- Chame-lhe uma diligência motivada pelo desespero. Como chefe suprema da família, pode dispor de elementos que lhe pareçam destituídos de importância.

- Terá de usar muita cautela.

- Não se preocupe com isso.

- E trate-a com amabilidade. Lembre -se de que tem uma idade avançada.

- É precisamente com isso que conto.

A entrevista realizou-se naquela tarde, no gabinete de Kate. Nick Pappas calculou que há muito ultrapassara os oitenta anos, embora mantivesse um porte aprumado e quase não deixasse transparecer a amargura que a situação decerto lhe provocava.

- A minha secretária informou-me de que deseja falar-me de um assunto de certa urgência, tenente.

- Exactamente, Mistress Blackwell. Realiza-se amanhã o inquérito relativo à morte de George Mellis e tenho motivos para supor que sua neta está envolvida no assunto.

- Não acredito - ela assumiu uma atitude repentinamente rígida.

- Agradecia que ponderasse o meu ponto de vista. Toda a investigação policial principia com a questão do móbil. George Mellis era um caçador de fortunas - Pappas notou a reacção provocada por estas palavras, mas prosseguiu: - Casou com a sua neta e viu-se de repente habilitado a desfrutar de recursos materiais avultados. Quanto a mim, excedeu-se nos maus tratos a Alexandra, que resolveu propor o

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divórcio. Ora, ele recusou e a única solução consistiu em matá-lo. - Fez uma pausa, mas Kate permaneceu silenciosa, conquanto empalidecesse um pouco.

- Comecei a procurar elementos confirmativos da minha teoria. Sabíamos que George Mellis esteve em Cedar Hill antes de desaparecer. Existem apenas duas vias de acesso a Dark Harbor: avião ou ferryboat. Segundo as diligências efectuadas no local, ele não os utilizou. Não acredito em milagres, pelo que pus de parte a possibilidade de cobrir a distância a pé, na água. A única hipótese que restava era que recorreu a uma embarcação a partir de algures ao longo da costa.

Nessa conformidade, pus-me a explorar os locais de aluguer e fui bem sucedido em Gilkey Harbor. Às quatro da tarde do dia da morte de George Mellis, uma mulher alugou uma lancha motorizada, com a indicação de que um amigo a iria buscar. Pagou em dinheiro, mas teve de assinar o talão de aluguer. O nome de Solange Dunas reveste -se de algum significado para si, Mistress Blackwell?

- Sem dúvida. Era o da perceptora das minhas netas. Regressou a França, há vários anos.

Pappas inclinou a cabeça, com uma expressão de satisfação no rosto.

- Um pouco mais longe, na costa, a mesma mulher alugou uma segunda lancha, que restituiu três horas depois, tornando a dar o nome de Solange Dunas. Mostrei em ambos os lugares uma fotografia de Alexandra e declararam -se convencidos de que correspondia à cliente em causa. Subsistia, no entanto, uma leve dúvida, em virtude de ela ser morena.

- Nesse caso, porque pensa?…

- Usou peruca.

- Não acredito que Alexandra assassinasse o marido.

- Nem eu, Mistress Blackwell. Foi a irmã, Eva. Alexandra não tinha possibilidade de praticar o crime. Investiguei-Lhe os movimentos nesse dia e verifiquei que passou a manhã e o princípio da tarde em Nova Iorque consigo, após o que voou directamente para a ilha. Não podia ter alugado as duas lanchas - Pappas inclinou-se para a frente. - Fiquei, portanto, com alguém parecido com Alexandra que deu o nome de Solange Dunas. Só podia ser Eva. Em face disso, comecei a procurar um motivo. Quando mostrei a fotografia de George

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Mellis aos inquilinos do prédio em que ela vive, apurei que a visitava com regularidade. Como se isto não bastasse, o porteiro revelou-me que, numa dessas visitas, a espancou quase até à morte. Sabia, Mistress Blackwell?

- Não - a voz de Kate convertera -se quase num murmúrio.

- Sim, foi Mellis que proporcionou o motivo a Eva: vingança. Atraiu-o às proximidades de Dark Harbor e matou-o. O álibi invocado por ela consiste em que se encontrava nesse dia em Washington. Deu uma nota de cem dóla res ao motorista do táxi que a transportou ao aeroporto, para que se lembrasse dela, e armou espalhafato por ter perdido o avião com destino a Washington. Penso que usou uma peruca preta e seguiu num avião comercial para Maine, onde alugou as lanchas. Mato u Mellis, lançou o corpo à água, ancorou o iate e rebocou a segunda lancha até ao cais de aluguer, àquela hora encerrado.

- Todos os elementos de que dispõe são aquilo a que chamam provas acessórias, salvo erro.

- Exacto - Pappas achava-se preparado para a ofensiva final. - Necessito de provas concretas para o inquérito do médico legista. Conhece a sua neta melhor do que ninguém no mundo, Mistress Blackwell. Tem de me revelar tudo o que puder que lhe pareça útil.

Kate conservou-se calada por um longo momento, como se ponderasse a situação. Por fim, articulou pausadamente:

- Creio que lhe posso fornecer informações para esse inquérito.

O coração do tenente principiou a palpitar com maior intensidade. Aventurara -se perigosamente, mas merecera a pena. A velhota escutara a voz da razão.

- Sim, Mistress Blackwell? - murmurou, contendo a respiração inconscientemente.

- No dia em que George Mellis foi assassinado, eu e minha neta Eva encontrávamo-nos em Washington, juntas.

Observando a expressão de assombro do interlocutor, Kate reflectiu: “Julgavas que te oferecia uma Blackwell para sacrifício? Querias que a imprensa celebrasse um festim com o meu nome? Não. Ocupar-me-ei de Eva à minha maneira!”

O veredicto pronunciado pelo júri do inquérito consistiu em morte provocada por agressor ou agressores desconhecidos.

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Ante a surpresa e satisfação de Alexandra, Peter Templeton encontrava-se presente no tribunal em que se realizou a sessão do inquérito.

- Vim apenas para fornecer apoio moral - explicou-lhe.

Durante o intervalo, levou-a a um pequeno restaurante sobranceiro à baía, em Licolnville, e sugeriu:

- Quando tudo isto terminar, fazia-lhe bem efectuar uma viagem, ausentar-se por uma temporada.

- Sim, Eva pediu-me que a acompanhasse - os olhos dela marejaram-se de lágrimas: - Ainda me custa a crer que George tenha morrido…

- É a maneira que a Natureza emprega para atenuar o choque, até que a dor seja suportável.

- Não faz sentido, um homem como ele. Conheceu-o razoavelmente nas sessões que tiveram. Não acha que era uma pessoa admirável?

- Sim - concedeu Templeton, em tom pausado. - Admirável.

- Quero a anulação do casamento - anunciou Eva.

- Porquê? - inquiriu Keith Webster, pestanejando de admiração.

- Deixa-te de histórias. Julgavas mesmo que ia ficar casada contigo?

- Claro. És minha mulher.

- Que procuras? O dinheiro dos Blackwell?

- Não preciso dele, querida. Ganho muito mais do que o suficiente para o nosso sustento. Posso proporcionar-te tudo o que quiseres.

- Já te disse que a única coisa que quero de ti é a anulação!

- Lamento, mas não ta posso conceder.

- Nesse caso, peço o divórcio.

- Não me parece aconselhável. No fundo, nada mudou. Como a Polícia não descobriu o assassino do teu cunhado, as investigações continuam abertas. Se nos divorciássemos, via-me obrigado… - o cirurgião interrompeu-se e ergueu as mãos num gesto de impotência.

- Falas como se eu o tivesse assassinado.

- Foi o que aconteceu.

- Como diabo sabes tu isso? - perguntou ela, com uma expressão de desdém.

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- Era a única razão que te obrigaria a casar comigo.

- Bastardo! - olhou-o com animosidade. - Como é possível que me faças isto?

- É muito simples. Amo-te.

- E eu odeio-te. Ouviste bem? Desprezo-te!

- Amo-te tanto - limitou-se ele a articular, com uma expressão pesarosa.

A viagem na companhia de Alexandra fora cancelada, pois Eva explicara à irmã que visitaria as Caraíbas, na sua lua-de-mel, na realidade uma ideia de Keith Webster.

Agora, declarou com firmeza:

- Já não vou. A simples hipótese de uma lua-de~mel contigo revolta-me.

- Se não formos, as pessoas estranham - observou ele, no habitual tom tímido. - E não convém nada que comecem a fazer perguntas embaraçosas” não achas?

Alexandra passou a almoçar com Peter Templeton uma vez por semana. Ao princípio, fazia-o porque desejava trocar impressões acerca do marido e não havia outra pessoa que o tivesse conhecido em condições de a elucidar de pormenores que lhe eram menos familiares. No entanto, transcorridos alguns meses, admitiu para consigo que apreciava profundamente a companhia do psiquiatra. Com efeito, ele irradiava um ar de segurança que lhe incutia confiança. Mostrava-se sensível às facetas do seu temperamento e invulgarmente inteligente para a distrair nos momentos mais delicados.

- Quando era interno, atendi a primeira chamada do exterior nos píncaros do Inverno - explicou, um dia. - A paciente era uma mulher idosa e frágil, atacada de tosse persistente. Antes de lhe aplicar o estetoscópio, decidi aquecê-lo um pouco, para evitar o contacto desagradável do metal frio com o peito. Assim, coloquei-o em cima do calorífero, enquanto lhe examinava a garganta e os olhos. A seguir, peguei no estetoscópio e pousei-lho no peito. Ele deu um salto da cama como se a casa estivesse a arder e quisesse alcançar a saída. A tosse desapareceu, mas foram necessárias duas semanas para que a queimadura soasse.

Alexandra soltou uma gargalhada divertida. Era a primeira vez que o fazia desde longa data.

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A lua-de-mel de Eva resultou muito mais satisfatória do que previra. Em virtude da sua pele, sensível aos raios solares, Keith Webster evitava expor-se, pelo que ela passava o dia inteiro na praia, sem a sua companhia. No entanto, nunca se achava só por muito tempo. Rodeavam-na jovens de todos os tipos, como uma mesa de banquete repleta de iguarias variadas, e Eva podia saborear um repasto substancial todos os dias. Aliás, a ideia de o marido a assediar com objectivos sexuais repugnava -lhe de tal modo que necessitava daquelas escapadas para manter o equilíbrio mental.

“Os anos começam a e xercer o seu peso” reconhecia Kate Blackwell. Eram muitos, todos excitantes e ricos de episódios espectaculares.

A Kruger-Brent, Ltd. necessitava de uma mão poderosa ao leme. Alguém com sangue dos Blackwell. “Não há ninguém para manter o facho aceso depois de mim. Tanto trabalho e sacrifícios pela companhia e, no fundo, para quê? Para que estranhos colham os frutos um dia. Raios para tudo isto! Não posso permitir que tal aconteça!”

Uma semana após o regresso da lua -de-mel, Webster anunciou em tom de desculpa:

- Vou retomar o trabalho, querida. Tenho numerosas operações atrasadas. Achas que passarás bem o dia sem mim?

- Farei o possível… - redarguiu Eva, secamente.

Ele saía de casa todas as manhãs muito antes de ela acordar, mas deixava tudo preparado para o seu pequeno-almoço. Por outro lado, abriu uma conta bancária em nome da esposa e mantinha -a abastecida com regularidade, o que permitia que Eva gastasse dinheiro sem restrições. Desde que a visse satisfeita, Webster considerava-se feliz. Eva aproveitava a oportunidade para comprar artigos dispendiosos para Rory, com o qual passava quase todas as tardes. Apetecia-lhe permanecer a seu lado o dia inteiro, mas tinha de pensar no marido. Assim, regressava a casa por volta das oito da tarde e já o encontrava na cozinha a contas com o jantar, sem que jamais lhe perguntasse donde vinha.

Durante o ano seguinte, Alexandra e Peter Templeton continuaram a encontrar-se com frequência crescente. Ele

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acompanhava-a, quando visitava o pai na clínica, e o facto contribuía para que ela sentisse a mágoa menos intensa.

Uma noite em que a foi buscar, Templeton verificou que Kate o esperava, e viu-se imediatamente confrontado com uma atitude perscrutadora.

- Com que então é médico, hem? Enterrei uma dúzia deles e ainda ando por cá.

Percebe alguma coisa de negócios?

- Pouco, Mistress Blackwell.

- Pertence a alguma corporação?

- Não.

- Raios! - fungou num gesto de desdém. - Não sabe nada. Precisa de um perito que o ensine a lidar com os impostos. Marcar-lhe-ei uma entrevista com o meu e…

- Agradeço-lhe, Mistress Blackwell, mas sinto-me bem assim.

- Meu marido também era casmurro - Kate voltou-se para Alexandra, que acabava de surgir. - Convida-o para jantar. Tenho de o trabalhar melhor, para que se convença.

Quando saíram, Templeton murmurou:

- Tua avó detesta-me!

- Pelo contrário, gosta de ti - afirmou Alexandra, rindo. - Havias de ouvir como fala às pessoas que lhe desagradam.

- Nem me atrevo a pensar como reagiria se lhe dissesse que tenciono casar contigo!

Olhou-o em silêncio com uma expressão radiosa por um momento e replicou:

- Ficávamos ambas encantadas.

Kate assistira ao desenrolar do romance de Alexandra e Peter Temple ton com particular interesse. Simpatizava com o jovem psiquiatra e acabou por decidir que seria um marido excelente para a neta. Todavia, no fundo, ela era uma calculista e agora, sentada diante de ambos junto da lareira, declarou:

- Devo confessar que fiquei totalmente surpreendida. Na verdade, sempre esperei que Alexandra casasse com um empresário capaz de assumir o comando da Kruger-Brent.

- Não se trata de uma proposta de negócios, Mistress Blackwell. Alexandra e eu queremos casar.

- Por outro lado - prosseguiu Kate, como se não tivesse sido interrompida -, é um psiquiatra, pelo que conhece

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o modo como a mente e as emoções das pessoas funcionam. Talvez dê um bom negociante. Gostava que se envolvesse na companhia. Podia…

- Não - atalhou ele, com firmeza. - Sou médico. Os negócios não me interessam.

- Não se trata de um negócio qualquer, como se lhe propusesse o trespasse de uma mercearia. Você vai entrar para a família e eu preciso de alguém que dirija…

- Lamento - o seu tom era terminante. - Não quero ter nada de comum com a Kruger-Brent. Deverá procurar outra pessoa para isso.

- E tu, que tens a dizer? - Kate virou-se para a neta, com uma expressão de curiosidade.

- Concordo com tudo o que Peter decidir.

- O mundo está cheio de ingratos! No enta nto, é possível que ainda venham a mudar de opinião. Pensam ter filhos?

- Isso é uma questão privada - esclareceu Templeton, rindo. - Palpita -me que gosta de manipular as pessoas e as situações, Mistress Blackwell, mas nós pretendemos viver as nossas vidas sem interferências, e os nossos filhos, se os houver, viverão a deles.

- Nem me passou pela cabeça que fosse de outro modo - afirmou Kate, esboçando um sorriso angelical. - Sempre impus a mim própria a regra de não interferir nas vidas dos outros.

Dois meses depois, Alexandra e Templeton regressavam da lua -de-mel. Ela encontrava-se grávida e, quando se inteirou, Kate reflectiu: “Óptimo. Há-de ser um rapaz!”

Eva, deitada na cama, contemplava Rory, que acabava de sair da casa de banho, desnudo. Tinha um corpo admirável. Ela nunca se cansava do seu contacto.

Suspeitava de que não era a única a experimentar prazer sexual com ele, mas abstinha-se de o interrogar a esse respeito, com receio de que ele se afastasse.

Rory acercou-se da cama, debruçou-se e fez deslizar o dedo em torno dos seus olhos, ao mesmo tempo que observava:

- Estão a aparecer-te algumas rugas, mas ficam-te muito bem.

Cada uma destas palavras cons tituiu uma punhalada, uma lembrança da diferença de idades entre ambos.

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Eram quase nove horas quando Eva entrou em casa e descobriu que Webster assava carne no forno.

- Olá, querida - saudou-a, ao mesmo tempo que lhe depositava um beijo na face. - Preparei um pitéu especial. Adivinha o que…

- Quero que me removas estas rugas, Keith.

- Quais rugas? - inquiriu, pestanejando.

- Estas - volveu ela, indicando a área em redor dos olhos.

- Mas são provocadas pelo riso, querida. Adoro-as.

- E eu detesto -as! - bradou.

- Podes crer que não…

- Livra-me delas! Não é esse o teu modo de vida?

- Sim, mas… - Webster emitiu um suspiro de resignação. - Está bem.

- Quando?

- Dentro de umas seis semanas. De momento tenho…

- Não sou um dos teus malfadados pacientes. Como tua mulher, devo ter primazia.

Amanhã mesmo!

- A clínica não abre aos sábados.

- Manda-a abrir!

- Acompanha-me à sala.

Fê-la sentar diante de uma luz intensa e examinou-lhe o rosto minuciosamente.

De um momento para o outro, transformara-se miraculosamente do marido tímido e subserviente num cirurgião brilhante. Talvez considerasse a operação desnecessária, mas Eva tinha uma opinião diferente. Parecia-lhe vital, pois não suportava a ideia de poder perder Rory.

- Não vejo problema algum - declarou finalmente Webster. - Tratamos disso amanhã.

- Costumo ter uma enfermeira a auxiliar-me - explicou no dia seguinte, quando se dirigiam para a clínica -, mas numa intervenção tão simples não vejo necessidade.

- Já agora, dá também um toque aqui - recomendou Eva, pousando os dedos numa pequena adiposidade no pescoço.

- Sem dúvida, querida. Vou anestesiar-te, para que não sintas o mínimo desconforto.

Uma vez na sala de operações, ela viu-o encher uma seringa hipodérmica e darlhe uma injecção com uma suavidade que quase não lhe permitiu sentir a picada.

De qualquer

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modo, não se importaria que se registasse dor, pois sujeitava-se àquilo por Rory.

Antes de adormecer, evocou o seu corpo escultural e viril, sempre disposto a satisfazer-lhe o apetite.

Quando acordou, encontrava -se deitada num quarto particular da clínica, com o marido sentado à cabeceira da cama.

- Como correu? - perguntou em voz débil.

- O melhor possível - foi a resposta, acompanhada de um sorriso.

Eva inclinou a cabeça com satisfação e voltou a adormecer.

Webster continuava presente, quando tornou a despertar, transcorridas algumas horas.

- Vamos manter as ligaduras por uns dias. Continuarás internada, para receberes assistência mais cuidada.

- Pois sim.

Examinava-a diariamente e exibia invariavelmente uma expressão de agrado devida ao que se lhe deparava.

- Perfeito.

- Quando posso espreitar?

- Lá para sexta-feira, quando tiver sarado por completo.

Ela pediu à enfermeira que instalasse uma extensão telefónica junto da cama, e a primeira chamada que efectuou foi para Rory.

- Onde diabo estás? - inquiriu ele. - Tenho uma fome danada.

- Também eu, mas este congresso de cirurgiões na Florida só termina na sexta - feira. Espero regressar no princípio da próxima semana. Tens saudades minhas?

- Não são coisas que se perguntem…

A seguir, Eva telefonou a Alexandra e escutou enfastiada as considerações desta acerca da gravidez. No entanto, afirmou com simulado entusiasmo:

- Estou ansiosa por esse momento. Sempre desejei ser tia.

Entretanto, raramente via a avó, pois estabelecera -se entre ambas uma frieza que Eva não entendia. “Há-de passar-Lhe…” acabava sempre por pensar.

Kate nunca perguntava por Keith, e Eva não a censurava por isso, pois tratava-se de um insignificante. Talvez um dia conversasse com Rory para se livrarem dele.

Afigurava-se-lhe

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incrível trair o marido quase diariamente sem que denunciasse] a mínima suspeita.

Por sorte, ele possuía talento para alguma! coisa de que ela podia beneficiar.

Na sexta-feira, Eva acordou cedo e aguardou com impaciência a visita habitual de Webster.

- É quase meio-dia - queixou-se, quando finalmente o viu surgir. - Onde diabo estiveste metido?

- Desculpa, querida, mas passei toda a manhã na sala de operações e…

- Estou-me nas tintas para isso. Tira-me as ligaduras de uma vez. Já tenho saudades de me ver ao espelho.

- Muito bem.

Sentou-se na cama e conservou-se imóvel, enquanto o marido a libertava das ligaduras, após o que a contemplou com satisfação.

- Perfeito, não haja dúvida.

- Vai buscar um espelho.

Ele apressou-se a comprazê-la, com um sorriso de orgulho. Eva ergueu-o à altura do rosto e observou a imagem com ansiedade.

No instante imediato, soltava um grito de horror.

EPÍLOGO

Kate 1982

Capítulo trigésimo sexto Kate tinha a impressão de que a roda do tempo começava a mover-se mais rapidamente, acelerando a sucessão dos dias, das semanas, dos meses e dos anos, até que se mesclavam numa confusão obscura. Tinha já oitenta e tal anos.

Oitenta e quantos? Por vezes, esquecia-se da idade exacta. Não se importava de envelhecer, mas custava-lhe encarar a perspectiva de vir a apresentar um aspecto desmazelado, pelo que consagrava particular atenção a esse pormenor. Assim, quando consultava o espelho, via uma figura de mulher irrepreensível, aprumada, altiva e indomável.

Continuava a comparecer no escritório todos os dias, mas tratava -se de um gesto simbólico, uma artimanha para afugentar a morte. Embora estivesse presente em todas as reuniões da administração, o que se passava nelas não se lhe afigurava tão claro como dantes. As pessoas que a rodeavam pareciam exprimir-se demasiado depressa. O que, porém, mais a preocupava era o facto de a mente lhe pregar partidas, de vez em quando. O passado e o presente confudiam-se constantemente. O seu mundo contraía -se, tornando-se cada vez mais pequeno.

Se existia um salva -vidas a que se agarrava, uma força motriz que a mantinha viva, era a convicção irresistível de que alguém da família teria, um dia, de assumir o comando da Kruger-Brent. Kate não estava disposta a permitir que estranhos se apoderassem daquilo que Jamie McGregor, Margaret, ela própria e David haviam construído com tanto esforço ao longo dos anos. Eva, na qual chegara a depositar todas as esperanças, convertera-se numa assassina. E num ser grotesco. Não necessitara de a castigar. Aquilo que o marido lhe fizera constituía uma punição suficiente.

No dia em que vira o seu novo e definitivo rosto no espelho, Eva tentara pôr termo à vida. Tragara todo o conteúdo de um frasco de barbitúricos, mas o marido procedera a uma imediata lavagem ao estômago e levara-a para casa, onde a mantinha sob vigilância permanente. Quando tinha de

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trabalhar no hospital ou na clínica, era substituído por enfermeiras, dia e noite.

- Deixa-me morrer - suplicava ela. - Não quero continuar a viver assim.

- Agora, pertences-me completamente - replicava ele. - Amar-te-ei sempre.

A imagem do seu semblante actual achava-se gravada indelevelmente no espírito de Eva, que conseguiu convencer Webster a dispensar as enfermeiras, pois não queria que a olhassem com repulsa mal dissimulada.

Alexandra procurava-a com insistência, mas ela negava-se a recebê-la. Por outro lado, todos os géneros encomendados eram deixados do lado de fora da porta, para que ninguém lhe visse o rosto. A única pessoa que desfrutava desse discutível privilégio era o marido, no fundo o único ente que lhe restava. Constituía o seu elo solitário com o mundo, e apavorava-a a possibilidade de a abandonar, ficando só com a sua insuportável fealdade.

Ele levantava-se todas as manhãs às cinco, a fim de seguir para o hospital ou para a clínica, e Eva antecipava-se sempre, para lhe preparar o pequeno -almoço.

À noite, ocupava -se igualmente do jantar e, se o marido se atrasava, ficava apreensiva. “Talvez encontrasse outra mulher. E se nunca mais aparecesse?”

Quando ouvia a chave na fechadura, precipitava -se para a porta e lançava -lhe os braços ao pescoço. Nas ocasiões em que faziam amor, afigurava-se-lhe que era alvo de uma bondade maravilhosa.

Uma vez, perguntou timidamente:

- Não achas que já me castigaste o suficiente, querido? Porque não me restituis o rosto ao aspecto primitivo?

Ele olhou-a por um momento e declarou com orgulho:

- Não é possível.

À medida que o tempo passava, Webster tornava-se mais exigente, mais peremptório, até que Eva acabou por se converter completamente em sua escrava, empenhada em lhe satisfazer o mínimo capricho. A fealdade unia-a ao marido, mais fortemente que correntes de ferro.

Alexandra e Templeton tinham um filho, Robert, que fazia

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Kate pensar em Tony na infância. O bisneto contava já oito anos e mostrava-se particularmente precoce. “Muito precoce, mesmo”, envaidecia-se ela. “Um garoto realmente notável!”

Todos os membros da família receberam os convites no mesmo dia.

MRS. KATE BLACKWELL SOLICITA A HONRA DA SUA PRESENÇA PARA

CELEBRAR O NONAGÉSIMO ANIVERSÁRIO EM CEDAR HILL, DARK

HARBOR, MAINE, A 24 DE SETEMBRO DE 1982. ÀS OITO DA NOITE. TRAJE

DE RIGOR.

Quando leu o seu, Webster voltou-se para Eva e decidiu:

- Não podemos faltar.

- Como queres que apareça com?…

- Não podemos faltar - reiterou com firmeza.

Tony Blackwell encontrava-se no jardim da clínica diante do cavalete, quando uma enfermeira se aproximou.

- Uma carta para si.

Tony abriu o sobrescrito e desenhou-se-lhe um sorriso nos lábios.

- Óptimo - murmurou. - Sempre gostei de festas de anos.

Peter Templeton fixava o olhar no convite, com uma expressão de admiração.

- Cus ta a crer que a velhota faça noventa anos. É uma mulher realmente extraordinária.

- Sem dúvida - e Alexandra acrescentou pensativamente: - Sabes uma coisa, querido? Robert também recebeu um convite, dirigido a ele.

Capítulo trigésimo sétimo Os convidados há muito que se haviam retirado no ferry-boat ou no avião, e a família estava reunida na biblioteca de Cedar Hill. Kate contemplava os parentes um a um, e identificava -os com clareza surpreendente. Tony, o vegetal sorridente

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e vagamente cordial que tentara matá-la, o filho que se apresentara tão pleno de promessas e esperanças. Eva, a assassina, que podia ter possuído o mundo, se não albergasse a semente do mal nas entranhas. Era irónico que o seu terrível castigo partisse das mãos de um indivíduo aparentemente insignificante e dócil.

Havia, depois, Alexandra, bonita, afectuosa e gentil, a maior decepção de todas, que colocara a felicidade pessoal acima dos interesses da Kruger-Brent. Não manifestara a mínima preocupação pela companhia e escolhera um marido que se negava a enveredar pelos negócios. Na realidade, um par de traidores. Seria possível que todas as provações do passado redundassem em pura perda? “Não permitirei que tudo termine assim. Alguma coisa se aproveita dos esforços e sacrifícios. Construí uma dinastia orgulhosa. Há um hospital na Cidade do Cabo com o meu nome. Fundei escolas e bibliotecas e auxiliei o povo de Banda”.

Começava a doer-lhe a cabeça. A sala enchia-se lenta e gradualmente de fantasmas. Jamie McGregor, Margaret - bela como sempre - e Banda sorriam-lhe.

E o querido e maravilhoso David apertava -a nos braços. Kate sacudiu a cabeça para desanuviar o espírito. Ainda não se achava preparada para se lhes reunir.

“Em breve”, admitia. “Dentro de pouco tempo…”

Havia mais um membro da família na sala, e ela voltou-se para o neto.

- Vem cá, meu filho.

Robert aproximou-se e pegou-lhe na mão.

- Foi uma festa de anos de arromba, bisavó.

- Obrigada, Robert. Alegra-me que te agradasse. Como vais na escola?

- Obtenho as melhores classificações, como recomendaste. Estou no primeiro lugar do quadro de honra.

Kate virou-se para Templeton.

- Devem mandá-lo para o Colégio Wharton, quando tiver idade suficiente. É o melhor…

- Nunca desiste, hem? - atalhou o psiquiatra, rindo. - Ele fará exactamente o que preferir. Revela inclinação extraordinária para a música e quer tornar-se intérprete de peças clássicas. Escolherá a sua própria vida.

- Assim é que deve ser - redarguiu ela, imperturbável. - Uma velha como eu não tem o direito de interferir. Se quer

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tornar-se músico, façam-lhe a vontade - concentrou-se de novo no garoto, os olhos dominados por um clarão de afecto. - Embora não possa prometer nada, tentarei ajudar-te. Conheço uma pessoa amiga íntima de Zubin Mehta…

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