre os braços. Era uma rapariga bonita, de porte altivo e lábios espessos, decerto bons de beijar.

"Conhecem-se há muito?"

"Há dois anos, doutor. Eu sou comandante da OPV, não sei se conhece. E a organização de polícias voluntários..."

"Sei muito bem. São vocês que policiam os aldeamentos que o GPZ anda a construir por todo o distrito."

"Precisamente. O meu trabalho é recrutar e treinar indígenas para procederem ao policiamento dos aldeamentos, de modo a dificultar a infiltração pelos turras." Apontou numa direcção vaga, que José sabia ser o Zambeze. "Opero ali no quartel do Matundo, não sei se já lá foi."

"Conheço, pois."

"Acontece que uma vez cruzei-me com a Mariana, que é filha de uns machambeiros que vivem ali perto do quartel, e... sabe como é, apaixonámo-nos. Como o exército desencoraja as relações com os indígenas, não tivemos possibilidade de nos casar." Encolheu os ombros e voltou-se para trás de modo a lançar um olhar meigo à mulher. "Mas é como se estivéssemos casados."


Chegaram à enfermaria feminina e o director do hospital voltou a não localizar nenhuma enfermeira. Foi à sala de descanso e deparou-se com um vulto de bata branca sentado a ler um livro, mas percebeu que não era nenhuma enfermeira. Tratava- se de Nicole.

"A Lúcia?"

A rodesiana ergueu os olhos azuis e, ao reconhecê-lo, sorriu- lhe.

"Veio um padre espanhol e foram almoçar." Piscou o olho esquerdo. "Eu acho que é desculpa, né? Padre e freira juntos? Hmm..." Riu-se. "Devem estar rezando!..."

Ao longo dos últimos dois anos, a relação entre José e Nicole havia-se tornado intermitente. Ela passava a vida entre o Songo e Salisbúria, mas ia com alguma frequência a Tete a pretexto de haver uma certa complementaridade com o seu trabalho no Songo, o que não era de todo inexacto.

Ajudava um ou dois dias no hospital e aproveitava para manter o contacto com o amante português antes de seguir de novo para o Songo ou regressar à Rodésia. Aquela era uma dessas circunstâncias.

O director do hospital chamou Mariana e a filha e apresentou-as à médica rodesiana.

"Oiça, preciso que veja esta menina", indicou. "Tem seis meses e está com varíola." Lançou uma espreitadela para a fileira de camas na enfermaria. "Ponha-as num quarto particular, está bem?"

Nicole olhou para a criança, depois para a mãe e por fim para José, uma expressão de estupefacção desenhada no rosto.

"Um quarto particular?", interrogou-se, voltando a pousar os olhos na negra como se a ordem fosse absurda. "Mas... e pode?"

"Claro que pode", retorquiu o director do hospital, espreitando de relance para o relógio e regressando já ao corredor. Ia almoçar a casa, mas precisava ainda de concluir as consultas. "Cuide bem da menina."

O empadão de Mímicas era o prato favorito de José e ementa obrigatória nos almoços de segunda-feira em casa, mas quando nesse dia o provou sentiu pousar nele o olhar inquisitivo da mulher.

"Então?", quis ela saber. "O coiso está bom?

"Uma maravilha, como sempre", elogiou José. "Já sabes que não há empadão como o teu."

Mimicas soltou uma gargalhada deliciada e lançou um olhar cúmplice ao empregado, que observava a cena com uma atenção que o médico percebeu ser pouco usual.

"Não fui eu que o fiz", revelou a mulher. "Foi o Ernesto!"

O marido olhou para o empregado como se buscasse confirmação, que obteve logo que o viu sorrir.

Ernesto trabalhava lá em casa desde que o retirara da DGS e com ele fizera o pacto de que o empregaria a troco de um salário e a promessa de que não voltaria para o mato, sob pena de criar problemas ao seu protector. Contrariando os augúrios de Aniceto Silva, as coisas correram bem e ao longo desses dois anos o acordo fora respeitado por ambas as partes. Desenvolveram até uma certa relação de confiança, ao ponto de Ernesto confidenciar ao seu empregador que era perito em minas e armadilhas da guerrilha quando fora ferido em Cazula. Agora um homem livre em Tete, casara e instalara-se com a mulher nuns quartos anexos à casa do director do hospital. Começara por se encarregar exclusivamente do jardim, mas pelos vistos Mimicas havia conseguido nesse dia convertê-lo às artes culinárias.

"Está visto", assentiu José com um gesto aprovador. "Já estou mesmo a ver que vamos perder o Ernesto. Sabem qual vai ser o próximo restaurante de Tete?" Esboçou com os dedos o desenho imaginário de uma placa identificativa. " Cbez Turra! Aposto que até o inspector Silva ia lá comer!"

A fileira nívea dos dentes de Ernesto reluziu com o sorriso esfíngico que esboçou perante a sugestão.

"A esse indivíduo", murmurou no seu português rebuscado, "eu misturo veneno no prato."

A sugestão não foi do agrado do médico, que lhe lançou um olhar reprovador.

"Ernesto, então? Que é isso? Aqui a política fica à porta de casa! Nós não podemos..."

Ia acrescentar mais qualquer coisa quando ouviu, vinda do exterior, a voz de uma mulher a chamar "doutor Branco!", duas vezes. O médico levantou-se e foi à varanda das traseiras ver o que era. A meio do quintal, à sombra da maçaniqueira, reconheceu a mulher do enfermeiro Mabunda de mão dada com um dos filhos.

"Doutor Branco, a polícia levou meu marido", disse ela com uma expressão de angústia. "Estou a pedir traz ele para casa."

José Branco suspirou, já cansado daquela história recorrente. O enfermeiro Mabunda tinha quinze filhos e, para azar dele, os dois mais velhos haviam fugido para o mato e tinham-se tornado guerrilheiros. A DGS fora informada do facto e passara a detê-lo com regularidade. As detenções revelaram-se de tal modo rotineiras que o próprio Mabunda recomendou à mulher que, sempre que a polícia o fosse buscar, informasse imediatamente o director do hospital. Era o que ela mais uma vez estava a fazer.

"Está bem", assentiu. "Volte para casa descansada que eu daqui a pouco vou à PIDE."

A mulher manteve-se, todavia, plantada no mesmo lugar e cruzou os braços, como se tivesse mais alguma coisa a acrescentar. O médico lançou-lhe um olhar expectante, encorajando-a a falar.

"Levaram também o senhor Mendonça", acrescentou ela, nada embaraçada por trazer tantos pedidos. "E os amigos dele."

O director do hospital passou a mão pelo cabelo. Congela de Mendonça era outro dos seus enfermeiros que se viam frequentemente em apuros. Mendonça andava a estudar à noite com mais três amigos negros ligados a meios da oposição e a DGS, que suspeitava daqueles estudos, tinha por hábito convidá-los a fazer uso periódico dos seus calabouços. Quem os ia sempre lá buscar acabava por ser o médico.

"Eu também trato deles", prometeu José. "Vá lá à sua vida."

A mulher pareceu ficar satisfeita e abalou com o filho, deixando o director do hospital pensativo na varanda traseira da sua casa. José voltou devagar para a mesa e sentou-se pesadamente no lugar, o prato com o empadão ainda a fumegar. Olhou em redor e percebeu que estava sozinho; Ernesto já havia regressado à cozinha e Mimicas fora ao quarto mudar de roupa.

Pegou no garfo e mergulhou-o na comida. Quando o ia levar à boca, porém, o telefone tocou, levando-o a suspender o movimento.

"Que será agora?"

Pousou os talheres e, com um suspiro resignado, levantou-se para ir atender. Do outro lado da linha estava a sua enfermeira-chefe.

"Então, Lúcia? Como foi esse almoço com o padre, sua malandreca? Rezaram muito?"

"Doutor", disse ela num tom tenso; talvez não tivesse apreciado a graçola. "Preciso que o senor e

dona Mimicas venham aqui ao hospital com urgência."

A forma anormalmente seca como a freira falou deixou-o de sobreaviso.

"Porquê? Passa-se alguma coisa?"

Fez-se um silêncio pesado na linha.

"Chegou ahora um helicóptero aqui ao hospital. Houve uma emboscada dos guerrilleros na Angónia. Fizeram um muerto." Fez uma pausa. "O helicóptero trouxe o cuerpo."

"Sim, e então?"

Um novo silêncio ao telefone tornou subitamente claro que ela sabia que a notícia que tinha para dar ia chocar o director do hospital.

"Fue o comandante Trovão, doutor."O furriel estava de calções e tronco nu a escrever uma carta quando sentiu uma presença na tenda. Levantou a cabeça e deparou-se com um rapaz alto e magro, impecavelmente fardado de camuflado e com um rosto ossudo e juvenil, o cabelo castanho a espreitar por baixo do boné em madeixas levemente encaracoladas nas pontas; trazia as insígnias de furriel nos ombros e uma enorme mochila às costas.

"Olaré!", exclamou o homem em tronco nu. "Temos aqui o Paulo de Carvalho ou quê?"

O recém-chegado deteve-se, admirado com a referência ao cantor da moda, vedeta emergente do Festival RTP da Canção que se transformara já no ai-jesus das miúdas da Metrópole, e olhou em redor para ver se havia ali mais alguém. Não havia, pelo que concluiu que era a ele que o camarada se referia.

"Paulo de Carvalho?"

"Sim, Paulo de Carvalho", insistiu o homem em tronco nu. "És a cara chapada do gajo, pá." Soltou uma gargalhada. "Não me digas que também cantas. Ora canta lá!..." Sem esperar pela resposta, pôs-se ele mesmo a trautear a melodia que por essaaltura animava as emissões de rádio de Lisboa:

"Na mesma rua, na mesma cor, passava alegre, sorria amor..."

Ignorando a voz esganiçada, o intruso verificou um documento e pousou a mochila no catre correspondente ao número que vinha assinalado no papel. Depois sentou-se no catre e, descontraindo o corpo, soltou um gemido de satisfação.

"Ah! Até que enfim!"

O homem de tronco nu não apreciou aquele à-vontade e, parando de cantar a meio de uma estrofe, soergueu-se no catre.

"Olha lá, esse lugar não é teu!"

"A partir de agora é."

"Não é não. Esse lugar pertence a um camarada que... a um camarada nosso."

O recém-chegado franziu o sobrolho.

"Um camarada que se foi numa emboscada", completou. "Eu sei. Vim destacado para o substituir."

O homem de tronco nu imobilizou-se, como se analisasse o que sentia e ponderasse o que fazer.

A ocupação do catre do amigo caído suscitava nele emoções contraditórias; por um lado, parecia-lhe desrespeitar a memória daquele que morrera, por outro, constituía um sinal inequívoco de que a vida continuava. Respirou fundo, resignando-se à inevitabilidade de que na tropa havia mesmo vida depois da morte.

"Como te chamas?"

"Diogo", respondeu o novo furriel. "Diogo Meireles."

"És checa?"

A pergunta extraiu de Diogo uma expressão interrogativa.

"O quê?"

"Perguntei-te se és checa! Maçarico, novato..."

O recém-chegado percebeu.

"Ah, sim. Acabei de chegar da Metrópole."

"Mais um aramista, portanto."

Diogo estranhou a palavra. "Hã?"

"O que vens cá fazer, pá? Tratar da contabilidade, ajudar na cozinha, despachar processos administrativos?..."

Aquela lista de operações suscitou uma gargalhada do novato.


"Quais processos administrativos?", admirou-se Diogo, a face contorcida num esgar irónico.

"Que eu saiba venho aqui para combater."

"Portanto não vais ficar atrás do arame farpado?!"

"Só se me obrigarem."

O homem de tronco nu assentiu, como se assim tivesse completado o retrato do novo ocupante da palhota dos furriéis, e endireitou-se no catre.

"Eu sou o Alexandre", apresentou-se. "Mas todos aqui me chamam Chaparro. Tal como tu, também não sou um aramista."

Diogo reconheceu o nome.

"Ai tu é que és o Chaparro? O capitão disse-me que me ias entregar a arma..."

Estas palavras fizeram Chaparro revirar os olhos de enfado. Após um suspiro longo e paciente, o homem pousou a caneta e o papel e quase arrulhou de preguiça só por causa do esforço que teve de fazer para se pôr em pé. Coçou os abundantes pêlos do peito e lançou um olhar ressentido na direcção do recém-chegado, como se o recriminasse pelo trabalho que já lhe estava a dar. Depois meteu os dedos dentro dos calções e coçou também os pêlos da púbis enquanto resmungava umas palavras incompreensíveis que culminaram numa referência quase inaudível ao que parecia "estes malditos chatos". Diogo ficou sem saber a que chatos se referia o camarada, se ao recém-chegado que já lhe estava a dar trabalho, se aos que lhe faziam comichões. Depois Chaparro ajeitou as cuecas e os calções, puxando-os para cima, cheirou a ponta dos dedos com que se coçara, murmurou

"hmmm... belo perfume!" e saiu da palhota com um breve "já venho!"

Chaparro não tinha ar de ser pessoa particularmente rigorosa, mas o facto é que a promessa foi cumprida e o homem em tronco nu voltou alguns minutos depois com uma G3 e um cunhete de madeira carregado de granadas e munições.

"Tens aqui o material de trabalho", anunciou, estendendo a espingarda-automática ao recém-chegado. "Pega lá na companheira." Atirou a caixa das munições para o lado do catre. "E aqui tens as ameixas e os pirolitos. Trata do material com o mesmo amor com que cuidas dos tomates, ouviste?"

Diogo sentou-se no catre e sentiu o peso da G3. Passou o indicador pelo interior do cano e logo a seguir verificou o dedo; vinha sujo, o que significava que teria de passar algum tempo a limpar a arma. Cheirou a espingarda automática e percebeu também que teria de ser oleada.

"Olha lá, Chaparro", disse, sem tirar os olhos da G3. "Isto é o BART, não é?"

O furriel que lhe entregara a arma e as munições mantinha-se displicentemente de pé diante do catre, talvez com preguiça de percorrer os cinco metros de volta ao seu lugar.

"lá, porquê?"

"Que eu saiba, BART significa Batalhão de Artilharia." Fez um gesto a indicar a entrada da palhota. "Mas lá fora não vi nenhum canhão..."

Chaparro soltou uma gargalhada ruidosa que logo se transformou num ataque de tosse.

"És um cómico, pá", exclamou logo que recuperou o fôlego. "Esta merda chama-se artilharia, mas aqui só há infantaria."

"Então porque lhe chamam artilharia?"

O camarada encolheu os ombros.

"Sei lá!", disse com aparente indiferença. "Tá tudo doido, pá. Nada neste buraco faz sentido!..."

"Também não é bem assim", contrapôs Diogo, habituado pelas contingências da alta competição a rejeitar posturas pessimistas; um campeão pensa sempre positivo, era o seu lema. "Pode ser que haja coisas que não façam sentido, mas a verdade é que a nossa missão aqui é importante.


Precisamos de conquistar a mente e o coração das populações. Para isso é necessária uma atitude civilizadora, não uma..."

Com um gesto inesperado, Chaparro arrancou-lhe a arma das mãos. Diogo calou-se, surpreendido. O furriel em tronco nu puxou a culatra, introduziu uma bala na câmara e apontou para a entrada da palhota, preparado para abrir fogo.

"Atitude civilizadora?", rosnou. "Aqui a regra é estar pronto para matar, ouviste?" Desviou o olho da mira para o recém-chegado. "Essas aldrabadas que acabaste de papaguear não passam de conversa para tolos. Isto é o mundo real, não são as fantasias que te ensinam na instrução." Fez um gesto com a cabeça, a indicar o catre de Diogo. "Sabes porque quinou o camarada que antes ocupava o teu lugar? Porque tinha maningue paleio, mas não estava preparado para matar. Essa é que é a verdade. Se quiseres saber o que acontece a quem não mata, a resposta é simples: é morto."

Baixou a arma e devolveu-a. "Se não estás preparado para matar, é melhor que te prepares.

Entendido?"

"Sim."

Chaparro deu meia volta e arrastou-se até ao seu catre. Antes de se deitar, voltou a meter a mão pelos calções e coçou novamente os pêlos da púbis, desta vez num frenesim vigoroso.

"Porra p'rós chatos!"

A vida no Chioco cedo se adivinhou de um tédio indescritível. A posição fortificada situava-se algures no meio do mato, no final de um longo trilho que partia da estrada entre Tete e o Songo e desembocava num leito de rios secos que só se enchiam na época das chuvas.

O BART, nome pelo qual era conhecido o Batalhão de Artilharia 7220, tinha o comando instalado em Changara, uma terriola na estrada entre Tete e Vila Pery que permitia controlar também o acesso vital à Rodésia, mas dispunha de companhias instaladas noutras posições ainda mais isoladas, como Chinanga, Chinhande e Chioco.

Na primeira manhã após a chegada, Diogo foi dar uma volta pelo posto do Chioco. Depressa descobriu que se tratava de um espaço exíguo rodeado de trincheiras e arame farpado e preenchido por palhotas, casotas e tendas com funções diferentes. Algumas serviam de dormitório, numa fora instalado o comando, outra era a secretaria, uma terceira o refeitório; havia ainda a enfermaria, a cozinha, o centro de transmissões, a oficina auto e a despensa. O paiol, que requeria cuidados especiais por causa dos bombardeamentos por morteiros e por canhões sem recuo, fora escondido em instalações subterrâneas devidamente protegidas e camufladas.

"Olha lá, ó Chaparro" , chamou Diogo depois de percorrer pela primeira vez todo o perímetro.

"Onde é que... enfim, onde é que a malta se... se alivia?"

"Queres cagar?"

A pergunta formulada assim de forma tão embaraçosamente directa embarrancou o recém-chegado. Diogo tentou fingir um ar natural, mas não conseguiu ocultar um leve rubor.

"Quer dizer... sim."

Chaparro, que acordara pouco antes e já andava outra vez de calções e tronco nu a coçar os abundantes pêlos que lhe espreitavam pelo corpo, fungou e escarrou para o lado.

"Se fosse a ti, aguentava o cagalhão."

Diogo fez um ar admirado.

"Ora essa! Porquê?"

O camarada respondeu com um gesto, indicando-lhe que o seguisse. Caminharam os dois entre as tendas e as duas palhotas dos furriéis até atingirem o limite do perímetro no sector junto ao leito dos rios secos. Numa elevação antes de a terra se inclinar para o leito viam-se três casinhas de madeira protegidas por sacos de areia.

"Anda cá, ó Paulo de Carvalho", disse Chaparro, dando-lhe com os dedos sinal de que se aproximasse ainda mais. "Estás a sentir este aroma revigorante?"

Diogo já se havia apercebido do fedor das fezes ainda antes de chegarem ao local.

"Então não?"

Chaparro indicou as três casinhas.

"São aqui as latrinas", anunciou. Apontou para o leito seco e para a vegetação na outra margem.

"Como vês, é uma posição maningue exposta. Às vezes os turras escondem-se do outro lado e entretêm-se a disparar para as latrinas enquanto a malta se esforça por depositar a flor. É por isso que só se deve vir aqui quando a noite cai."

"Estou a ver."

Os olhos de Chaparro, sujos de ramela, desviaram-se das latrinas para o recém-chegado.

"Ainda queres arrear o calhau?"

Diogo coçou a cabeça e avaliou a pressão no ventre; havia alguma urgência na coisa. Por outro lado, não podia ignorar o problema do espaço aberto por trás das latrinas; era de facto extraordinariamente exposto. O que fazer? Embrenhado no dilema, lembrou-se que talvez na enfermaria houvesse algum comprimido que lhe permitisse adiar a aflição as horas suficientes até a noite cair.

"Se calhar é melhor esperar."

Aguentou de facto até ao crepúsculo e aproveitou ainda a luz do lusco-fusco, quando rasgavam já o horizonte vigorosas pinceladas de ouro, carmim e roxo, para aliviar os intestinos sem ter de enfrentar a situação na treva absoluta. Fê-lo em luta tremenda com as moscas que enxameavam as latrinas e uma complicada ginástica para não tocar com as nádegas em qualquer parte da casinha imunda, enquanto das casinhas vizinhas vinham os gemidos e os suspiros dos camaradas que aproveitavam igualmente os derradeiros raios de Sol para esvaziarem o ventre.

Percorreu depois o posto aos tropeções e às apalpadelas, quase como um bêbado, uma vez que a noite se abatera sobre o mato com rapidez fulminante. Consolava-se com o reconfortante pensamento de que se encontrava praticamente invulnerável; sem luz para a guiar, nenhuma bala inimiga o podia atingir.

Localizou o casebre do refeitório e, embora constatando que era o primeiro a chegar, entrou e sentou-se num banco a aguardar a hora de jantar.

Os outros homens foram chegando em grupos e os primeiros admiraram-se por se deparar com alguém às escuras.

"Então? Não ligas a luz?"

A pergunta surpreendeu Diogo. Que ele soubesse não havia electricidade no posto.

"Qual luz?"

A pergunta gerou uma gargalhada.

"A das bazucas, pá. Não tens aí nenhuma?"

Bazucas? A referência ao lança-granadas de ombro deixou-o estupefacto. Como poderiam as bazucas iluminar a tenda? De que estariam os camaradas a falar?

"Uh... não", gaguejou, preferindo não desvendar a sua ignorância. "Não tenho aqui nenhuma."

"Ora essa!", espantou-se um soldado. "Não tens nenhuma? Vai à geleira, pá! Há lá maningue bazucas."

Geleira?

"Ah, está bem", disse Diogo, fingindo-se ainda entendido mas sem nada entender. "Pois é, tens razão!..."

Os soldados ficaram a observá-lo, surpreendidos também eles com o inopinado diálogo; era manifesto que o camarada que haviam encontrado na tenda não fazia a menor ideia de nada e isso despertou neles uma ponta de desconfiança. Seria um turra? Ali na escuridão era difícil descortinar-lhe as feições, pelo que o receio de uma infiltração do inimigo lhes aflorou a mente.

Porém, notaram que o desconhecido falava um português metropolitano, até com um sotaque do Porto. Turra não podia ser. Não havia turras em Cedofeita...

"E o checa, pá!", exclamou por fim um deles. "O novo furriel que chegou ontem, caraças!"

A descoberta desencadeou uma galhofa de alívio, com os soldados a cobrirem as costas de Diogo de palmadinhas e a pedirem desculpa por não o terem reconhecido. Um deles dirigiu-se à ponta da tenda e abriu um frigorífico alimentado a petróleo; a luz do interior recortou-lhe a silhueta, mostrando-o de cócoras a voltar-se para trás.

"Meu furriel, está a ver isto?", disse, indicando o frigorífico. "Aqui em Moçambique chama-se geleira!" Apontou as garrafas de cerveja Manica arrumadas no interior, tão alinhadas que pareciam soldados na formatura. "E isto são bazucas!"

O soldado tirou uma garrafa e arrancou-lhe a carica, passando a Manica de mão em mão até todos a esvaziarem. Arrotaram quase em uníssono, riram-se com o feito e um deles começou a despejar um líquido na garrafa; pelo cheiro intenso e característico, Diogo apercebeu-se de que se tratava de petróleo. Depois enfiaram um trapo pelo gargalo e um outro acendeu um fósforo, pegando fogo à torcida de pano. A garrafa emitiu um clarão trémulo que iluminou toda a tenda, projectando sombras bamboleantes na lona.

"Já está!", exclamou o primeiro soldado ao pousar a garrafa no centro da mesa. "Ligámos o gerador."

Um outro soldado fez sinal ao furriel, indicando o fio de fumo que vinha do trapo a arder.

"Sente este cheirinho da bazuca?"

Diogo inspirou e registou de imediato o odor acre a petróleo queimado.

"Sim."

"E a outra vantagem de usar bazucas à noite", disse o homem, arqueando as sobrancelhas para sublinhar a astúcia da coisa. "Põem logo os mosquitos em sentido."

O jantar não foi refeição que entusiasmasse um gourmet. Galinha-do-mato com arroz branco e feijões, tudo regado a bazuca num ambiente surreal, com a tenda iluminada pelo halo espectral que cabriolava no gargalo das garrafas ateadas.

Enquanto mastigava uma coxa, Diogo pôs-se a observar os homens sentados à mesa, as feições dos rostos a bailarem com a penumbra ao ritmo do hálito trémulo das chamas que adejavam pela mesa sobre as garrafas. Apercebera-se já durante o dia da mistura racial que havia na companhia, pormenor que confirmou ao jantar. Metade dos camaradas de armas eram brancos e a outra metade negros ou mulatos de Moçambique. O facto pareceu-lhe natural; não era o regime que dizia que Portugal se estendia do Minho a Timor? No que lhe dizia respeito, o seu país era de facto imenso: começava no Rego da Agua e terminava no Chioco.

"Atã mê furriel?", quis saber um dos soldados. "Nã está boa a galinha? Nã quer mais? Olhe que tambê tem aqui pã e queije..."

Um algarvio, percebeu.

"Estou bem, obrigado."

A interpelação despertou-o para a multiplicidade de sotaques entre os camaradas da Metrópole.

Reparou que alguns soldados brancos comiam com as mãos, a face tão inclinada para a frente que o nariz quase tocava no prato, e mastigavam ruidosamente de boca aberta; sem surpresa, constatou que Chaparro era um deles.

"De onde és tu, Chaparro?"

"Do Redondo."

Dirigiu a mais três camaradas brancos a pergunta sobre as suas origens e percebeu que muitos desses homens da Metrópole, se não mesmo a maioria, eram gente do campo, agricultores que a guerra arrancara de Trás-os-Montes, da Beira Interior ou do Alentejo e atirara para o meio do mato em Africa.

Realmente!, raciocinou, os olhos a deambularem entre os soldados rudes que jantavam com grunhidos, arrotavam em abundância e limpavam a boca às costas das mãos. Como levar a cabo a missão civilizadora se os próprios civilizadores precisavam de ser civilizados?As fardas que habitualmente se viam no hospital de Tete eram os camuflados militares, mas quando naquele início de tarde José Branco e a mulher chegaram apressadamente às urgências depararam-se com uniformes da PSP por toda a parte. A consternação era geral e Mimicas, que até então se recusara a acreditar na notícia, começou a chorar por ver nos rostos carregados dos polícias a confirmação do que o marido lhe anunciara minutos antes.

A irmã Lúcia passou nesse instante pelo pátio com um balde de água e o director interpelou-a.

"Onde está o Trovão?"

A freira indicou com a cabeça uma porta das urgências reservada ao pessoal do hospital.

"Lá dentro."

José meteu pela porta e entrou numa sala onde se encontrava um corpo deitado sobre uma marquesa. Reconheceu o amigo e sentiu um nó apertar-lhe a garganta. Nem se conseguiu aproximar, como se uma barreira invisível o impedisse de avançar um passo que fosse. Deu meia volta e, contendo as lágrimas, saiu precipitadamente do edifício e juntou-se a Mímicas.

"Doutor Branco", chamou uma voz.

Ainda abalado, o médico voltou-se e reconheceu o homem fardado que o interpelara; era o tenente Lopes, subcomandante da PSP. Vinha com a camisa desfraldada e parecia desorientado.

"Senhor tenente", cumprimentou-o. Aquela era provavelmente a pessoa com quem mais precisava de falar naquele instante. "O que aconteceu?"

O tenente Lopes tirou o boné e limpou com as costas da mão a transpiração que lhe escorria em abundância pela testa.

"Foi esta manhã na Angónia", disse. Já tinha repetido vezes sem conta a mesma história em poucas horas, mas era como se precisasse de a relatar de novo. "O senhor comandante Trovão tinha ido lá para fazer uma visita de inspecção. Quando iniciou o caminho de regresso, os turras apareceram de surpresa na berma da estrada e metralharam a coluna no momento em que os carros iam a passar." Baixou a voz. "Ele foi atingido de lado."

"Teve morte instantânea?"

O tenente abanou a cabeça.

"Não."

O director do hospital suspirou, deprimido. Tal como no instante em que a irmã Lúcia lhe havia dado a notícia, lembrou- se da última vez que vira o amigo. Fora dois dias antes, no sábado, depois de terem jantado em casa dele. Trovão e Carolina, que estava grávida de um segundo filho, tinham ido à porta despedir-se. A derradeira imagem que guardava dele, apercebeu- se, era um aceno.

"Há uma coisa que não entendo, tenente", disse José, quebrando o súbito mutismo imposto pelas reminiscências. "O jipe do comandante Trovão não é blindado?"

O tenente Lopes assentiu.

"Foi um azar dos diabos, doutor. O administrador da Angónia quis falar com o senhor comandante e convidou-o a ir para o carro dele, que não é blindado, durante a parte inicial do percurso. De modo que à frente seguia o carro do administrador e atrás vinham os jipes blindados.

Quando os turras atacaram, dispararam sobretudo sobre o automóvel. O senhor comandante estava do lado errado dos assentos traseiros e foi atingido, mas o administrador safou-se."

Não havia muito mais a dizer. A conversa fora até ali acompanhada em silêncio por Mimicas.

"A Carolina deve estar devastada", observou ela enquanto abanava a cabeça. "Que horror!..."

O tenente Lopes pigarreou, quase embaraçado.

"Receio que a esposa do senhor comandante ainda não tenha sido informada", disse. "Foi uma grande confusão esta manhã e a nossa prioridade era trazê-lo aqui para o hospital. Agora temos de tratar das formalidades e... e informar a família."

José e Mimicas entreolharam-se, sentindo a responsabilidade. Eram amigos pessoais do casal Trovão e não gostariam que a notícia fosse dada a Carolina de uma forma oficial.

"Isso não pode ser assim", murmurou Mimicas, respirando fundo como se se preparasse psicologicamente para o que a esperava. "Temos de ser nós."

Fizeram em silêncio o caminho até casa dos Trovão, uma vivenda de traça colonial relativamente perto do rio. Estacionaram por baixo de uma árvore, mesmo ao lado da esquadra da PSP, e, controlando o nervosismo, assomaram ao portão.

Carolina estava sentada no quintal a gozar a sombra fresca de uma mangueira e a ler um policial que tinha pousado no regaço, era um livro de Agatha Christie, enquanto a mão esquerda afastava distraidamente as moscas que zuniam em redor. O filho brincava com carrinhos no chão, os joelhos sujos de lama e poeira, o cabelo loiro a refulgir ao sol.

Ao aperceber-se de que alguém acabara de abrir o portão, Carolina levantou os olhos para ver de quem se tratava. Estranhou que fosse o casal Branco, não era habitual José e Mimicas visitarem-na àquela hora, mas pensou que isso não era impeditivo de que se revissem; afinal todas as ocasiões são boas para que os amigos se juntem. Pousou o livro no chão e levantou-se de pronto, exibindo a enorme barriga de grávida, e acolheu-os com um sorriso luminoso.

O sorriso, porém, não veio retribuído. Foi justamente nesse instante, ao identificar um estranho olhar opaco que nublava o semblante fechado dos visitantes, que Carolina tomou consciência de que havia algo de profundamente errado'e sentiu as pernas fraquejarem.

"Aconteceu alguma coisa?"

Enquanto manobrava o volante do automóvel no trajecto de regresso a casa, José ia ponderando se deveria ou não refazer os planos para o resto da semana. Seguia sozinho no carro, uma vez que Mimicas havia ficado com Carolina para a apoiar no que fosse necessário, e avaliava as vantagens e os inconvenientes de cada uma das duas opções que tinha em mente.

"Vou?", murmurou entre dentes, falando para si próprio como se desse modo conseguisse raciocinar melhor. "Ou não vou?"

O plano de voo do Serviço Médico Aéreo previa que partisse na madrugada seguinte, terça-feira, e saltitasse por todo o distrito até ao regresso, ao final da tarde de sexta. Deveria manter o plano ou seria melhor cancelar tudo? Sentia-se perturbado com a morte do amigo e tinha dificuldade em ver as coisas com clareza.

Considerando a sua relação com o comandante Trovão e a necessidade de apoio à família, o cancelamento das operações aéreas durante essa semana era sem dúvida o mais aconselhável.

Quando se inclinava para esta opção, todavia, o outro lado da questão fazia-se ouvir na sua mente.

Então e as centenas de pessoas que iam ficar nessa semana sem assistência médica devido à suspensão do Serviço Médico Aéreo? E se algumas morressem porque o médico decidira não aparecer? Como poderia ele viver com isso? Estas interrogações inclinavam-no inexoravelmente no sentido oposto. Contudo, quando se decidia a manter o plano, o rosto do comandante Trovão formava-se na sua mente e concluía que ninguém, a começar por ele próprio, compreenderia a sua ausência no funeral e no apoio à família.

"Vou ou não vou?"

Encontrava-se ele em pleno processo de indecisão sobre como proceder quando chegou ao alto da colina. Poderia ter prosseguido para casa, como de resto era a sua intenção inicial, mas que iria ali fazer se nem sequer Mímicas lá se encontrava? Optou assim no último instante por virar à esquerda e meteu-se pela estreita passagem entre o hospital e a farmácia.

Estacionou no pátio interior e abriu a porta para sair, mas logo que tirou uma perna do carro viu o rosto bolachudo da irmã Lúcia abeirar-se da janela do automóvel. Vinha ofegante.

"Doutor, tenemos um problema!"

"Então? Que se passa?"

"Vieram aí dois hombres da polícia para si."

O médico esboçou uma careta de estranheza.

"Polícia? Para mim?"

A freira espanhola confirmou com um curto aceno afirmativo.

"Quieren bablar consigo."

O médico lançou um olhar pensativo na direcção das urgências, onde permanecia o corpo de Trovão.

"A PSP deve querer a certidão de óbito."

Lúcia abanou a cabeça, enfática.

"Não era a PSP, doutor", afirmou. "Era a PIDE."A rapariga negra alçou os olhos brilhantes para Diogo e sorriu; tinha um rosto fresco e agradável, com linhas simétricas e dentes reluzentes. O

contacto dos olhos durou um segundo, instante breve mas suficientemente longo para o efeito desejado, e logo ela os baixou, fingindo concentrar-se no pilão. O furriel estacou junto à vedação e estudou-lhe o corpo curvilíneo.

A rapariga estava em tronco nu, pelo que o militar se pôs a apreciar-lhe os seios que saltitavam ao ritmo das batidas desferidas no pilão; eram seios voluptuosos, com os mamilos em pipeta, quase tão suculentos como os da Guidinha, a Lollobrigida de Espinho. Um novo olhar convidativo da negrinha deixou-o a rebentar de desejo; tinha de a possuir.

A rapariga mostrou-lhe de novo os dentes e Diogo devolveu- lhe o sorriso, deixando-a assim saber que ela lhe agradava. Gostaria de lhe falar, mas o arame farpado e o pilão eram uma barreira. Além do mais, tinha de se despachar porque precisava de se preparar para a missão dessa tarde. Voltou a levantar o saco e, lançando uma derradeira espreitadela aos seios apetitosos que balouçavam sobre o pilão, retomou o caminho ao longo da vedação que separava o posto do Chioco do vizinho aldeamento civil que o GPZ ali havia construído.

Quando chegou junto do portão, procurou o mainato no outro lado.

"Ó chefe!", chamou ao vê-lo sentado à entrada de uma palhota. "Já tens a farda pronta?"

O mainato olhou para ele e o rosto abriu-se.

"Sim, patrão."

O negro desapareceu na palhota e voltou logo a seguir com um tacho na mão esquerda e um camuflado embrulhado num plástico na outra. Estendeu a farda através da vedação e Diogo cheirou-a; vinha limpinha e bem passada. Sorriu aprovadora- mente e ainda pensou em vestir pelo menos a camisa, mas reconsiderou e embrulhou a farda num pano. Estava ali havia algumas semanas e já se habituara ao "fardamento" tradicional do Chioco: calções, sapatilhas, boné e tronco nu. O camuflado, lavado e passado pelo mainato, só seria usado quando saísse na patrulha dessa tarde; não valia a pena sujá-lo enquanto estivesse no aquartelamento.

Diogo apercebeu-se de que o mainato espreitava com um toque de impaciência o saco que trouxera; devia estar com fome. O furriel pegou no saco e estendeu-o por entre os arames da vedação.

"Hoje é um peixe maningue bom que veio lá da Metrópole", anunciou-lhe. "Nunca ouviste falar de bacalhau?"

O negro abriu o saco e despejou no seu tacho o bacalhau à Gomes de Sá que o militar lhe entregara.

"Não, senhor."

"Então tu e a tua família vão provar agora. Pus também aí dentro pão e uns rebuçados para os miúdos."

"Obrigado, patrão" O mainato hesitou. "Tem problema com um dos filhos, patrão."

Diogo soergueu a sobrancelha.

"Problema? Que problema?"

"Tem dor na barriga."

O furriel olhou de relance para a tenda do posto médico. A porta estava fechada.

"Eh, pá! A consulta para a população é amanhã. O miúdo não aguenta até lá?"

"Chora muito, patrão."

O tom do mainato transmitia alguma urgência. Diogo voltou a lançar um olhar para o posto médico. Uma vez por semana o gosto abria-se à população para uma consulta e isso seria já no dia seguinte, mas claro que estava sempre disponível para os casos mais urgentes. Seria aquele caso urgente? O olhar do mainato assim dava a entender, pelo que Diogo pegou na farda que lhe fora entregue e, antes de dar meia volta, assentiu com a cabeça.

"Vou chamar o enfermeiro Moscoso", prometeu. "Aparece no posto daqui a meia hora, está bem?"

A patrulha saiu ao princípio da tarde com um guia do aldeamento. Apesar de ter chegado poucas semanas antes ao Chioco e de ser Chaparro o furriel com mais experiência, Diogo assumiu o comando da patrulha. A frente ia o guia e logo atrás seguia ele, a G3 sem bandoleira e sempre apoiada nos antebraços com um dedo colado ao gatilho, e depois vinham os restantes soldados.

Chaparro transportava uma pesada HK 21, uma metralhadora de tripé com tiro particularmente nutrido, embora de manuseamento menos fácil devido ao volume e ao peso.

Meteram por um trilho em fila indiana, os olhos sempre atentos a qualquer mina ou movimento suspeito no capim. Caminharam durante uma hora em silêncio, as raras palavras sopradas em sussurro. Diogo ia embrenhado nos seus pensamentos, e sobretudo na visão que tivera junto do arame farpado quando fora levar a comida ao mainato. A negra do pilão ficara- lhe na retina, mas não sabia ainda lidar com a situação.

"Olha lá, ó Chaparro", disse de repente, voltando-se para trás. "Como é no aquartelamento com... com as gajas?"

O furriel de Redondo fez um ar admirado.

"Quais gajas?"

"Ó pá, nós temos um aldeamento ao lado do aquartelamento, não temos? O aldeamento está cheio de gajas. Qual é o esquema com elas?"

"As pretas? Não há esquema nenhum. Se te meteres com uma delas, vais contra as normas."

Diogo fez uma careta descrente.


"Oh, isso são as normas... Mas como é a coisa na verdade? Consegue-se dar umas pinocadas?"

"Conseguir, consegues", disse Chaparro com um encolher de ombros. "As tipas não se armam em esquisitas e se puderem ferram-te mesmo o dente. Um branco é um passaporte para outra vida, não é? O problema é se a coisa se sabe. O capitão chama-te logo e vais ter chatices por violares as normas."

Diogo meditou um instante sobre o que acabara de ouvir.

"Mas que raio de normas são essas?", quis saber. "Quando fiz a recruta na Metrópole li os regulamentos de uma ponta à outra e não me lembro de ver lá nada sobre isso. Onde estão essas normas escritas?"

Chaparro riu-se baixinho.

"Ó palerma, estou a falar de normas de conduta. Um militar decente não se mete com as indígenas."

A observação deixou Diogo a pensar. Caminharam mais algum tempo num silêncio pensativo, o furriel com os olhos no caminho mas a mente na negra do pilão. O corpo exigia-lhe que se aproximasse dela, mas percebia que se o fizesse a coisa saber- se-ia, num meio tão pequeno. Isso pelos vistos não o ajudaria a conquistar a simpatia do capitão, o que lhe poderia valer chatices e talvez alguns trabalhos indesejáveis, a começar pela limpeza das latrinas.

"Portanto", disse cinco minutos depois, retomando a conversa como se ela nunca tivesse sido interrompida, o que até era verdade no que dizia respeito ao diálogo que não cessara na sua mente.

"Quanto a gajas, não há nada para ninguém!..."

"Quer dizer... podes sempre arriscar, não é? O problema não é comer uma preta, é ser apanhado a comê-la."

"Já despachaste alguma?"

O furriel voltou a rir-se.

"Não posso dizer!..." "Vá lá."

"Olha, se queres comer uma gaja sem arranjar chatices com a hierarquia, vai ao Maxim."

"Que é isso?"

"E a boite de Tete." Sorriu. "O local preferido dos camaradas que a ditosa pátria desterrou neste buraco. Entras no Maxim e aquilo é um mar de fardas. E gajas boas, claro."

"Costumas ir lá?"

Foi a vez de Chaparro se manter momentaneamente calado, como se ponderasse o que podia ou devia revelar.

"Ó Paulo de Carvalho", acabou por dizer, "onde pensas tu que apanhei a porra destes chatos?"

O guia ergueu de repente a mão, fazendo sinal para parar. O grupo de combate imobilizou-se, a atenção aguçada e os olhos a dardejarem em todas as direcções. Diogo aproximou-se do homem.

"Que se passa?"

"Picada minada, patrão."

O furriel examinou o trilho, esforçando-se por destrinçar a presença de qualquer dispositivo suspeito, mas nada detectou.

"Onde?"

"À frente", indicou o guia, dizendo o óbvio. Fez sinal para o capim em redor. "Melhor dar volta pelo mato."

Diogo lançou um novo olhar perscrutador ao trilho, mais uma vez sem resultados. Na dúvida, porém, parecia-lhe melhor fazer o que o guia dizia; a mina podia estar escondida por baixo de folhas ou ser accionada por um fio esticado no caminho. A verdade é que não tinha maneira de saber e se o guia dizia que via ali uma mina talvez não fosse má ideia admitir essa possibilidade.

Ergueu o braço e fez sinal ao grupo de combate para que o seguisse fora da picada. Indicou ao guia que mostrasse a direcção e acompanhou-o pelo capim, contornando o trilho. Andaram assim pelo mato cerrado em fila indiana durante algumas centenas de metros até que o guia retomou a picada num ponto mais à frente e prosseguiram caminho.

Ainda intrigado, o furriel tomou nota do troço no mapa e inquiriu Chaparro.

"Viste ali alguma mina?"

"Não."

"Então como pode ele ter dito que aquele troço estava minado?"

Chaparro suspirou, como se achasse a pergunta ingénua, e fez uma curta pausa para considerar o melhor modo de explicar as coisas àquele furriel checa.

"Olha lá, onde é que o guia vive?"

"No aldeamento."

"Que está infiltrado pelos turras, pá."

Mais do que surpresa, a revelação gerou no rosto de Diogo uma expressão de absoluta incredulidade.

"Estás a gozar!..."

"Achas que sim? Nunca ouviste os cães do aldeamento ladrar à noite? Nunca te interrogaste sobre o motivo por que o fazem?"

"Confesso que não..."

"Os cães ladram porque sentem os turras a entrar no aldeamento para dormir, pá. Os gajos dormem ao lado do nosso aquartelamento!"

A afirmação deixou Diogo perplexo. Todas as noites ouvia de facto os cães a ladrar, ainda na véspera isso havia acontecido, mas nunca prestara grande atenção ao caso.

"Ai sim? E o capitão sabe?"

"Finge que não sabe", sorriu Chaparro. "Mas toda a malta no Chioco tem perfeita noção do que se passa."

"Então porque não vamos lá buscá-los?"

"A quem? Aos turras? Para quê?"

Embora Diogo estivesse atónito com a sucessão de revelações, o que o deixava verdadeiramente estarrecido era sobretudo o facto de aquele militar se comportar como se tudo aquilo que estava a dizer fosse normal.

"Para os prender, claro!", exclamou, quase a elevar a voz. O guia lançou-lhe um olhar de repreensão e o furriel, percebendo que violara perigosamente as regras de silêncio da patrulha, baixou o tom. "Se sabemos onde os turras estão", sussurrou, "temos de os ir lá buscar!..."

"Achas que sim? E depois sabes o que nos acontece? Os gajos retaliam e põem-se a lançar morteiradas para o aquartelamento todas as noites e a vida torna-se um inferno."

"E então? A malta manda uma patrulha localizar os morteiros e acaba com eles."

"E os tipos montam-nos uma emboscada no caminho e depois cavam. Quando a patrulha chegar ao local já não estão lá os morteiros e quando regressar ao aquartelamento as granadas começam outra vez a cair. Toda a noite. E na noite seguinte também."

Apanhado no fogo cruzado da argumentação, Diogo sentiu- se enredado num colete-de-forças que lhe tolhia os movimentos. Suspirou de frustração e impotência.

"Se assim é, os aldeamentos não servem para nada!", concluiu. "Andamos com este esforço todo para construir os aldeamentos e arrebanhar as populações para as meter lá e no fim verificamos que eles estão todos contaminados. Então é melhor acabar com a porra dos aldeamentos!..."


"Não é bem assim", corrigiu Chaparro. "Com os aldeamentos ao menos temos a possibilidade de os controlar e de exercer uma acção psico que nos ajude a conquistar as populações."

"Como dar-lhes acesso ao posto médico?"

"Por exemplo, mas não só. Não te esqueças de que a generalidade das populações do distrito de Tete nos são adversas, ao contrário do que se passa por exemplo em Nampula. Têm por isso de ser controladas e os aldeamentos servem essa função às mil maravilhas." Deu mais uns passos, pensativo. "E é preciso não esquecer que há outras vantagens." Apontou para o guia que ia mostrando o caminho pela picada. "Este gajo, por exemplo. Perguntaste como sabia ele que o troço estava minado. Será que viu a mina? A resposta é não. O que se passou foi que, antes de sair com a nossa patrulha, o gajo foi perguntar aos turras quais os troços que devia evitar."

O furriel cravou os olhos nas costas do guia, exaiminando-o como se esperasse vê-lo de repente voltar-se com uma Kalashnikov nas mãos.

"A sério?"

"Não duvides", assentiu o militar. "O gajo pode não ser turra, mas é pelo menos amigo dos turras ou tem medo deles." Olhou de relance para trás, verificando a posição do resto do pelotão.

"E sabes que mais? Ainda bem! É aliás graças a isso que estamos a fazer a nossa patrulha em segurança!..."

Sem desviar os olhos do guia, Diogo mal conseguiia ocultar o pasmo.

"A minha alma está parva!"

Chaparro fez com as mãos um gesto de impotênciia e abriu o rosto num sorriso falsamente ingénuo.

"No mato, pá, o lema da tropa é muito simples, "Vive e deixa viver."

Prosseguiram o resto do caminho em silêncio. O que Chaparro acabara de contar deixara Diogo assombrado. Como era possível que tropa e guerrilheiros dormissem pacificamentte a poucas dezenas de metros uns dos outros? Sempre imaginarra a guerra de uma simplicidade transparente: os heróis de um lado e os bandidos do outro. Sempre que se encontravam deviam matar-se até os bons ganharem e os maus perderem. Simplles e justo. Aliás, bastava ver os filmes de guerra do John W/ayne para perceber como tudo era claro, os opostos distintamemte recortados, a branco e preto.

Branco e preto.

Como ali em áfrica. Brancos de um lado, pretos do outro. Só que a realidade, como constatava agora que mergulhara nela, não era assim tão linear. Para começar, metade das tropas brancas eram na verdade negras! Como o seu grupo de combate, aliás. Olhou para trás e observou os soldados que o seguiam em fila indiana pela picada. Uns eram brancos, outros mulatos e outros negros; tudo em proporções iguais e equilibradas, até parecia de propósito.

Depois havia o pormenor insólito de, pelo menos no caso dos aquartelamentos nos confins do mato, tropa e guerrilheiro conviverem no mesmo espaço. Pensou subitamente no seu mainato.

Seria ele um guerrilheiro? E porque não? O homem tinha uns trinta anos; ainda estava em idade de combater. Quem lhe garantia que o mainato, depois de lhe entregar a farda lavada e de comer o bacalhau à Gomes de Sá que lhe dera em pagamento pelo serviço e de ter levado o filho ao posto médico do aquartelamento para ser tratado pelo furriel enfermeiro Moscoso, não saía do aldeamento e ia buscar uma Kalashnikov escondida no mato e se punha também ele a brincar à guerra?

Os olhos fixaram-se de novo no negro esfarrapado que caminhava diante dele. Claro, havia também o problema do guia. Como poderia continuar a confiar nele? É verdade que haviam feito a patrulha em segurança, mas até que ponto é que...

Apercebeu-se de algo estranho do lado direito, entre os arbustos, e ergueu a mão para deter o pelotão. Os soldados ficaram alerta e Diogo saiu da picada, esforçando-se por não fazer barulho.

Aproximou-se de um tufo de capim alto e abriu uma nesga na vegetação, estudando o que lhe despertara a atenção.

"Que se passa?", sussurrou-lhe Chaparro ao ouvido.

Diogo apontou para uma área situada entre os arbustos e o camarada conseguiu vislumbrar uma cobertura de colmo em forma cónica.

"Uma palhota", segredou.

O furriel ergueu de novo a mão e fez sinal ao grupo de combate, indicando-lhe que o seguisse.

Com o coração a ribombar, acariciou com o dedo o gatilho da G3 e abriu caminho no capim, progredindo curvado e devagar, atento a qualquer movimento suspeito. Sentiu os homens atrás dele e isso deu-lhe confiança. Caminhou mais uns metros, tendo o cuidado de evitar pôr os pés em ramos secos e estaladiços, e acocorou-se junto ao último arbusto diante da palhota. Espreitou entre os galhos do arbusto e verificou que se tratava de duas cubatas de construção recente. Apercebeu-se então de movimento à porta de uma palhota e viu um desconhecido sair com um balde e acocorar-se diante de um buraco. Ia buscar água a um poço.

Diogo varreu o espaço em redor com o olhar, preocupado em assegurar-se de que os seus homens se encontravam em posição, e fez sinal para avançarem. O pelotão ergueu-se e cruzou a linha de arbustos com as G3 prontas a disparar, invadindo a clareira onde se encontravam as palhotas. O desconhecido que mergulhara o balde no poço olhou para trás e, com uma expressão de susto, apercebeu-se da presença dos soldados. Pôs de imediato as mãos no ar, deixando o balde tombar no poço.

Com aquele homem neutralizado, Diogo penetrou cautelosamente na primeira palhota e revistou-a; além de roupa e de alguma comida, nada mais encontrou. Ao voltar para fora observou

Chaparro a sair da segunda palhota com a arma apontada a um rapaz também de mãos erguidas.

Havia portanto duas pessoas por ali.

Presumindo que os suspeitos não falavam português, o furriel chamou o guia.

"Pergunta-lhes quem são e o que fazem aqui."

O guia voltou-se para o mais velho e, após uma troca de palavras em nhungué, traduziu as respostas.

"Chamam-se N'gume e Kashuda. Dizem que vivem aqui e estão a cuidar das machambas."

"Eles não sabem que não podem viver fora dos aldeamentos?"

"Dizem que têm fome, patrão", devolveu o guia sem sequer questionar o homem do balde. "Foi por isso que vieram tratar das machambas."

Diogo estudou-os da cabeça aos pés. Tinham um aspecto miserável, era um facto, mas não lhe pareciam esfaimados.

"Pede-lhes os documentos."

O guia traduziu a ordem em nhungué e o mais velho abanou a cabeça e respondeu.

"Não têm documentos, patrão. Dizem que perderam."

Diogo trocou um olhar com Chaparro, que acompanhara toda a conversa e abanava a cabeça com cepticismo. O furriel afastou-se dois passos e o camarada acompanhou-o.

"O que achas, Chaparro?"

"Vivem fora dos aldeamentos em palhotas de construção recente numa zona totalmente contaminada pelo in, estão em idade de combate e não têm documentos?", questionou o oficial miliciano com uma careta céptica. "Hmm... não sei!..."


"Serão turras?"

Chaparro lançou um novo olhar aos dois suspeitos, como se a expressão lhes assentasse à medida.

"Não tenho dúvidas."

"Mas não há prova disso."

O alferes riu-se sem vontade.

"De que provas precisas, pá?", perguntou. "Queres uma folha azul de vinte e cinco linhas em que os gajos declarem por sua honra que são turras, com a assinatura reconhecida presencialmente pelo notário? Claro que não temos prova de nada! E então? Isso não impede que os gajos sejam turras, pois não?"

O comandante da patrulha aproximou-se do guia.

"Eles que nos acompanhem", ordenou. "Vão ser compulsivamente acantonados no aldeamento do Chioco."

Depois foi dar ordens aos seus homens, que até ali se limitavam a garantir a segurança ao perímetro, e dez minutos mais tarde o pelotão voltava à picada com os dois suspeitos. Atrás dos soldados, e conforme o procedimento normal em território hostil, as duas palhotas eram já piras de fogo, tochas cambaleantes que as chamas apunhalavam em golpes ininterruptos, a palha ardente a contorcer-se devagar numa sinfonia sinistra de estalidos.O mau humor do inspector Aniceto Silva era perceptível pelo semblante carregado e pela forma seca como acolheu o director do hospital. O

próprio José sentia-se abatido com a morte do comandante Trovão e presumiu, talvez com razão, que a má disposição do anfitrião e a convocatória para aquela reunião estavam relacionadas com o mesmo assunto.

"Que merda, isto", observou o médico, cabisbaixo. "Acabei de falar com a mulher..."

O inspector deixou-se cair no seu lugar habitual sem sequer convidar o visitante a sentar-se.

Mas José nem se apercebeu da descortesia e, movendo-se como um autómato, acomodou-se maquinalmente no sofá, uma expressão fatigada a obscurecer-lhe o olhar.

"É para que veja como isto está, doutor", observou Aniceto Silva. "Eu bem lhe digo que as coisas andam a piorar. Os turras já atacam em toda a parte. Cruzaram o Zambeze, passaram para o Sul do distrito e noutro dia, ao fim destes oito anos de guerra, lançaram o primeiro ataque em Manica e Sofala. Está a ver isto? Estamos em 1972 e os gajos já ameaçam Vila Pery e a Beira!"Abanou a cabeça e olhou para a palma da mão esquerda, fechando-a com um movimento rápido. "Tivemos a guerra quase ganha, caraças! Agora a coisa ameaça descontrolar-se."

O médico lançou-lhe um olhar provocador.

"E porquê, ó inspector?", perguntou em tom de desafio. "Porquê?"

"Porque não trabalhámos de forma adequada as populações", retorquiu o chefe distrital da DGS.

Fez um gesto com a mão a indicar a sua secretária. "Ainda há pouco terminei um relatório que vou mandar para Lourenço Marques. Em Nampula conseguimos pôr os macuas do nosso lado, mas aqui não foi feito nenhum trabalho aprofundado com as etnias. Para agravar as coisas, muitos dos nossos administradores não passam de uns broncos retrógrados que não têm a menor preocupação com o bem-estar das populações. Parecem reis absolutos e chegam a dispor dos pretos como se fossem escravos. Quem é que tolera uma coisa dessas? Depois ainda se admiram que a propaganda subversiva do in esteja a funcionar!"

José fitou o interlocutor com a surpresa desenhada na face. Nunca imaginara que um dia ouviria um elemento da DGS a defender os negros, mas isso acabara de acontecer.

"A sua análise parece-me correcta", arriscou. "Mas o senhor está em posição privilegiada de mudar essas coisas..."


O inspector da DGS suspirou e voltou a sacudir a cabeça com uma expressão de desânimo.

"As pessoas acham que, pelo simples facto de sermos da DGS, podemos fazer tudo. Mas isso não é bem assim. Não se mudam mentalidades por decreto e se calhar já vamos tarde." Ergueu um dedo, à laia de alerta. "Isto do Trovão, doutor, foi apenas um aviso. Amanhã podemos ser nós."

"Isto foi é um grande azar, inspector", disse o médico. "Se o Trovão, em vez de ir no carro com o administrador, tivesse mas é ficado no jipe!..."

"Se, se, se!", cortou o chefe distrital da DGS. "Independentemente de todos os 'ses' que se possam imaginar, o facto é que os turras estão a crescer e não estou a ver como podemos ter mão nisto. Qualquer dia põem-se a bombardear Tete."

O médico lançou-lhe um olhar agastado, reprovando aquela observação; parecia-lhe alarmista.

"Que exagero, inspector!"

"Acha que sim?"

"Claro que acho", retorquiu José sem hesitar. "Que eu saiba eles não atacam civis."

"E o carro do administrador da Angónia onde o Trovão ia era o quê?", atirou Aniceto Silva num tom sibilino. "Um tanque de guerra? Uma Berliet

O sarcasmo era ajustado, pensou José sombriamente. Lembrou-se que Trovão tinha de facto sido abatido num automóvel civil e isso constituía uma evolução perturbadora; por outro lado, não esquecia que a viatura, sendo civil, era do estado, o que de certo modo a tornava um alvo.

"Bem... a tropa aguenta isto."

O inspector da DGS soltou uma gargalhada sem humor.

"A tropa?", questionou com insolência. "Não me faça rir, doutor!..."

O médico dissera-o por dizer, mas ficou surpreendido com o derrotismo que pressentia no homem mais informado do distrito. Se o inspector se sentia desanimado, boas razões teria para estar assim.

"Porquê? Acha que não?"

"Acho."

"Não diga isso, inspector", exclamou José. "Ainda noutro dia recebi um telegrama de uma irmã minha a dizer que o filho foi colocado num quartel aqui no distrito de Tete, não sei bem onde. Se o senhor me diz que a tropa não aguenta isto..."

"O seu sobrinho é miliciano ou está nas tropas especiais?"

"E miliciano, creio eu."

"Então não tem de se preocupar com os turras", observou o responsável da DGS com acidez. "O

problema dele vão ser as gajas e as Laurentinas."

"Porque diz isso?"

Aniceto Silva comprimiu os lábios finos e olhou de soslaio para o interlocutor, como se ponderasse até onde deveria ir a liberdade das suas observações.

"Ó doutor, a nossa tropa é uma vergonha", desabafou por fim, a boca deformada numa expressão de desprezo. "Muitos soldados têm comportamentos arbitrários com os pretos e as pretas. Às vezes andam bêbados, outras vezes metem-se em tiroteios disparatados e até já os vi a desrespeitarem os superiores sem qualquer sanção disciplinar. Uma vergonha!" Inclinou-se no seu lugar, como se quisesse confidenciar algo. "Noutro dia o Kaúlza veio cá inspeccionar uns quartéis.

Sabe o que aconteceu? Os chefes militares deram ordens apressadas aos soldados para vestirem o camuflado e irem dar umas voltas no mato ali perto. O Kaúlza veio, pareceu-lhe que estava tudo bem, foi-se embora e a tropa voltou do mato para a pândega. É esta a tropa que aguenta isto?"

Voltou a rir sem humor. "Não brinque comigo!" Recostou-se no seu assento e cruzou a perna, balouçando-a nervosamente. "O estado de espírito da tropa miliciana vai de mal a pior, doutor. Os nossos homens fazem a guerra de braços caídos e só querem é andar nas putas que frequentam ali o... como é que se chama o raio da boîte?"

"O Maxim."

"Isso, o Maxim! E nas raras ocasiões em que vão para o mato, não só não procuram o inimigo como fazem todos os possíveis por não o encontrar!" Abanou insistentemente a cabeça. "Não, doutor. A sua irmã não tem de se preocupar com o filho."

"Não sei se será bem assim", corrigiu José. "Quando ando a viajar por aí chegam-me informações frequentes de combates. Parece-me sinal inequívoco de que a tropa está activa."

O inspector ergueu dois dedos, como se fizesse o V de vitória, mas sem a convicção dos vencedores.

"Isso só podem ser duas coisas", disse. "Ou são os turras a emboscar a tropa ou são os comandos ou os pára-quedistas ou os grupos especiais de tropas negras atrás dos turras. As forças especiais são as únicas que se mostram activas na perseguição ao inimigo. Os milicianos, esses, querem é tratar da sua vidinha e que ninguém os chateie!... Tome nota do que lhe digo: nesta guerra os comandos, os páras e os GE andam atrás dos turras, os turras andam atrás da tropa e a tropa anda atrás das gajas. E assim que se combate no Ultramar."

"O senhor fala como se a guerra estivesse perdida..."

"Perdida, não direi. Digamos que está ganha em Angola, perdida na Guiné e empatada em Moçambique."

Uma espreitadela discreta ao relógio despertou José para as horas. Já se fazia tarde, a guerra não era a sua especialidade e tinha ainda decisões a tomar sobre as operações dessa semana do Serviço Médico Aéreo.

"Bem, tenho de ir andando", disse, pondo-se de pé. "Gostaria apenas de..."

"Tenha calma, doutor", interrompeu-o Aniceto Silva. "Sente- se! Ainda temos coisas para conversar."

O chefe distrital da DGS manteve-se quieto no seu lugar, sinal claro de que não dera a reunião por concluída. José lembrou-se de que tinha também uns assuntos pendentes para resolver com o inspector, pelo que voltou ao seu lugar.

"Então o que se passa?", perguntou. "Julguei que me tinha chamado para falarmos sobre o Trovão..."

Aniceto Silva olhou para os dedos da mão, como se inspecionasse as unhas, e afinou a voz.

"Mandei que o chamassem por outro motivo, doutor", disse num tom monocórdico, quase formal. "Fui informado de que o senhor colocou uma criança negra num quarto particular do hospital, em vez de a meter na enfermaria geral." Levantou os olhos e cravou-os no médico. "Pode explicar-me porquê?"

José ficou um longo momento boquiaberto, tentando descortinar algum sinal escondido por detrás daquelas palavras ou no tom com que elas tinham sido formuladas.

"O senhor está a brincar?", perguntou por fim.

"Estou a falar muito a sério", insistiu o homem da DGS com um semblante grave. "Pode explicar-me os motivos que o levaram a internar uma criança negra num quarto particular? Parece que até a mãe dela também lá ficou!..."

A pergunta era mesmo a sério, percebeu o director do hospital. Respirou fundo, respingando no seu interior as sobras de paciência até amealhar algumas migalhas. Havia sido um dia para esquecer e a última coisa de que precisava era ter de justificar perante a DGS uma decisão tão insignificante como aquela.

"A criança é filha de um oficial do exército", começou por explicar. "Apanhou varíola e encontra-se num estado muito grave, dado tratar-se de uma patologia infecto-contagiosa que carece de cuidados específicos. É muito raro os latentes sobreviverem à varíola, mas estamos a fazer os possíveis para salvar a menina. Considerei que um quarto particular era o local ideal para lidar com este caso tão sério e com tão elevada taxa de mortalidade." Inclinou a cabeça, deixando a irritação espreitar por entre as suas palavras. "Não sabia que existia uma proibição de internar crianças negras em quartos particulares do nosso hospital, nem que um assunto desta dimensão pudesse preocupar a PIDE."

Aniceto Silva voltou a mirar as unhas da mão esquerda.

"A DGS, caro doutor Branco, preocupa-se com tudo", sentenciou. "Não existe nenhuma proibição de internar crianças negras nos quartos particulares." Mais uma vez levantou os olhos para o seu interlocutor, como se o que tinha dito enquanto contemplava as unhas não passasse de um preâmbulo. "O que existe é a proibição de exercer funções públicas sem bom senso."

"Desculpe, mas não percebo onde pretende chegar", devolveu José, já agastado. "Não vejo em que é que meter a filha de um oficial num quarto particular do hospital constitui falta de bom senso. Gostaria que me explicasse isso."

"Não tenho de explicar nada a ninguém", cortou o inspector num tom subitamente ríspido.

"Tenho é de perceber o que se passa na zona sob a minha jurisdição e as intenções com que certas coisas são feitas, mais nada."

O director do hospital sentia-se suficientemente enervado para manter o registo de protesto, mas reconsiderou a sua postura. Fosse ou não do seu agrado, a realidade é que precisava de Aniceto Silva e não se podia dar ao luxo de o hostilizar abertamente. Se ia prosseguir aquela conversa, percebeu, tinha de o fazer noutro tom e de uma forma mais inteligente.

"Naturalmente que entendo que tudo isto faz parte do seu trabalho", disse de uma forma quase descontraída, como se tudo aquilo fosse muito razoável. "Mas há uma coisa que não estou a perceber. Ainda há pouco o ouvi criticar os administradores déspotas e defender os direitos dos indígenas. Como é que essa posição encaixa nas suas dúvidas sobre o internamento de uma criança negra num quarto particular do hospital?"

A sombra de um sorriso cruzou o rosto tenso do homem da DGS.

"É muito simples", retorquiu. "Devemos tratar bem os pretos, dar-lhes educação e saúde, pagar-lhes salários iguais por serviços iguais e contribuir para o seu bem-estar económico e social."

Ergueu a mão, como um polícia sinaleiro a mandar parar o trânsito. "Mas, alto lá, não devemos exagerar. Tudo tem o seu limite, a partir do qual as coisas se tornam perniciosas. Um preto com excesso de educação, por exemplo, começa logo com ideias de expulsar os brancos e coisa e tal. Isso não podemos tolerar, como é evidente."

"Como o doutor Rouco, quer o senhor dizer?"

"Nem mais! Como o seu amigo Rouco."

"Não sei se sabe, mas o próprio Salazar convidou o doutor Rouco para ser deputado à Assembleia Nacional. Portanto não há-de ser tão mau quanto isso!..."

Aniceto Silva encolheu os ombros, como se a novidade lhe fosse indiferente.

"O nosso defunto presidente do Conselho lá teria as suas razões, que não me cabe a mim comentar", disse. "O facto é que o seu amigo Rouco se meteu com elementos subversivos, foi detido e depois enviado para a Machava e a seguir para Peniche. Que eu saiba, só agora o libertaram e deixaram regressar a Moçambique, mas com residência fixa na Beira, o que demonstra que continua a ser tido como perigoso. Ele é a prova viva de que um preto com excesso de educação se torna uma ameaça."

O médico teve de conter a irritação. Sabia muito bem qual a situação do amigo, com quem se correspondia para a Beira, e percebeu que aquela conversa não o iria levar a lado nenhum. Além disso tinha ainda uma outra questão a resolver e, embora o estado de espírito do seu interlocutor não fosse talvez o mais adequado, não a podia adiar.

"O inspector, já que estamos com a mão na massa, gostava de lhe falar sobre um outro problema", disse. "Como sabe, o senhor mandou deter dois enfermeiros meus."

Aniceto Silva sorriu.

"Estava a ver que não levantava esse assunto", observou, tirando do bolso das calças um papel com anotações que consultou. "Imagino que se esteja a referir ao Mendonça e ao... Mabunda."

"Esses mesmos", confirmou o director do hospital. "Estamos com falta de pessoal e precisava deles ainda hoje."

O inspector fez um gesto rápido com o papel na mão, sacudindo-o no ar.

"Lá está, é o que eu digo!", exclamou. "Dá-se demasiada educação a esta malta e começam logo a conspirar contra nós." Apontou para o primeiro nome anotado no papel. "Este enfermeiro Mendonça anda aí com um grupinho a bichanar por todos os cantos. Pensam que não os topo, mas a mim não me enganam."

"O inspector, estão apenas a estudar em horário pós-laboral. Deixe lá os moços!..."

"Estudar, dizem eles? Estão é a conspirar!..."

"Mas pegaram em armas? Mataram alguém?" Esboçou uma expressão de desinteresse. "Então deixe-os andar, enquanto falarem não fazem mal a ninguém. Aliás, o enfermeiro Mendonça tem até salvo maningue soldados que vêm todos partidos lá do mato. A mim não me interessa o que eles dizem, interessa-me o que fazem. E o que o Mendonça fez no hospital não tem preço."

O chefe distrital da DGS soltou um grunhido.

"Está bem, eu liberto os gajos", assentiu, quase contrafeito. "Mas diga ao Mendonça que tenha juízo, ouviu? Estou farto dos comentários que ele anda a fazer contra nós."

"E o enfermeiro Mabunda?"

"Esse foi detido só para que se mantenha em sentido, por causa dos filhos turras. Pode levá-lo também."

O médico espiou de novo o relógio, mais para sinalizar a pressa do que para saber as horas.

"Bem, então se calhar é melhor entregar-me já essa malta para eu ir andando, não é verdade?"

Levantaram-se ambos e Aniceto Silva deu ordem de soltura dos dois enfermeiros e dos três amigos de Mendonça que com ele estudavam à noite. O director do hospital e o chefe distrital da DGS dirigiram-se para a porta do edifício, onde ficaram a aguardar que os detidos tratassem das derradeiras formalidades e se reunissem a eles.

"Sabe o que mais me incomoda no meio disto tudo?", observou o inspector Silva enquanto esperava. "E que no fim a medalha vai ser de lata. De lata!"

"Que quer dizer com isso?"

O polícia fez um gesto na direcção do corredor ainda vazio.

"Olhe para estes gajos que estamos agora a libertar. Com as aberturas que o nosso novo presidente do Conselho tem ensaiado com a oposição, já vi que um dia tipos como estes vão tomar conta do poder. Quando isso acontecer, caro doutor Branco, vão fazer tudo o que estiver ao seu alcance para apagar da memória colectiva o que de bom este regime fez pelo país. Tudo." Esboçou um trejeito agastado com a boca. "Se o doutor ouvisse os comunistas que eu já interroguei, os mesmos comunistas que andam a contaminar a cabeça destes coitados, até lhe dava vómitos."

Ergueu o dedo, empolgando-se. "Vómitos, digo-lhe eu!"

"Porquê? Que dizem eles?"

"Oh, nem queira saber: os maiores disparates!"


"Mas dizem o quê?"

"Olhe, que o regime quer o país pobre e subdesenvolvido, veja só! E dizem que o regime deseja manter as pessoas analfabetas e sem educação, que o regime fechou Portugal à Europa e ao mundo... essas aleivosias todas." Cravou os olhos no índico. "Repare bem, doutor. Desde os anos 50

que Portugal conheceu o maior crescimento económico da sua história. Com a monarquia e a República, o nosso país andou século e meio a atrasar- se em relação às nações mais desenvolvidas e tinha um défice orçamental crónico. Veio Salazar, as contas equilibraram-se e a economia disparou. Baixaram-se as taxas de juro, deu-se confiança aos empresários, aumentou-se a poupança e os resultados estão à vista. O crescimento económico tem andado perto dos sete por cento, a mesma taxa do Japão, e os salários reais cresceram seis por cento. São números fantásticos, doutor!

Ainda ontem me chegaram aqui as estatísticas e elas parecem-me elucidativas." Meteu a mão ao bolso e retirou um papelinho, que desdobrou. "Olhe, até tomei nota. Veja aqui! Em 1950 o nosso PIB per capita correspondia a apenas trinta e cinco por cento do PIB per capita dos países mais ricos do mundo e este ano já representa quase cinquenta e oito por cento do PIB per capita desses países, o que significa que nos estamos a aproximar das nações mais desenvolvidas. Não é extraordinário?

Acha que isto é política de quem quer manter o país subdesenvolvido?"

"Deixe lá ver isso."

O homem da DGS entregou o papel ao seu interlocutor, que passou os olhos pelas estatísticas rabiscadas a lápis.

"Além do mais, investiu-se na qualificação da mão-de-obra, que era desqualificada no tempo da República, como o senhor bem sabe. O regime expandiu as escolas primárias e secundárias, instalou postos escolares em todas as aldeias, recrutou regentes escolares para fazer frente à falta de professores, apostou nos liceus privados na província e agora também nos liceus públicos, investiu no ensino técnico... eu sei lá! A realidade é que em 1930 a taxa de analfabetismo em Portugal era de sessenta por cento e agora está reduzida a vinte e cinco por cento. Acha que isto é obra de quem tenciona manter o país ignorante e sem educação? Francamente! E como é possível dizer que estamos fechados à Europa e ao mundo quando aderimos à EFTA e à OECE e eliminámos a maior parte das restrições quantitativas ao comércio externo com a Europa ocidental e assinámos este ano um acordo comercial com a CEE? Como é possível dizer isso? E como..."

"Eles vêm aí", interrompeu-o José.

Os dois enfermeiros e os seus três amigos apareceram de facto no corredor, as formalidades já cumpridas. O inspector fez um gesto de desdém na direcção do grupo.

"O p'ra eles! Quando um dia esta malta tomar o poder vai dizer que queríamos manter toda a gente pobre e ignorante e Portugal isolado do mundo. Nós, que endireitámos o país e investimos nas colónias! E sabe qual é o problema? E que essas mentiras, caro doutor, vão tornar-se verdades indiscutíveis."

O director do hospital nada disse. Foi buscar o carro e acolheu os enfermeiros, deixando os outros três seguir a pé. Quando se preparava para arrancar, o inspector Silva assomou à janela do automóvel e acenou em direcção aos homens que acabara de libertar.

"Juizinho, hem?"A brisa gerada pelo movimento da Berliet bafejava quente e seca, mas sempre compensava o calor ardente que incendiava a manhã. O céu abria-se num imenso azul sem nuvens, mas quando os veículos militares desembocaram na estrada principal que vinha de Vila Pery e viraram à esquerda Diogo apercebeu-se de uma estranha nuvem amarelada a pairar sobre o horizonte.

"Tete", esclareceu Chaparro.

A informação deixou o furriel intrigado. Examinou a nuvem com atenção, interrogando-se sobre se o calor não teria provocado uma miragem e transformado o casario na ilusão de uma nuvem; já ouvira dizer que esse tipo de alucinação era comum em zonas muito quentes.

"Tens a certeza que aquilo é Tete?", perguntou. "Tem graça, a mim parece-me uma nuvem a flutuar sobre o mato!..."

A observação foi acolhida com uma gargalhada.

"Aquilo é uma nuvem", disse Chaparro. "Uma nuvem de poeira que paira em permanência sobre Tete."

"Poeira?""A maior parte das ruas da cidade são em terra batida, pá. Quase não há asfalto. Os carros passam e levantam pó e a poeira fica o dia inteiro a planar no céu."

A coluna entrou nas ruas de Tete no final da manhã e Diogo ficou com a impressão de circular numa povoação do faroeste, o que o deixou estranhamente confortado; era como se estivesse no Chioco, mas em ponto grande e em condições de segurança.

As viaturas militares misturavam-se com as civis, umas e outras cobertas de pó, e as balalaicas dos brancos amalgamavam-se com os trajos coloridos dos negros e o verde-azeitona das fardas militares usadas por homens de todas as cores. Viu aramistas, como esperava, mas também boinas castanhas das tropas regulares, como a sua, a cruzarem-se nas ruas com boinas vermelhas dos comandos, boinas azuis dos pára-quedistas e boinas amarelas dos grupos especiais africanos.

Desprezava os aramistas, mas com as outras forças o sentimento dominante era de rivalidade. Os comandos em particular não o deixavam indiferente; achava que tinham a mania que eram os melhores e suspeitava que o seriam de facto.

A coluna proveniente do Chioco imobilizou-se num cruzamento dominado por um grande edifício, identificado no topo como o Hotel Zambeze, e Diogo, com a mão na cabeça para não deixar cair a boina castanha, saltou para o passeio e acenou aos camaradas que permaneceram na

Berliet.

"Até logo!"

Perguntou pela direcção do hospital e subiu a rua até chegar ao alto da colina. Nunca havia ali estado, mas a imagem da fachada do hospital diante da pequena rotunda onde desembocava a rua confortou-lhe o coração. Era pois ali que trabalhava o irmão da mãe. Entrou no edifício e, depois de questionar uma enfermeira, foi enviado para uma porta no fundo do corredor.

"Olá, tio Zé!"

José Branco atendia um paciente e desviou o olhar para identificar quem o interpelara. Levou um longo segundo a associar a cabeça do militar que lhe espreitava pela porta do gabinete com a saudação que acabara de escutar e a perceber que aquele furriel era o seu sobrinho.

"Diogo!", exclamou por fim. "Estava a ver que não me vinhas cá visitar!"

O médico interrompeu a consulta para acolher o recém-chegado. A última vez que o tinha visto fora quinze anos antes, era Diogo ainda um miúdo. A irmã e a família haviam partido logo a seguir para Angola e, quando regressaram à Metfópole já ele estava a viver em Moçambique. Tinha recebido fotografias dos cinco sobrinhos, claro, mas eram apenas imagens de garotos sorridentes com os joelhos esfolados, sem nada que os singularizasse. Se se tivesse cruzado com Diogo na rua não teria olhado duas vezes; não passava de mais um militar que ali fora parar.

"Olha lá, já tens idade para um whiskyzinho, não tens?", perguntou-lhe enquanto o puxava para uma porta diante do gabinete.

"Acho que sim!...", riu-se Diogo.

José Branco abriu a porta e o furriel sentiu o ambiente fresco e retemperador de um ar condicionado acariciar-lhe o rosto.


"Então anda aqui ao bar", convidou-o. "Vou meter gelo. Queres com soda ou com água?"

"Água."

O bar era um cubículo pequeno, mas fresco. Tinha um balcão a rodear uma estante cheia de garrafas e umas cadeiras e mesas espalhadas em redor, todas vazias àquela hora do dia. O aparelho de ar condicionado roncava sem cessar e Diogo acomodou-se junto a ele para melhor lhe acolher a frescura; havia já muito tempo que não sentia tanto conforto. Existia algo de tonificante naquele lugar, constatou, enquanto observava o tio a agarrar uma garrafa red label de Johnny Walker e a encher um copo; depois viu-o misturar água, deitar dois cubos de gelo e estender-lhe o whisky.

"Ficas aqui refastelado enquanto eu acabo as consultas, está bem?" O médico espreitou o grosso relógio de aviador, cheio de ponteiros. "Levo meia hora, mais ou menos. Se precisares de alguma coisa, vai-me bater à porta." Deu meia volta para regressar à consulta, mas hesitou, lembrando-se de mais um pormenor. "Se te habituares demasiado ao ar condicionado e começares a sentir calor, fazes como toda a gente aqui em Tete: sais do bar e vens cá para fora um minutinho. Quando reentrares vais achar que esse fresquinho é uma maravilha!..."

Diogo riu-se com a sugestão.

"Fique descansado."

O tio fez de novo tenção de sair mas deteve-se ainda mais uma vez e ergueu o dedo, como se no meio daquilo tudo se tivesse esquecido de dizer o mais importante.

"Ah!", exclamou. "O almoço é lá em casa."

A vista revelou-se de uma imponência desconcertante. A casa do tio situava-se no alto da colina, ao lado do hospital, e parecia uma tribuna assente sobre o rio. O caudal largo e tranquilo do Zambeze deslizava majestoso pela planície, movendo-se quase com sobranceria pela larga curva que contornava a cidade, como se a abraçasse; o espelho de água era apenas cortado por uma longa e estreita ilha fluvial, parecia que uma adaga rasgava o centro do rio mesmo diante da colina. À

direita, dando ares de uma construção em miniatura ou da Ponte Salazar em ponto pequeno, eram visíveis os pilares e o tabuleiro da Ponte Marcello Caetano, já erguida para substituir o histórico batelão. Ao fundo, para lá do Zambeze, estendia-se a margem amarelo-torrada seca do Matundo.

"E de cortar a respiração, não é?"

A voz feminina obrigou Diogo a virar-se. Caminhando pelo jardim com um copo na mão, o corpo a bambolear num vestido estreito mas de saia larga, vinha uma rapariga de tez morena.

Tinha o cabelo negro a pousar-lhe nos ombros ou a descair-lhe pelas costas; os olhos eram de um castanho-claro achocolatado e ostentava um sorriso tão quente e luminoso que Diogo teve a sensação distinta de que a recém-chegada seria capaz de derreter o mais frio dos homens.

Observando-a como se estivesse hipnotizado, o furriel tentou destrinçar-lhe a raça, mas percebeu que a rapariga escapava a qualquer categorização; os lábios espessos eram de negra, o nariz estreito de branca e o longo cabelo liso e brilhante de indiana, os olhos uma mistura de chocolate claro. A única coisa certa na sua figura harmoniosa era a beleza, feita de um exotismo raro e estranhamente inebriante.

"Pois é", concordou Diogo, quase ofuscado por aquela presença. "Esta vista é... deslumbrante."

A rapariga esticou o pescoço e ofereceu-lhe a face para o beijo.

"Eu sou a Sheila", apresentou-se. "Vim agora de Lourenço Marques e parece que vamos almoçar juntos."

A novidade encheu Diogo de um enorme bem-estar. Encostou-lhe o rosto para a beijar e constatou que ela tinha uma bochecha quente e macia. O que nela mais o perturbava, porém, era o sorriso. Já vira muitas mulheres bonitas na vida, em particular depois dos jogos de voleibol que agora pareciam uma recordação difusa, mas não se lembrava de alguma vez ter conhecido alguém que tivesse um sorriso tão belo como aquele.

Trocaram palavras de circunstância. A conversa, todavia, arrancou aos solavancos e os silêncios embaraçosos intrometeram-se nas frases entrecortadas.

"O senhor é sobrinho do doutor Branco?"

"Sou. Ele é meu tio."

Amaldiçoou-se em silêncio pela tolice da réplica, um mero eco tonto do que ela acabara de dizer, mas a verdade é que a rapariga o intimidava tanto que lhe anulava o discernimento. Teve vontade de praguejar, como quando nos seus tempos de jogador falhava um remate fácil sobre a rede, mas dominou-se. Sentindo-se um adolescente e temendo soltar mais asneiras, calou-se.

Voltaram-se ambos para o rio como se da água pudesse vir uma resposta para aquele impasse sem jeito. Não veio. Não suportando mais o silêncio desconfortável, fez um esforço para inventar um tema de conversa.

"O que está a beber?", perguntou, fazendo sinal para o copo que ela tinha na mão.

"Capilé."

Diogo assentiu com a cabeça e quis opinar qualquer coisa a Propósito do assunto, mas nada lhe ocorreu; era como se tivesse a mente em branco. Que observações argutas haveria a fazer em torno do capilé? Como se alimenta uma conversa sobre esse tema? Haveria alguém capaz de sustentar um diálogo inteligente com uma rapariga bonita a respeito daquela bebida? Sentiu-se embatucar de novo e, mais uma vez embaraçado e cheio de vontade de se autofla- gelar pela sua estupidez, voltou a fixar os olhos no Zambeze.

Um ponto negro perfazia uma curva no céu, acima do rio, e voltava -se na direcção da casa onde se encontravam. Diogo distinguiu as formas arredondadas familiares do Alouette III, o helicóp- te<-o da Força Aérea que se aproximava com um zumbido surdo.

"Olha um heli", disse, apontando para o aparelho voador ela já avistara também. "Deve vir de uma operação."

"Não", corrigiu Sheila. "Traz feridos."

Diogo lançou-lhe um olhar interrogador.

"Como sabe?"

"Ora, porque o hospital é aqui e o helicóptero vem nesta direcção!...", disse. "Todos os dias é isto."

O soldado teve de novo vontade de se esmurrar a ele mesmo. Ataria parvo ou quê? Espreitou os edifícios erguidos uns q u i nhentos metros à esquerda da casa do tio, também sobre a colina. O

mais próximo era a farmácia e atrás dela estava o hospital. Parecia por demais evidente que o

Alouette, se vinha naquela direcção, teria de trazer feridos. Como podia mostrar-se tao estúpido?

Pior ainda, o que iria pensar a rapariga? Receou tecer mais comentários disparatados e preferiu calar-se de vez, ficando a observar o helicóptero na sua manobra de aproximação ao hospital. O

fragor das hélices enchia aliás o ar com batidas surdas, o que lhe pareceu conveniente porque impossibilitava a conversa e o poupava a mais tolices.

'"Vamos comer?"

A pergunta do tio, lançada da janela, salvou a situação. Diogo e Sheila sorriram um para o outro, aliviados, e entraram na casa.

Acolheu-os a frescura dos aparelhos de ar condicionado e sem mais delongas sentaram-se à mesa para a refeição.

"Este almoço tinha sido marcado para assinalar o facto de termos ganho uma nova enfermeira", disse José Branco, inclinando a cabeça na direcção da rapariga. "Sheila, espero que não se importe por também ter convidado o meu sobrinho."

"Com certeza que não."


O médico virou-se para Diogo.

"A Sheila passou os últimos dois anos em Lourenço Marques", revelou. "Foi lá tirar o curso de Enfermagem. Regressou ontem a Tete e agora vai dar-me uma mãozinha no hospital." Olhou para ela. "Não é verdade, Sheila?"

"Iá. Estou cá para trabalhar, doutor!"

"Temos falta de pessoal moçambicano e isso dificulta por vezes o contacto com as populações", explicou ao sobrinho. "A Sheila fala nhungué e vai-nos ser maningue preciosa."

Mimicas entrou nessa altura na sala. Atrás dela vinha Ernesto, impecavelmente fardado de branco, a segurar uma travessa com uma grande terrina fumegante. Um aroma delicioso de especiarias encheu de imediato o ar.

"Espero que gostes de comida indiana, Diogo", disse a anfitriã, ocupando o seu lugar. "Como a Sheila vinha cá decidi coisar um caril de cabrito." Sentiu a fragrância condimentada do caril.

"Hmm, está uma delícia!" Inclinou a cabeça, como se fizesse uma confidência. "Não é para me gabar, mas tenho dedo para a cozinha!..."

"Foi a tia que cozinhou?", admirou-se Diogo.

Mimicas pareceu surpreendida com a pergunta e pousou a mão no braço do empregado, que já servia o caril.

"Quer dizer, quem coisou foi aqui o Ernesto", admitiu ela. "Mas seguiu as minhas indicações e fui eu que deitei os condimentos. E que, não sei se já vos disse, tenho dedo para a cozinha." Voltou a inclinar a cabeça no seu gesto característico. "Não é para me gabar!"

O caril pareceu saboroso a todos, excepto a Diogo, que sentiu um ardor infernal incendiar-lhe a boca mal trincou o primeiro pedaço de carne. Com a vista turva, as lágrimas a inundarem-lhe os olhos e muco viscoso a jorrar-lhe pelas narinas, engoliu um copo inteiro de água num esforço desesperado para apagar as chamas que o caril ateara.

As dificuldades do rapaz desencadearam gargalhadas na sala de jantar.

"Então?", quis saber Sheila com um sorriso malicioso. "São lágrimas de saudade?"

Com o rosto mergulhado num guardanapo, Diogo limpou os olhos, assoou-se e respirou fundo, aliviado por ter enfim estancado a erupção.

"Caramba!", bufou. "O que é isto? Nunca tinha provado uma coisa assim!..."

A observação fez Mimicas empertigar-se.

"O quê? Não me digas que não gostas!..."

"Gosto, gosto!", apressou-se o convidado a esclarecer, limpando novas lágrimas que lhe germinavam do canto dos olhos. "Não estou é habituado a comida tão picante."

"Aqui em Moçambique é normal", esclareceu Sheila. "Mas vocês, na Metrópole, não costumam comer piripiri, pois não?"

A conversa divagou pela comida, com Sheila e Mimicas a enumerarem as delícias da gastronomia moçambicana, começando pela galinha à cafrial e terminando nos caranguejos da Beira, "tão bons que parecem doces". Por falar em doces, a conversa desviou-se para a bebinca, a sobremesa goesa que era, no dizer da anfitriã, "especialidade aqui da nossa Sheila", elogio retribuído pela enfermeira, que muito gabou o pudim Araújo da sua anfitriã, "obra-prima do paladar".

"Não é para me gabar", pavoneou-se Mimicas com orgulho, "mas o meu pudim Araújo é mesmo uma maravilha!"

"Lá isso é, doutora", concordou Sheila. "Nunca provei doce tão bom. Uma especialidade!"

Mímicas olhou para o prato vazio diante dela e abanou a cabeça com uma expressão desgostosa.

"Ai, comi de mais", constatou num queixume. "Estou tão arrependida..."

José Branco e o sobrinho deixaram as mulheres fazer as despesas da conversa, discorrendo ambas sobre receitas "de adoçar o dente", mas o médico foi rápido a aproveitar a primeira pausa para inquirir Diogo sobre as condições de vida no CíTioco.

"Se calhar é melhor eu dar uma palavrinha ao coronel Varela", sugeriu. "Como novo governador de Tete e comandante da ZOT, ele tem plenos poderes para te transferir. Vou estar amanhã com ele e..."

Diogo ergueu a mão para travar o tio.

"Espere aí", disse. "Transferir-me para onde?"

"Ora, para um posto menos perigoso", esclareceu, quase admirado por ter de expor a evidência.

"A tua mãe escreveu-me noutro dia e, como deves calcular, anda raladíssima contigo. Não é fácil ter um filho na guerra."

"Saio do Chioco e torno-me o quê? Um aramista?"

A expressão suscitou um olhar inquisitivo do médico.

"Aramista? Não estou a perceber..."

"Um aramista é um desses militares que dizem que estão na guerra mas não saem dos gabinetes", esclareceu, quase a sentir- se um veterano. "O tio nunca os viu por aí? Andam impecavelmente fardados e com a botas a brilhar de tão bem engraxadas, mas não se aventuram para lá de nenhum perímetro que não esteja protegido por arame farpado. São os aramistas, a vergonha da tropa. Se eu sair do Chioco será para quê? Para abandonar os meus camaradas e tornar-me um aramista?" Abanou a cabeça. "Não, obrigado."

José Branco fitou o sobrinho com sentimentos ambivalentes. Por um lado queria-o fora de perigo, para segurança dele e descanso da mãe, e sentia a responsabilidade e o dever de o proteger; por outro, vislumbrou em Diogo uma variedade diferente do mesmo idealismo que o movia a ele próprio e isso fê-lo sentir uma ponta de orgulho. Quis dar-lhe uma palavra de apreço. Não era todos os dias que via um militar recusar a possibilidade de uma transferência para uma posição mais confortável, mas não era homem para verbalizar sentimentos e, sem saber lidar com o assunto, preferiu mudar de tema de conversa.

"Olha lá", disse para aligeirar o ambiente, "não tens vergonha de ter vestido a camisola do Porto?"Caminhavam os dois descontraidamente pela rua curva que descia do hospital em direcção à Baixa. Era o início da tarde e fazia um calor infernal, mas nem Diogo nem Sheila pareciam incomodados com isso; ele esforçava-se por se esticar e encher o peito, de modo a sublinhar o porte atlético, e ela ia passando as mãos pelo longo cabelo negro, como se o penteasse com os dedos.

"É uma pena não ter carro para lhe dar uma boleia", descul- pou-se Diogo. "A única coisa ao meu dispor é uma Berliet, mas não me parece viatura adequada para transportar uma donzela."

Riram-se os dois, cada um a fantasiar a cena à sua maneira; o furriel imaginava a cara dos camaradas ao vê-lo passear com aquela beldade na viatura militar, Sheila desenhava na mente o espanto dos vizinhos se ela chegasse a casa de Berliet.

"Não faz mal", disse a rapariga. "Já foi maningue gentil oferecer-se para me acompanhar. Mas não queria que se incomodasse. Deixe-me no calhambeque e eu depois sigo sozinha."

"Nem pensar!", cortou Diogo com um gesto peremptório. "Faço questão de a acompanhar a casa. Isso nem tem discussão! Não a vou deixar abandonada por aí...""Mas eu estou habituada."

O furriel fingiu-se despeitado e cobriu o peito com a mão, em pose de cavaleiro.


"Por quem me toma? Acha-me capaz de a abandonar? E se aparece por aí algum turra e a rapta?

Que ia eu dizer ao meu tio?" Fez uma careta e tornou a voz mais aguda, reproduzindo um diálogo imaginário: Olhe, tio Zé, larguei-a por aí e os turras levaram-na! Agora paciência! Ficou sem enfermeira!'"

Sheila riu-se com gosto, exibindo a sua perfeita fileira de dentes.

"Que tonto! Aqui em Tete não há turras!..."

Diogo estacou de repente no passeio e ficou a observá-la fixamente, como se tivesse acabado de descobrir um novo encanto no rosto dela.

"Ora ria-se lá outra vez!..."

A rapariga parou igualmente a meio do passeio e fitou-o com uma expressão interrogadora, sem perceber o pedido.

"O quê?"

"Gostava que se risse outra vez", repetiu ele. "Sabe que tem o sorriso mais bonito que alguma vez vi numa rapariga? Quando os seus lábios sorriem, os olhos também se alegram, a cara ri e todo o corpo a acompanha. Nunca vi coisa igual!"

Sheila enrubesceu e, quase aflita, tapou a face com as mãos, como se assim conseguisse esconder o sorriso que agora a embaraçava.

"Tonto!", protestou, virando o rosto para a frente e retomando a marcha. "Já me fez corar..."

"Também fica bonita a corar", acrescentou Diogo depois de dar dois saltos para se pôr ao lado dela. "Mas é o seu sorriso que mais me encanta!..."

A rapariga aligeirou ainda mais o passo, como se tentasse fugir; ia tão depressa que parecia um figurante absurdamente irrequieto numa fita de Charles Chaplin.

"Você é maningue atrevido!", disse num queixume manifestamente pouco sincero. "Devia ter vergonha!"

"Em geral sou até um pouco acanhado", devolveu ele. "Mas ao pé de si sinto-me capaz de dizer tudo o que me vai na alma. Você tem algo de especial, sabia?"

"E você tem maningue conversa!", atalhou ela sem o encarar. "Aposto que diz isso a todas..."

O furriel pousou a mão sobre o coração.

"Juro que não!", garantiu com ênfase. "Já lhe disse que sou muito acanhado."

"Pois não parece."

A troca de palavras decorria fluida nestes tons melífluos, como se ambos se tivessem entregue a um jogo; nem sinal dos silêncios súbitos que tanto os haviam embaraçado quando se tinham conhecido apenas três horas antes. Caminhavam distraidamente, embalados nesta conversa doce.

Ora um lançava um piropo, ora o outro se fingia ofendido; brincavam num instante, logo a seguir era tudo a sério.

Absortos um no outro, como se nada mais importasse, foi com espanto que se aperceberam de que haviam desembocado na Baixa; não tinham dado pelo correr do tempo. Passaram pela Univendas e Diogo deu de caras com um edifício que reconheceu; era o Hotel Zambeze, erguido no cruzamento onde os camaradas o haviam largado nessa manhã.

A súbita pausa permitiu a Sheila orientar-se e dar indicação de que deviam cruzar a rua.

Seguiram para o outro lado até chegarem a um posto de combustíveis da Megaza com uma decoração original; sobre o telhado plano da gasolineira encontrava-se um calhambeque vermelho e branco em tamanho natural, como uma peça de museu exibida ao ar livre.

A rapariga imobilizou-se na rampa de entrada do posto e voltou-se para ele subitamente silenciosa, uma expressão ambivalente no rosto; parecia indecisa entre o desânimo e a esperança.

"Fico aqui", acabou por dizer. "Muito obrigada pela companhia. Foi um prazer conhecê-lo."


A interrupção da conversa e a despedida abrupta deixaram Diogo surpreendido. Olhou para o posto de combustíveis e depois para Sheila, como se não percebesse o que se passava.

"Você mora aqui?"

Ela riu-se nervosamente.

"Claro que não. Mas tenho ali a minha ginga."

"A sua quê?"

"A ginga", repetiu ela, recomeçando a caminhar. "Vou com ela para casa."

"Vai com uma gringa para casa?", admirou-se ele. "Não estou a perceber..."

Sheila entrou no posto e pegou numa bicicleta cor-de-rosa com estrutura baixa, como era adequado para as senhoras. Puxou-a para fora e montou-a.

"Não sabe o que é uma ginga?", perguntou a rapariga enquanto acariciava o guiador. "Iá, vê-se mesmo que está há pouco tempo em Moçambique!..."

Diogo contemplou a bicicleta com ar aprovador.

"Então vai de bicicleta para casa? Sim senhor, não a imaginava tão... tão feminina."

"Deixo-a sempre aqui quando vou para o hospital", explicou. "É maningue difícil subir a rua de ginga até lá cima. Tentei uma vez e fiquei a meio, as pernas a pesarem-me uma tonelada. Ui, foi um horror! Mais vale guardar a ginga aqui no calhambeque e ir a pé."

O furriel assentiu com a cabeça, embora nem tivesse escutado as últimas palavras. Estava demasiado ocupado a tentar inventar um pretexto e uma maneira de a ver de novo e preocupado por não lhe ocorrer nenhuma ideia; era como se tivesse chegado a um beco sem saída.

"Então despedimo-nos aqui", observou Diogo com desânimo resignado. "Tem mesmo de se ir embora?"

Ela suspirou.

"Iá. Preciso de ir para casa, a minha avó está à espera."

Como se respondesse ao suspiro dela, foi a vez de Diogo respirar fundo.

"Gostava de voltar a vê-la."

"Ai sim? E como vai fazer isso? Manda uma Berliet para me levar ao Chioco?"

Riram-se os dois, embora sem muito entusiasmo.

"Vou oferecer-me para vir cá mais vezes buscar mantimentos", disse ele. "Sabe como é, volta e meia temos de dar um salto a Tete para nos reabastecermos." Levantou a boina castanha e passou a mão pelo cabelo, juntando coragem para lançar o isco. "Acha que nos poderemos encontrar quando eu cá vier?"

"Depende", murmurou a rapariga, fazendo-se cara. "Posso estar ocupada."

"A fazer o quê?"

"Ora, a trabalhar! Então não sabe que agora sou enfermeira? Fico maningue chunguila com a bata e o cup, sabia?"

"Calculo!" Teve vontade de lhe dizer que ficaria decerto ainda mais bonita sem bata, mas não se atreveu. "Olhe, quando eu vier cá aviso-a com antecedência, está bem?"

Sheila encaixou o pé no pedal da bicicleta e preparou-se para partir.

"E como vai fazer isso? Envia-me um telegrama?"

"Mando-lhe uma carta", prometeu Diogo, tirando do bolso um papel amarrotado e uma bic azul.

"Será que me pode dar o endereço da sua casa?"

A rapariga apoiou-se sobre a perna esquerda e a bicicleta começou a rodar, afastando-se devagar.

"Isso queria você!", disse ela. "Escreva-me para o hospital."

A bicicleta ganhou velocidade e Diogo ainda deu uns passos em corrida, tentando acompanhá-


la, mas logo percebeu a futilidade do gesto e parou, ficando a acenar com o braço.

"Prometo."

Já em plena aceleração, Sheila voltou a cabeça para trás e acenou de volta. "Tá-tá!" XL

O Sol deitava-se já no horizonte, rasgando o poente com vigorosas manchas de sangue luminoso, quando a coluna invadiu no meio de grande aparato o perímetro do Chioco. A Berliet onde Diogo seguia soltou um derradeiro ronco e imobilizou-se com um bafo de exaustão. Os motores calaram-se quase em simultâneo e a calma impôs-se por fim.

Uma nuvem de poeira cor de ferrugem ficou a deslizar no ar; parecia um espectro mudo a assombrar a picada. Os soldados demoraram-se um instante mais nos assentos, entorpecidos e letárgicos, a saborear o refolgo da chegada. O rumor sussurrado da brisa e o ondular enérgico do pano dos estandartes era tudo o que os separava do silêncio mais profundo. A bandeira portuguesa adejava no topo do mastro; por vezes murchava com o abrandar do vento, para a lufada seguinte a acirrar com força redobrada, sacudindo-a em movimentos de repentina violência.

Com um gesto deliberadamente lento, Diogo tirou a boina da cabeça e passou as costas da mão pela testa para limpar o suor sujo de pó alaranjado."Porra!", exclamou com alívio. "Estava a ver que não chegávamos!..."

Chaparro foi o primeiro a saltar para terra, no que foi seguido por outros camaradas.

"Que merda de viagem!"

Alertado para o regresso da coluna, o capitão assomou de imediato à parada e foi acolher os recém-chegados. Ainda a descansar na Berliet, Diogo viu-o caminhar fardado a rigor, as calças e a camisa impecavelmente passadas e as botas engraxadas com esmero, e não conseguiu reprimir um olhar carregado de desdém. O seu comandante era um perfeito aramista.

"Então?", quis saber o oficial. "Correu tudo bem?"

Chaparro encolheu os ombros.

"O costume, meu capitão. Fomos emboscados em dois pontos: uma vez na estrada do Songo, outra quando metemos pela picada e vínhamos para aqui."

"Oh diacho! Há feridos?"

"Não. A malta aguentou-se."

O capitão abanou a cabeça, agastado.

"Estas viagens são sempre uma chatice", observou. "E os mantimentos? Não falta nada?"

Diogo desceu devagar da Berliet, quase como se tivesse o corpo dorido, e tirou de uma pasta amarelo-torrada as requisições e toda a papelada relevante.

"Está tudo aqui, meu capitão", confirmou, folheando os documentos. "Batatas, arroz, latas de conserva, peixe seco, vinho, bazucas..."

"E combustível?", cortou o oficial enquanto procurava com os olhos o camião-cisterna. "Também veio?"

"Claro."

O comandante do aquartelamento bufou de satisfação.

"Ufa! Ainda bem! Desde que o petróleo acabou, ontem à noite, a geleira deixou de funcionar.

Estava a ver que íamos ter de tomar outra vez bazucas quentes!..." Fez sinal a uma ordenança. "Ó

Augusto, vai já meter combustível na geleira. Isso é prioritário, pá. Senão, não há bazuca para ninguém!..."

Diogo sentia-se demasiado fatigado para ajudar a descarregar os mantimentos. Sabia que formigavam por ali aramistas que haviam passado o dia inteiro sem fazer nada a não ser tratar de papelada ou descascar batatas; eles que trabalhassem. Travou a G3 e arrastou-se entre as palhotas e as tendas da tropa.

Caminhou ao longo da vedação que separava a zona militar do aldeamento civil e avistou a negra do pilão sentada numa pedra a trincar uma maçaroca assada. A rapariga tinha o seio esquerdo, arrebitado e opulento, a espreitar fora dos trapos que lhe tapavam o resto do tronco. Ela apercebeu-se da presença do soldado e acompanhou-o com um olhar expectante, como se dele esperasse um sinal. Diogo ainda considerou se haveria de o dar; o Sol deitava-se já e seria fácil lobrigar na escuridão um qualquer recanto onde também se pudesse deitar com ela. Mas algo o travou e obrigou a virar a cara para a frente e prosseguir o caminho, como se nada sentisse.

A sua própria reacção apanhou-o de surpresa. O corpo pedia-lhe mulher e ali estava uma, disponível e apetitosa. Em circunstâncias normais ter-lhe-ia feito um gesto e resolveria a coisa sem mais delongas. Era assim depois dos jogos de voleibol e também poderia ser assim depois dos jogos de guerra. Porque não o fizera? O seu comportamento assumia contornos de mistério.

Violava as normas de conduta? E depois? O facto é que outros camaradas também molhavam a sopa à socapa, como provavam as constantes comichões púbicas do Chaparro, e não era por isso que lhes sucedia o que quer que fosse.

A verdade, a surpreendente verdade, é que não tinham sido as normas de conduta militar a refreá-lo. O que verdadeiramente o travara fora outra rapariga. Sheila. Fizera toda a viagem de regresso a reconstituir a conversa que tiveram antes, durante e depois do almoço e a recordar as feições delicadas da rapariga, os seus gestos e trejeitos, o riso, a voz meiga, o olhar de chocolate ardente, os lábios sensuais, os meneios do corpo, o próprio corpo... Fora, aliás, justamente enquanto pensava nela que a coluna havia sido alvejada na viagem de regresso.

Ia Diogo com Sheila novamente a encher-lhe a cabeça quando, ao passar pela tenda que servia de cozinha, sentiu uma mão segurá-lo. Desviou o olhar para a mão e seguiu-a até à sombra. O

crepúsculo desprendia já os derradeiros lampejos do Sol, lançando o manto opaco da noite africana sobre o mato, e o soldado adivinhou, mais do que viu, o perfil pançudo do despenseiro recortado na penumbra.

"Meu furriel", disse o homem, dando um passo para a luz ténue do anoitecer. "Ouvi dizer que a coluna foi emboscada no regresso. é verdade?"

"Afirmativo", confirmou Diogo, o rosto sulcado de fadiga. "Mas foram só uns tiritos, nada de especial. Porquê?"

O despenseiro coçou a cabeça, como se avaliasse a maneira de apresentar a questão.

"É a despensa, meu furriel", acabou por dizer. "Estamos ali com um problemazito."

Diogo lançou-lhe um olhar inquisitivo, sem perceber por que razão lhe era apresentada a ele, um operacional, uma questão que cabia aos aramistas resolver. Aquela gentinha não fazia uma única patrulha e ainda o vinha sobrecarregar com problemas relacionados com a despensa?

Apeteceu-lhe mandá-los à merda, a ele e aos outros aramistas todos, a começar pelo próprio capitão, mas sentia-se de tal modo cansado que nem energia teve para se indignar.

"Diga lá o que o incomoda..."

O despenseiro fez uma careta, como se sentisse relutância em suscitar a questão mas não tivesse alternativa.

"Sabe, meu furriel, estamos a gastar demasiada comida", disse. "O arroz, as batatas, o bacalhau, a carne... na despensa está tudo abaixo dos níveis normais."

Diogo olhou-o sem perceber onde queria o homem chegar.

"Você está a insinuar que andamos a comer de mais?", perguntou. "Está a sugerir que a companhia faça dieta?"

Nova careta incomodada do despenseiro.

"Não, meu furriel. Cada homem está a consumir as quantidades normais. Mas os gastos de comida é que não são normais... se é que me entende."

Diogo sacudiu a cabeça; não entendia.

"Comemos o normal mas gastamos acima do normal?", admirou-se. "Explique lá isso melhor, homem, que eu tenho mais que fazer!"

O despenseiro inclinou-se para a frente, como se quisesse segredar-lhe ao ouvido, e baixou ainda mais a voz insinuante, já quase apenas um sussurro.

"São os mainatos, meu furriel", ciciou. "Os mainatos e as famílias. A comida que lhes estamos a dar não está orçamentada, se é que me faço entender!..."

Diogo arregalou os olhos. Os mainatos! A dificuldade do despenseiro tornou-se enfim clara. Os soldados pagavam os serviços de limpeza dos mainatos do aldeamento vizinho com rações tiradas da cozinha e que alimentavam famílias inteiras. O problema, percebeu nesse instante, é que as quantidades fornecidas ao aquartelamento eram as necessárias apenas para os soldados e não estavam previstas porções adicionais para os aldeãos.

"Estou a ver", disse o furriel. "Mas o que posso eu fazer? Não está à espera que proíba a entrega de comida aos mainatos, pois não? Além do mais, quem teria de dar essa ordem era o capitão, não eu, uma vez que..."

"A coluna não sofreu uma emboscada?", atalhou o despenseiro, os olhos incendiados de esperança.

Diogo hesitou, novamente perdido no raciocínio.

"Sim, já lhe disse! Mas não estou a ver qual a relevância disso para o seu problema!..."

O despenseiro olhou para os lados, quase conspirador, e voltou a inclinar-se para o furriel como um espião prestes a passar ao inimigo um segredo de estado.

"E se, a meio da emboscada, as balas do in tivessem furado um saco de arroz? Hã? E se também tivessem atingido um saco de batatas? E se no meio da confusão ainda se tivesse perdido o saco com as conservas?" Arqueou as sobrancelhas, buscando a cumplicidade do seu interlocutor. "Está a ver onde quero eu chegar, meu furriel?"

Diogo coçou a testa.

"Deixa-me cá ver se entendi bem", murmurou', tentando reordenar o raciocínio. "Queres justificar a comida gasta a mais nos mainatos com supostas perdas de mantimentos durante uma emboscada?"

O rosto do despenseiro abriu-se num sorriso de satisfação.

"Eu não poria a coisa melhor, meu furriel!" Voltou a olhar para todos os lados, novamente conspirador. "E há ainda o problema do soldado Raul, está a ver?"

"Não."

"E o caso daquele camarada que noutro dia deu sem querer uma coronhada num Unimog, não sei se ouviu falar. Sabe, a coisa foi um bocado à bruta e ele partiu o farol lateral traseiro da viatura.

Não há modo de justificar essa despesa, como o meu furriel bem sabe, e o Raul vai ter de pagar os estragos do seu próprio bolso, coitado." Inclinou-se ainda mais, literalmente a segredar. "Mas se alguém escrever no relatório desta emboscada que o Unimog foi atingido por uma bala do in no farol lateral traseiro..."


O despenseiro deixou a sugestão flutuar no ar, na esperança de que o seu interlocutor pegasse nela. Diogo coçou o queixo, considerando o problema. Tudo aquilo lhe parecia altamente irregular, para não dizer ilegal. O que o despenseiro lhe sugeria é que o exército assumisse as despesas pessoais dos soldados e até os seus descuidos com o equipamento. Não tinha dúvidas de que era ilegal e imoral. Mas, sendo ilegal, havia o outro lado da moral. Que moralidade tinha o exército ao interromper a vida daqueles homens, afastá-los das famílias e atirá-los para um lugar perdido no meio do mato, pô-los a viver com grande desconforto e exigir-lhes até que sacrificassem a própria vida se nem sequer era capaz de assumir as despesas de umas quantas ninharias que lhes mitigavam as dificuldades?

Concluído o raciocínio, o rosto do furriel abriu-se num sorriso e ele estendeu a mão para fechar o negócio.

"Raul, você até pode não passar de um aramista", observou, "mas não há dúvida que é um grande aramista!"

O corpo de Chaparro quase se contorcia enquanto ele, com a língua a espreitar do canto da boca, desenhava as letras na folha habitualmente usada para correspondência.

"A quem escreves tu com tanto afinco?"

A pergunta de Diogo, feita do catre no outro lado da tenda, desconcentrou-o. A esferográfica deslizou-lhe sobre o papel fino, fazendo um traço inadvertido, e o furriel praguejou de frustração.

Analisou a folha, tentando perceber se era possível corrigir a gralha, mas constatou que dificilmente conseguiria salvar aquele risco e lançou um olhar fulminante ao camarada.

"O que é?"

"Todas as noites te vejo aí deitado no catre a escrever", observou Diogo. "São para quem essas cartas?"

Chaparro manteve o olhar irritado cravado no homem responsável por ele ter feito um risco na carta.

"Que tens tu a ver com isso?"

"Ai, que sensível!", exclamou Diogo, erguendo as mãos como se se rendesse. "Pronto! Se não queres dizer, não digas!..."

Os olhos de Chaparro desceram para o risco no papel. Analisando-o com cuidado concluiu que podia fingir que se tratava de um travessão, longo é certo, mas o que lhe interessava é que havia meio de disfarçar o erro. Voltou a comprimir a língua no canto da boca e compôs o texto de uma forma que o deixou mais satisfeito. Afastou a carta e contemplou-a, como um pintor a apreciar a obra; o erro tinha sido satisfatoriamente escondido. O feito deixou-o orgulhoso; por momentos, sentiu-se mesmo um artista, talvez não um pintor, mas pelo menos o artista das emendas.

"Estou a escrever para a minha madrinha de guerra", acabou por revelar, mais bem-disposto.

"A sério? Quem é ela?"

"Chama-se Maria das Dores e vive numa aldeia perto do Redondo", disse com uma expressão sonhadora. "Escreve-me uma vez por semana e eu escrevo-lhe todos os dias. Andamos num namoro pegado."

"É gira?"


"Uma beleza!" Apalpou os bolsos da camisa à procura de alguma coisa. "Queres ver? Tenho aqui uma fotografia!..."

Chaparro saltou do catre e foi ter com o camarada com um rectangulozinho nas mãos. A fotografia a preto-e-branco, obviamente de estúdio, mostrava o rosto fresco de uma rapariga com uma fisionomia compenetrada, como se tivesse uma missão a cumprir.


"E gira, é", confirmou Diogo, devolvendo a imagem. "Onde foste desencantar esta gaja?"

"Eh pá, da maneira habitual. Mandei um pedido para a Comissão Central do Serviço Nacional de Madrinhas a candidatar-me a afilhado. Ao fim de algum tempo, o Movimento Nacional Feminino arranjou-me a Maria das Dores. Eles procuram sempre uma madrinha que seja da terra do afilhado, estás a ver?"

"E do que falam vocês nessas cartas?"

Chaparro encolheu os ombros.

"Sei lá, de tudo e de nada. Eu conto-lhe algumas das merdas que aqui se passam e, claro, dou-lhe um pouco de manteiga, não é? Digo-lhe que é muito gira, que nos devíamos encontrar quando eu voltar... essas tretas."

"E ela?"

"é muito compreensiva e diz-se orgulhosa de mim. Além disso dá-me notícias do Redondo e até já foi a minha casa falar com a minha mãe. Porreiro, não é?" A expressão de entusiasmo foi desfeita por uma pequena careta. "Mas às vezes tem uma conversa patrioteira que me enerva. Diz que estou em África a defender Deus e a família... estás a ver o género? Chego a perguntar a mim mesmo se será ela que me escreve ou o cardeal Cerejeira!" Riu-se. "Mas é simpática, isso não há dúvida."

Piscou o olho. "Sabes, se tiver jeito a escrever as minhas cartas, ainda lhe dou umas pinocadas quando chegar ao Redondo." Beijou a fotografia. "Ah, filha! Ando-te cá com uma tusa!..."

A observação suscitou um esgar céptico de Diogo.

"Já lhe contaste que tens chatos?"

Chaparro reagiu à pergunta quase com um gesto reflexo, metendo automaticamente a mão dentro das cuecas para se coçar.

"Vai-te lixar!", resmungou. Lançou um olhar a um caderno pousado no catre do furriel e, vendo-o garatujado, percebeu que também eram folhas para cartas. "Olha lá, também andas a escrever?"

Sorriu com malícia. "Não me digas que tens a tua madrinha de guerra..."

Diogo pegou no caderno de modo a esconder os seus rabiscos do olhar indiscreto do camarada.

"Pois é, arranjei agora uma."

"Ah-ha!", exclamou Chaparro como se o tivesse apanhado em flagrante. "Quem é a gaja? E lá da tua terra?"

O furriel riu-se.

"Esta é daqui."

"Daqui, de onde?", admirou-se o seu interlocutor. "Arranjaste uma madrinha de guerra em Moçambique? Como é que se faz isso, pá?"

Diogo passou os olhos pelo caderno, contemplando as linhas que já havia escrito.

"É de Tete."

Chaparro abriu a boca, estupefacto.

"De Tete?"

"Conheci-a hoje", disse. "Uma hora depois de vocês me terem largado no cruzamento."

"Foste ao Maxim? Estava aberto?"

"Qual Maxim, qual carapuça! Ela é enfermeira, pá."

O soldado ficou um longo instante a fitar o furriel, como se visse e não acreditasse. Uma súbita irrupção de latidos desviou-lhes a atenção para o que se passava no exterior; eram os cães que ladravam para os lados do aldeamento vizinho. Os dois homens trocaram um olhar conhecedor; sabiam que era o sinal do regresso a casa dos guerrilheiros que se faziam passear por aldeãos.

A interrupção pareceu quebrar o interesse de (Chaparro em prosseguir a conversa. O soldado deu meia volta e caminhou devagar até ao seu catre, a cabeça a abanar com incredulidade, o corpo curvado quase em desânimo.

"Porra!", murmurou. "Nunca vi ninguém tão rápido com as gajas!..." XLI

O Sol era já uma pérola de luz a beijar o horizonte, como uma flor que se exibe ao mundo num derradeiro fulgor de glória, quando José Branco abriu a porta do avião e sentiu o ar sufocante de Tete esbofetear-lhe a face. Atirou um olhar na direcção de Sheila e soltou um suspiro de fadiga e alívio.

"Foi duro, hem?"

"Não me diga nada, doutor", devolveu a rapariga, apontando para os pés enlameados. "Tenho matope quase até ao joelho!"

"Nada que um bom banho não resolva!..."

"No estado em que estou, nem sei se consigo tomar banho", riu-se ela. "Estou maningue cansada e quando chegar a casa vou cair redonda na cama. A vovó até se vai assustar!"

As hélices do Piper Cherokee imobilizaram-se. Do motor vinham pequenos estalidos, como se o avião estivesse à beira de se desarticular. Eram de resto sons normais depois de um voo; por mais fatigado que o material do aparelho se encontrasse, decerto não estaria mais exausto do que os seus ocupantes.

Os recém-chegados cruzaram o capim da pista do Aero-Clu- be, acompanhados do motorista Luís e do enfermeiro Mendonça, que os tinham recolhido no grande jipe Austin. Os dois homens ajudaram a transportar as caixas dos medicamentos que haviam sobrado e a maca com um doente que o médico optara por transferir para Tete.

Ao chegar ao jipe, José apercebeu-se de um vulto no interior. Estava escuro, mas bastou um lampejo dourado no cabelo do ocupante do veículo para compreender que se tratava de Nicole.

Revirou os olhos, contrariado, mas procurou dissimular o que sentia, não fossem os enfermeiros notar o seu embaraço.

"Oi, Zé", saudou a rodesiana quando o grupo se acomodou no Austin. "Pedi ao Mendonça para me trazer também. Quis ver a chegada do avião. Você não se importa, pois não?"

"Claro que não", retorquiu o médico com secura indisfarçável. "Fizeste muito bem."

A viagem até ao hospital foi completada em silêncio, com os recém-chegados demasiado cansados para poderem sustentar uma conversa. O mutismo prolongou-se e tornou-se tão pesado que Nicole se sentiu obrigada a quebrá-lo.

"Então, Sheila?", disse. "Agora é você que faz as viagens com o doutor Branco?"

"Hmm-hmm."

"Que sucedeu com a irmã Lúcia? Pegou preguiça?"

"A irmã Lúcia tem trabalho no hospital."

A rodesiana ainda tentou preencher aquele sossego quase embaraçoso com sucessivas perguntas sobre os mais variados assuntos, mas os esforços esbateram numa barreira de respostas desconchavadas, concedidas por mera educação. Nicole percebeu e calou-se, deixando que o silêncio se reinstalasse no interior do jipe.

Todas as funções e procedimentos habituais no final de mais uma semana de périplo do Serviço Médico Aéreo foram desempenhados com eficiência silenciosa. Os voos de assistência sanitária duravam havia quatro anos, o que permitira estabelecer uma rotina que já dispensava ordens; à custa de tanta repetição todos sabiam bem o que fazer.

O doente foi internado, o material devolvido à farmácia com as requisições devidamente preenchidas e José, após uma vistoria às enfermarias, reuniu-se com o doutor Feitor e a irmã Lúcia para se inteirar das novidades. No final recolheu ao gabinete, onde ficou sozinho a tratar da correspondência oficial com Lourenço Marques e a dactilografar o relatório de tudo o que acontecera durante a digressão aérea dessa semana.

Um toque na porta do gabinete arrancou um grunhido ao director do hospital.

"Hmm?"

A porta abriu-se, mas José Branco manteve-se debruçado sobre a máquina de escrever.

"Tem um minutinho para mim?"

O médico não precisou de erguer a cabeça para saber de quem se tratava.

"Que é, Nicole?"

A médica rodesiana entrou no gabinete e aproximou-se devagar, como se estivesse a experimentar o caminho.

"Você não está contente por me ver?"

José sentiu-lhe o perfume suave e parou de escrever para por fim alçar o olhar na direcção dela.

"Se queres que seja franco, não", disse com alguma secura. "Apareces aqui a toda a hora sem avisar e agora até já me vais esperar na pista do Aero-Clube. Achas que as pessoas são parvas? Se isto continuar assim, não tarda nada começam a suspeitar que se passa alguma coisa. Depois vem o falatório."

Nicole encolheu os ombros.

"Deixa elas falar. Que mal tem?"

"O mal é que eu sou um homem casado."

A rodesiana esboçou uma expressão de indiferença.

"E depois? Você não se preocupou com isso lá no Hotel Cardoso, pois não? Nem quando paquerámos pela primeira vez dentro do avião. Nem quando fizemos amor lá no Songo, ou aqui no Hotel Zambeze." Passeou a vista pelo gabinete e um brilho provocador cintilou-lhe no olhar azul. "Ou daquela vez em que fizemos desta salinha o nosso ninho."

"E então?"

A voz dela amaciou ainda mais; tornou-se um torrão de açúcar, suave e sedutora.

"E então estava pensando que poderíamos transar." Pestanejou, insinuante. "Agora. Estava querendo levar você para o hotel, mas acho que não vou aguentar nem mais um minutinho."

Indicou a porta do gabinete. "Não quer experimentar no bar? Nunca fizemos ali dentro e com o fresquinho do ar condicionado até que deve ser bem gostoso..."

A sugestão ficou a pairar, como se coubesse agora a José fazer a sua parte. O médico imobilizou o olhar fatigado no papel que dactilografara; após a pausa de uma respiração, e como se enfim articulasse o que havia muito congeminava em silêncio, abanou a cabeça numa recusa enfática.

"Não", exclamou. "Acabou."

A palavra escolhida tinha uma entoação final que alarmou Nicole.

"Acabou o quê?"

"Nós. Isto. Acabou, não quero mais."

"Você está louco?"

"Eu estava louco", rectificou José. "Mas deixei de estar. Já não quero mais isto, esta vida de duplicidade, de segredos, de esquemas às escondidas. Não quero continuar a ter vergonha de encarar a minha mulher quando chego a casa, nem andar com este sentimento de culpa que me persegue, nem estar sempre com medo de que as pessoas à minha volta se apercebam de alguma coisa." Voltou a abanar a cabeça. "Não quero mais isto. Chega!"

A médica rodesiana aproximou-se dele e pousou-lhe as mãos no cabelo.

"Que é isso, meu bem? Tenha calma, não esquente assim."

"Eu estou calmo."

Ela fitou-o nos olhos, como se medisse a determinação que via nele, e percebeu que teria de jogar forte. Molhou os lábios com a ponta da língua, ciente de que havia coisas a que nenhum homem resistiria, e inclinou a cabeça. Com um movimento rápido, caiu-lhe sobre a boca e afundou-se num beijo molhado. José tentou lutar, mas sentiu a língua invadir-lhe a boca e desistiu nesse instante, vencido por aqueles lábios ardentes, rendendo-se na convicção de que o fazia apenas por um breve momento. Deixou-se transportar naquele embalo doce, como se concedesse uma trégua aos sentidos; decidira que seria o derradeiro beijo e porque não haveria de o fruir?

Quando o beijo terminou e os lábios se apartaram apercebeu- se de um movimento inesperado na porta e olhou naquela direcção. Com um susto, o coração a saltar num baque de horror e um doloroso aperto no estômago, reconheceu o rosto que o fitava com incredulidade.

Era Mimicas. XLII

Foi apenas duas semanas depois que Diogo Meireles conseguiu lugar na coluna de reabastecimento que partiu para Tete. Apesar de se ter voluntariado para aquela missão, fez toda a viagem em sobressalto e dividido por sentimentos ambivalentes. Sabia que a viagem era perigosa; os camaradas mostravam-se nervosos e contavam histórias de ataques à coluna. A verdade é que a emboscada que sofrera quinze dias antes naquele mesmo percurso fazia prova disso.

O outro lado da moeda era a possibilidade de abandonar, mesmo por apenas um dia, aquele buraco fedorento em que se transformara o Chioco e ir à cidade desanuviar e ver coisas diferentes.

Mas o mais importante, o que de facto o levara a candidatar-se a integrar a coluna, foi a atracção pela mais bela das jóias que Tete tinha para oferecer ao mundo.

Sheila.

Pensara nela ao longo desses quinze dias e escrevera-lhe várias cartas que o correio da semana anterior havia levado para Tete e algumas outras que não tivera oportunidade de lhe mandar por não ter havido um novo correio. Ou melhor, o correio da semana era a coluna que ele agora integrava e as cartas levava-as consigo. Pôs a mão no bolso e sentiu-as. Sabia que eram uma arma para chegar ao coração da rapariga e tinha a certeza, ou pelo menos esperava, que as primeiras já tivessem surtido o seu efeito.

O que não sabia é se Sheila iria comparecer ao encontro. Nem aliás possuía a garantia de que ela tivesse sequer consciência de que havia encontro. O facto de o correio ser semanal, existindo apenas quando a coluna ia e vinha a Tete. constituía realmente um grande contratempo na planificação da Operação Sedução. Como fazer chegar mensagens urgentes à rapariga se só lhe podia remeter cartas de sete em sete dias?

Como muitas vezes sucede nas situações de emergência, a imaginação tem o condão de contornar os obstáculos da realidade e isso mais uma vez acontecera. Dado que não tinha modo de fazer chegar a Sheila uma carta a avisar que seguiria na coluna seguinte, uma vez que essa carta só seria transportada para Tete na própria coluna que o levaria, teve de aguçar o engenho. Tal como nas revistas de Walt Disney, em que uma lâmpada se acendia na cabeça do Professor Pardal sempre que lhe ocorria a solução para um problema, a ideia aparecera-lhe na véspera num desses momentos luminosos.

Sentado no banco corrido da Berliet, Diogo observava o mato com os olhos mas a cabeça revivia aquele momento de genialidade. Estava à noite com os camaradas na palhota dos furriéis a jogar à sueca e a escutar a rádio rodesiana quando o olhar se fixara no aparelho de onde jorrava a voz de Jim Morrison a cantar Riders on the Storni com solenidade absurda. O gajo morrera no ano anterior, mas, caraças!, tinha cá um vozeirão! A solução, percebera Diogo naquele momento de inspiração em que escutava os Doors, estava no rádio. Saltou da cadeira como se tivesse sido impulsionado por uma mola e, apesar dos protestos dos camaradas, saiu a correr e só parou na tenda onde se encontrava instalado o posto de transmissão.

O posto era manejado pelo furriel Bimba, o engenhocas da companhia, que estranhou o pedido mas não ergueu obstáculos. Tal como lhe havia sido solicitado, contactou o Aero-Clube de Tete e transmitiu uma mensagem destinada ao doutor José Branco, informando-o de que o furriel Diogo Meireles iria no dia seguinte à cidade e precisava de uma consulta urgente com a enfermeira Sheila.

Diogo não explicou a Bimba, nem tão-pouco o fez na mensagem, por que motivo a consulta tinha obrigatoriamente de ser com aquela enfermeira. Bimba presumiu que ela teria qualificações especiais para o problema específico que afligia o camarada, o que de certo modo até era verdade.

Quanto ao tio Zé, Diogo não tinha modo de adivinhar o que presumiria ele, mas presumiu que o tio presumisse a verdade e nem isso o deteve.

Uma cotovelada no braço despertou Diogo, esfumando a memória do sucedido na véspera e trazendo-o à realidade da Berliet. O camarada sentado ao lado, autor da cotovelada, apontou para o horizonte e sorriu com satisfação. O furriel voltou o olhar naquela direcção e vislumbrou, como uma mancha de crayon amarelo raspada sobre uma tela azul, uma distante nuvem de poeira a pairar sobre o mato.

"Tete."

A freira que o recebeu no hospital, uma espanhola baixinha que se apresentou como irmã Lúcia, abanou a cabeça quando a inquiriu sobre Sheila ou o tio.

"A chica e o doutor Branco no están", anunciou. "Foram terça-feira dar a vuelta do Serviço Médico Aéreo."

Diogo fez um esgar de desespero, receando ter efectuado a viagem em vão. Teria o tio recebido a mensagem que enviara pelo rádio? Provavelmente já havia partido quando Bimba contactou o Aero-Clube.

"Quando voltam?"

"Hoje é sexta, portanto regressam esta tarde", disse a freira. "Se não houver novidad."

A informação animou-o; afinal nem tudo estava perdido. Despediu-se da freira e foi passear por Tete. Almoçou no Restaurante Central, passou pelo Christus Luscos, onde adquiriu alguns produtos etiquetados Só para as Forças Armadas, e arranjou boleia até ao Aero-Clube.

Logo que chegou, deslocou-se ao posto de controlo para se informar da hora prevista para o regresso do Serviço Médico Aéreo. Pediu que o alertassem quando o avião aterrasse e foi-se instalar numa espreguiçadeira junto à piscina onde decorria uma aula de natação para crianças.

Mandou vir uma cerveja, mas ocorreu-lhe que poderia ficar com um hálito menos agradável para Sheila e rectificou o pedido, corrigindo-o para uma bebida mais exótica.

"Uma Coca-Cola, por favor."

Ouvira falar muito destes refrigerantes americanos que não se vendiam na Metrópole, mas que pelos vistos eram abundantes em Moçambique. A Coca-Cola veio e, sempre com espírito de experimentação, passou a seguir para uma Pepsi Cola e depois para uma Seven Up e uma Fanta, refrigerantes com sonoridades anglo-saxónicas e um apelo estrangeirado que lhe agradavam.

Experimentou todas estas novidades com lentidão tranquila, saboreando cada trago e arrotando todas as borbulhas de gás. Deixou assim rolar a tarde, estendido na espreguiçadeira e a observar com olhar distraído a aula de natação.

Sentia-se estranhamente integrado numa humanidade mais vasta, um mundo cujas fronteiras não se limitavam ao incipiente Sumol à venda no Porto e em Lisboa e se abriam a outras novidades gaseificadas. Deu consigo a reflectir sobre a inesperada hipótese de as colónias serem afinal mais avançadas do que a própria Metrópole. Talvez a ideia parecesse absurda a um espírito menos atento, considerou, mas olhando em redor, para o ambiente ameno do Aero-Clube de Tete, o calor do ar temperado pela frescura da piscina e da garrafa gelada de Fanta, não podia ignorar que a vida ali, apesar de toldada pelas circunstâncias de guerra, se revelava bem mais encantadora do que a da fria Metrópole, onde o espaço era acanhado e as ideias curtas.

"O avião aterrou."

O anúncio, comunicado de chofre pelo empregado do bar, desfez-lhe o raciocínio com a mesma brusquidão com que o despertar dilui um sonho. Diogo ergueu-se de um salto da espreguiçadeira, atirou dez escudos para a mesa e abandonou o complexo da piscina, dirigindo-se apressadamente para a pista do Aero-Clube.

A tarde ia já avançada e sobre a pista de terra batida pairava ainda a nuvem de poeira levantada pela recente aterragem. Um Piper Cherokee branco com uma faixa azul e uma enorme cruz vermelha encontrava-se parqueado junto à casinha do controlo aéreo e várias pessoas afadigavam-se em redor do avião e de um jipe Austin verde estacionado ao lado, embrenhadas numa azáfama sussurrada.

Distinguiu no meio daquele formigar de gente, quase como se um foco de luz incidisse na figura central de uma peça de teatro, a balalaica e as calças brancas do tio.

"Por aqui?", admirou-se José Branco quando o viu.

"Não foi avisado?"

Diogo fez a pergunta com um sorriso, mas reparou que uma sombra obscurecia o olhar do tio, a névoa de uma preocupação que sem sucesso procurava esconder. Talvez incomodado com a expressão perscrutadora do sobrinho, o médico apressou-se a tirar do bolso das calças um pequeno sobrescrito dobrado em várias partes.

"Entregaram-me agora uma mensagem tua, mas confesso que ainda não a li", disse José. "Passa-se alguma coisa?"

"Não, não é nada de especial", tranquilizou-o Diogo. "Era só eu a avisar que vinha cá hoje."

Olhou em redor. "A Sheila? Ela não veio consigo?"

O tio voltou-se para trás e apontou para uma morena de bata que ajudava um aldeão doente a sair do Piper Cherokee.

"Está ali", exclamou. "Porquê?"

Diogo atirou um sorriso na direcção do tio antes de mostrar o ramo de flores que trazia escondido atrás das costas.

"é que ela vai jantar comigo e ainda não sabe."

O empregado do Carlettis revoluteava entre as mesas como um bailarino, executando hábeis passos de dança numa complicada coreografia; eram redemoinhos para evitar colisões com os fregueses que enxameavam o restaurante. Vinha banhado de transpiração, afinal havia só dois empregados para tanta gente, e rodopiou a bandeja pelo ar numa manobra quase acrobática antes de, com um derradeiro floreado, a pousar sobre a mesa.

"Uns camarõezinhos fritos para os senhores, não é verdade?", disse, assentando no centro da mesa a travessa de camarões, o pão e as duas bebidas, um copo de cerveja e uma Fanta. "Mais alguma coisa?"

O cliente fez sinal de que estava tudo bem e o empregado mergulhou na multidão e volatilizou-se.

"Caramba!", exclamou Diogo com os olhos postos na travessa. "Nunca vi camarões deste tamanho. São gigantes ou quê?"

O rosto de Sheila abriu-se numa expressão de admiração.

"Estás a brincar?", surpreendeu-se, respeitando a combinação de doravante se tratarem sempre por tu. "Nunca comeste camarões aqui em Moçambique?"

"Só cá estou há um mês e meio", esclareceu ele. "é a primeira vez que provo camarões desde que cheguei. No Chioco não há nada disto, como deves calcular." Pegou num camarão tão grande que lhe cobria toda a palma da mão. "Porquê? Não me digas que este tamanho é normal!..."

A rapariga exibiu o seu sorriso maravilhoso.

"Claro que é normal! Isto são camarões de Moçambique, Diogo!" Pegou também num e retirou-lhe a casca alaranjada. "Prova! São uma maravilha, vais ver."

O soldado seguiu-lhe o exemplo e trincou o camarão que retirara da travessa.

"Hmm... é realmente bom. Parece um doce!"

Sheila fez um gesto com a cabeça, a indicar o restaurante.

"Os petiscos aqui do Carlettis têm muita fama em Tete", revelou. Pousou os olhos na cerveja. "E

dizem os entendidos que a cerveja de cá é a melhor da cidade..."

Diogo já a havia bebericado, mas deu outro gole para a saborear de novo.

"E boa é", confirmou. Estendeu-lhe o copo. "Queres privar?"

"Ah, não!", disse ela. "Não bebo cerveja. Aliás, não bebo álcool nenhum."

O rapaz sorriu com malícia.

"Porquê? Tens medo de apanhar uma piela?"

"Não é isso. Não toco em álcool por motivos religiosos."

A explicação arrancou um olhar surpreendido do militar.

"Quais motivos religiosos? Que eu saiba Jesus bebia vinho..."

Sheila colou os dedos delgados à garrafa de Fanta, sentindo a frescura da garrafa de laranjada gaseificada.

"Sou maometana."

A rapariga fez a declaração como se ela explicasse tudo, mas para sua surpresa o seu interlocutor não pareceu esclarecido.

"E então?"

"Diogo... os maometanos não bebem álcool!..."

O rapaz arregalou os olhos.

"Ai não?! Porquê?"

A pergunta de Diogo desencadeou em Sheila uma gargalhada; era assombrosa a ignorância dos metropolitanos em relação à religião que ela professava.

"Porque o Profeta assim mandou", esclareceu. "Eu até nem sou muito zelosa no cumprimento dos nossos preceitos, mas pelo menos isso respeito."

O rapaz perscrutou-lhe o rosto devagar, como se a descobrisse a uma nova luz.

"Pois é, ouvi dizer que há maningue maometanos aqui em Moçambique..."


"Então não há?", riu-se ela, divertida por lhe captar um primeiro maningue, sinal de que Diogo se aculturava depressa.

"Uns vinte por cento da população de Moçambique são maometanos, Diogo. E olha: somos grandes patriotas portugueses, sabias? A guerrilha não consegue entrar em Nampula porque a população dominante da província são os Macuas, uma etnia islamizada. Os Macuas são os mais fiéis aliados dos brancos e não se deixam influenciar pelos turras."

"Ah, pois! Os Macuas!", exclamou Diogo, familiarizado com a etnia devido à sua importância no quadro militar. "O in invadiu Cabo Delgado e o Niassa, mas não consegue descer para o resto da província por causa dos Macuas. São maometanos?"

"Se fores a Nampula vês mesquitas em toda a parte..."

"Ai sim? E por que motivo vocês afiam os dentes? E também um costume maometano?"

"Que confusão!", exclamou ela, revirando os olhos de exasperação. "Em primeiro lugar, o que é isso de vocês? Quem é vocês?"

"Bem... vocês, os macuas maometanos."

"Eu não sou macua! Nasci aqui em Tete e tenho antepassados indianos, brancos e acheuas. A maior parte dos macuas são maometanos, mas nem todos os maometanos de Moçambique são macuas, entendes? Depois, quem afia os dentes não são macuas nem isso é prática maometana."

Arreganhou os beiços e exibiu uma fileira perfeita de dentes brancos. "Vês? Não estão afiados, pois não? Para tua informação, quem afia os dentes são os Macondes, que são animistas e cristãos e aliaram-se aos turras em Cabo Delgado."

"Ah, tu não és macua!..."

Sheila riu-se com a ideia.

"Claro que não, já te disse. Mas sou maometana."

O soldado mostrou a Sheila o seu melhor sorriso.

"Então está tudo explicado!", exclamou. "Se és maometana, tens de ser boa rapariga!" Engoliu mais um camarão e fez uma careta, como se tivesse acabado de lhe ocorrer algo. "Olha lá, não são os maometanos que podem casar com várias mulheres ao mesmo tempo?"

A pergunta provocou um ligeiro franzir do sobrolho da rapariga, desconfiada do que aí vinha.

"Sim..."

"Quer dizer que, se eu casar contigo, poderei também casar com outras mulheres? Não te importavas?"

Sheila ergueu a mão para o travar.

"Calma!", exclamou. "Isso não é assim! Em primeiro lugar, já te expliquei que, sendo maometana, não sou zelosa no cumprimento dos nossos preceitos. Portanto, comigo não há haréns para ninguém! Em segundo lugar, aqui em Moçambique vigora a lei portuguesa. Que eu saiba, o casamento com duas ou mais mulheres ao mesmo tempo chama-se poligamia e é ilegal. Por isso não te ponhas com ideias, ouviste?"

Diogo recostou-se na cadeira e trincou um dos derradeiros camarões que restavam na travessa.

Na face bailava-lhe um sorriso tão malicioso que deixou a rapariga inquieta. O que raio havia ela dito que lhe pudesse ter dado tanta satisfação? Aguardou uns momentos, esperando que ele se explicasse, mas como nada dizia e mantinha aquele esgar estupidamente irónico, a rapariga não se conteve.

"Olha lá, porque estás com essa cara?"

O furriel fez um ar de admiração inocente, o sorriso transformado já em riso.

"Eu? Qual cara? Não estou com cara nenhuma!..."

Sheila apontou-lhe para a face.


"Essa aí!... Esse risinho maningue parvo. Em que estás tu a pensar?"

O riso de Diogo tornou-se de novo sorriso.

"No que tu disseste."

A rapariga passou mentalmente em revista as palavras que havia proferido momentos antes, tentando perceber aquela observação; por mais que se esforçasse, contudo, nada de anormal descortinou no que tinha dito. Então porque sorria ele?

"Anda lá", implorou. "O que disse eu que te pudesse pôr com essa cara de... de...?"

"Não foi bem o que disseste", murmurou ele com uma expressão enigmática. "Mas o que não disseste."

A observação deixou Sheila intrigada. Esperou que Diogo concretizasse a ideia, mas o militar voltou a fechar-se no seu sorriso.

"Está bem", impacientou-se Sheila. "O que foi que eu não disse?"

O rapaz pressentiu-lhe o desassossego e percebeu que teria de abrir o jogo. Para ganhar tempo, e porque a tarefa requeria uma boa dose de atrevimento, pegou no copo e engoliu de uma assentada o que lhe restava da cerveja. Depois pousou o copo vazio, lambeu a espuma que se lhe colara aos lábios e fitou-a com uma expressão séria e inescrutável.

"Quando te falei no harém disseste que isso não aceitavas", lembrou ele. "O que não disseste é que não te casavas comigo." XLIII Como Sheila havia saído do Aero-Clube na companhia de Diogo, José Branco fez o caminho para o hospital sozinho no banco traseiro do jipe. Luís seguia ao volante e tagarelava sem cessar com o enfermeiro Mendonça, ambos em voz baixa, deixando o médico lá atrás entregue aos seus pensamentos.

A cidade de Tete, poeirenta e adormecida na obscuridade azul-petróleo do início da noite, desfilava em silêncio diante dos olhos do médico-aviador. José observava as casas, as árvores, os postes de iluminação, as lojas, os transeuntes, as bicicletas e os automóveis, mas apenas registava o problema que havia uma semana lhe ocupava a mente, como se um espírito tivesse tomado conta dele e não houvesse forma de o exorcizar. O problema era Mímicas.

Desde que a mulher o apanhara no gabinete a beijar Nicole a vida mudara. E para pior. Nesse fim-de-semana Mímicas não lhe dirigira uma palavra que fosse. Permanecera num estado de mutismo absoluto. José tentou falar-lhe, procurou explicar-lhe a situação, esforçou-se por lhe mostrar que era a ela que amava, que apesar do que vira ele havia terminado o relacionamento com a rodesiana, mas a mulher ignorou-o por completo. Afastou-se dele e manteve-se longos períodos encerrada no quarto.

Era nesse pé que se encontrava a situação quando José teve de partir na madrugada de terça-feira para mais um périplo aéreo pelo distrito. Andara de terriola em terriola a tratar de doentes, mas o que lhe ocupava em permanência a mente era Mimicas. E certo que os dias mais difíceis tinham sido os primeiros, quando o cisma que se dera no casal estava mais fresco e parecia absolutamente irreversível, ensombrando o futuro da relação.

Com o passar dos dias, todavia, foi encarando as coisas de outra perspectiva e a visão do problema tornou-se menos pessimista. Pensou que provavelmente tinha sido melhor ter-se afastado durante aquela semana. A pausa conceder-lhes-ia espaço, daria perspectiva às coisas e permitiria suavizar a dor. Não se dizia que o tempo tudo cura?


"Estamos a chegar, doutor", avisou Luís. "Vamos primeiro ao hospital ou prefere que o deixe já em casa?"

Perdido nas suas deambulações, o médico foi apanhado de surpresa com a rapidez com que haviam atingido o topo da colina e hesitou, indeciso quanto ao que fazer.

Em circunstâncias normais iria primeiro ao hospital falar com o doutor Feitor e a irmã Lúcia para tomar conhecimento de tudo o que acontecera na sua ausência e depois iria visitar as enfermarias e despachar a burocracia acumulada. Mas aquelas circunstâncias não eram normais, como de resto, e pelos vistos, até o próprio motorista estava ciente.

"Leva-me a casa."

O médico-aviador havia passado quatro dias ausente e sabia que não aguentaria nem mais um minuto. Tinha uma necessidade premente, absoluta, inadiável, de se reconciliar com a mulher. O

momento era enfim chegado.

As folhas dos arbustos na berma da colina ondulavam ao sabor do bafo quente da brisa e a poeira rodopiava na estrada como um peão incorpóreo. Lá em baixo cintilavam as luzes ténues da cidade, mas a casa estava mergulhada na sombra. Parecia um vulto adormecido na noite.

Logo que Luís e Mendonça o deixaram, José aproximou-se da entrada e apercebeu-se de que uma claridade frágil despontava como um fio de luz debaixo da porta. Meteu a chave na fechadura e entrou em casa.

"Mímicas", chamou, como habitualmente quando regressava do Serviço Médico Aéreo.

"Cheguei!"

Havia um candeeiro aceso no canto da sala, mas de resto não registou sinais de vida. O recém-chegado percorreu a casa num estado de ansiedade crescente; espreitou os quartos, o escritório e a cozinha, mas não viu vivalma. Sentou-se à mesa da sala de jantar e tentou perceber onde estaria a mulher. Agarrou-se ao telefone e ligou para as amigas dela, mas Mímicas não se encontrava com nenhuma. Em desespero de causa telefonou para diversos estabelecimentos públicos onde ela poderia estar, incluindo o Café Zambe, o Bar Copacabana e até o centro comercial, sempre sem a conseguir localizar.

Foi a irmã Lúcia quem lhe deu a melhor sugestão.

"Não vi a sua senora toda a semana, doutor", disse ela do outro lado da linha. " Pero bablou com o Ernesto?"

José bateu com a palma da mão na testa; como pudera esquecer-se de algo tão elementar?

"Tem razão. Ele deve saber."

O anexo onde Ernesto vivia com a família era uma fila de três compartimentos alinhados no quintal, entre a garagem e a casa. Quando saiu para a varanda traseira, José deparou-se de imediato com o bailar nervoso das luzes dos candeeiros de petróleo e escutou o murmúrio tranquilo das conversas em nhungué. Havia mantas estendidas numa rampa ao lado do anexo; era ali, ao ar livre, que a família do empregado dormia.

"Ernesto?!"

Fez-se um súbito silêncio no quintal.

"Sim, doutor?"

"Onde está a senhora?"

O empregado não respondeu de pronto. O médico vislumbrou um movimento na sombra e percebeu que era o vulto de Ernesto a aproximar-se da varanda interior, as feições e os contornos do corpo pouco nítidos à contraluz dos candeeiros.

"Ela saiu."


"Sabes para onde foi?"

O empregado abanou a cabeça.

"Saiu na quarta-feira."

A informação atingiu José ao retardador. Quarta-feira? Quarta-feira tinha sido dois dias antes.

"E não voltou?"

"Não senhor", murmurou Ernesto lugubremente. "Saiu com mala."

A informação deixou José embasbacado. Esta novidade tornava tudo bem mais grave.

"Não... não disse para onde ia?"

"Não senhor."

O médico teve de se apoiar ao ferro da varanda, a mente mergulhada numa corrida quase febril para identificar possíveis destinos. Teria ido para Lourenço Marques? Regressara à Metrópole?

Voltara para Cabo Verde? A lei que impedia as mulheres de viajarem sozinhas sem a autorização dos maridos havia sido revogada três anos antes, pelo que as possibilidades eram infinitas. Não conseguiria determinar o destino dela com meras conjecturas.

Deu meia volta, cabisbaixo, e acenou em despedida.

"Obrigado, Ernesto. Boa noite."

O empregado levou um longo segundo a responder.

"Eu ouvi a senhora falar ao telefone."

José estacou.

"Com quem?"

"Ligou para a Cotur e pediu um bilhete de avião."

"Ai sim? Para onde?"

O vulto de Ernesto passou a mão pela cabeça, num gesto de embaraço.

"Ela falou maningue baixo e não consegui ouvir", disse. "Mas depois fez outro telefonema. Esse eu entendi." "Para quem?" "Para o doutor Rouco."

O médico endireitou o corpo, subitamente reconfortado por perceber enfim para onde Mimicas fora. A mulher estava naXLIV

O Land Rover enlameado passou pela avenida com fragor, levantando uma nuvem de poeira que invadiu o passeio. Diogo viu-se obrigado a voltar costas à nuvem e a encostar-se a Sheila, de modo a protegê-la do manto denso de sujidade. Ela percebeu a intenção e anichou-se-lhe ao peito, abrigando o rosto do pó.

O militar sentiu-lhe o cabelo negro afagar-lhe a face; cheirava a eucalipto. Envolveu-a nos braços com um gesto protector, defendendo-a do véu poeirento que adejava em redor, as partículas de pó alaranjado a reluzirem à luz amarelada do candeeiro. O corpo de Sheila estreitava-se em linhas delgadas, a sua pele era suave e aveludada ao toque das mãos, e senti-la assim vulnerável despertou o desejo em Diogo.

A luz do candeeiro brilhava intermitentemente, a lâmpada a pestanejar sob o efeito dos insectos que a rodeavam, e o casalinho deu três passos hesitantes, atravessando a poeira e mergulhando na penumbra que se derramava aos seus pés. O manto de pó desvanecia-se já quando Sheila se atreveu a arrebitar a cabeça para respirar ar fresco. Foi a vez de ser ela a cheirar o Old Spice com que o homem que a protegia da poeira se havia regado no pescoço.Quase por acidente, mas sabendo que tudo era inevitável, trancaram o olhar um no outro. Sentindo o corpo adquirir vontade própria, o furriel deixou a face descair devagar até a boca se colar à bochecha da rapariga; era quente e incrivelmente macia. Deu um beijo húmido naquela superfície de seda cálida e começou a deslizar lentamente pela face, quase milímetro a milímetro, até a boca se colar aos lábios escaldantes e entreabertos de Sheila.

O primeiro beijo.

A boca da rapariga era ardente e doce, acoitando-lhe a língua como o frasco de mel acolhe o dedo guloso. O corpo de fêmea, enroscado em Diogo, agitou-se num frémito lascivo e o rapaz deu pelo ventre dela a embater no seu, como um forcado a provocar a besta. Tirando partido da invisibilidade que a sombra lhes proporcionava, o militar desceu a mão direita ao longo das costas palpitantes de Sheila e apertou-lhe uma nádega com volúpia. A rapariga ronronou, agradada.

Encorajado por esta reacção, e sem descolar a boca daqueles lábios sequiosos, meteu-lhe a mão esquerda pelo decote até lhe sentir o veludo macio do seio e apertá-lo como se a quisesse ordenhar.

Um novo gemido. Desceu ainda mais a mão que lhe apalpava a nádega e enfiou-a pela abertura das saias, subindo pelas pernas até lhe sentir o hálito abrasado entre as coxas. O dedo do meio adquiriu vida própria e contornou-lhe o rendilhado das calcinhas, mergulhando com atrevimento na humidade incandescente.

"Não!", disse ela, sacudindo o corpo para lhe afastar o braço. "Isso não!"

Diogo abriu os olhos, inebriado. A digressão pelo corpo de Sheila deixou-o atordoado de desejo; se havia conseguido ir até tão longe, como não levar a viagem até ao fim? Parar nesse momento era como travar um comboio que galgava a pleno vapor pela planície; parecia-lhe impossível, doloroso, impensável. Precisava de ir até ao termo da linha, custasse o que custasse.

"Oh!", protestou. "Porquê?"

"Porque não!", insistiu Sheila com convicção inabalável. "Estamos no meio da rua, Diogo!"

O rapaz espreitou em redor, como se só então tomasse consciência do local onde se achavam. É

verdade que a rua se apresentava quase deserta; viam-se algumas pessoas lá ao fundo e era tudo.

Além disso, encontravam-se encostados ao tronco de uma mangueira e protegidos pelo véu sombrio da noite. Mas ela tinha razão; estavam na rua e ali não se faziam certas coisas. Como aquelas.

"Onde podemos ir?", perguntou ele, ofegante de lascívia.

Sheila voltou a sacudir o corpo, libertando-se enfim do abraço.

"Vamos comer um aice crime."

"Ai se há crime?", admirou-se ele, sem perceber. "Vai haver um crime?"

"Não, tonto", riu-se a rapariga. "Um aice crime. E como chamamos aqui aos sorvetes. Ao lado do talho do Sousa existe uma loja que vende aice crimes italianos. São uma delícia!"

"Que raio de nome vocês arranjaram!", resmungou o furriel. "Mas, diz-me, para que quero eu os gelados? Tu és a melhor sobremesa que existe em Tete!..."

Sheila empurrou-o, fingindo-se ofendida.

"Ora! Por quem me tomas tu?"

"Por um aice crime."

Os gelados italianos eram do melhor que Diogo já havia provado; nunca tinha saboreado na Metrópole sorvetes assim. Escolheu um cone com uma bola de chocolate e ela optou por um de morango, e sentaram-se ambos no passeio diante do jardim público a lamber aquelas delícias frias.

Mantiveram-se silenciosos alguns instantes. Os sorvetes eram de facto saborosos, mas o soldado não tinha a cabeça ali. Apesar de ter readquirido perfeito controlo de si mesmo, sentia o corpo ainda sob o efeito embriagador dos químicos que havia libertado apenas meia hora antes e com a sensação de ter interrompido um processo que ainda lhe decorria nas veias.

"Tenho de ir para casa", observou ela com a expressão de quem cumpre um dever, obviamente sem vontade nenhuma de partir. "O chato é que já é noite e a minha ginga não tem farol."

"Moras longe?"

"Não muito, mas a pé ainda é uma horita."

"Eu acompanho-te."

"A pé?", riu-se ela. "Uma hora para lá e uma hora para cá? Nem penses!"

Diogo ergueu-se de pronto e estendeu-lhe a mão, convidando-a a levantar-se.

"Anda daí!"

Ela ergueu o olhar, hesitando em pôr-se em pé. "Já?"

"Tu viste que horas são?", perguntou o namorado, exibindo- lhe o relógio. "Se vou caminhar duas horas é melhor sairmos agora. Tenho de me deitar cedo porque a coluna sai pelas cinco da manhã para o Chioco e eu ainda quero dormir algumas horas."

Sheila estendeu-lhe a mão e ele puxou-a, ajudando-a a levantar-se. Ela ainda considerou a possibilidade de ir buscar a bicicleta, mas concluiu que mais valia deixá-la guardada no posto do calhambeque e ir levantá-la no dia seguinte, quando viesse do hospital.

Percorreram o centro de Tete lado a lado, a saborear o que restava dos gelados, e enfiaram por uma estrada de terra batida em direcção ao subúrbio onde Sheila vivia. Uma multidão animava a estrada naquela noite quente, com mulheres a passarem com bacias de água equilibradas na cabeça e crianças a brincarem com carrinhos engenhosamente construídos com paus e latas. O ar enchia-se de gargalhadas e de conversas e de música; os transistores animavam-se com ritmos de instrumentos africanos, como o caligo e a mbira, enchendo a noite de alegre musicalidade. Sheila ensaiou até uns passos de dança com uma graciosidade que deliciou o companheiro, bem mais desengonçado naqueles movimentos.

Depois meteram por um caminho que saía desta estrada movimentada e deixaram toda aquela agitação para trás. O trilho era estreito e, após passarem por umas palhotas, embocaram num troço onde não se vislumbrava vivalma. A sombra reacendeu-lhes o desejo. Diogo deu a mão à rapariga e depois um beijo e logo se seguiu um abraço e tudo recomeçou; as línguas devoraram as bocas, as mãos exploraram os corpos, os ventres colidiram esfaimados.

Percebendo que já não conseguia parar mas que estavam num local de passagem, Diogo arrastou-a para fora do trilho e deitaram-se por trás de um arbusto, enrolando-se sofregamente até ele ficar por cima dela. Com um movimento atabalhoado o rapaz baixou as calças, mas Sheila apercebeu-se e hesitou.

"Não!", disse. "Isso não!"

O soldado sentia-se perder o controlo, mas conseguiu deter-se.

"Porquê? Não queres?"

Ela exalou um som estranho, misturado com um suspiro e gemido.

"Oh, se quero! Mas não posso! Não posso!"

"Porquê?"

"Porque... porque é cedo. Mal nos conhecemos!..."

Diogo inclinou-se sobre o rosto dela e colou os lábios aos lábios dela.

"Mas eu amo-te."

Sheila hesitou.

"Eu também....", titubeou. "Eu também... mas não podemos!... Precisamos de tempo."

Diogo lambeu-lhe os lábios frementes com um movimento inesperadamente guloso.


"Qual tempo, Sheila? Qual tempo?"

"Tempo", repetiu ela, achando óbvio o que queria dizer. "Temos de nos conhecer. Não podemos fazer tudo à primeira, não sou esse tipo de moça. Entendes?"

A rapariga rodopiou sobre si mesma, tentando libertar-se do peso dele, mas Diogo não deixou.

O soldado percebeu, porém, que ela se esforçava por controlar o ardor que já se lhe apossara do corpo e que a todo o momento poderia ser bem-sucedida e dominar o ímpeto de vez. Teria de jogar as últimas cartas, e precisava que fossem trunfos.

"Não temos tempo, meu amor."


"Que disparate! Claro que temos! Temos o tempo que quisermos."

Diogo tentou beijá-la, mas ela virou a cabeça, evitando-lhe os lábios. A janela de oportunidade fechava-se já.

"Eu sou um soldado, meu amor", murmurou, lançando o ás que tinha guardado na manga.

"Estamos em guerra e eu fui colocado num posto no meio do mato e rodeado de turras. Isso quer dizer que nem sei se amanhã estarei vivo. Entendes isso?"

"Claro que estarás!"

O rapaz manteve a cabeça sobre ela. Sheila apenas lhe pressentia o vulto recortado na sombra, mas não tinha dúvidas de que ele a fitava.

"Quantos soldados mortos ou estropiados os Alouettes que passam frente à casa do meu tio não levam diariamente para o hospital? Quantos feridos não morreram na tua enfermaria? Quantos cadáveres não cobriste já com o lençol?"

Sheila estremeceu, subitamente apavorada, e pousou-lhe a mão quente no rosto.

"Não te vai acontecer nada!"

"Como podes ter a certeza? Eu sou um soldado em zona de guerra e estou num posto isolado e rodeado de turras. Como sabes que não te apareço amanhã no primeiro Alouette que aterrar no hospital? Como sabes tu isso?"

A rapariga começou a chorar.

"Não... não quero... não te pode acontecer nada!..."

"E se acontecer?", insistiu ele, plantando firme a terrível dúvida. "Como podes tu negar-nos o amor que merecemos? Como poderás tu viver com a consciência de que nem sequer me deixaste amar-te como um homem ama uma mulher?"

"Não, não", choramingou ela, abanando a cabeça. "Não te vai acontecer nada!..."

"E se acontecer?", repetiu Diogo, a insistir na mesma ideia, como um ferreiro que malha o ferro até o metal se dobrar à sua vontade. "Estamos em guerra e não sabemos o dia de amanhã. Vamos por isso viver um momento de cada vez. Precisamos de aproveitar o que temos enquanto o temos.

Eu estou aqui agora." Acariciou-lhe o rosto molhado de lágrimas. "Ama-me como se me perdesses amanhã."


Incapaz de resistir mais um segundo que fosse, Sheila puxou-o para si, estreitando-o num abraço esfaimado, e beijou-o longamente na boca. O rapaz sentiu o corpo dela abandonar as defesas e as pernas entreabrirem-se, numa rendição que era também um convite, sinal inequívoco de que o ferro se dobrara enfim. Desfez-se das roupas que o atrapalhavam e, a tremer de desejo incontrolável, procurou-lhe a entrada, mergulhou-lhe entre as pernas e perdeu-se no

delicioso caldo de doçura incandescente. XLV

O marulhar ameno do mar foi a primeira coisa que José Branco escutou quando abandonou o Motel Estoril e percorreu a fileira de lojas ao longo do edifício ondulante. O Sol erguia- se a meia altura sobre o Índico, aquecendo o ar húmido impregnado de maresia e tornando mais alegres e vivas as múltiplas cores dos toldos que se estendiam pelo areal do outro lado da estrada. A praia parecia acenar, convidativa, atraindo os veraneantes que calcorreavam a areia em ritmo de passeio e de toalhas às costas; eram sobretudo colonos portugueses e turistas rodesianos.

Deu com o automóvel parqueado à sombra de uma acácia, com uma visão perfeita do farol do Macuti. Meteu-se no Opel e seguiu pela marginal em direcção ao Clube Náutico, a janela aberta com o braço de fora para sentir o vento tépido. Enquanto conduzia, o visitante não pôde deixar de pensar que nunca vira cidade tão descontraída e agradável como a Beira e interrogou- se momentaneamente sobre a razão de ser assim. Talvez devido à longa praia de água quente, pensou; era um bálsamo perfeito para o culminar de um dia de trabalho. Mas também tinha deconsiderar a elegância tropical dos edifícios da cidade, aqui em estilo Belle Epoque, ali em traça colonial.

Sempre achara a Beira uma urbe atraente, embora talvez menos naquelas circunstâncias penosas. José tinha um problema para resolver e não ia descansar enquanto não encontrasse solução. Virou para o bairro da Sofir, ainda na estrada que bordejava o Índico, e, após verificar os números nos portões, estacionou diante de uma casa colonial. Conhecia bem aquele tipo de construção, muito característico dos edifícios residenciais públicos em Moçambique. A casa estava dividida em dois apartamentos, um no rés-do-chão e o outro no primeiro andar, desenho que proliferava pela província. O seu destino era o primeiro andar.

Cruzou o portão e invadiu o quintal até se imobilizar numa porta rasgada na esquina da casa.

Tocou à campainha e ouviu a sineta tilintar lá em cima. Instantes volvidos, escutou passos pesados no som característico de quem desce um longo lanço de escadas. A porta abriu-se e deparou com o olhar surpreendido do seu velho amigo.

"Olá, Domingos!", saudou. "Estás bom?"

"Zé!", soltou o advogado negro, abraçando-o. "Tudo maningue naice?"

Embora se tivessem mantido em contacto por carta, era a primeira vez que se viam desde os tempos de João Belo. O médico avaliou por isso o amigo, tentado descortinar nele efeitos da passagem pela prisão; Domingos estava talvez um pouco mais velho, com alguns cabelos brancos a nascerem-lhe nas têmporas, mas a principal diferença residia no volume do corpo.

"Estás mais gordo, pá!"


"lá, são os caranguejos da Beira", retorquiu o advogado com uma gargalhada. "Desde que me desterraram neste paraíso que não quero outra coisa!"

"Que sorte!"

Foi a vez de Rouco apreciar o aspecto do amigo.

"E tu estás todo chunguila com essas grandes gadelhas", constatou. "Andas armado em Beatle ou quê?"

"Sabes que eu sou mais James Last..."

Apercebendo-se de que aquele local não era o mais indicado para conversarem, Domingos fez sinal para dentro do edifício.

"Entra, entra."

O anfitrião puxou o recém-chegado para a sombra do átrio e levou-o pelas estreitas escadas interiores até ao apartamento do primeiro andar. Fazia uma frescura agradável, com o ar em movimento graças às ventoinhas que rodavam nos tectos. O advogado pôs a tocar no gira-discos o último Paul Mauriat e foi preparar dois whiskies.

"A Mímicas não está?"

A pergunta foi feita por José no tom mais casual possível, quase como se o assunto tivesse acabado de lhe ocorrer. De costas para o visitante, Domingos misturou soda com o whisky e deitou gelo nos copos, enquanto se meneava ao ritmo da orquestra que jorrava pelo altifalante do gira-discos. Depois aproximou-se, estendeu um copo ao amigo e caiu pesadamente no seu lugar.

"A Albertina meteu uns dias de férias e foram as duas à praia", disse com ar desentendido.

"Devem aparecer daqui a pouco."

Pela expressão fugidia do amigo, José percebeu que ele conhecia a situação do casal mas optara por fingir ignorância, o que se afigurava o comportamento mais sensato. Não voltaram por isso a tocar no assunto, deixando a conversa derivar para a vida na Beira e em Tete.

"Olha que Portugal está a perder mão na situação", avisou Domingos, entretendo-se a balouçar o gelo que tinha dentro do copo. "Aqui o nosso amigo Jardim prepara-se para decretar a independência de Moçambique."

"Qual Jardim?", admirou-se o médico, que nunca ouvira falar em nenhum dirigente da guerrilha com esse nome. "Quem manda no vosso lado não é agora o Machel?"

O advogado negro soltou uma gargalhada.

"Estou a falar do Jorge Jardim, pá! O manda-chuva aqui da Beira."

José arregalou os olhos, identificando o personagem. Jorge Jardim era o maior empresário de Moçambique, uma espécie de governador não oficial da província.

"Ah, o Jardim!" Associou a figura à informação que Domingos lhe dera e esboçou uma expressão de estranheza. "Ele quer decretar a independência? Que disparate é esse?"

"é como te digo. Tenho informações seguríssimas de que o gajo fez em Lusaca um acordo com o Kaunda que prevê um governo multipartidário para Moçambique, integrando a própria Frelimo, com independência e continuação da ligação à Metrópole. O plano até era porreiro, mas o Marcello e o Machel recusaram." Inclinou-se no seu lugar, falando já quase num sussurro. "Parece que o Jardim pretende agora seguir o exemplo dos bifes da Rodésia e decretar unilateralmente a independência, instituindo um regime branco aqui em Moçambique. O gajo é amigo do Banda e põe o Malawi do lado dele. é possível que conte ainda com a ajuda da Rodésia e da África do Sul, que andam há anos a tentar meter aqui tropas porque acham que os Portugueses não estão a fazer a guerra como deve ser e têm medo de, caindo Portugal, serem eles os próximos alvos a abater."

Sorriu. "No que têm razão, diga-se de passagem..."

"A Metrópole não vai nessa conversa!..."


Domingos girou a palma da mão de um lado para o outro, indicando que não tinha a certeza de nada.

"Vamos ver", limitou-se a dizer. "De qualquer modo, o controlo da situação começa a escapar a Portugal. O Kaúlza acha que a guerra se resolve militarmente e está a dar cabo de tudo, mas, tanto quanto sei, o Marcello e o governador-geral estão descontentes com ele. O Marcello acusa-o de ter uma concepção cruel da guerra e o governador diz que o gajo quer ganhar a matar toda a gente e que as guerras subversivas não se vencem assim. Parece que a PIDE tem a mesma opinião."

O médico pareceu intrigado.

"Mas como raio sabes isso tudo?"

O amigo recostou-se no seu assento.

"Posso estar com residência fixa", disse com um sorriso, "mas não ando a dormir." Apontou-lhe o indicador. "E digo-te mais: a coisa vai aquecer em Tete."

"Mais ainda?"

O fragor distante das ondas rompeu pela janela. Domingos lançou um olhar para lá da marginal e contemplou a linha que demarcava as duas manchas azuis, como um traço riscado a crayon cerúleo numa tela colossal; era o horizonte derramado entre o azul-escuro do mar e o anil claro e profundo do céu.

"Nunca ouviste falar de Mucumbura?"

"É uma terriola perto da Rodésia", identificou José. "Parece que houve para lá uns problemas no ano passado."

Os olhos de Domingos desviaram-se do fio longínquo para o amigo.

"A Frelimo matou um régulo que ajudava os Portugueses e plantou uma mina que matou três soldados rodesianos", disse num tom distanciado. "Dias depois apareceram lá as tropas especiais e mataram mais de vinte machambeiros por terem dado comida aos guerrilheiros. A mesma coisa aconteceu meses depois em várias aldeias ao longo do rio Dack e ainda na zona do Buxo." Abanou a cabeça. "Não sei onde isto irá parar, mas se é assim que o Kaúlza quer ganhar a guerra..."

O advogado deixou de propósito a frase em suspenso e foi justamente no silêncio que se seguiu que escutaram o som de uma chave a rodar na fechadura e se voltaram para a entrada.

A porta abriu-se e Albertina entrou em casa na companhia da amiga.

Logo que viu o marido na sala a fitá-la com uma expressão

expectante, porém, Mimicas deu meia volta e abalou. XLVI

A Berliet imobilizou-se à entrada do tabuleiro da ponte sobre o rio Mazoi e o furriel Bimba foi o primeiro a saltar. Estudou a estrutura metálica à distância, avaliando os seus pontos nevrálgicos, e voltou-se para trás, fazendo um gesto para a viatura.

"Diogo", chamou. "Vens comigo?"

O camarada mantinha-se recostado no banco corrido da Berliet, os olhos sonhadores a relembrarem a experiência que vivera duas noites antes, e pareceu despertar no momento em que ouviu a voz interpelá-lo pelo nome.

"Hã?", perguntou, atarantado. "O quê? O quê?"

Deu com Bimba de olhos cravados nele, as mãos à ilharga numa pose de reprovação.

"Olha lá, estás a dormir ou quê?" Fez sinal para a ponte. "Anda daí, vamos inspeccionar os pilares!..."


Dessa vez a instrução foi compreendida. Como se fosse catapultado por uma mola, Diogo saltou do veículo, certificou-se de que a G3 se encontrava destravada e internou-se no capim, acompanhando o camarada na descida pela encosta.O rio fluía à distância, fresco e convidativo, e o gorgolejar límpido das águas ecoava pelo vale como uma torrente melódica. Diogo caminhava com os olhos a saltitarem entre o chão que pisava e o rio que o tentava, até firmar o pé num pequeno promontório e poder enfim contemplar o braço prateado de água. Passeou os olhos pelo caudal, com esperança de poder descer lá a baixo para dar uns mergulhos depois de terminar a missão; considerando o calor infernal que fazia, parecia-lhe até mais sensato fazê-lo nesse momento.

"Então? Vens?"

A voz do furriel Bimba voltou a retirá-lo da fantasia. Sacudiu a cabeça, preocupado já com a facilidade com que se distraía à mais pequena oportunidade, e aligeirou o passo no encalço do camarada. Bimba guiou-o entre os arbustos e o capim alto até se posicionarem por baixo do tabuleiro da ponte. Logo que atingiram um ponto favorável de observação, começaram a inspeccionar a estrutura.

O olhar de Diogo percorreu a parte inferior do tabuleiro e depois passou para os pilares. O

primeiro apresentava-se limpo, mas a sua atenção deteve-se num volume estranho que parecia amarrado ao segundo pilar.

"Está ali uma coisa."

Bimba seguiu-lhe a direcção do dedo.

"Onde?", quis saber. Perscrutou o pilar até localizar o objecto suspeito. "Ah, aquilo!..." Estreitou os olhos, como se assim conseguisse ver melhor. "Parece-me um ninho..."

Diogo considerou a possibilidade e estudou o volume com grande atenção. Ao cabo de alguns instantes, abanou a cabeça.

"Não é ninho nenhum", sentenciou com absoluta segurança. "São explosivos."

Os dois militares pareciam lagartixas coladas ao pilar. Diogo verificou a segurança da corda que o sustentava e fez força com a perna, colocando-se por fim ao nível do volume suspeito. Era uma caixa metálica e parecia fundida no pilar; impossível arrancá-la com os meios de que dispunha ali.

Estudou o receptáculo e apercebeu-se de que estava vedado. Uma tampa selava a caixa através de quatro pequenos parafusos atarraxados um em cada canto.

Espreitou para baixo e viu a cabeça de Bimba a balouçar a ritmo do seu arfar. O camarada esforçava-se por alcançar o ponto onde se encontravam os explosivos; era um soldado experiente, mas faltava-lhe a preparação física de Diogo para ser capaz de escalar o pilar com a mesma destreza.

"Ó Bimba", chamou Diogo. "Esta merda está selada por uns parafusos. O que faço?

Desaparafuso a tampa?"

"Não toques nisso, porra!", exclamou o camarada, fazendo uma pausa para recobrar energia.

"Aguenta um instante!..."

Bimba levou ainda um minuto a ascender à posição onde se situava a caixa suspeita. Chegou ofegante e teve de aguardar ainda alguns momentos de modo a recuperar o fôlego e as forças.

Limpou a transpiração que lhe escorria abundante pela fronte e, já mais recomposto, secou na farda as mãos suadas e começou por fim a examinar a caixa.

"Ufa!", bufou. "O que temos aqui?" Passou a mão pela tampa e inspeccionou os parafusos.

"Hmm... pois é, precisamos mesmo de desaparafusar esta gaita." Sentindo que necessitava de mais tempo para se restabelecer, desviou os olhos para o camarada. "Fazes-me isso?"

Diogo extraiu do bolso das calças um instrumento aguçado e colou-lhe a extremidade a um parafuso, desenroscando-o de imediato. Depois passou para os seguintes até conseguir soltar a tampa e expor o interior da caixa. Fez tudo com movimentos automáticos, os olhos a acompanharem os seus próprios gestos mas a atenção a deambular pelo rosto de Sheila, o jantar no Carlettis, o passeio de mãos dadas ao longo da avenida, o primeiro beijo por baixo da mangueira, nunca uma mangueira havia produzido manga mais doce do que os lábios de Sheila, o sorvete italiano saboreado no...

"Hmm... mau, mau!", murmurou Bimba como se falasse apenas consigo mesmo. "Esta é nova!..."

A observação despertou Diogo. Surpreendera-se mais uma vez a sonhar acordado, e isso, percebia, sucedera justamente num momento em que não podia de modo algum acontecer. Estava pendurado num pilar de uma ponte a desactivar um explosivo e precisava de se concentrar totalmente na tarefa.

Olhou para Bimba como se o enxergasse pela primeira vez e viu-o estudar o dispositivo no interior da caixa. O que lhe chamou a atenção, porém, foram as dúvidas que' lhe leu no olhar. Fez um esforço mental e reconstituiu de memória as palavras que ele havia pronunciado momentos antes, transformando os sons numa frase com sentido.

"O que queres dizer com isso?", alarmou-se Diogo logo que percebeu o que o outro dissera instantes antes. "Nunca viste armadilhas destas?"

Absorvido no problema, o camarada não respondeu; provavelmente nem sequer tinha escutado a pergunta. Bimba deitou a mão ao interior de um saco que trouxera a tiracolo e tirou um caderno que se pôs de imediato a folhear. Diogo baixou a cabeça de modo a ficar em posição de espreitar o título. O cabeçalho do caderno dizia Manual do Exército e assinalava, como subtítulo, Manuseamento de Explosivos.

O furriel estremeceu e endireitou-se, abalado. Bimba era o perito em minas e armadilhas do Chioco e supostamente dominava o tema de trás para a frente. Observá-lo a consultar um manual para aprender a desactivar explosivos não era, por isso, das coisas mais reconfortantes que se poderia vê-lo fazer, sobretudo quando se estava ao pé dele e junto dos explosivos nos quais ele iria mexer.

"Olha lá", retomou Diogo com crescente inquietação. "Tu sabes o que estás a fazer?"

Bimba lançou-lhe um olhar estranho e voltou de novo a atenção para o manual. Depois começou a estudar as ligações estabelecidas na caixa, comparando-as com o que via no texto.

"Ora bem, se eu tirar este fio vermelho, a coisa em princípio fica resolvida...", murmurou num diálogo consigo mesmo. Hesitou, consultando o manual e depois outra vez a caixa. "Não, não é o vermelho. E o azul." Mais uma hesitação. "Hmm... espera aí! Tiro o fio azul? E se... hmm!... Não será melhor o vermelho?"

Novas gotas de suor brotaram do topo da testa de Diogo. Ao contrário dos outros, estes pingos que lhe escorriam já pela face não eram a habitual transpiração produzida pelo calor, mas puro efeito dos nervos a serem testados. Sabia-o porque aquele suor era frio; além disso, pela mesma altura sentiu uma pontada dilacerar-lhe o estômago e percebeu que o corpo lhe exigia que saísse dali enquanto havia tempo.

"Bimba", disse, quase numa súplica. "Tens a certeza que sabes o que estás a fazer? Olha que se não tens é melhor a malta descer e mandar vir um engenheiro que perceba disto, pá!... Não vamos correr riscos estúpidos, pois não?"

Inquiriu o rosto do camarada, à espera de uma resposta, mas achou a expressão de Bimba estranha; tinha as pálpebras molhadas e o branco dos olhos parecia injectado de sangue.

"E se for o amarelo?", interrogou-se Bimba nesse instante. Espreitou o manual. "Se eu tirar o fio amarelo, será que esta merda explode? Hmm... talvez seja melhor ir mesmo para o vermelho..."


Os dedos do perito em explosivos dançavam entre os três fios, na agonia da indecisão. Num instante dava a impressão que ia puxar um, mas uma consulta ao manual convencia-o a arrancar outro até uma nova espreitadela àquelas páginas o fazer regressar à primeira hipótese ou avançar para a terceira.

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