- Quanto tempo calcula que demorará? - perguntou, levantando-se.

- Um ou dois dias, no máximo. Farei pressão para que as formalidades sejam reduzidas tanto quanto possível.

- É muito amável - murmurou, estendendo a mão.

No instante em que Eva saiu do gabinete, Alvin Seagram pegou no telefone e indicou:

- Ligue-me a Brad Rogers, da Kruger-Brent, Limited. Só de pronunciar o nome da firma sentia um estremecimento de emoção por todo o corpo.

Dois dias depois, Eva apresentou-se no banco e foi imediatamente conduzida à presença de Seagram, que anunciou sem rodeios:

- Lamento, mas o banco não lhe pode ser útil, Miss Blackwell.

- Não compreendo - ela tinha dificuldade em acreditar no que ouvia. - Disse que se tratava de uma transacção muito simples.

- Nessa altura, não conhecia todos os factos.

Ao mesmo tempo que proferia estas palavras, o banqueiro recordava o que Brad Rogers lhe revelara:

- Sim, existe um depósito de cinco milhões de dólares em nome de E va Blackwell e o seu banco pode adiantar-lhe o dinheiro que quiser. No entanto, quero preveni - lo de que Kate Blackwell encararia semelhante atitude com profundo desagrado.

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Não havia necessidade de pormenorizar quanto às consequê ncias, pois a Kruger- Brent contava com amigos poderosos em todos os sectores. E, se esses amigos começassem a retirar os seus depósitos do National Union Bank, Seagram não necessitava entregar-se a conjecturas minuciosas para saber como isso se reflectiria na sua carreira.

- Lamento, mas nada posso fazer - reiterou a Eva. Esta encarava-o, frustrada.

Todavia, estava decidida a não permitir que aquele homem se apercebesse do abalo que acabava de sofrer.

- Desculpe o incómodo - articulou, friamente. - Há mais bancos em Nova Iorque.

Passe muito bem.

- Devo preveni-la de que nenhum dos meus colegas lhe emprestará um cêntimo.

Alexandra estava perplexa. No passado, a avó tornara óbvio, por uma infinidade de atitudes, que se inclinava para Eva. Agora, de um dia para o outro, tudo se modificara. Devia ter ocorrido algo de terrível entre as duas, embora não fizesse a mínima ideia de que se tratava.

Quando tentava abordar o assunto, Kate replicava em tom peremptório:

- Não há mistério nenhum nisso. Eva decidiu seguir a sua vida.

E também não conseguia extrair nada da irmã.

Entretanto, Kate principiou a consagrar mais tempo a Alexandra, a qual se sentia particularmente intrigada. Dir-se-ia que a avó se apercebia da sua presença pela primeira vez, e assolava-a a desconfortável sensação de que era estudada.

Na verdade, Kate via a neta pela primeira vez, e em virtude da decepção que sofrera, ponderava tudo demoradamente antes de formar uma opinião definitiva acerca de Alexandra. Por fim, considerou-se satisfeita.

Não era fácil conhecer a gémea de Eva, muito mais reservada que esta última.

Possuía uma inteligência viva, e a sua inocência, combinada com a beleza, tornava-a ainda mais atraente. Sempre recebera inúmeros convites para festas, bailes ou teatros, mas agora era a avó quem decidia quais devia aceitar ou recusar. O facto de um pretendente dispor de fortuna não bastava. Kate procurava um homem capaz de ajudar a neta a dirigir a dinastia da família. Entretanto, abstinha-se de

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revelar ou denunciar as suas intenções a Alexandra. Haveria muito tempo para o fazer, quando surgisse o companheiro que se lhe afigurasse ideal.

Por seu turno, Eva singrava num mar de rosas. O episódio com a avó afectara-lhe o ego tão profundamente que, por uns tempos, esquecera um facto de importância capital: o efeito que exercia nos homens. Durante a primeira festa para a qual foi convidada, depois de se instalar no apartamento, deu o número do telefone a seis - quatro dos quais casados - e, em menos de vinte e quatro horas, fora para a cama com todos. A partir de então, compreendeu que não necessitaria de se preocupar com o dinheiro, pois inundavam-na de ofertas: jóias dispendiosas, quadros valiosos e, na maioria dos casos, quantias avultadas.

- Acabo de ver umas credencias óptimas para a minha sala, mas ainda não recebi o cheque da mesada. Importas-te, querido?…

E eles nunca se importavam.

Sempre que se apresentava em público, Eva provindenciava para que a acompanhassem homens solteiros. Os casados recebia-os discretamente, à tarde, no seu apartamento. Aliás, revelava a máxima prudência em todos os seus actos.

Desenvolvia os maiores esforços, coroados de êxito, para que o seu nome não figurasse nas colunas de mexericos dos jornais, não porque se preocupasse com o perigo de lhe suspenderem a mesada, mas por estar convencida de que a avó ainda se lhe arrojaria aos pés. Kate Blackwell necessitava de um herdeiro para dirigir a Kruger-Brent e Alexandra só se achava preparada para não passar de uma dona de casa estúpida.

Uma tarde, quando folheava o último número de Town and Country, deparou-selhe uma fotografia da irmã dançando com um homem atraente. O facto suscitoulhe reflexões tenebrosas. Se Alexandra casasse e tivesse um filho, os seus planos desmoronar-se-iam irremediável e definitivamente.

Durante quase um ano, a irmã telefonara -lhe com regularidade, a fim de a convidar para almoçar ou jantar, mas Eva esquivara-se sempre com uma ou outra desculpa. Agora, reconheceu que chegara o momento de terem uma conversa e sugeriu que se encontrassem no seu apartamento.

Alexandra nunca lá estivera e Eva preparou-se para assistir

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a uma manifestação de pesar. Ao invés, porém, ouviu-a exclamar:

- É encantador! Muito funcional, não achas?

- Para as minhas necessidades, chega - replicou Eva, com um sorriso de resignação, - Interessa-me uma coisa intime. Como está a avó?

- Óptima - Alexandra hesitou. - Não sei o que se passou entre as duas, mas se vires que te posso ajudar…

- Ela não te disse?

- Não. Recusa-se a abordar o assunto.

- É natural. A pobrezinha deve sentir-se culpada. Aconteceu o seguinte. Conheci um rapaz médico, com o qual tencionava casar, e fomos para a cama. A avó descobriu e pôs-me fora de casa. Nunca vi uma mulher tão antiquada…

- Mas isso é horrível! - proferiu, com uma expressão desolada. - Têm de a procurar os dois e…

- Infelizmente, ele morreu num acidente de aviação.

- Meu Deus! Porque não me contaste isto antes?

- Estava demasiado envergonhada para o revelar a alg uém, mesmo a ti.

Costumava dizer-te tudo, como sabes.

- Deixa-me falar à avó. Explico-lhe…

- Não! O amor-próprio não mo permite. Promete que nunca lhe dirás nada.

- Mas estou certa de que ela…

- Promete!

- Está bem - acedeu Alexandra, com um suspiro.

- Acredita que me sinto feliz aqui. Gozo de plena liberdade de movimentos. É estupendo! - Eva colocou o braço em torno da cintura da irmã. - Mas basta de falar de mim. Conta-me a tua vida. Já encontraste o teu príncipe encantado? Aposto que sim!

- Não.

- Hás-de encontrar - asseverou, olhando-a pensativamente. Era a sua imagem, mas estava decidida a destruí-la.

- Não tenho pressa. Resolvi começar a ganhar a vida e falei nisso à avó. Para a semana, sou recebida pelo director de uma agência publicitária, com vista a um emprego.

Almoçaram num pequeno restaurante perto do apartamento e Eva insistiu em pagar a conta, pois não queria nada da irmã. Quando se despediram, esta última aventurou:

- Se precisares de dinheiro…

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- Que ideia! Tenho mais do que o suficiente.

- Em todo o caso, se te escassear, podes contar com tudo o que tenho.

- Eu sei - dclarou Eva, com um sorriso enigmático. - Mas na verdade não me falta nada.

Não lhe interessavam migalhas. Estava empenhada em obter todo o bolo. A questão consistia em descobrir um meio.

Havia uma reunião de fim-de-semana em Nassau, e Eva recebeu um telefonema de Nita Ludwig, sua antiga colega no colégio da Suíça:

- Sem a tua presença, não tem graça. Estarão lá todas as nossas amigas.

- Talvez seja divertido - admitiu. - Não faltarei. Naquela tarde, foi empenhar uma pulseira de esmeraldas, oferta de um presunçoso funcionário superior de uma companhia de seguros com esposa e cinco filhos, e comprou vestuário de Verão na Lord Taylor e uma passagem de ida e volta para Nassau, embarcando na manhã seguinte.

A propriedade dos Ludwig situava-se nas proximidades da praia e incluía uma vasta mansão, com trinta divisões, a menor das quais excedia as dimensões do apartamento de Eva. Esta foi cond uzida ao quarto que lhe estava destinado por uma empregada uniformizada, após o que desceu à sala para se reunir aos outros convidados.

Depararam-se-lhe dezasseis pessoas possuidoras de um factor comum: eram abastadas. Nita Ludwig perfilhava a filosofia de “cartas do mesmo naipe”. Um jornalista que assinava colunas de mexericos denominava o grupo de “conjunto jacto”, expressão que os visados enjeitavam publicamente e apreciavam na intimidade. Eram os privilegiados, os poucos eleitos, separados de todos os restantes seres humanos por um deus discriminativo. Os outros, que continuassem convencidos de que não se comprava tudo com o dinheiro. Eles sabiam que isso não correspondia à verdade. O dinheiro proporcionava-lhes beleza, amor, luxo e um lugar no céu. E Eva vira-se excluída de tudo aquilo pelo capricho de uma velha de vistas estreitas. “Mas não por muito tempo”, decidiu para consigo.

No momento em que entrou na sala, as conversas interromperam-se. Num ambiente cheio de mulheres atraentes,

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tornou-se subitamente o foco das atenções gerais. Nita pegou-lhe no braço, a fim de proceder às apresentações daqueles que ela não conhecia. Eva mostrava -se cordial e comunicativa, ao mesmo tempo que observava os homens com ares de entendida, para seleccionar os alvos. Na sua maioria eram casados, mas isso só servia para lhe facilitar os projectos.

Em dado momento, um indivíduo de calça enxadrezada e camisa havaiana acercou-se dela e observou:

- Aposto que está farta de ouvir dizer que é bonita.

- Nunca me farto de uma coisa dessas, Mister?…

- Peterson, mas pode tratar-me por Dan. Devia ser estrela de Hollywood.

- Receio não ter talento para representar.

- Mas estou convencido de que possui muitos outros.

- É uma coisa que só se pode saber depois de os experimentar, Dan - sussurrou Eva, com um sorriso malicioso.

- Veio só? - perguntou ele, humedecendo os lábios.

- Vim.

- Tenho o iate ancorado na baía. Que diz a efectuarmos um pequeno cruzeiro, amanhã?

- É uma ideia excelente..

- Não compreendo porque nunca nos encontrámos. Conheço sua avó, Kate, há muitos anos.

- A avó é uma jóia - articulou ela, esforçando-se por manter o sorriso. - Acho conveniente juntarmo-nos aos outros.

- Não se esqueça do que combinámos.

O homem não voltou a ter oportunidade de lhe falar a sós. E va evitou-o durante o almoço e à tarde meteu-se num dos carros destinados aos convidados e seguiu em direcção à cidade. No cais, deteve -se para observar o movimento dos pesqueiros que descarregavam o abundante produto da faina, no qual abundava o marisco de numerosas espécies.

Soprava uma brisa agradável e a superfície do mar sereno brilhava como se estivesse coberta de diamantes. Eva avistava, do outro lado da água, a curva crescente da praia de Para-dise Island. Uma lancha motorizada partiu naquele momento e, no instante imediato, ergueu-se a figura de um homem na sua esteira.

Ela contemplou-o, fascinada, equilibrado nos esquis, e, no momento em que deslizou nas proximidades, vislumbrou um atraente rosto bronzeado.

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Ele entrou na sala de Nita Ludwig, cinco horas mais tarde, e Eva foi assolada pela impressão de que acudia à sua chamada. De perto, era ainda mais atraente. De um metro e noventa de altura, com feições bronzeadas perfeitamente modeladas, olhos negros e corpo escultural, quando sorriu revelou dentes brancos e regulares.

- George Mellis. Eva Blackwell - apresentou Nita.

- Você devia estar no Museu do Louvre - afirmou ele em voz grave e levemente rouca em que se notava um sotaque remoto.

- Anda daí, rapaz - volveu a dona da casa. - Vou apresentar-te aos outros.

- Não merece a pena. Acabo de conhecer a única pessoa que me interessa.

- Estou a ver - e ela fez uma pausa, olhando-os com curiosidade. - Bem, se precisarem de alguma coisa, chamem.

- Não acha que foi um pouco brusco? - observou Eva.

- Deixei de ser responsável pelas minhas palavras ou actos. Apaixonei-me - e vendo-a rir, Mellis acrescentou: - A sério. É a mulher mais bonita que conheci até hoje.

- Tem piada que a minha opinião a seu respeito é mais ou menos da mesma natureza.

Ela reflectia que lhe era indiferente que aquele homem possuísse ou não dinheiro.

Sentia-se absolutamente fascinada. Não se tratava apenas do seu aspecto.

Irradiava um magnetismo, uma sensação de poder que a excitava como jamais acontecera.

- Quem é você?

- Nita já lhe disse. George Mellis.

- Mas quem?

- Ah, no sentido filosófico! O eu real. Nada de extraordinário, lamento confessar.

Sou grego. A minha família cultiva azeitonas e coisas do género.

Esse Mellis! Os produtos alimentares Mellis podiam encontrar-se em qualquer mercearia ou supermercado dos Estados Unidos.

- Casado?

- Costuma ser sempre tão directa nas perguntas? - quis saber ele, com novo sorriso deslumbrante.

- Não.

- Sou solteiro.

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A revelação deixou Eva extasiada. Só de o olhar, desejava possuí-lo e que a possuísse.

- Porque não apareceu ao jantar?

- Quer a verdade?

- Sim.

- É muito pessoal. Entretive -me a impedir que uma jovem pusesse termo à vida - explicou ele, como se aludisse a uma ocorrência banal.

- Espero que tenha sido bem sucedido.

- De momento. Suponho que você não manifesta propensão para o suicídio?

- De modo algum.

- Amo-a a valer - declarou sem reservas.

No momento em que lhe pegou no braço, Eva não pôde evitar um estremecimento de emoção.

Conservou-se ao lado dela durante todo o serão, cumulando-a de atenções, indiferente aos outros. Tinha mãos alongadas e delicadas, aparentemente empenhadas em ser prestáveis a Eva por qualquer meio: oferecia-lhe uma bebida, acendia-Lhe o cigarro, tocava-lhe discretamente. A sua proximidade produzia-lhe um ardor quase irresistível, e ansiava pelo momento em que se encontrariam sós.

Pouco depois da meia-noite, quando os convidados principiaram a recolher aos quartos, George Mellis perguntou:

- Onde está instalada?

- Ao fundo do corredor da ala norte.

Inclinou a cabeça num gesto de entendimento, ao mesmo tempo que a fitava com uma expressão de inteligência.

Eva despiu-se, tomou banho e enfiou um negligée preto que lhe aderia ao corpo.

À uma hora, registou-se uma pancada discreta na porta e apressou-se a abri -la.

George Mellis entrou e deteve-se para a contemplar com admiração.

- Matia mou, faz com que a Vénus de Milo pareça um lastro detestável.

- Pelo menos, há um pormenor a meu favor. Tenho os dois braços completos.

E, porventura para o demonstrar, ela utilizou-os para lhe rodear o pescoço. O beijo que se seguiu provocou-lhe como

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que uma explosão íntima. Os lábios dele pareciam querer esmagar os seus e sentiu-lhe a língua em ávida exploração. Achavam-se completamente despidos em escassos segundos e encaminharam-se para a cama, o pénis de Mellis erecto como um poste.

- Vira -te! - disse. - Quero o teu traseiro!

- Não estou a per… - começou Eva, perplexa. Uma bofetada brutal impediu-a de prosseguir.

- Vira -te!

- Não!

Ele agrediu-a de novo e ela viu os objectos principiarem a oscilar à sua volta.

Como num sonho, sentiu-o erguer-lhe os hemisférios posteriores e, no momento em que iniciou a penetração, uma dor excruciante. Descerrou os lábios para gritar, mas conteve-se ao pensar nas consequências.

- Por favor… - gemeu. - Magoas-me…

Contudo, ele continuou a introduzir-lhe o pénis enorme e Eva acabou por perder o conhecimento.

Quando recuperou os sentidos, George Mellis sentava-se numa cadeira, vestido, com um cigarro entre os lábios. Ao ver que voltara a si, aproximou-se da cama e acariciou-lhe a cabeça, murmurando:

- Como te sentes, querida?

Ela tentou soerguer-se, mas a dor era demasiado intensa, como se a tivesse rasgado ao meio.

- Animal infame!… - articulou entre dentes.

- Tratei-te com o maior carinho - asseverou ele, com uma risada. - Se quisesse, podia ter sido brutal. Não o fiz porque te amo. Hás-de habituar-te, podes crer, Hree-se'e-moo.

- És louco! - bradou Eva, reflectindo que, se dispusesse de uma arma, não hesitaria em o matar.

Acto contínuo, viu-o assumir uma expressão glacial e a mão cerrar-se num punho ameaçador, e compreendeu que era mesmo louco.

- Não faças caso - apressou-se a rectificar. - Como foi a primeira vez, estranhei.

Agora, queria dormir, se não te importas.

George Mellis contemplou-a em silêncio, por um longo momento, e descontraiuse.

Em seguida, dirigiu-se ao

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toucador onde Eva colocara as jóias e apoderou-se de um colar de brilhantes.

- Vou levá-lo como recordação. Boa noite, querida.

Beijou-a formalmente e saiu. Eva deixou transcorrer uns segundos e levantou-se, esforçando-se por ignorar as dores. Só depois de fechar a porta à chave se senti u em segurança. Custava -lhe aceitar a enormidade da cólera que a assolava. Fora vítima de sodomia, horrível e brutal. O facto levou-a a especular na forma como decerto tratara a rapariga que tentara pôr termo à vida.

Após demorada visita à casa de banho, voltou para a cama, mas permaneceu acordada o resto da noite, aterrorizada pela ideia de ele reaparecer.

De manhã, quando acordou, depois de duas horas de sono já ao alvorecer, verificou que os lençóis apresentavam manchas de sangue. Ele havia de pagar o que fizera, de uma maneira ou de outra. Dirigiu-se de novo à casa de banho e imergiu na banheira cheia de água quente. O espelho indicou-lhe que tinha as faces inchadas e um dos olhos violáceo. Hesitou por uns momentos e aplicou uma toalha embebida em água fria nos locais atingidos. Por fim, conservou-se na banheira, pensando em George Mellis. Havia algo de estranho no seu comportamento que não tinha nada a ver com o sadismo. De súbito, fez-se-lhe luz no espírito. O colar! Porque o levara?

Duas horas mais tarde, desceu à sala de jantar, para se juntar aos outros convidados em torno da mesa do pequeno-almoço, embora não sentisse apetite.

- Santo Deus! - exclamou Nita Ludwig. - Que te aconteceu?

- A coisa mais estúpida deste mundo - explicou Eva, com um sorriso de embaraço.

- Levantei-me a meio da noite para ir à casa de banho, sem acender a luz, e colidi com a porta.

- Queres que chame o médico para te examinar?

- Não é necessário. São escoriações superficiais - olhou em volta. - Onde está George Mellis?

- Foi jogar ténis. Pediu-me que te dissesse que falaria contigo à hora do almoço.

Desconfio que engraçou contigo.

- Fala-me dele.

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- Pertence a uma família de gregos abastados. É o oitavo filho e podre de rico.

Trabalha numa firma de corretagem de Nova Iorque, a Hanson and Hanson.

- Não se interessa pelo negócio da família?

- Suponho que detesta as azeitonas. De resto, com a fortuna dos Mellis, não precisa de trabalhar. Deve fazê-lo apenas para ocupar o tempo - Nita esboçou um sorriso malicioso. - O trabalho não lhe falta, à noite.

- Parece-te?

- É o melhor partido destas redondezas. As moças anseiam pela oportunidade de despir as cuecas na sua frente, na esperança de o levar ao altar. Aqui para nós, se o meu marido não fosse tão ciumento, também não me importava de uma pequena experiência com ele. É um animal deslumbrante!

- Sim - aquiesceu Eva, amargurada. - Deslumbrante.

George Mellis surgiu no terraço onde Eva se sentava, só, e esta experimentou um estremecimento de medo.

- Bom dia, Eva! - saudou ele, acercando-se. - Sentes-te bem? - perguntou com uma expressão apreensiva, ao mesmo tempo que pousava os dedos no rosto maltratado. - Como és bonita! - puxou de uma cadeira, sentou-se voltado para o espaldar, e, abarcando o mar com um gesto largo, declarou: - Que espectáculo tão belo!

Dir-se-ia que os acontecimentos da véspera não tinham ocorrido. Ela escutava-o enquanto perorava sobre as belezas da Natureza e apercebeu-se uma vez mais do magnetismo que irradiava. Conseguia senti-lo, apesar do pesadelo que experimentara, o que se lhe afigurava incrível. “Parece um deus grego. Pertence a um museu. Não, a uma clínica de loucos!” - Tenho de regressar a Nova Iorque esta noite - anunciou ele, em dado momento.

- Como posso contactar contigo?

- Mudei-me recentemente - apressou-se Eva a alegar. - Ainda não tenho telefone.

Ligarei para ti.

- Pois sim, querida. Desfrutaste esta noite, hem? - e baixando a voz, Mellis acrescentou: - Tenho muitas variantes para te ensinar.

“Também hás-de aprender alguma coisa comigo!”, pensou ela.

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Assim que se encontrou de regresso a Nova Iorque, Eva telefonou a Dorothy Hollister, uma verdadeira fonte de informações sobre a “gente bela”, como gostava de chamar a determinado estrato da sociedade. Fora casada com um indivíduo de posição elevada e, quando ele a trocara pela secretária de vinte e um anos, virase forçada a procurar uma actividade remuneradora, acabando por enveredar pela que melhor se adaptava aos seus talentos: autora de uma coluna de inconfidências sociais num jornal.

Portanto, se alguém podia elucidar Eva a respeito de Geor-ge Mellis, era, sem dúvida, Dorothy Hollister.

Encontraram-se para almoçar e, depois de escolherem a ementa, Eva informou com naturalidade:

- Passei o fim-de-semana nas Baamas. Aquilo é realmente encantador.

- Já sabia - replicou Dorothy. - Tenho a lista dos convidados de Nita Ludwig. Foi divertido?

- Voltei a ver algumas velhas amigas. Por sinal, conheci um homem interessante chamado… como era?… George qualquer coisa. Miller, salvo erro. Um grego.

- Mellis - soltou uma risada que se propagou a todos os cantos da sala. - George Mellis.

- Isso. Conhece-o?

- Vi-o, uma vez ou duas. Pensei que se transformaria numa coluna de sal.

Realmente, tem um aspecto fantástico.

- Quais são os seus antecedentes?

Olhou em redor e inclinou-se para a frente numa atitude conspiratória.

- Ninguém sabe isto, mas espero que não passe daqui. É a ovelha ranhosa da família. Devia ficar à testa do negócio paterno, que produz lucros fabulosos, mas envolveu-se em tantos escândalos com raparigas, rapazes e provavelmente até cabras, que o pai e os irmãos acabaram por perder a paciência e mandá-lo para fora do país. Cortaram-lhe todos os rendimentos, o que obrigou o pobre rapaz a procurar um emprego p ara se sustentar.

“Estava explicado o roubo do colar!” - No fundo, não precisa de se preocupar - continuou Dorothy. - Mais dia menos dia, casa com uma mulher rica. Porquê esta curiosidade? Estás interessada?

- Nem por isso.

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Todavia, Eva estava mais do que interessada. George Mel-lis podia ser a chave que procurava. A chave da sua fortuna.

Na manhã seguinte, telefonou-lhe para o emprego e verificou que Mellis reconhecia a sua voz imediatamente.

- Aguardava o teu telefonema com ansiedade louca. Jantamos juntos esta noite e…

- Não, almoçamos amanhã. Ele hesitou, surpreendido.

- Muito bem. Tinha de almoçar com um cliente, mas arranjo uma desculpa.

- No meu apartamento - advertiu Eva, custando-lhe a crer que falava com o alucinado de poucos dias antes. Indicou o endereço e concluiu: - Ao meio-dia e meia.

- Combinado.

Cortou a ligação, cogitando que George Mellis encontraria uma surpresa imprevista.

Ele apresentou-se com meia hora de atraso, e Eva compreendeu que isso obedecia à sua maneira de proceder. Não se tratava de falta de deferência deliberada, mas de uma indiferença, a certeza de que os outros esperariam o tempo que fosse necessário. Com a sua aparência irresistível e maneiras cativantes, o mundo pertencia-lhe. Existia apenas um óbice: a falta de dinheiro.

Era esse o seu único ponto vulnerável.

Mellis olhou em volta e admitiu, depois de calcular o valor do recheio:

- Muito agradável - aproximou-se de Eva, estendendo os braços. - Tenho pensado em ti constantemente.

- Mais devagar - recomendou ela, esquivando-se. - Primeiro, quero dizer-te uma coisa.

- Conversamos depois.

- Não, agora - articulou pausada e distintamente. - Se me tornas a tocar, mato -te.

- Que brincadeira é esta? - rosnou ele, com um leve sorriso de incredulidade.

- Falo a sério. Quero apresentar-te uma proposta de negócios.

- Mandaste-me vir para discutir negócios? - estranhou, arqueando as sobrancelhas.

- Exacto. Não sei quanto ganhas com as diligências para

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convencer velhotas crédulas a adquirir acções e títulos da Bolsa, mas penso que não é muito.

- Endoideceste? - rugiu, assumindo uma expressão irada. - A minha família…

- A tua família é rica e tu não. A minha é rica e eu também não. Encontramo-nos no mesmo barco cheio de buracos, meu amigo, mas conhe ço uma maneira de o transformarmos num luxuoso iate.

Eva fez uma pausa para observar o efeito do que acabava de dizer e verificou que a irritação do interlocutor era substituída gradualmente por curiosidade.

- Troca lá isso por miúdos, antes que perca a paciência.

- É muito simples. Fui deserdada de uma vasta fortuna e minha irmã Alexandra não.

- Em que me pode isso interessar?

- Se casasses com ela, essa fortuna seria tua… nossa.

- Lamento, mas nunca consegui aceitar a ideia de me amarrar a alguém.

- Neste caso, não correrias o menor perigo - declarou ela, sem pestanejar. - Minha irmã sempre teve propensão para sofrer acidentes.

Capítulo vigésimo sétimo A agência publicitária Berkley and Mathews fora sempre o diadema no estendal de firmas do género existentes na Avenida Madison. O seu volume de negócios excedia os dos dois concorrentes mais próximos juntos, fundamentalmente porque um dos seus melhores clientes era a Kruger-Brent, Ltd. e as suas dezenas de subsidiárias dispersas pelo mundo. Por conseguinte, quando Kate Blackwell telefonou a Aaron Berkley, a fim de lhe solicitar um lugar para Alexandra, o pedido foi satisfeito com prontidão. Na realidade, se ela desejasse, talvez nomeassem a rapariga presidente da agência.

- Creio que minha neta está interessada em ser autora de textos - informou Kate.

Berkley assegurou-lhe que havia precisamente uma vaga nesse departamento e Alexandra podia principiar quando quisesse.

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Assim, ela apresentou-se ao trabalho na segunda-feira imediata.

A agência situava-se em oito pisos do moderno edifício que possuía na Avenida Madison e tinha os restantes alugados a diversas firmas. No intuito de economizar um salário, Aaron Berkley e o sócio, Norman Mathews, decidiram que Alexandra Blackwell ocuparia o lugar de um jovem empregado admitido seis meses antes. O facto tornou-se conhecido rapidamente, e quando o pessoal se inteirou de que o rapaz despedido seria substituído pela neta da maior cliente da casa, gerou-se uma indignação geral. Mesmo sem a conhecerem, o consenso geral era de que se tratava de uma cadela mimada, provavelmente enviada para espiar os funcionários.

Na manhã em que a rapariga se apresentou, foi escoltada ao vasto gabinete de Berkley, onde este e Mathews a aguardavam para lhe dar as boas-vindas. Os dois sócios eram aquilo que se podia considerar patrões tiranos, e o único motivo porque os empregados os suportavam cifrava -se em que quem tinha trabalhado naquela firma estava em perfeitas condições para ingressar em qualquer agência publicitária do mundo. Constituía uma espécie de campo de treino.

Também se achava presente no gabinete Lucas Pinkerton, vice-presidente da firma, um homem sorridente de modos untuosos e olhos frios, o qual tão-pouco se podia considerar um patrão-modelo.

- Que deseja tomar, Miss Blackwell? - perguntou Berkley, indicando a Alexandra uma poltrona confortável. - Café, chá?

- Nada, obrigada.

- Com que então, vai trabalhar connosco como autora de textos!

- Agradeço a oportunidade que me proporcionaram. Sei que tenho muito que aprender, mas prometo trabalhar com afinco.

- Não necessita de se esforçar - interpôs Mathews. No entanto, apercebeu-se do deslize com prontidão e acrescentou: - Quero dizer que não convém que se precipite. São coisas que se aprendem com lentidão.

- Estou certo de que se sentirá bem entre nós - volveu Berkley. - Vai trabalhar com as maiores autoridades no campo da publicidade.

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Uma hora mais tarde, Alexandra ponderava: “Talvez sejam os melhores do mundo, mas não os mais cordiais.” Lucas pinkerton conduzira-a aos diversos apartamentos, para que conhecesse os novos colegas, e a recepção fora glacial em toda a parte. Ela pressentiu a animosidade e ficou intrigada, sobretudo porque não compreendia o motivo. Por fim, entraram numa sala de conferências saturada de fumo de tabaco, em torno de cuja mesa se viam uma mulher e dois homens, que fumavam em cadeia. Ela era baixa e forte, com cabelos cor de ferrugem, e os companheiros, que aparentavam trinta e cinco anos, pálidos e compenetrados.

- Esta é a equipa criadora com a qual vai trabalhar - informou Pinkerton. - Alice Koppel, Vince Barnes e Marty Bergheimer, apresento-lhes Miss Blackwell - fez uma pausa, enquanto o trio a olhava com semblantes inexpressivos.

- Bem, vou deixá-la, para que se familiarize com o ambiente - e voltando-se para Barnes: - Quero o texto referente ao novo perfume em cima da minha secretária, amanhã, ao abrir da porta. Providencie para que Miss Blackwell receba tudo o necessário - e retirou-se.

- De que precisa? - inquiriu Barnes.

- Eu… - a pergunta colheu Alexandra desprevenida. - Preciso de aprender tudo.

- Veio ao lugar apropriado - observou Alice Koppel, em tom melífluo. - Adoramos fazer de professores.

- Não comece - advertiu Bergheimer.

- Fiz alguma coisa que os ofendesse? - balbuciou a rapariga, intrigada.

- Não, Miss Blackwell - assegurou Bergheimer. - Simplesmente, atravessamos uma fase de grande pressão. Trabalhamos no lançamento de um perfume e, até agora, os chefes não se mostraram impressionados com o material fornecido.

- Procurarei não os estorvar.

- Isso era óptimo - não pôde deixar de tornar a comentar Alice Koppel.

O resto do dia escoou-se no mesmo clima. Não havia um único sorriso visível. Um colega fora despedido sumariamente por causa daquela cadela rica, e estavam dispostos a fazer-Lhe espiar o arrojo.

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Pouco antes da hora da saída, Berkley e Mathews entraram no pequeno gabinete atribuído a Alexandra, para se certificarem de que não lhe faltava nada, gesto que não passou despercebido ao resto do pessoal.

Todos os funcionários da agência se tratavam por tu, mas Alexandra era uma excepção à regra, sendo “Miss Blackwell” para todos.

- Chamo-me Alexandra - lembrava ela.

- Tem razão.

E na próxima vez que se lhe dirigiam, era de novo por “Miss Blackwell”.

Alexandra ansiava por aprender e participar na produção da firma. Para tal, assistia às reuniões em que os autores de textos apresentavam ideias, observava o pessoal artístico que construía maquetas e via Lucas Pinkerton rasgar o material que lhe exp unham para aprovação. Entretanto, guardava um silêncio respeitoso e esforçava -se por assimilar tudo o que se lhe deparava. No termo da primeira semana, afigurava -se-lhe que pertencia à casa há mais de um mês.

Quando Kate lhe perguntava como se adaptava ao trabalho, respondia:

- O melhor possível, avó. É muito interessante.

- Tenho a certeza de que não tardarás a produzir tanto e tão bem como os melhores funcionários da firma. Se surgir algum problema, procura Berkley ou Mathews.

Era exactamente isso que Ale xandra desejava evitar.

Na segunda-feira seguinte, apresentou-se ao trabalho disposta a resolver o seu problema. Havia pausas de manhã e à tarde para tomar café, ocasiões em que se trocavam impressões com cordialidade.

- Sabes o que aconteceu na National Media? Um génio qualquer pretendeu chamar a atenção para o ano excepcional que tiveram e mandou publicar o seu relatório financeiro no New York Times, a vermelho!

Naquele momento, Alexandra fez a sua aparição e as conversas interromperam se de modo abrupto.

- Deseja um café, Miss Blackwell?

- Obrigada. Eu vou buscá-lo.

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Estabeleceu-se silêncio enquanto ela introduzia uma moeda na máquina e pegava no copo fumegante. Assim que saiu, as conversas foram reatadas.

- Ouviram a última acerca do Sabão Puro? O modelo de expressão angelical dos anúncios era uma intérprete de filmes pornográficos!

Ao meio-dia, Alexandra sugeriu a Alice Koppel:

- Lembrei-me que podíamos almoçar…

- Lamento, mas tenho um compromisso.

Virou-se para Vince Barnes, que se apressou a declarar:

- Eu também.

- E eu - acudiu Marty Bergheimer, por sua vez. Alexandra sentia-se demasiado apreensiva para comer. Os colegas procediam como se ela fosse uma pária, facto que começava a irritá-la.

No entanto, não tencionava permitir que a situação se mantivesse. Descobriria uma maneira de estabelecer comunicação, de lhes fazer compreender que, por debaixo do nome Blackwell, era uma deles. Continuava a assistir a reuniões e ouvia Aaron Berkley, Norman Mathews e Lucas Pinkerton invectivarem os criadores, que se limitavam a executar o seu trabalho o melhor que podiam.

Alexandra condoía -se deles, que todavia não queriam a sua compaixão. Nem a sua companhia.

Deixou transcorrer três dias antes de efectuar nova tentativa junto de Alice Koppel.

- Falaram-me de um estupendo restaurante italiano perto daqui…

- Não gosto de comida italiana. Voltou-se para Vince Barnes, que esclareceu:

- Estou a dieta.

- Prefiro a chinesa - anunciou Marty Bergheimer, quando foi interpelado.

Alexandra sentia as faces em brasa. Não queriam ser vistos com ela. “Então, que vão para o inferno”! Estava farta. Desenvolvera todos os esforços para estabelecer relações cordiais e tinham-lhe dado sempre com os pés. Cometera um erro ao pretender trabalhar ali. Procuraria emprego numa firma sem a mínima ligação com a avó. No final da semana corrente, despedir-se-ia. “Mas hão-de lembrar-se todos de que passei por cá”, decidiu com amargura.

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Às 13.00 horas de quinta-feira, tinham ido todos almoçar, excepto a operadora do PBX, e Alexandra deixara -se ficar. Observara que nos gabinetes do pessoal superior havia inter-comunicadores para os vários departamentos, pelo que, se um chefe pretendia contactar com um subordinado, necessitava apenas de premir o botão do aparelho em que o nome deste último se achava escrito num cartão. Ela introduziu-se nos domínios desertos de Berkley, Mathews e Pinkerton e consagrou os sessenta minutos imediatos à troca de todos os cartões. Assim, ao princípio da tarde, Pinkerton carregou num botão que julgava pô-lo em contacto com um autor de textos e ordenou:

- Trote para aqui. Já!

Seguiu-se um momento de silêncio, e a voz indignada de Mathews rugiu:

- Que disse?

- É Mister Mathews? - balbuciou o outro, cravando o olhar estupefacto no aparelho.

- Com certeza que sou! Trote você para aqui! Já! Momentos depois, um autor de textos premiu um botão e informou:

- Tenho aqui material para você levar lá abaixo.

- Tem o quê? - vociferou Berkley.

Era o início do pandemónio. Foram necessárias quatro horas para rectificar a confusão que Alexandra criara, e os funcionários da agência nunca tinham passado um período tão divertido no local de trabalho. Cada vez que se registava um novo incidente, soltavam exclamações de gáudio. Os chefes recebiam ordens para ir comprar tabaco ou mandar desentupir uma sanita. Berkley, Mathews e Pinkerton resolveram tudo para tentarem descobrir o culpado, mas ninguém sabia explicar o que se passara.

A única pessoa que vira Alexandra entrar nos diversos gabinetes fora Fran, a recepcionista, mas detestava mais os chefes do que a rapariga, pelo que se limitou a declarar:

- Não dei por nada.

Naquela noite, quando se encontrava na cama com Vince Barnes, revelou-lhe o que acontecera e ele soergueu-se de um salto.

- A neta da velha Blackwell? Quem diria!

Na manhã seguinte, quando entrou no seu gabinete,

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Alexandra verificou que Vince Barnes, Alice Koppel e Marty gergheimer a aguardavam. Vendo que a observavam em silêncio, perguntou:

- Há alguma novidade?

- Não - replicou Alice Koppel, com um sorriso. - Queríamos convidá-la para almoçar connosco. Falaram-nos num restaurante italiano estupendo, perto daqui…

Capítulo vigésimo oitavo Desde criança que Eva Blackwell se apercebera da sua habilidade para manipular pessoas. No passado, tratava-se de um mero jogo, mas agora o assunto revestiase de gravidade. Fora tratada abominavelmente, despojada de uma vasta fortuna, que lhe pertencia por direito, por uma irmã maldosa e uma avó vingativa. Haviam de lhe pagar inteiramente o mal ocasionado, e a perspectiva provocava-lhe um prazer tão intenso que quase a conduzia ao orgasmo. A vida delas encontrava-se agora nas suas mãos.

Eva elaborou o plano cuidadosa e meticulosamente, orquestrando cada movimento. Ao princípio, George Mellis revelara-se um conspirador relutante, alegando:

- É muito perigoso. Não preciso de me envolver em complicações dessas. Posso obter todo o dinheiro que quiser.

- Como? - retorquiu ela, em tom de desdém. - Levando para a cama uma infinidade de mulheres nutridas de cabelos azuis? É assim que queres passar o resto da vida? Que acontecerá quando começares a criar estômago e te surgirem rugas em volta dos olhos? Crê que nunca tornarás a ter uma oportunidade como esta. Se me escutares, poderemos possuir um dos maiores impérios financeiros do mundo. Possuir, ouviste?

- Como sabes que o plano funcionará?

- Sou a maior perita viva acerca de minha avó e Alexandra. Não tenhas a mínima dúvida a esse respeito.

Embora se exprimisse com confiança, assolavam-na algumas reservas, sobretudo quanto ao cúmplice. Eva estava convencida de que executaria a sua parte do plano, mas não tinha

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a certeza de como ele agiria. Era um indivíduo instável e nã o havia o menor espaço para erros. Bastaria um para que tudo se desmoronasse.

- Decide-te de uma vez - indicou. - Entras ou não? Mellis olhou-a por um longo momento, sem proferir palavra, e acabou por inclinar a cabeça.

- Entro - aproximou-se dela e pousou-lhe as mãos nos ombros. - Mas quero entrar todo.

- Desta vez, vai ser à minha maneira - advertiu Eva, em voz rouca.

Encontravam-se deitados. Despido, ele era o animal mais extraordinário que ela jamais vira. E o mais perigoso, mas isso só servia para acentuar a excitação.

Agora, dispunha da arma para o dominar.

- Monta-me, George - pediu, com voracidade.

- Vira -te para lá.

- Não. À minha maneira.

- Assim, não me dá prazer.

- Eu sei. Preferias fazê-lo com um rapaz de cu apertado, hem? Infelizmente, para ti, estás com uma mulher. Portanto, trepa para cima de mim.

- Está bem - capitulou ele, obedecendo. - Mas olha que não fico satisfeito.

- É-me indiferente - redarguiu Eva, com uma risada. - Fico eu.

No final da operação, Mellis fê -la deslizar para o seu lado e estendeu as mãos para os seios.

- Agora, é a minha vez.

- Veste-te - ordenou ela, abruptamente.

Ele levantou-se da cama, tremendo de frustração e cólera, enquanto ela o contemplava com um sorriso divertido.

- Portaste -te muito bem, George. Mereces a recompensa. Vou entregar-te Alexandra.

De um dia para o outro, tudo se alterara para Alexandra. Transformara-se de pária em heroína, e a partida que pregara aos chefes tornou-se conhecida em toda a Avenida Madison.

- É uma lenda em vida - afirmou Vince Barnes. Agora, convertera-se numa deles.

Ao mesmo tempo, gostava do trabalho que executava, em

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particular as sessões criativas que se desenrolavam todas as manhãs. Embora reconhecesse que não correspondiam ao que desejava para o resto da vida, não estava bem certa do que pretendia. Recebera pelo menos uma dúzia de propostas de casamento e sentira -se tentada por uma ou duas, mas faltava qualquer coisa.

Ainda não surgira o homem ideal.

Sexta-feira de manhã, Eva telefonou, a fim de a convidar para almoçar.

- Conheço um restaurante francês inaugurado recentemente, cuja comida é excelente.

Ficou contente com o telefonema, pois agradava-lhe sempre contactar com a irmã, e apressou-se a aceitar.

O restaurante era requintado e dispendioso e o bar achava-se cheio de clientes à espera de mesas livres, pelo que Eva necessitara de recorrer ao nome da avó para que lhe reservassem uma.

Saudaram-se com um beijo na face e ela declarou:

- Estás maravilhosa, Alex. Segundo parece, o trabalho faz-te bem - interrompeu-se para escolher a ementa, após o que prosseguiu: - Conta lá em que consiste a tua missão na firma.

Alexandra descreveu tudo minuciosamente e em seguida a irmã procedeu a uma descrição cautelosa das suas actividades. De súbito, Eva ergueu os olhos e fez uma pausa. George Mellis contemplava-as diante da mesa, momentaneamente confuso. “Valha -me Deus! Não sabe qual das duas sou.” Por conseguinte, tratou de proferir:

- George!

- Eva! - ele dissimulou a sensação de alívio. - Que agradável surpresa.

- De facto… Creio que não conheces minha irmã. Alex, apresento-te George Mellis.

- Encantado - murmurou ele, apertando a mão da rapariga, ao mesmo tempo que reflectia que Eva lhe falara na irmã gémea, mas nunca supusera que fossem idênticas.

- Almoças connosco? - perguntou ela.

- Infelizmente, já estou atrasado para uma entrevista. Fica para outra ocasião - Mellis voltou-se para Alexandra. - Em breve, espero.

- Com a breca! - exclamou Alexandra, quando se encontraram de novo sós. - Quem é?

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- Um amigo de Nita Ludwig. Conheci-o numa reunião em casa dela.

- Sofro da vista ou é tão atraente como me pareceu?

- Embora não seja o meu tipo, as mulheres acham-no irresistível.

- Não me admira nada. É casado?

- Penso que não, mas não deve ser por falta de interessadas. Além disso, tem dinheiro às montanhas. Pode mesmo dizer-se que não lhe falta nada, atractivos físicos, fortuna e posição social.

No final da refeição, quando Eva pediu a conta, o empregado informou que fora paga por Mr. Mellis.

Alexandra não conseguia parar de pensar em George Mellis.

Segunda-feira à tarde, Eva telefonou-lhe para anunciar:

- Parece que obtiveste êxito. George Mellis ligou para cá, a fim de me pedir o teu número. Posso dar-lho?

- Se tens a certeza de que não te interessa… - articulou Alexandra, surpreendida ao verificar que sorria de satisfação.

- Já te disse que não é o meu tipo.

- Então, podes dar-lhe o número do meu telefone.

Trocaram impressões por mais uns minutos e quando pousou o auscultador, Eva voltou-se para Mellis, deitado na cama a seu lado.

- A senhora disse que sim.

- Quando telefono?

- Quando eu te indicar.

Alexandra esforçava-se por esquecer que George Mellis lhe telefonaria, mas obtinha um resultado contraproducente, pois ainda pensava mais nisso. Nunca se sentira particularmente atraída por jovens bem-parecidos, porque descobrira que, na sua maioria, não passavam de presunçosos. No entanto, este parecia diferente. Irradiava uma qualidade dominadora. O mero contacto da mão bastara para a excitar. “És parva. Só viste o homem durante dois minutos!”

Mellis não telefonou naquela semana, e as emoções dela passaram da impaciência à frustração e depois à cólera. “Que vá para o diabo! Deve ter encontrado outra. Melhor!”

Quando o telefone tocou finalmente, na semana seguinte, e

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escutou a voz grave e rouca, a irritação dissipou-se como que por artes mágicas.

- Fala George Mellis. Vimo-nos o outro dia em que você almoçava com sua irmã.

Ela disse que não se importava que eu lhe telefonasse.

- De facto, referiu-se a essa possibilidade - admitiu Alexandra, com simulada naturalidade. - Antes que me esqueça: obrigada pelo almoço.

- Você merece um autêntico festim. Merece mesmo um monumento. Aceitava, se a convidasse para jantar, uma noite destas?

- Bem… acho que sim. Com todo o gosto.

- Óptimo. Se recusasse, matava-me.

- Não faça isso, por favor. Detesto comer só.

- Eu também. Conheço um restaurante discreto na Mul-berry Street chamado Matoon's.

- É o meu favorito!

Mellis lançou um olhadela a Eva e sorriu, admirando a sua perícia na preparação do cenário. Com efeito, revelara -lhe todas as predilecções e antipatias da irmã.

Quando ele pousou o auscultador, pensou: “Começou!”

Foi o serão mais encantador na vida de Alexandra. Uma hora antes de Mellis se apresentar, recebeu uma dúzia de pequenos balões cor-de-rosa presos a uma orquídea. Ela receava que a imaginação a levasse a esperar demasiado, mas quando o voltou a ver sentiu todas as dúvidas esfumarem-se. Ô poderoso magnetismo tornou a dominá -la.

Uma vez no restaurante, ele perguntou:

- Quer consultar a ementa, ou não se importa que eu escolha?

- Confio no seu gosto.

Mandou servir uma das iguarias preferidas dela, que ficou com a estranha sensação de que lhe lia o pensamento. Quando apareceu a salada e o viu proceder à mistura com notável perícia, inquiriu:

- Você cozinha?

- É uma das grandes paixões da minha vida. Ensinou-me minha mãe, uma cozinheira excepcional.

- Mantém relações estreitas com a família?

Ele esboçou um sorriso, e Alexandra reflectiu que era o

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mais deslumbrante que jamais observara nos lábios de um homem.

- Sou grego - declarou Mellis, com simplicidade. - Tenho três irmãos e duas irmãs mais novos e constituímos um bloco muito unido - o olhar enevoou-se com uma expressão de nostalgia. - Quando me separei deles, senti uma das maiores tristezas de sempre. Pediram-me que ficasse, para continuar à testa do negócio, mas teve de ser.

- Porquê?

- Talvez lhe pareça parvoíce de minha parte, mas prefiro singrar pelos meus próprios meios. Sempre experimentei dificuldade em aceitar dádivas, e o negócio constitui uma dádiva legada por meu avô a meu pai. Cedi a minha parte à família.

De resto - acrescentou baixando a voz -, se continuasse na Grécia, não nos tínhamos conhecido.

- Nunca foi casado? - quis saber Alexandra, sentindo-se corar.

- Não. Costumava ficar noivo uma vez por dia, mas mudava sempre de ideias.

Chame-me bota-de-elástico, se quiser, mas quando me unir a uma mulher será para sempre. Uma basta para mim, desde que seja a que me convém.

- E uma maneira de pensar admirável.

- E você, alguma vez esteve apaixonada?

- Não.

- Que infelicidade para alguém! Mas que sorte para…

Naquele momento, o empregado apareceu com a sobremesa. Alexandra ansiava por que Mellis completasse a frase, mas receou insistir.

Nunca se sentira tão à vontade com um homem. George Mellis parecia tão profundamente interessado nela que a levou a falar-lhe da infância e da vida em geral, com as preferências e aversões.

Entretanto, ele orgulhava-se da forma experiente como enfrentava a s mulheres.

Sabia que as atraentes eram as mais inseguras, pois os homens concentravam-se na sua beleza e faziam com que se sentissem mais objectos do que seres humanos. Quando se encontrava com uma delas, nunca aludia aos seus atractivos físicos. Assim, fazia com que se julgasse admirada pelo seu espírito e diante de alguém que compartilhava dos seus sonhos. Tudo isto constituía uma experiência extraordinária para Alexandra, que se referiu a Kate e a Eva.

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- Sua irmã não vive convosco?

- Não. Quis instalar-se num apartamento independente.

E ela perguntava a si própria por que razão Mellis não sentira atracção por Eva.

No entanto, qualquer que fosse a causa, congratulava-se com a reacção dele.

Enquanto jantavam, apercebeu-se de que todas as mulheres presentes lançavam olhares furtivos ao seu companheiro, sem que este parecesse preocupar-se com o facto.

Quando tomavam café ele sugeriu:

- Há um clube nocturno em St. Marks Place, chamado Five Spot, e se gosta dejazz…

- E onde toca Cecil Taylor!

- Já esteve lá? - exclamou, fingindo-se surpreendido.

- Diversas vezes - Alexandra sorriu, divertida. - Adoro ouvi-lo. É incrível como partilhamos os mesmos gostos!

- Parece milagre…

Depois de escutarem várias interpretações ao piano de Cecil Taylor, seguiram para um bar na Bleecker Street, onde os clientes bebiam, comiam pipocas, lançavam dardos e ouviam boa música interpretada por um pianista anónimo.

Mellis aceitou o desafio de um desconhecido para uma partida de dados e suplantou-o sem dificuldade. “É um homem que nasceu para vencer…”, pensou Alexandra.

Passava das duas da madrugada quando abandonaram o bar, e ela reconheceu com pesar que o serão se aproximava do fim.

No Rolls Royce com motorista que alugara, Mellis conservava -se silencioso, limitando-se a contemplar a companheira. A semelhança entre as duas irmãs era invulgar. “Gostava de saber se os corpos também se parecem tanto.” E imaginava Alexandra na cama com ele, contorcendo-se e uivando de dor.

- Em que pensa? - acabou ela por perguntar.

- Se lhe disser, ri-se - murmurou Mellis, desviando os olhos.

- Prometo que não.

- No fundo, não a censurava. Devo ser considerado uma espécie deplayboy.

Conhece o género: sempre metido em festas, passeios de iate, etc. - voltou a fitála.

- É a única mulher que podia modificar tudo isso. Para sempre.

- Não… não sei o que dizer - sussurrou Alexandra, sentindo as pulsações acelerarem-se.

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- Não diga nada, por favor.

Os seus lábios achavam -se muito próximos e ela estava preparada para o que se pudesse seguir. Todavia, ele não deixou transparecer a mínima intenção de passar à ofensiva, pois Eva advertira -o com veemência. “Não te aventures de mais, na primeira noite. Se o fizeres, convertes-te em mais um dos numerosos Romeus ansiosos por se apoderar de Alexandra e da fortuna. A iniciativa tem de partir dela.”

Por conseguinte, limitou-se a pegar-lhe na mão até que o carro se imobilizou com suavidade diante da mansão Black-well.

Apearam-se e, antes de se despedirem à entrada, Alexandra declarou:

- Não tenho palavras para exprimir o prazer que estas poucas horas juntos me proporcionaram.

- Para mim, foram mágicas.

- Boa noite, George.

E ela desapareceu no interior da vasta residência, com um sorriso radioso capaz de iluminar toda a rua.

Quinze minutos mais tarde, o telefone à cabeceira de Alexandra tocou.

- Sabe o que acabo de fazer? Telefonei à família para lhe comunicar que passei o serão com uma mulher deslumbrante. Sonhos felizes, minha bela Alexandra.

Quando pousou o auscultador, George Mellis reflectiu: “Depois de casarmos é que telefonarei à família. Dir-lhe-ei então que se pode lixar com o seu dinheiro!”

Capítulo vigésimo nono Alexandra não voltou a ter notícias dele em toda a semana. Cada vez que o telefone tocava, apressava-se a atender, para ficar invariavelmente decepcionada.

Não conseguia imaginar o que sucedera, e revia o memorável serão com um prazer ofuscado pela nostalgia e a frustração. “É a única mulher que podia modificar tudo isso. Para sempre. Telefonei à família para lhe comunicar que passei o serão com uma mulher deslumbrante..”

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E concebia uma série de explicações para o silêncio.

Ofendera-o involuntária e inconscientemente.

Ele gostava demasiado dela, receava apaixonar-se e decidira não a tornar ver.

Chegara à conclusão de que não era o seu tipo.

Sofrera um acidente horrível e jazia em coma num hospital.

Morrera.

Por fim, incapaz de conter a impaciência, telefonou a Eva e começou por abordar temas banais, antes de perguntar com ansiedade mal dissimulada:

- Soubeste alguma coisa de George Mellis, ultimamente?

- Não. Julgava que te ia telefonar para jantarem juntos.

- Sim, fomos jantar… a semana passada.

- E não voltaste a saber dele?

- Não.

- Deve estar muito ocupado.

- É provável - admitiu Alexandra, ao mesmo tempo que pensava: “Ninguém está ocupado a esse ponto.” - Não lhe ligues - volveu Eva. - Gostava que conhecesses um canadiano muito atraente que me apresentaram há dias. É dono de uma companhia de aviação e…

Quando finalmente cortou a ligação, reclinou-se na poltrona com um sorriso de satisfação. Lamentava que a avó não pudesse ver como planeara tudo de forma impecável.

- Que mosca lhe mordeu? - perguntou Alice Koppel.

- Desculpe - replicou Alexandra.

De facto dirigia-se a todos com brusquidão, naquela manhã. Haviam-se escoado duas semanas desde que jantara com George Mellis e sentia-se furiosa. Não com ele, mas consigo própria, por não conseguir esquecê-lo. No fundo, o rapaz não lhe devia nada. Eram praticamente dois estranhos que haviam passado um serão juntos, e ela comportava-se como se contasse com o casamento como corolário lógico. George Mellis podia obter qualquer mulher que quisesse. Porque se preocuparia com ela?

A própria avó notou a fase de irritabilidade que atravessava e terminou por perguntar:

- Que tens, minha filha? Obrigam-te a trabalhar de mais na agência?

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- Não, avó. É que… não tenho dormido bem ultimamente.

E quando dormia acudiam-lhe sonhos eró ticos com ele. “Demónios o levem!”

Lamentava que Eva os tivesse apresentado.

O telefonema foi recebido no escritório na tarde seguinte:

- Alex? Fala George Mellis - informou ele desnecessariamente, pois a voz grave e rouca era inconfundível aos ouvidos de Alexandra. - Desculpe não ter falado antes, mas acabo de regressar de Atenas.

- Esteve em Atenas? - articulou ela, sentindo as esperanças reacenderem-se.

- Recorda-se da noite em que jantámos juntos? Na manhã seguinte, Steve, um dos meus irmãos, telefonou-me para comunicar uma notícia desagradável. Meu pai sofrera um ataque cardíaco.

- Meu Deus! - acudia-lhe um remorso quase insustentável, por haver duvidado dele. - Como se encontra?

- Vai recompor-se, felizmente. Pediu-me que regressasse à Grécia, para dirigir o negócio da família.

- Tenciona fazê-lo? - perguntou, contendo o alento.

- Não. Compreendi que o meu lugar é aqui. Não passa um dia ou uma hora sem que pense em si. Quando a posso ver?

- Não tenho qualquer compromisso para esta noite. Mellis sentiu-se quase tentado a indicar outro dos restaurantes preferidos de Alexandra, mas conteve-se a tempo e proferiu:

- Óptimo. Onde quer ir jantar?

- É-me indiferente. E se for em minha casa?

- Isso, não - ele ainda não se considerava preparado para enfrentar Kate. “Evita encontrar-te com minha avó, por enquanto. É o teu maior obstáculo.” - Irei buscála às oito.

Ela pousou o auscultador, beijou Alice Koppel, Vince Bar-nes e Marty Bergheimer e anunciou:

- Vou ao cabeleireiro. Até amanhã. Acompanharam-na com a vista, perplexos, e Alice Koppel afirmou:

- É um homem.

Jantaram no MaxwelTs Plum, onde um empregado de ar solene os conduziu à sala no primeiro piso, depois de atravessarem o concorrido bar em forma de ferradura.

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- Pensou em mim na minha ausência? - perguntou Mellis, depois de escolherem a ementa.

- Sim - Alexandra decidira que tinha de usar da máxima sinceridade com aquele homem tão aberto e vulnerável. - Cheguei a recear que lhe tivesse acontecido alguma coisa. Se não telefonasse, duvido que resistisse mais um dia à incerteza.

“Eva acertou em cheio. Recomendou-me calma e para não telefonar até que ela dissesse.” Invadia-o pela primeira vez a convicção de que o plano resultaria. Até então, deixara -o pairar na periferia do espírito, acarinhando a ideia de vir a controlar a incrível fortuna Blackwell, sem se atrever a aceitá-la como um facto inevitável. Agora, porém, contemplando Alexandra sentada na sua frente, os olhos inundados de adoração, reconhecia que tudo se desenrolava no sentido do êxito final. A rapariga achava -se praticamente em seu poder, o que completava a primeira etapa do plano. Os que se seguiam podiam revestir-se de perigo, mas, com a ajuda de Eva, havia de os superar.

“Estamos metidos nisto juntos, até ao fim, George, e partilharemos tudo em partes iguais.”

No entanto, Mellis não acreditava em sociedades. Quando obtivesse o que lhe interessava e eliminasse Alexandra, ocupar-se-ia de Eva, perspectiva que lhe infundia um prazer especial.

- De que sorri? - quis saber ela.

- Pensava em como é agradável estarmos aqui juntos - murmurou ele, acariciando-lhe a mão sobre a mesa. Em seguida, procurou na algibeira e extraiu uma pequena caixa oblonga. - Trouxe-lhe uma recordação da Grécia.

- Oh, George…

- Veja o q ue é…

- Que maravilha! - murmurou Alexandra, contemplando o colar de brilhantes que ele roubara a Eva.

“É um objecto que não oferece perigo”, afirmara esta última. “Ela nunca o viu.”

Mellis interpretou correctamente a expressão que lhe observou no olhar. Com efeito, vira-a nos de muitas mulheres: bonitas e feias, ricas e pobres. Utilizara -as para os seus fins, e de uma maneira ou de outra, haviam-lhe dado alguma coisa.

Todavia Alexandra proporcionar-lhe-ia muito mais do que todas as outras juntas.

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- Que quer fazer, após o jantar? - perguntou, numa inflexão que constituía uma sugestão inequívoca.

- Estar consigo - foi a resposta sem a mínima hesitação. George Mellis tinha todos os motivos para se orgulhar do seu apartamento, decorado luxuosamente por amantes gratos - homens e mulheres -, que haviam tentado comprar-lhe o afecto com ofertas dispendiosas, e conseguido, sempre temporariamente.

- É encantador - admitiu Alexandra, olhando em volta.

Ele beijou-a com suavidade e depois com maior sofreguidão, enquanto ela quase não se dava conta de que a conduzia para o quarto, no centro do qual se erguia uma ampla cama de casal.

- Não estejas nervosa - sussurrou, principiando a despi-la.

Entretanto, conservava bem presentes as advertências de Eva. “Domina-te. Se a magoares e ela descobre o porco que és, não a voltas a ver. Reserva os punhos para as tuas prostitutas e rapazinhos bonitos.”

Nessa conformidade, terminou de a despir, desembaraçou-se por seu turno da roupa apressadamente e deitaram-se.

Os minutos que se seguiram foram verdadeiramente celestiais para Alexandra e um fardo quase insustentável para Mellis, o qual continha a custo o desejo de a obrigar a voltar-se para lhe introduzir o pénis no ânus.

Em todas as ligações amorosas há mal-entendidos, cenas de ciúme e pequenas desavenças, mas não no romance entre eles. Graças aos conselhos meticulosos de Eva, Mellis conseguia explorar todas as emoções de Alexandra da melhor maneira.

Havia determinadas áreas do corpo dela que lhe interessavam mais, mas necessita va de usar das maiores precauções. A altas horas da noite, visitava bares suspeitos e discotecas, onde se lhe deparavam viúvas famintas de amor, prostitutas ávidas de dinheiro e rapazes condescendentes, que conduzia a hotéis sombrios. Nunca praticava os se us actos sórdidos duas vezes no mesmo lugar, nem seria acolhido com satisfação, pois os seus parceiros sexuais costumavam aparecer inconscientes, com os corpos maltratados e por vezes cobertos de queimaduras de cigarro.

Mellis evitava os masochistas. Esses gozavam com a dor, o que o privava de sentir prazer. Ao invés, gostava de os ouvir gritar e implorar misericórdia, como fora obrigado a fazer pelo pai, em criança. O castigo pelas infracções mais insignificantes consistia em espancamentos que lhe provocavam a inconsciência.

Aos oito anos, o progenitor surpreendera-o com um garoto da vizinhança, ambos desnudos, e, depois de lhe bater até que o sangue lhe brotara do nariz e dos ouvidos, aproximara-lhe a ponta de um cigarro aceso do pénis. A queimadura sarara com o tempo, mas a cicatriz íntima perdurara.

George Mellis possuía a natureza selvagem e arrebatada dos seus antepassados helénicos. Não suportava a ideia de ser dominado por alguém, e sujeitava-se à pungente humilhação que Eva Blackwell lhe infligia apenas porque necessitava dela. Quando tivesse a fortuna em seu poder, tencionava castigá-la até que suplicasse que a matasse. Conhecê-la fora a ocorrência mais afortunada que se lhe poderia deparar. “Afortunada para mim”, cismava ele. “Para ela, foi infortunada.”

Alexandra nunca parava de se surpreender com a facilidade com que Mellis lhe adivinhava as preferências em matérias tão diferentes como flores, discos e livros.

Quando visitavam um museu, ele entusiasmava-se com as mesmas telas de que ela gostava. Por mais que se esforçasse em procurar-lhe um ponto fraco, um defeito, não conseguia. Era perfeito. O facto obrigava-a a ansiar cada vez mais pelo momento em que o apresentaria à avó. Não obstante, Mellis encontrava sempre um pretexto para se esquivar à confrontação.

- Mas estou certa de que gostarás dela, querido! - insistia. - Quero que conheça o homem que amo.

- Não duvido de que se trata de uma excelente senhora - argumentava ele -, mas receio que pense que não sirvo para ti.

- Que patetice! - a modéstia do amante enternecia-a. - A avó vai adorar-te!

- Em breve. Quando eu reunir a coragem suficiente.

Mellis discutiu o assunto com Eva, que reflectiu por uns momentos e decidiu:

- Está bem. De qualquer modo, o momento crucial é

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inevitável, mais cedo ou mais tarde. Mas presta a maior atenção às tuas palavras e gestos. Ela é uma cadela muito esperta. Não lhe subestimes as faculdades por um segundo que seja. Se desconfia de que te animam intenções materiais, retalha-te o coração e dá-o de comer aos cães.

- Porque precisamos dela?

- Porque, se fizeres alguma coisa que provoque o antagonismo entre as duas, estamos arrumados.

Alexandra nunca o vira tão nervoso como na noite em que se preparavam para jantar com Kate. Entretanto, rezava intimamente para que nada corresse mal, pois desejava, mais que qualquer outra coisa no mundo, que a avó e Mellis simpatizassem mutuamente.

Por seu turno, Kate nunca vira a neta tão feliz. Alexandra conhecera os jovens mais atraentes e abastados e jamais manifestara interesse por eles. Por conseguinte, impunha-se que observasse com atenção o homem que conseguira conquistar o coração da rapariga. Kate dispunha de um faro.especial para detectar caçadores de fortunas e estava firmemente decidida a evitar que a neta fosse apanhada pela rede de algum.

Ansiava conhecer George Mellis, porque tinha a vaga impressão de que ele sentia relutância em a enfrentar e gostava de descobrir o motivo.

Ouviu a campainha da porta e, no minuto seguinte, Alexandra entrou na sala, dando a mão a um desconhecido classicamente bem-parecido.

- Avó, apresento-te George Mellis.

- Até que enfim - disse Kate. - Começava a pensar que me evitava, Mister Mellis.

- Pelo contrário, Mistress Blackwell; nem imagina como aguardava este momento.

Ele preparava -se para acrescentar: “Ainda é mais bonita do que Alex dizia”, mas conteve-se. “Tem cautela. Nada de adulações, que são como uma bandeira vermelha para a velhota.”

Nesse momento, surgiu um empregado, que preparou bebidas e se retirou discretamente.

- Sente-se, Mister Mellis.

- Obrigado.

Alexandra instalou-se ao lado dele no sofá, diante da avó, enquanto esta prosseguia:

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- Sei que vocês se encontram com frequência. - Para profundo prazer meu.

- Minha neta diz que trabalha numa firma de corretagem - volveu, sem o perder de vista por um instante.

É exacto.

- Para ser franca, parece-me estranho que esteja empregado, quando podia dirigir uma empresa lucrativa.

- Já te expliquei, avó…

- Quero ouvi-lo dos lábios de Mister Mellis.

“Acima de tudo, sê delicado. Não a antagonizes. Se deixares transparecer o menor sinal de fraqueza, ela reduz-te a farripas.” - Não tenho o hábito de discutir a minha vida particular… - e ele hesitou, como se procurasse tomar uma decisão. - No entanto, dadas as circunstâncias… - encarou Kate com firmeza e continuou: - Sou um homem muito independente. Nunca aceito caridade. Se tivesse fundado a Mellis and Com-pany, dirigia-a com a maior satisfação. Mas o fundador foi o meu avô, que a converteu num negócio muito lucrativo para meu pai. A minha colaboração não é necessária. Meus três irmãos possuem competência suficiente para orientar as operações. Prefiro trabalhar por conta de outrem, até encontrar algo que possa construir e proporcionar-me orgulho.

Kate inclinou a cabeça com lentidão. O homem não correspondia de modo algum às suas previsões mais tenebrosas. Esperara que se lhe deparasse umplayboy, um caçador de fortunas daqueles que lhe perseguiam as netas desde a adolescência. O que se encontrava na sua frente parecia diferente. Não obstante, existia nele qualquer coisa de inquietante que não conseguia definir. Na realidade, era quase demasiado perfeito.

- Sei que a sua família é abastada - observou, após uma pausa.

“Basta que acredite que és podre de rico e amas Alex com loucura. Sê simpático.

Domina o temperamento turbulento, e podemos cantar vitória.” - O dinheiro representa uma necessidade, sem dúvida. Em todo o caso, há centenas de outras coisas que me interessam mais.

Kate informara-se acerca da situação da Mellis and Com-pany e, segundo o relatório da Dun Bradstreet, o seu activo excedia os trinta milhões de dólares.

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- Mantém relações estreitas com a família, Mister Mellis?

- Talvez de mais - e o semblante dele iluminou-se. - Segundo um velho adágio, quando um de nós se corta num dedo, todos sangramos. Mantemo-nos em contacto permanentemente.

Na verdade, havia mais de três anos que não trocava uma palavra com qualquer familiar.

- Sou partidária das famílias unidas - disse Kate, com um movimento de cabeça de aprovação.

Desviou os olhos para a neta e descortinou-lhe uma expressão de veneração no olhar. Por um instante fugaz, pensou nela própria e em David nos tempos remotos em que se amavam profundamente.

Interrompeu-lhe as reflexões momentâneas a entrada do mordomo, que anunciou:

- O jantar está pronto, Mistress Blackwell.

A conversa à mesa pareceu mais informal, mas as perguntas de Kate eram incisivas, e Mellis achava-se preparado para a mais importante, quando surgiu.

- Gosta de crianças? “Ela está desesperada por um neto… Deseja-o mais do que tudo o resto no mundo” - Se gosto de crianças? - e o interpelado exibiu um ar surpreendido. - Que é um homem sem filhos ou filhas? Quando casar, manterei a minha pobre esposa muito ocupada. Na Grécia, o valor de um indivíduo mede-se pelo número de descendentes.

“Parece sincero”, pensou Kate. “Mas todo o cuidado é pouco. Amanhã, incumbirei Brad Rogers de lhe investigar as finanças pessoais.”

Antes de se deitar, Alexandra telefonou à irmã, a quem prevenira da visita de George Mellis.

- Fico ansiosa por saber o que se passou - declarara Eva. - Liga para cá assim que ele sair. Quero um relatório minucioso.

E agora Alexandra informava!

- Penso que a avó gostou muito dele.

- Que disse? - insistiu a outra, experimentando umfris-son de triunfo.

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- Fez-lhe uma infinidade de perguntas, mas George portou-se admiravelmente.

“Então, sempre prestara atenção às recomendações dela.” - Vão casar?

- Bem, ele ainda não falou nisso, mas creio que o fará.

- Achas que a avó não se oporá?

- Estou quase certa disso. Vai investigar as finanças pessoais dele, mas por aí não haverá problema.

Eva sentiu um abalo inesperado, enquanto a irmã acrescentava:

- Sabes como ela gosta de tomar todas as precauções.

- É verdade - assentiu distraidamente. Estavam perdidos, a menos que lhe ocorresse uma solução sem demora. - Vai-me informando do que houver.

- Está descansada. Boa noite.

Pousou o auscultador e voltou a levantá-lo com prontidão, a fim de marcar o número de George Mellis, mas ainda não chegara a casa. Efectuou tentativas cada dez minutos, até que ele atendeu finalmente.

- Podes arranjar um milhão de dólares rapidamente? - perguntou ela.

- De que estás para aí a falar?

- Kate vai investigar as tuas finanças.

- Sabe o que a minha família possui.

- Refiro-me à tua pessoa e não à família.

Seguiu-se um silêncio momentâneo, até que Mellis articulou:

- Onde queres que vá buscar uma quantia dessas?

- Tenho uma ideia - murmurou Eva.

Quando entrou no seu gabinete, na manhã seguinte, Kate indicou à recepcionista:

- Diga a B rad Rogers que investigue as finanças pessoais de George Mellis, empregado na Hanson and Hanson.

- Mister Rogers teve de se ausentar da cidade e só regressa amanhã, Mistress Blackwell. Pode aguardar ou?…

- Não é sangria desatada. Fica para amanhã.

George Mellis encontrava -se sentado à sua secretária, nos escritórios da firma de corretagem Hanson and Hanson. A Bolsa achava-se em plena actividade e a vasta sala era um pandemónio de vozes. A sede contava com duzentos e vinte e

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cinco funcionários: corretores, analistas, contabilistas e representantes de clientes, os quais trabalhavam a uma velocidade febril. Excepto Mellis, petrificado na secretária, dominado pelo pânico. O que se preparava para fazer valer-lhe-ia longa permanência na prisão, se falhasse.

- Não atende o telefone?

Um dos sócios da firma surgira na sua frente e ele apercebeu-se de que a campainha tocava com insistência. Impunha-se que agisse com naturalidade e não fizesse coisa alguma susceptível de despertar suspeitas.

- George Mellis - proferiu para o bocal, ao mesmo tempo que dirigia um sorriso tranquilizador ao homem.

Passou o resto da manhã recebendo indicações para comprar e vender acções, mas o seu espírito concentrava-se no plano de Eva para roubar um milhão de dólares. “É muito simples, George. Basta apoderares-te de alguns certificados de títulos por uma noite. Poderás restituí-los de manhã, sem que alguém se aperceba”.

Todas as firmas de corretagem possuem acções e títulos no valor de milhões de dólares guardados em cofres-fortes, como uma medida de conveniência para os clientes. Alguns dos certificados de acções ostentam o nome do detentor, mas a esmagadora maioria contém um número em código da CMISU - Comissão dos Métodos de Identificação de Segurança Uniforme -, que identifica o proprietário.

Esses certificados não são negociáveis, mas George Mellis não pretendia trocálos pelo seu valor. Na Hanson and Hanson, as acções eram guardadas num cofre - forte situado no sétimo piso, numa área de segurança vigiada por um polícia armado diante de uma porta que só se podia abrir por meio de um rectângulo de acesso de plástico codificado. Ora, embora Mellis não possuísse um desses rectângulos, conhecia alguém que lho poderia “emprestar”.

Helen Thatcher era uma viúva solitária que já singrava na casa dos quarenta. No entanto, tinha feições atraentes e corpo razoavelmente torneado, além do que se podia considerar uma cozinheira excelente. Estivera casada vinte e três anos e a morte do marido deixara um vazio na sua vida. Por outras palavras, necessitava de um homem que lhe prestasse assistência. Todavia, o seu problema consistia em que a maioria dos que trabalhavam na Hanson and Hanson eram mais novos, pelo que ninguém a convidava para sair.

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() seu local de trabalho situava-se no departamento de contabilidade, no piso superior ao de George Mellis, que ela classificara como o melhor substituto para o extinto companheiro, desde a primeira vez que o vira. Convidara-o algumas vezes para um jantar caseiro e deixara transparecer que as suas atenções não se cingiriam ao campo da culinária, se ele estivesse interessado. Contudo, até agora, Mellis arranjara sempre uma desculpa para se esquivar às actividades de alcova com a colega.

Naquela manhã, quando o telefone tocou e Helen levantou o auscultador, escutou a voz que lhe provocava vibrações especiais.

- Fala George.

- Olá, George! Em que lhe posso ser últil?

- Tenho uma pequena surpresa para si. Pode chegar cá abaixo?

- Agora?

- Sim.

- É que estou a meio de…

- Se tem muito que fazer, fica para outra ocasião.

- Não, não. Desço já.

Ignorando o telefone, que voltou a tocar mal cortou a ligação, ele pegou num maço de papéis e encaminhou-se para o sector dos elevadores. Uma vez aí, olhou em volta, para se certificar de que ninguém o observava, e enveredou pela escada.

Quando alcançou o piso de cima, espreitou para verificar se Helen já saíra e entrou na sala, como se tivesse assuntos a tratar lá. Se o interceptassem… Mas não podia perder tempo a pensar nisso e apressou-se a abrir a gaveta do meio da secretária, onde sabia que ela guardava o ambicioso rectângulo de plástico. Fê-lo desaparecer na algibeira com prontidão e regressou apressadamente ao ponto de partida.

- Desculpe - proferiu, ao ver que Helen o esperava, como previra. - O chefe chamou-me para um assunto urgente.

- Não tem importância. Qual é a surpresa?

- Um passarinho segredou-me que faz anos hoje, e queria levá-la a almoçar.

- É muito gentil - e Mellis viu que ela travava breve luta íntima para decidir se devia ou não esclarecer que não era o dia do seu aniversário. - Aceito com o maior prazer.

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- Nesse caso, encontramo-nos no Tony's, à uma.

O convite podia perfeitamente ter sido formulado pelo telefone, mas Helen Thatcher estava demasiado excitada para se preocupar com semelhante pormenor.

Mellis entrou em acção no momento em que ela se afastou, pois tinha muito que fazer antes de repor o rectângulo de plástico no lugar donde o tirara. Meteu-se no elevador, até ao sétimo piso, e dirigiu-se à área de segurança, onde se encontrava o guarda diante da porta gradeada. Com a maior naturalidade, introduziu o rectângulo na ranhura e abriu. No instante em que entrava, o polícia observou:

- Não me recordo de o ver antes.

- É natural - e o coração de Mellis começou a palpitar mais depressa. - Não costumo frequentar estas paragens. Um dos meus clientes decidiu de repente que queria ver os seus certificados de acções e obrigou-me a vir buscá-los. Oxalá a operação não me tome toda a tarde.

- Felicidades - replicou o outro, com um sorriso.

O interior do cofre-forte era de betão armado e media dez metros por cinco. Sem hesitar, Mellis aproximou-se das gavetas à prova de fogo que continham as acções e abriu uma. O número de títulos que cada certificado representava achava-se inscrito na parte anterior e variava de um a cem mil. Ele esquadrinhouas com rapidez e eficiência, escolhendo várias, de diferentes companhias, até perfazer o valor de um milhão de dólares. Em seguida, guardou-as na algibeira interior do casaco e moveu-se para a saída.

- Afinal, foi rápido - comentou o guarda.

- Os computadores forneceram-me números errados. Vou ter de desfazer a confusão amanhã.

- Desconfio que os computadores atrapalham mais do que ajudam.

Quando regressou à sua secretária, Mellis descobriu que transpirava abundantemente. “Até aqui, tudo bem”, pensou, pegando no telefone, a fim de contactar Alexandra.

- Precisava de falar contigo e tua avó, esta noite, querida.

- Julgava que tinhas uma reunião de trabalho.

- Pois tinha, mas cancelei-a. O que pretendo comunicar-Lhes reveste-se da maior importância.

Às treze horas em ponto, ele voltava a colocar o rectângulo de plástico na gaveta da secretária de Helen Thatcher,

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enquanto esta aguardava no restaurante. Por sua vontade, tê-lo-ia conservado em seu poder, mas sabia que todos os que não fossem entregues no final de cada dia de trabalho perderiam a validade na manhã seguinte e o computador não os aceitaria. Às 13.10 horas, sentava-se à mesa do restaurante. A meio da refeição pegou na mão de Helen e murmurou:

- Havemos de fazer isto mais vezes. Está livre amanhã? - Sem dúvida, George!

Quando abandonou o escritório, naquela tarde, George Mellis levava consigo certificados de acções no valor de um milhão de dólares.

Apresentou-se na mansão Blackwell às sete exactas e o mordomo conduziu-o à sala, onde Kate e Alexandra o aguardavam.

- Boa noite - principiou. - Espero não vir incomodar, mas precisava de falar com ambas. - e voltando-se para Kate. - O meu gesto poderá parecer fora de moda, Mistress Blackwell, mas peço-lhe autorização para desposar sua neta. Amo Alexandra e creio que ela também me tem afecto. Apesar disso, gostaríamos de contar com a sua aprovação - levou a mão à algibeira do casaco, extraiu os certificados de acções e colocou-os em cima da mesa diante dela. - Ofereço-lhe um milhão de dólares como prenda de casamento. Assim, não necessitaremos do seu dinheiro. Apenas carecemos da sua bênção.

Kate baixou os olhos para os certificados e reconheceu os nomes de todas as companhias neles mencionados. Entretanto, Alexandra acercou-se de Mellis, devorando-o com os olhos brilhantes de alegria.

- Que dizes, avó?

Esta contemplou-os em silêncio por um momento e reconheceu que não se devia opor aos seus desígnios.

- Têm a minha bênção - declarou por fim, reflectindo que não podia deixar de os invejar.

Ele exibiu um sorriso cativante e aproximou-se dela.

- Permite-me? - perguntou, e beijou-a na face.

Durante as duas horas imediatas, trocaram impressões sobre o casamento, e Alexandra advertiu:

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- Não quero uma cerimónia pomposa, avó. Não concordas, George? i - Sem dúvida. O amor é um assunto privado. i Por último, decidiram que a união se realizaria na maior intimidade, presidida por um magistrado.

- Seu pai virá? - quis saber Kate.

- Ninguém o conseguiria impedir - afirmou Mellis. - Ele e os meus cinco irmãos e irmãs.

- Estou ansiosa por conhecê-los.

- Creio que gostarás deles.

Ela sentia-se impressionada com a situação e congratulava -se sobretudo pela visível felicidade da neta, que encontrara um homem profundamente apaixonado.

“Tenho de me lembrar de recomendar a Brad que já não precisa investigar as finanças do rapaz.”

Quando se preparava para sair, e numa altur-a em que Kate já recolhera ao quarto, Mellis observou com aparente naturalidade:

- Não me parece conveniente deixar aqui acções no valor de um milhão de dólares. Vou levá-las para o meu cofre, até ver.

- Boa ideia - aprovou Alexandra.

Assim, ele voltou a guardá-las na algibeira e retirou-se.

Na manhã seguinte, repetiu o processo com Helen Thatcher. Enquanto ela descia ao seu encontro (“Tenho uma coisa para si”), ele tornava a apoderar-se do rectângulo de plástico. Depois, ofereceu-lhe um cachecol de seda (“uma prenda de anos atrasada”), e confirmou o encontro para almoçar. Desta vez, o ingresso no cofre-forte pareceu mais fácil. Restituiu os certificados ao lugar primitivo, voltou a colocar o rectângulo de plástico na gaveta da secretária e reuniu-se a Helen num restaurante das proximidades.

- Porque não jantamos em minha casa, esta noite? - sugeriu ela, antes de se separarem.

- Receio que seja impossível. Vou casar.

Três dias depois do casamento, Mellis apresentou-se na mansão Blackwell, o rosto alterado por uma expressão de pesar.

- Acabo de receber uma notícia terrível. Meu pai sofreu novo ataque cardíaco.

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- Lastimo muito! - exclamou Kate. - Vai-se recompor?

Contactei a família pelo telefone, várias vezes, durante a noite. A conclusão a que se chegou é que se há-de restabelecer, mas não poderá assistir, ao casamento.

- Podíamos ir a Atenas na lua-de-mel e visitá-lo - aventou Alexandra.

- Tenho outros planos, matia mou - murmurou Mellis, acariciando-lhe a cabeça. - A família não intervém neles.

A cerimónia nupcial foi celebrada na ampla sala da mansão Blackwell, com a presença de cerca de uma dezena de convidados, entre os quais Vince Barnes, Alice Koppel e Marty Bergheimer. Alexandra suplicara à avó que permitisse a comparência de Eva, mas Kate mostrara-se intransigente.

- Tua irmã jamais será bem-vinda a esta casa.

- És cruel, avó - volveu a rapariga, de olhos húmidos. - Estimo as duas. Não lhe podes perdoar?

Por um instante, Kate sentiu-se tentada a esquecer a deslealdade da neta, mas conteve-se a tempo.

- Procedo como me parece melhor para todos.

Um fotógrafo registou o acontecimento para a posteridade, e ela ouviu Mellis recomendar ao homem que tirasse mais algumas cópias para enviar à família.

“Vê-se que sente profundo afecto pelos pais e pelos irmãos”, pensou com satisfação.

Após o tradicional corte do bolo, Mellis murmurou ao ouvido de Alexandra:

- Vou ter de me ausentar por um par de horas.

- Aconteceu alguma coisa?

- Que ideia! Simplesmente, a única maneira de convencer os meus c hefes a dispensarem-me para casar foi com a promessa de terminar um trabalho que deixei em suspenso. Regressarei muito a tempo de seguirmos no avião. Só parte às cinco, como sabes.

- Está bem, mas despacha-te, por favor - e ela esboçou um pálido sorriso. - Não quero ter uma lua-de-mel sem ti.

Quando ele entrou no apartamento de Eva, viu-a envolta num negligée translúcido.

- Divertiste-te muito no teu casamento, querido?

- Sim, obrigado. Foi uma cerimónia íntima, mas elegante. Decorreu tudo na perfeição.

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- Sabes porquê? Por minha causa. Nunca te esqueças disto Mellis olhou-a pensativamente por um momento e assentiu - Não te preocupes.

- Somos cúmplices até ao fim.

- Com certeza.

- Com que então estás casado com a minha irmãzinha!

- Pois estou, e tenho de regressar -: anunciou, consultando o relógio.

- Ainda não.

- Porquê?

- Porque primeiro vais fazer amor comigo. Quero fornicar com o meu cunhado.

Capítulo trigésimo Eva planeara a lua -de-mel minuciosamente e comentara:

- É dispendiosa, mas deves armar em mãos largas.

Para o efeito, vendeu três jóias oferecidas por um admirador ardente e entregou o dinheiro a Mellis, que se mostrou reconhecido.

- Agradeço-te a atenção.

- Hei-de recuperar tudo isso com largos juros.

A lua-de-mel atingiu quase a perfeição. Instalaram-se num hotel sobranceiro à baía Montego, na parte norte da Jamaica, de onde partiam para numerosas excursões. Alexandra fazia tudo o que lhe ocorria para agradar ao marido e congratulava-se profundamente quando o ouvia soltar gemidos de prazer no clímax das suas relações entre os lençóis.

No quinto dia, Mellis informou:

- Tenho de me deslocar a Kingston, para tratar de um assunto de serviço. A firma possui lá uma delegação, e pediram-me que fosse recolher uns documentos.

- Muito bem. Vou contigo.

- Era óptimo, querida, mas espero uma chamada da sede. Tens de ficar para tomar nota da mensagem.

- A telefonista não se pode encarregar disso? - argumentou ela, desapontada.

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- É um assunto importante e podia cometer algum erro.

- Nesse caso, que remédio - capitulou, com um suspiro..- Fico.

Mellis alugou um carro e seguiu para Kingston, onde chegou ao fim da tarde.

Assolava-o um desejo excruciante, acumulado ao longo de semanas, que necessitava de satisfazer com urgência. Assim, entrou no primeiro bar que avistou e trocou algumas palavras com o empregado atrás do balcão. Transcorridos cinco minutos, acompanhava uma prostituta negra de quinze anos a um hotel de má nota. Duas horas mais tarde, retirou-se só, subiu para o carro, e regressou à baía Montego, onde Alexandra lhe comunicou que ninguém telefonara.

Na manhã seguinte, os jornais de Kingston informavam que um turista espancara e mutilara uma prostituta, a qual se encontrava entre a vida e a morte.

Na Hanson and Hanson, os membros da direcção trocavam impressões sobre George Mellis, pois haviam-se registado queixas de vários clientes relacionadas com o modo como se ocupava dos seus títulos confiados à firma. Fora decidido despedi-lo, mas alguém levantou uma objecção importante:

- É casado com uma das netas de Kate Blackwell.

- Isso confere um aspecto novo à situação. Se conseguíssemos que ela nos confiasse parte das suas acções…

A avidez que pairava na atmosfera podia considerar-se quase palpá vel e acabou por ficar assente que George Mellis merecia que lhe concedessem uma segunda oportunidade.

Quando Alexandra e Mellis regressaram da lua-de-mel, Kate declarou:

- Gostava que passassem a viver comigo. A casa é enorme e não tropeçaríamos uns nos o utros.

- É uma grande gentileza de sua parte, Mistress Blackwell - redarguiu ele -, mas julgo preferível que nos instalemos num apartamento só nosso.

Ao mesmo tempo, reflectia que não fazia a mínima tenção de permanecer sob o mesmo tecto que a velha, a qua l, decerto, não perderia o ensejo de lhes vigiar todos os movimentos.

- Compreendo - aquiesceu Kate. - Nesse caso, deixem-me comprar-lhes uma casa. Será a minha prenda de casamento.

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- A sua generosidade não tem limites - asseverou Mellis, abraçando-a. - Aceitamos com gratidão.

- Obrigada, avó - interpôs Alexandra. - Procuraremos uma perto daqui.

- Exacto - volveu ele. - Queremos estar nas proximidades, para não a perder de vista. É uma mulher muito atraente, sabe!

Dias depois, descobriram uma casa de três pisos a meia dúzia de quarteirões da mansão Blackwell, e Mellis preveniu Alexandra:

- A decoração fica a teu cargo, porque estarei muito ocupado com clientes.

A verdade era que raramente comparecia no escritório e consagrava pouco tempo à clientela, pois preenchia os dias com assuntos mais interessantes. A Polícia recebia uma série de relatórios de assaltos a prostitutas, homossexuais e mulheres solitárias que frequentavam bares. As vítimas descreviam o misterioso indivíduo como sendo atraente e culto, de origem estrangeira, possivelmente latina. No entanto, aquelas que se achavam em condições de consultar as fotografias de cadastrados em poder das autoridades não conseguiam proporcionar uma identificação.

Eva e Mellis almoçavam num pequeno restaurante do centro da cidade, onde não corriam o risco de ser reconhecidos.

- Tens de convencer Alex a redigir um novo testamento, sem o conhecimento de Kate - indicou ela.

- Como diabo queres que consiga isso?

- Vou-te explicar, querido…

Na noite imediata, ele e ncontrou-se com Alexandra em Lê Plaisir, um dos locais mais requintados de Nova Iorque, onde apareceu com meia hora de atraso.

- Desculpa, anjo. Estive no escritório do meu advogado, e sabes como eles complicam as coisas mais simples.

- Que foste lá fazer?

- Decidi alterar o testamento. Se me acontecer alguma fatalidade, tudo o que possuo será teu.

- Não quero que…

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- É pouco, comparado com a fortuna Blackwell, mas chega para que vivas confortavelmente.

- Não fales nisso, por favor.

- Às vezes, o Destino prega-nos partidas inesperadas. Embora não seja agradável admiti-lo, convém estarmos preparados para semelhantes emergências.

Ela conservou-se silenciosa por um momento, imersa em reflexões, e perguntou:

- Não te parece que também devia alterar o meu?

- Para quê? - redarguiu Mellis, mostrando-se surpreendido.

- És o meu marido. Tudo o que tenho pertence-te.

- O teu dinheiro não me interessa, Alex.

- Acredito, querido, mas tens razão. Convém estarmos preparados - e os olhos de Alexandra marejaram-se. - Sinto-me tão feliz que não suporto a possibilidade de acontecer alguma coisa a qualquer de nós. Amanhã mesmo falarei com Brad Rogers.

- Se preferes assim - e ele encolheu os ombros num gesto de aparente indiferença. - No entanto, julgo conveniente que seja o meu advogado a tratar disso. Está familiarizado com a natureza dos meus bens e pode coordenar tudo.

- Pois sim. A avó pensa…

- Não a envolvamos nisto - propôs com ternura. - Adoro-a, mas penso que devemos manter os nossos assuntos pessoais só para nós.

- Tens razão, como sempre. Não lhe direi nada. Entendes-te com o advogado, para que me receba amanhã?

- Lembra-me para lhe telefonar. E, agora, vamos comer. Que dizes a uns mariscos, como começo?…

Uma semana mais tarde, Mellis procurou Eva no seu apartamento.

- Alex já assinou o novo testamento? - perguntou ela, com ansiedade.

- Esta manhã. Herda a sua parte da companhia dentro de oito dias, no aniversário.

Transcorrida mais uma semana, quarenta e nove por cento das acções da Kruger- Brent, Ltd., eram transferidos para Alexandra. Mellis telefonou a Eva para lhe comunicar a excelente notícia e ela exclamou:

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- Estupendo! Passa por cá logo, para celebrarmos.

- Não posso. Kate promove uma festa em honra de Alex. Seguiram-se uns segundos de silêncio, antes da pergunta de Eva:

- Que servem?

- Como diabo queres que saiba?

- Trata de averiguar - e cortou a ligação.

Quarenta e cinco minutos depois, Mellis voltou a contactá-la pelo telefone.

- Não percebo porque te interessa a ementa, uma vez que não foste convidada, mas compõe-se de Coquille Saint-Jac-ques, Chateaubriand, saladas de alface e mista, Brie, cap-puccino e um bolo de aniversário, com o gelado favorito de Alex.

Ficaste satisfeita?

- Muito. Até logo à noite.

- Nem pensar. Não posso ausentar-me a meio da…

- Há-de ocorrer-te um pretexto - foi a advertência ameaçadora.

“Raios partam a cadela!” Ele pousou o auscultador e consultou o relógio. Tinha uma entrevista com um cliente importante, ao qual não comparecera por duas vezes num lapso de poucos dias, e atrasara-se de novo. Sabia que a direcção da Hanson and Hanson não o despedia unicamente em virtude do seu ingresso na família Blackwell, mas impunha-se que não agravasse demasiado a sua posição.

Criara uma imagem para impressionar Alexandra e Kate e impunha-se que nada a destruísse. Aliás, em breve deixaria de necessitar delas.

Enviara um convite ao pai, mas o velho nem se dera ao incómodo de responder ou enviar uma palavra de felicitações. “Não quero tornar a ver-te!”, afirmara no seu último encontro. “Para mim, morreste, ouviste? Morreste!” Pois, aguardava -o uma surpresa. O filho pródigo voltaria a dar sinais de vida.

A festa do vigésimo segundo aniversário de Alexandra constituiu um êxito extraordinário. Havia quarenta convidados, e enfrentara uma negativa quando sugerira ao marido que chamasse alguns dos seus amigos.

- A homenageada és tu, querida. Portanto, devem comparecer apenas as pessoas das tuas relações.

A realidade era que ele não tinha amigos, na sua qualidade

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de solitário, como gostava de se intitular. Aqueles que dependiam de outros não passavam de fracos. Quando viu Alexandra apagar as velas do bolo, compreendeu que formulava um desejo íntimo que o envolvia, e reflectiu: “Devias desejar antes uma vida mais longa, minha menina.” No fundo, era forçado a admitir que ela apresentava um aspecto deslumbrante. Usava um vestido de chiffon comprido, com sandálias prateadas e um colar de brilhantes, oferta da avó.

As pedras longas, em forma de pêra, achavam-se unidas por meio de um cordão de platina e refulgiam à luz das velas.

Kate contemplava-as e cismava: “Recordo-me do nosso primeiro aniversário, quando David mo colocou ao pescoço e murmurou como me amava.”

Mellis, por seu turno, pensava: “Aquele colar não deve valer menos de cento e cinquenta mil dólares!”

Entretanto, apercebia-se de que muitas das convidadas lhe sorriam convidativamente e, noutras circunstâncias, não hesitaria em tirar partido do facto.

Tratava-se, contudo, de amigas de Alexandra, que, conquanto talvez não se lhe fossem queixar, decerto recorreriam à Polícia. Não, as coisas desenrolavam-se com demasiada suavidade para que se expusesse a riscos desnecessários.

Quando faltava um minuto para a uma da madrugada, postou-se nas proximidades do telefone e, no momento que tocou, apressou-se a levantar o auscultador.

- Estou…

- Mister Mellis?

- O próprio.

- Fala do seu serviço informativo. Pediu que lhe telefonasse à uma.

Como Alexandra se achava perto, ele olhou-a, enrugando a fronte numa atitude de apreensão.

- A que horas ligou ele?

- É Mister Mellis?

- Sim.

- Pediu que…

- Está bem - assentiu, com resignação. - Diga-lhe que sigo já para o clube Pan Am Clipper - e cortou a ligação com um gesto de enfado.

- Que se passa, querido? - perguntou Alexandra.

- Um dos sócios da firma segue para Singapura e

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esqueceu-se de uns documentos importantes em cima da secretária. Tenho de os ir buscar e entregar-lhos, antes da partida do avião.

- Agora? Não podem mandar outro?

- Sou o único em quem confiam plenamente - e ele suspirou. - Até parece que todos os meus colegas são uma corja de incompetentes - e pousando-lhe as mãos nos ombros: - Lamento imenso, querida. Não estragues a festa por minha causa.

Prometo voltar o mais depressa possível.

Eva abriu a porta a Mellis e proferiu em tom de aprovação:

- Sempre conseguiste. Arranjas solução para tudo.

- Não me posso demorar. Alex…

- Tenho uma surpresa para ti.

Conduziu-o à pequena sala de jantar, cuja mesa se achava posta para dois, com velas no centro.

- A que propósito vem isto?

- É o meu aniversário.

- Claro - ele sentiu-se embaraçado. - Não me lembrei de te trazer uma prenda.

- Mas trouxeste, querido. Vais entregar-ma, mais tarde. Senta-te.

- Obrigado, mas não sou capaz de comer nada. Acabo de encher o estômago lá em casa.

- Senta-te - insistiu Eva, em inflexão átona.

Mellis olhou-a em silêncio, por um momento, e obedeceu. A refeição consistia exactamente nas mesmas iguarias das do aniversário de Alexandra, e ela sentouse diante do cúmplice, observando-o enquanto impelia a comida, estoicamente, para a garganta.

- Partilhámos sempre tudo - explicou Eva. - Esta noite, celebramos a mesma data, mas para o ano só uma de nós o fará. Chegou a altura de minha irmã sofrer um acidente. Depois, a avozinha morrerá de desgosto. Será tudo nosso, Geor-ge. E, agora, se saciaste o apetite, passemos ao quarto, para me dares a prenda de aniversário.

Ele receara aquele momento. Apesar de forte e vigoroso, ela dominava-o e fazia-o sentir-se impotente. Obrigou-o a despi-la com lentidão e depois retribuiu-lhe a gentileza, antes de o excitar com perícia, até provocar a erecção.

- Pronto - e encavalitando-se-lhe em cima, começou a

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mover os quadris com lentidão. - Que bom… Não podes ter um orgasmo, hem?

Sabes porquê? Porque és um anormal. Não gostas de mulheres. Só te apetece torturá -las. Adoravas maltratar-me, aposto. Dize que adoravas maltratar-me. - Adorava matar-te.

- Mas não podes, porque te interessa ficar com a Kruger-Brent tanto como a mim.

Nunca me farás mal, porque, se me acontecer alguma coisa, uma pessoa amiga entregará à Polícia uma carta que lhe confiei.

- Isso é bluff.

- Há uma maneira de te certificares.

De súbito, Mellis compreendeu que ela falava verdade. Nunca conseguiria fazê -la desaparecer da sua existência! Estaria sempre presente para o atormentar, escravizar. Não podia suportar a ideia de permanecer à mercê daquela cadela até ao fim dos seus dias. Inesperadamente, algo explodiu no seu íntimo. Uma película vermelha ofuscou-lhe a visão e a partir desse momento deixou de ter consciência do que fazia. Tudo se desenrolou como que ao retardador. Mais tarde, recordouse apenas de afastar Eva de cima dele, abrir-lhe as pernas e obrigá-la a soltar gritos de dor. Por fim, a película atenuou-se gradualmente e verificou que ela jazia na cama, coberta de sangue. Tinha o nariz esmagado, o corpo sulcado de escoriações e queimaduras de cigarro e as pálpebras inchadas.

Mellis sacudiu a cabeça para desanuviar o espírito e, no momento em que a realidade da situação se lhe apresentou com clareza, foi assolado por pânico intenso. Não existia explicação possível para o que acabava de fazer.

Comprometera tudo. Tudo!

- Eva? - proferi u receosamente, inclinando-se para ela.

- Médico… - balbuciou a rapariga, entreabrindo uma das pálpebras com dificuldade. - Chama… um… médico - cada palavra constituía uma gota de dor adicional. - John… Harley…

George Mellis limitou-se a pronunciar para o bocal:

- Pode vir imediatamente? Eva Blackwell sofreu um acidente.

Quando entrou no quarto, o dr. Harley lançou uma olhadela a Eva, à cama e às paredes manchadas de sangue e balbuciou:

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- Meu Deus! - tomou-lhe o pulso e virou-se para Mellis. - Telefone à Polícia. Diga que precisamos de uma ambulância.

- Doutor… - sussurrou ela, por entre a névoa de dor.

- Vai ficar boa, não se preocupe - asseverou o médico, | debruçando-se sobre a cama. - Assim que der entrada no hospital…

- Polícia… não…

- Tenho de comunicar a ocorrência às autoridades.

- Polícia… não… - repetiu Eva, pegando-lhe na mão e segurando-a com firmeza.

- Não tente falar - recomendou ele, examinando o malar e o queixo fracturados e as queimaduras de cigarro dispersas pelo corpo.

No entanto, mau grado as dores excruciantes, ela lutava pela vida.

- Por favor… Avó nunca… perdoaria… Polícia, não… Acidente… Atropelamento e fuga… condutor…

Não havia tempo para discutir, pelo que o dr. Harley se dirigiu ao telefone e discou um número. Quando atenderam, identificou-se, comunicou o endereço de Eva e acrescentou:

- Preciso de uma ambulância imediatamente. Localizem o doutor Keith Webster e peçam-lhe que me espere no hospital. Trata-se de uma emergência. Preparem a sala de operações para utilização imediata - escutou por uns instantes e concluiu:

- Atropelamento, com fuga do condutor - e pousou o auscultador.

- Obrigado, doutor - articulou Mellis.

Harley encarou-o com uma expressão de desdém. Apesar de se ter vestido apressadamente, o marido de Alexandra apresentava os nós dos dedos esfolados e as mãos e rosto com manchas de sangue.

- Não me agradeça. Faço-o pelos Blackwell. Mas com uma condição. Que você prometa consultar um psiquiatra.

- Não necessito de…

- Nesse caso, vou telefonar à Polícia - e o médico estendeu a mão para o aparelho. - Não pode andar à solta.

- Um momento! - Mellis hesitou, imerso em reflexões. Deitara tudo a perder, mas agora, miraculosamente, proporcionavam-lhe uma saída possível. - Está bem.

Procurarei um psiquiatra.

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O som de uma sereia de ambulância começou a ouvir-se ao longe.

Impeliam-na ao longo de um túnel e luzes coloridas brilhavam com intermitências.

Sentia o corpo leve e pensava: “Posso voar, se quiser.” Tentou mover os braços, mas uma força invisível opunha-se. Abriu os olhos e verificou que se encontrava numa maca, transportada por dois homens ao longo de um corredor branco. “Faço parte de uma peça da televisão, mas não me recordo do texto. Onde está o guião?” Quando tornou a descerrar as pálpebras, achava-se numa sala espaçosa, rodeada por vultos de bata branca e máscara.

- Chamo-me Keith Webster - informou um deles, inclinando-se para ela. - Vou operá-la.

- Não quero ficar feia - murmurou Eva, em tom quase inaudível. - Não me deixe ficar… feia.

- Nem por sombras - prometeu o cirurgião. - Agora, prepare -se para dormir.

Descontraia-se.

E fez sinal ao anestesista.

Mellis conseguiu lavar o sangue que o cobria, na casa de banho de Eva, mas soltou uma imprecação quando cons ultou o relógio e viu que eram três da madrugada. Acalentava a esperança de que Alexandra estivesse a dormir, mas descobriu que o aguardava na sala.

- Estava tão preocupada, querido! Houve algum contratempo?

- Não.

- Um pouco mais e telefonava à Polícia - e ela abraçou-o com ternura. - Receava que te tivesse acontecido alguma coisa horrível.

“E não te enganaste”, pensou ele.

- Levaste-lhe os documentos?

- Documentos? - perguntou, mas, de súbito, compreendeu ao que Alexandra se referia. - Levei, mas foi por um triz.

- Porque tardaste tanto?

- A partida do avião foi atrasada e ele reteve-me para trocarmos impressões.

Lastimo profundamente, querida.

- O essencial é não te ter acontecido nada.

Pensou em Eva, conduzida ao hospital, com várias fracturas,

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e ponderou no que sucederia se ela morresse. Prendiam-no por homicídio, sem dúvida. Por outro lado, todavia, se vivesse, tudo regressaria à situação anterior, e perdoar-Lhe-ia, porque necessitava dele.

Conservou-se acordado o resto da noite, evocando os grito s de Eva, quando lhe suplicara misericórdia. Voltou a sentir-lhe os ossos esmagando-se sob os seus punhos e a notar o odor de carne queimada, e nesse momento quase a amou.

Constituiu um facto afortunado o dr. Harley ter conseguido obter os serviços de Keith Webster, pois tratava-se de um dos maiores cirurgiões plásticos do mundo.

As pessoas que acudiam à sua clínica, em Manhattan, pagavam apenas aquilo de que podiam dispor, conscientes de que recebiam uma assistência igual à de qualquer milionário. Apesar de habituado a enfrentar vítimas de acidentes, ao observar o rosto desfigurado de Eva Blackwell não pôde evitar um estremecimento de horror.

- Quem é o responsável disto, John?

- Foi um caso de atropelamento, com fuga do condutor.

- E, antes de fugir, o homem deteve-se a decorar-lhe o corpo com queimaduras de cigarro? - redarguiu Webster com uma expressão de incredulidade.

- Preferia não discutir os pormenores. Pode restituir-lhe a forma primitiva?

- É essa a minha missão. Restituir a forma primitiva.

Era quase meio-dia quando o cirurgião anunciou finalmente aos seus assistentes:

- Chegámos ao fim. Levem-na para os cuidados intensivos. À mínima anormalidade, chamem-me.

A operação prolongara-se por nove horas.

Eva foi retirada dos cuidados intensivos quarenta e oito horas depois. Mellis não tardou a comparecer no hospital. Precisava de a ver, conversar com ela, para se certificar de que não planeava qualquer vingança terrível contra ele.

- Sou o advogado de Miss Blackwell - explicou à enfermeira de serviço. - Ela pediu-me que viesse. É só um momento.

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