- Não está autorizada a receber visitas - declarou a mulher.
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Mas observou aquele rapaz tão atraente e acrescentou: - Em todo o caso, não vejo inconveniente, desde que seja rápido.
Eva encontrava-se deitada de costas, envolta em ligaduras, com tubos presos ao corpo como excrescências obscenas. As únicas áreas visíveis eram os olhos e lábios.
- Olá, Eva…
- George… - a sua voz não passava de um vago murmúrio, obrigando-o a aproximar-se para ouvir. - Disseste… alguma coisa… a Alex?
- Claro que não - e Mellis sentou-se na borda da cama. - Vim porque…
- Eu sei… Continua tudo… como dantes.
- Lamento o que aconteceu - e experimentou um alívio indescritível. - Palavra de honra que…
- Manda algué m telefonar a Alex… Que lhe diga que me… ausentei por umas semanas.
- Está bem.
- Faz-me um favor… - volveu ela, olhando -o fixamente.
- Os que quiseres.
- Morre dolorosamente.
Pouco depois adormeceu. Quando acordou, o dr. Keith Webster encontrava-se à cabeceira da cama.
- Como se sente? - perguntou com brandura.
- Muito cansada… Que me encontraram?
Hesitou antes de responder. As radiografias haviam revelado numerosas fracturas, não só do rosto como por todo o corpo. Por fim, enumerou com simulado desprendimento:
- Fractura de um malar e do nariz e queixo deslocado, além de queimaduras de cigarro. Mas não se preocupe, porque compusemos tudo.
- Queria um espelho.
- Lamento, mas não há nenhum disponível.
Eva só formulou a interrogação seguinte graças a um prodigioso esforço de vontade.
- Que aspecto terei, quando me tirarem as ligaduras?
- O mesmo de antes do acidente.
- Não acredito.
- Verá. Agora, gostava que me descrevesse o que aconteceu. Tenho de enviar um relatório à Polícia.
- Fui atropelada por um camião - declarou, após um silêncio prolongado.
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O dr. Webster perguntava a si próprio como pudera alguém tentar destruir aquela frágil beldade, mas há muito que renun-' ciara a ponderar as aberrações da raça humana e a sua capacidade para a crueldade.
- Preciso de um nome - esclareceu. - Quem foi o autor?
- Mack.
- E o apelido.
- Truck.1 Ao mesmo tempo, sentia-se perplexo com a conspiração de silêncio. Primeiro John Harley, agora Eva Blackwell.
- Nos casos de assalto criminoso, a lei obriga-me a apresentar um relatório às autoridades.
Ela pegou-lhe na mão e apertou-a, antes de replicar:
- Se minha avó ou a minha irmã soubessem, morriam de desgosto. Se informar a polícia, os jornais publicarão a notícia.
- Não posso declarar que se trata de um caso de atropelamento, com fuga do condutor. As senhoras não costumam percorrer as ruas sem a mínima peça de vestuário.
- Por favor!
- Bem… - o cirurgião contemplou-a, tomado de profunda compaixão. - Pode ter escorregado e caído na escada de sua casa.
- Foi exactamente o que aconteceu - murmurou ela, com um pálido sorriso.
- Bem me parecia… - suspirou ele, encolhendo os ombros, resignado.
O dr. Webster passou a visitá-la diariamente, levando-lhe flores e pequenos presentes da loja existente no hospital, e Eva protestava com insistência:
- Passo os dias aqui deitada, sem me mexer. Como se explica que ninguém faça nada por mim?
- Tenho a minha colega a trabalhar em si.
- Qual colega?
- A Natureza. Debaixo dessas ligaduras assustadoras, está a recuperar admiravelmente.
' Camião.
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O médico era a sua única companhia e ela passou a ansiar pelas suas visitas.
Apercebia-se do acanhamento que o invadia na sua presença, o que a divertia.
- Nunca casou? - perguntou, um dia.
- Não.
- Porquê?
- Não sei. Talvez porque não daria um marido famoso. Chamam -me para emergências com regularidade.
- Mas deve ter uma amiguinha…
- Bem, a verdade… - desta vez, o doutor Webster deixou transparecer embaraço.
- Conte lá - insistiu ela, com uma ponta de malícia.
- Não, não tenho.
- Aposto que as enfermeiras estão loucas por si.
- Engana-se. Aliás, não sou uma pessoa muito romântica.
“Isso é modéstia”, pensou. Não obstante, sempre que aludia ao cirurgião diante das enfermeiras e internos, referiam-se-lhe como se fosse pouco menos que um deus.
- É um obreiro de milagres - afirmou um deles. - Não há nada que não consiga fazer num rosto humano.
Mencionou a sua obra junto das crianças e de criminosos deformados, mas quando Eva solicitou informações mais pormenorizadas a Webster, este limitou-se a observar:
- Infelizmente, o mundo avalia as pessoas pelo seu aspecto. Tento valer àquelas que nasceram com deficiências físicas. Isso pode provocar alterações radicais nas suas vidas.
Ela sentia-se profundamente intrigada. Era óbvio que ele não agia assim com os olhos postos no dinheiro ou glória. Podia considerar-se um altruísta absoluto.
Nunca conhecera um homem assim, e perguntava a si própria o que o motivaria.
Todavia, tratava-se de uma curiosidade ociosa, pois não acalentava o menor interesse por Keith Webster, além daquilo que podia fazer por ela.
Quinze dias depois de dar entrada no hospital, Eva foi transferida para uma clínica particular nos arredores de Nova Iorque.
- Estará mais confortável - assegurou-lhe o cirurgião.
Ela sabia que o local ficava muito afastado do percurso habitual dele, apesar do que a visitava todos os dias.
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- Não tem outros pacientes?
- Como você, não. acabou por perguntar.
Cinco semanas após o ingresso na clínica, o dr. Webster retirou as ligaduras e, depois de mover a cabeça de Eva para ambos os lados, inquiriu:
- Sente alguma dor?
- Não.
- E tensão?
- Tão-pouco.
- Traga um espelho - indicou à enfermeira.
Eva foi assolada por um pavor irresistível. Ao longo de semanas aparentemente intermináveis, desejara ver-se ao espelho e agora, que chegara o momento, hesitava.
- Tenho medo - confessou, quando o cirurgião lho estendeu.
- Encha-se de coragem - foi a recomendação ambígua. Ela respirou fundo e ergueu o espelho à altura do rosto.
Dera-se um milagre! O semblante não sofrera a mínima alteração. Era exactamente o mesmo. Procurou, em vão, sinais de cicatrizes. Por fim, sentiu os olhos humedecerem-se-lhe.
- Obrigada - sussurrou.
Inclinou a cabeça para dar um beijo no dr. Webster, mas notou os lábios famintos pousados nos seus.
No entanto, ele endireitou-se com prontidão, mais embaraçado do que nunca.
- Alegra-me que esteja satisfeita.
- Satisfeita! O seu pessoal tem razão. É um obreiro de milagres.
- Não esqueça que o material era excelente.
Capítulo trigésimo primeiro George Mellis ficara profundamente abalado com o sucedido. Na verdade, estivera prestes a destruir tudo o que ambicionava. Até então não se apercebera do que significava para ele assumir o comando da Kruger-Brent, Ltd. Contentara -se em viver de ofertas de damas solitárias, mas agora casara com
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uma Blackwell e achava-se na iminência de possuir uma empresa muito mais importante e poderosa do que o pai jamais concebera. Tudo se convertera subitamente numa aspiração irreversível, pela qual não hesitaria em matar.
Entretanto, empenhava -se em criar a imagem do marido perfeito, passando todo o tempo possível ao lado de Alexandra. Tomavam o pequeno-almoço juntos, levava - a a almoçar fora e esforçava-se por chegar cedo a casa, todas as noites. Nos fins - de-semana, dirigiam-se à casa de praia que Kate Blackwell possuía em Long Island ou seguiam para Dark Harbor no Cessna 620 da companhia. Na realidade, Cedar Hill era o lugar favorito dele e, enquanto percorria as amplas salas e admirava as antiguidades e as telas valiosas, reflectia que em breve tudo aquilo lhe pertenceria.
Também se revelava respeitador e admirador da avó de Alexandra, que completara oitenta e um anos, era presidente da administração de Kruger-Brent, Ltd., e continuava possuidora de notável vitalidade. Mellis providenciava para que ambas almoçassem com ele uma vez por semana, e telefonava à anciã com frequência, para trocarem impressões sobre temas banais. Criava assim uma imagem que esperava vir-lhe a ser extremamente útil.
Ninguém suspeitaria de que tencionava assassinar duas pessoas que lhe eram tão queridas.
A satisfação que o assolava nas últimas semanas foi abalada abruptamente por um telefonema do dr. John Harley:
- Está tudo preparado para a sua visita ao psiquiatra, o doutor Peter Templeton.
- Já não é necessário, doutor - Mellis procurou incutir à voz um tom amável e insinuante. - Penso…
- Estou-me nas tintas para o que você pensa. Estabelecemos um acordo: não o denuncio à Polícia, se consultar um psiquiatra. Se pretende faltar ao prometido…
- De modo algum - apressou-se a afirmar. - Se insiste, não me oponho.
- O número do telefone do doutor Templeton é cinco-cin-co-cinco-três-um-seis-um.
Ele espera a sua chamada. Hoje - e o dr. Harley cortou a ligação bruscamente.
“O maldito intrometido”, reflectiu Mellis, enfurecido. A última coisa que lhe interessava e convinha no mundo era
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perder tempo com um psiquiatra, mas não se podia arriscar a que Harley falasse.
Telefonaria a Templeton, procurá-lo-ia uma ou duas vezes e não voltaria a aparecer-lhe.
Eva telefonou a Mellis para o escritório.
- Estou em casa.
- Ficaste… bem? - perguntou ele, receosamente.
- Vem ver. Esta noite.
- Vai ser difícil ausentar-me. Eu e Alex…
- Às oito.
Mellis encontrava dificuldade em acreditar no que se lhe deparava. Eva achava -se na sua frente, tão bonita e atraente como sempre. Por mais que lhe examinasse o rosto, não descobria o mínimo vestígio dos maus tratos que lhe infligira.
- É incrível! - acabou por exclamar. - Estás exactamente na mesma.
- Sim, continuo bela, hem?
Ela exibia um sorriso malicioso, provocado pela evocação do que lhe preparava.
Era um animal doente, que não merecia viver. Pagaria com juros o que lhe fizera, mas não por enquanto. Ainda necessitava dele.
- Não tenho palavras para exprimir o pesar…
- Deixemos isso. São coisas do passado. Nada se modificou.
Nesse momento, Mellis recordou-se de que algo se modificara e anunciou:
- Recebi um telefonema de Harley. Tomou providências para que eu procurasse um psiquiatra qualquer.
- Diz que não tens tempo.
- Foi o que fiz, mas ameaçou-me com a Polícia.
- Gaita! - Eva fez uma pausa, imersa em reflexões. - Quem é ele?
- O psiquiatra? Chama-se Peter Templeton, salvo erro.
- Conheço-o de nome. Goza de boa reputação.
- Não te preocupes. Posso deitar-me no sofá durante quinze minutos sem revelar coisa alguma.
Todavia, ela não o escutava, pois acabava de lhe acudir uma ideia.
- Talvez seja o melhor que nos podia acontecer - articulou pausadamente.
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Peter Templeton, de trinta e cinco anos, media mais de um metro e oitenta de altura, com ombros largos, fisionomia granítica e olhos azuis perscrutadores que o faziam parecer mais um avançado-centro do tipo aríete do que um médico.
Naquele momento, enrugava a fronte para a anotação na agenda: “George Mellis.
Marido da neta de Kate Blackwell.”
Os problemas dos ricos não lhe suscitavam o menor interesse, embora a maioria dos seus colegas ficassem encantados com os pacientes socialmente proeminentes. Quando iniciara a carreira, Templeton enfrentara uma percentagem apreciável daquela fauna, mas em breve descobrira que não conseguia simpatizar com os temas que lhe apresentavam. Tivera no seu consultório viúvas abastadas desvairadas porque não as haviam convidado para determinado evento social, financeiros empenhados em pôr termo à vida porque tinham perdido dinheiro da Bolsa, etc. O mundo estava cheio de problemas, e ele decidira há muito que não eram esses que lhe interessavam.
George Mellis. Templeton acedera em o receber apenas em virtude do respeito que o dr. John Harley lhe merecia.
- Preferia que o mandasse a outro, John - objectara. - Tenho uma agenda sobrecarregada.
- É um favor que me faz, Peter.
- Qual é o problema?
- Espero que você o determine. Não passo de um médico de aldeia.
- Está bem. Vejamos quando há -de ser…
E agora encontrava-se na sala de espera. Com um suspiro de resignação, premiu o botão do intercomunicador e indicou:
- Diga a Mister Mellis que entre.
O psiquiatra vira fotografias do paciente em jornais e revistas, mas apesar disso não se achava preparado para a vitalidade esmagadora que irradiava e conferia um aspecto novo ao termo “carisma”.
- Queira sentar-se, Mister Mellis - convidou, depois de apertarem a mão.
- Ali? - perguntou o recém-chegado, apontando para o sofá.
- Onde se sentir mais confortável.
Mellis optou pela cadeira diante da secretá ria e exibiu um sorriso. Pensava que ficaria perturbado com a situação, mas
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Eva preparara-o devidamente. Na realidade, o dr. Templeton seria o seu aliado, a sua testemunha.
Entretanto, este último observava-o com curiosidade. Os pacientes que o procuravam pela primeira vez costumavam deixar transparecer nervosismo, que uns tentavam encobrir com bravatas e outros com uma atitude defensiva ou um mutismo persistente. Ora, não detectava qualquer indício de semelhante natureza no homem sentado na sua frente. Ao invés, parecia satisfeito consigo próprio.
- O doutor Harley falou-me num problema.
- Receio que sejam dois - articulou Mellis, com um suspiro.
- Importa-se de mós descrever?
- Confesso que me sinto embaraçado. Foi por isso que insisti em consultá-lo - inclinou-se para a frente e acrescentou com uma expressão grave: - Fiz uma coisa que nunca tinha feito na minha vida. Bati numa mulher - e calou-se por um momento, mas o psiquiatra conservou-se silencioso, na expectativa. - No meio de uma discussão, foi como se mergulhasse num poço escuro. Quando voltei à realidade, descobri que a tinha agredido - meneou a cabeça, acabrunhado: - Bati numa mulher!
Templeton julgou ter descoberto em que consistia o problema de George Mellis.
Sentia prazer em espancar mulhe res.
- Foi em sua esposa que bateu?
- Não, na minha cunhada.
Recordava-se de ler alusões às gémeas Blackwell nos ecos da sociedade dos jornais, por vezes acompanhadas de fotografias. Na verdade, eram idênticas e particularmente atraentes. Com que então, aquele homem agredira a cunhada! O facto afigurava -se-lhe razoavelmente interessante. Também considerava digna de interesse a circunstância de ele falar como se se tivesse limitado a aplicar-lhe um ou dois tabefes. Se fosse esse o caso, John Harley não insistiria em que o recebesse.
- Magoou-a?
- Sim, muito. Como referi, doutor, pareceu-me que mergulhava num poço escuro.
Quando voltei a mim, não acreditei no que via.
“Quando voltei a mim. A defesa clássica. Foi o meu subconsciente o responsável e não eu.” - Faz alguma ideia do que provocou essa reacção?
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- Ultimamente, tenho estado sob uma tensão horrível. Meu pai sofreu vários ataques cardíacos consecutivos, que me abalaram. Somos uma família muito unida.
- Seu pai encontra -se nos Estados Unidos?
- Não, na Grécia. ›‹Ah, é esse Mellis!” - Falou em dois problemas.
- Pois. O outro é Alexandra, minha mulher…
- Têm dificuldades maritais?
- Não no sentido que pensa. Amamo-nos profundamente, mas… - Mellis hesitou. - Ela não tem passado bem nos últimos tempos.
- Fisicamente?
- Emocionalmente. Está deprimida quase sempre e fala em se suicidar.
- Consultou um psiquiatra?
- Não quer - murmurou, com um sorriso amargurado. “É pena”, pensou Templeton.
“Impede um médico de clientes ricos de ganhar uma fortuna.” - Discutiu o assunto com o doutor Harley?
- Não.
- Como é o médico assistente da família, sugiro que o faça. Se lhe parecer necessário, ele recomendará um psiquiatra.
- Não quero que Alexandra fique com a impressão de que falo dela nas suas costas.
- Isso é o menos. Eu próprio telefonarei ao meu colega.
- Estamos tramados, Eva! - bradou Mellis.
- Que aconteceu?
- Fiz exactamente o que me indicaste. Disse que me preocupava com a possibilidade de Alexandra manifestar propensão para o suicídio.
- E então?
- O filho da mãe vai contactar com Harley, para discutirem o assunto!
- Diabo! Não podemos permitir que isso aconteça - ela começou a mover-se em excitado vaivém, até que se imobilizou repentinamente. Harley fica por minha conta. Tens de voltar ao cons ultório de Templeton?
- Sim.
- Nesse caso, não faltes.
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Na manhã seguinte, Eva procurou o dr. Harley. Este manifestava simpatia especial pela família Blackwell. Assistira ao crescimento das crianças, à tragédia da morte de Marianne, à| tentativa de homicídio perpetrada sobre Kate e ao internamento; de Tony numa clínica de alienados. Na realidade, Kate atravessara numerosas atribulações, a menor das quais decerto não fora a que culminara com a expulsão de Eva. Não fazia a mínima ideia do que a motivara, mas não era de sua conta. A sua missão consistia em manter a família fisicamente saudável.
Quando a rapariga entrou no consultório, Harley contemplou-a com admiração e declarou:
- Keith Webster executou um trabalho fantástico.
Com efeito, o único vestígio limitava-se a uma minúscula cicatriz na fronte, quase invisível.
- Ele prometeu fazer desaparecer esta marca dentro de cerca de um mês - explicou ela.
- Serve para a tornar mais bonita - o médico indicou uma cadeira. - Em que lhe posso ser útil?
- Não venho por minha causa. Trata-se de Alex.
- Tem algum problema? - estranhou, arqueando as sobrancelhas. - Relaciona-se com o marido?
- De modo algum! - apressou-se Eva a replicar. - Ele comporta-se sem margem para reparos. Na realidade, é o contrário. George preocupa-se com ela. Minha irmã procede de forma estranha, ultimamente. Está muito deprimida. Até revela tendências suicidas.
- Custa-me a crer. Isso não parece próprio de Alexandra.
- Pois não. Também não acreditei e fui vê -la. Confesso que fiquei chocada com o que se me deparou. Encontra-se de facto num estado de profunda depressão.
Estou preocupadíssima, doutor. Como não posso avistar-me com a avó, pelas razões que conhece, vim ter consigo. Precisa de fazer alguma coisa - e os olhos enevoaram-se-lhe. - Perdi minha avó e não queria ficar também sem minha irmã.
- Há quanto tempo dura isso?
- Não sei ao certo. Começou por recusar, quando sugeri que o procurasse, mas finalmente convenci-a. Tem de a ajudar, doutor.
- Sem dúvida. Diga-lhe que venha amanhã. E não se apoquente, Eva. Há medicamentos novos que produzem milagres.
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Harley acompanhou a rapariga à porta, reflectindo que Kate não perderia nada em se mostrar um pouco menos irredutível, pois Eva necessitava de carinho.
Quando regressou ao apartamento, Eva dissimulou meticulosamente a cicatriz na fronte com um creme especial.
Às dez horas da manhã seguinte, a recepcionista do dr. Harley anunciou:
- Está aqui Mistress Mellis, doutor.
- Mande-a entrar.
Ela surgiu em passos lentos e incertos, como se não estivesse totalmente decidida a sujeitar-se ao que se seguiria. Além disso, apresentava palidez intensa e círculos violáceos em torno dos olhos.
- Tenho muito gosto em vê-la, Alexandra - e o médico estendeu-lhe a mão. - Que história é essa de problemas que a afligem?
- Sinto -me embaraçada por o incomodar, doutor - a voz dela era quase inaudível. - Estou certa de que não tenho nada, e se Eva não insistisse, não vinha. Estou óptima, do ponto de vista físico.
- E emocionalmente?
- Bem… - hesitou. - Não durmo muito bem.
- Que mais?
- Vai julgar-me hipocondríaca…
- Conheço-a o suficiente para não pensar isso.
- Sinto -me constantemente deprimida. Uma espécie de ansiedade e… cansaço.
George excede-se nos seus esforços para me fazer feliz, mas não me apetece nada do que sugere. Parece-me tudo tão… desesperado.
- Mais alguma coisa? - perguntou ele, que a escutava com a máxima atenção e observava pensativamente.
- Chego a admitir a hipótese de… pôr termo à vida. Estarei a enlouquecer?
- Não. Alguma vez ouviu falar em anedonia? - fez uma pausa, enquanto ela abanava a cabeça. - É uma perturbação biológica que apresenta os sintomas que acaba de descrever. Declara -se com frequência, mas existem drogas novas que facilitam o tratamento. Não têm e feitos secundários e são eficientes.
Vou examiná-la, para descargo de
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consciência, pois estou certo de que não lhe encontrarei nada de anormal.
No final do exame, declarou:
- Vou receitar-lhe Wellbuírin. Pertence à nova geração de antidepressivos, uma das novas drogas miraculosas que mencionei - tornou a sentar-se à secretária e começou a escrever, enquanto ela se vestia. - Volte cá dentro de uma semana.
Entretanto, se surgir algum problema, telefone -me, dia ou noite - advertiu, entregando-lhe a receita.
- Obrigada, doutor. Oxalá que isto produza efeito para terminar com o sonho.
- Qual sonho?
- Ah, é verdade, não cheguei a dizer-lhe. Sonho a mesma coisa, todas as noites.
Estou num navio, faz muito vento e oiço o mar chamar-me. Aproximo-me da amurada, olho para baixo e vejo -me na água, a afogar…
Ela abandonou o consultório e, uma vez na rua, encostou-se à parede, aliviada, respirando fundo. “Consegui”, reflectiu, exultante. “Safei-me, como esperava.
Tomou-me por Alexandra.” E rasgou a receita.
Capítulo trigésimo segundo Kate Blackwell sentia-se cansada. A reunião prolongara-se demasiado. Com um suspiro, volveu o olhar para os três homens e as três mulheres em torno da mesa de conferências da sala da administração, os quais pareciam descontraídos. “Não foi a reunião que se prolongou demasiado. Eu é que duro demasiado. Vou fazer oitenta e dois anos. Estou a ficar velha.” A ideia deprimia-a, não porque receasse a morte, mas em virtude de considerar que ainda não chegara o momento conveniente. Recusava-se a morrer até que a Kruger-Brent tivesse um membro da família Blackwell à testa dos seus destinos. Após o desapontamento amargo com Eva, esforçara -se por construir os projectos para o futuro em volta de Alexandra.
“- Sabes que faria tudo por ti, avó, mas não estou
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interessada em me envolver na companhia. George será um óptimo dirigente…” - Concorda, Rate? - perguntou Brad Rogers.
- O quê? - ela emergiu dos devaneios. - Desculpe.
Importa-se de repetir?
- Discutíamos a fusão com a Deleco - explicou ele, pacientemente.
Na realidade, sentia-se preocupado com Kate Blackwell, que, nos últimos meses, se alheava do que a rodeava nas reuniões da administração. No entanto, quando Brad principiava a admitir que se tratava de sintomas de senilidade, ela surgia repentinamente com uma sugestão que deixava todos boquiabertos por não lhes haver ocorrido. Sim, era uma mulher surpreendente. Ele evocou por momentos a breve ligação do passado e perguntou a si próprio porque teria terminado tão abruptamente.
Na segunda visita de George Mellis a Peter Templeton, este inquiriu:
- Houve muita violência no seu passado?
- Não - e o interpelado sacudiu a cabeça com veemência. - Detesto-a.
“Toma nota disto, filho da mãe, pois o médico legista há-de interrogar-te nesse sentido.” - Disse que seus pais nunca o castigavam fisicamente.
- É exacto.
- Pensa que foi um filho obediente? “Cuidado. A pergunta encerra ratoeira.” - Como a média, suponho.
- A criança média costuma ser castigada, numa ou noutra ocasião, por infringir regras do mundo dos adultos.
- Creio que não infringi nenhuma - articulou Mellis, com um sorriso.
“Mente”, ponderou o psiquiatra. “Resta saber porquê. Que encobrirá?” Ao mesmo tempo, recordava-se da conversa que tivera com o dr. Harley, após a primeira sessão com Mellis.
“- Confessou que tinha batido na cunhada e…
“- Batido! - a voz de Harley achava-se dominada pela indignação. - Foi uma autêntica carnificina. Esmagou-lhe um dos malares, fracturou-lhe o nariz e três costelas e sulcou o corpo de queimaduras de cigarro.
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“- Não me referiu isso - murmurou Templeton, assolado por uma onda de repugnância.
“- Acredito. Adverti-o de que, se não o procurasse, o denunciava à Polícia.”
Recordou as palavras de Mellis: “Confesso que me sinto embaraçado. Foi por isso que insisti em consultá-lo.”
“- Disse que a mulher sofre de depressão e fala em se suicidar.
“- Sim, posso confirmá-lo. Alexandra apareceu no consultório, há dias, e receitei lhe Wellbutrin. Fiquei muito preocupado com ela. Qual é a sua impressão acerca de George Mellis? “- Ainda não sei ao certo, mas pressinto que é perigoso.”
O dr. Keith Webster não conseguia afastar Eva Blackwell do pensamento. Era como uma deusa de beleza deslumbrante, irreal e intangível. Ele não casara porque nunca encontrara uma mulher que lhe parecesse suficientemente desinteressante para unir o destino a um sensaborão. Criara-se sob a influência de uma mãe dominadora e de um pai sem personalidade. Os seus impulsos sexuais podiam considerar-se modestos e os que existiam eram sublimados pelo seu trabalho. Agora, porém, começava a sonhar com Eva Blackwell, e quando, de manhã, recordava as fantasias que o haviam invadido durante o sono, sentia-se embaraçado. Embora ela estivesse completamente curada e não se justificasse que a visse, necessitava de a procurar.
Por fim, vencendo longas hesitações, ligou para o apartamento dela.
- Eva? Fala Keith Webster. Desculpe incomodá-la, mas o outro dia lembrei-me de si e resolvi indagar como se encontrava.
- Bem, obrigada. E você? - havia uma ponta de pro vocação na pergunta.
- Bem, bem - seguiu-se um silêncio, durante o qual ele tentou reunir coragem. - Provavelmente está muito ocupada para almoçar comigo.
Eva esboçou um sorriso malicioso e reflectiu que resultaria divertido encontrar-se com um homem tão tímido.
- De modo algum. Quando?
- Pode ser amanhã?
- Combinado.
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Eva apreciou Devidamente o almoço. O dr. Keith Webster comportava-se como um colegial apaixonado. Deixou cair o guardanapo, verteu o vinho do copo e derrubou as flores no centro da mesa. Ao observá -lo, cogitava: “Ninguém diria que se trata de um brilhante cirurgião.”
Quando acabaram de comer, ele aventurou receosamente:
- Podemos repetir isto, um dia?
- É melhor não - replicou Eva, com uma expressão grave. - Receio vir a apaixonarme por si - e vendo-o corar, sem saber o que dizer, acrescentou: - Nunca o esquecerei.
Webster voltou a derrubar as flores.
John Harley almoçava no refeitório do hospital, quando Keith Webster se lhe reuniu.
- Prometi guardar segredo, mas dormia mais descansado se me explicasse o que aconteceu a Eva Blackwell.
Harley hesitou por um momento e acabou por encolher os ombros.
- Muito bem. Foi o cunhado, George Mellis.
E o cirurgião. sentiu que passava a compartilhar de uma faceta do mundo secreto da rapariga.
George Mellis principiava a impacientar-se.
- O testamento foi alterado. De que diabo estamos à espera? Eva se ntava-se no sofá, as longas pernas dobradas sob o corpo, enquanto ele passeava pela sala.
“Começa a perder a coragem…” Lembrava -lhe uma serpente venenosa, prestes a lançar-se sobre a vítima de entre o matagal. Ela cometera uma imprudência com ele, uma ve z, ao provocá-lo demasiado, o que estivera prestes a custar-lhe a vida.
O erro não se repetiria.
- Concordo - declarou finalmente. - Penso que chegou o momento.
- Quando? - inquiriu Mellis, estacando.
- Na próxima semana.
A sessão achava-se quase no termo e George Mellis não mencionara a esposa uma única vez. De súbito, porém, disse:
- Estou preocupado com Alexandra, doutor Templeton. As depressões parecem agravar-se. A noite passada, falou em afogamento. Confesso que não sei o que fazer.
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- Falei com o doutor Harley. Receitou-lhe determinado medicamento que a deve aliviar.
- Oxalá que sim - e Mellis exalou um suspiro. - Se lhe acontecesse alguma coisa, não resistia..
E o psiquiatra, o ouvido sintonizado para as palavras não proferidas, teve a estranha sensação de que presenciava uma charada. Havia uma violência mortal naquele homem.
- Como descreveria as suas relações com as mulheres?
- Normais.
- Nunca se irritou com nenhuma?
- Não - asseverou Mellis, consciente do rumo visado. “Não me levas com essa, rapaz”. - Como lhe referi, detesto a violência.
“Foi uma autêntica carnificina. Esmagou-lhe um dos malares, fracturou-lhe o nariz e três costelas e sulcou o corpo de queimaduras de cigarro.” - Às vezes, para certas pessoas, a violência proporciona uma válvula de escape necessária - observou Templeton. - Uma evasão emocional.
- Compreendo ao que se refere. Tenho um amigo que gosta de espancar prostitutas.
“Tenho um amigo”. Um sinal alarmante.
- Fale-me dele.
- Odeia-as. Por conseguinte, após o… serviço, aplica-Lhes uns tabefes, só para lhes dar uma lição - não detectando qualquer sinal de reprovação no semblante do psiquiatra, Mellis prosseguiu: - Recordo-me de uma ocasião em que visitámos a Jamaica juntos. Uma prostituta levou-o a um hotel e, depois de se despir, disse que queria mais dinheiro - exibiu um sorriso divertido. - O meu amigo arreou-lhe a valer. Aposto que ela não se mete noutra tão cedo.
“É psicopata!”, decidiu Templeton. Não existia amigo algum, evidentemente.
Vangloriava-se de actos praticados por ele próprio e ocultava-se atrás de um alter ego. Tratava-se, sem margem para dúvidas, de um megalomaníaco, e dos perigosos.
Por fim, decidiu que se impunha nova conversa com John Harley, o mais depressa possível.
Os dois médicos encontraram-se para almoçar no Clube Harvard. Peter Templeton achava-se numa situação difícil.
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precisava de obter toda a informação que pudesse sobre George Mellis, sem infringir o código de sigilo médico-paciente.
- Que me pode dizer da mulher de Mellis? - principiou.
- Alexandra? É encantadora. Cuido dela e da irmã, Eva, desde garotas - e soltou uma risada seca. - São as minhas únicas clientes gémeas.
- Idênticas?
- Ninguém consegue distingui-las. Quando miúdas, divertiam-se a pregar toda a espécie de partidas. Lembro-me de que, numa ocasião em que Eva precisava de uma injecção, quem a levou foi Alexandra. Agora que cresceram, continuo a não as diferenciar.
O psiquiatra reflectiu por uns instante e observou:
- Disse que Alexandra o procurou, porque notava tendências suicidas.
- Exacto.
- Como sabe que era ela?
- Eva conserva uma pequena cicatriz na fronte, recordação da tareia que o cunhado lhe aplicou - Harley fez uma pausa. - Como vão as sessões com ele?
- Ainda não estabeleci contacto com o seu íntimo. Oculta-se por detrás de uma fachada que tento derrubar.
- Tenha cautela, Peter - evocou a cena que se lhe deparara: Eva imersa num charco de sangue. - O homem é perigoso.
- As duas irmãs são herdeiras de uma fortuna avultada, salvo erro.
Hesitou por um momento, antes de declarar:
- Trata-se de um assunto de família, mas não é como pensa. A avó deserdou Eva.
Alexandra receberá tudo.
“Estou preocupado com Alexandra, doutor Templeton. As depressões parecem agravar-se. A noite passada falou em afogamento… Se lhe acontecesse alguma coisa, não resistia.”
Tudo aquilo soara ao psiquiatra como os preparativos clássicos de um homicídio… com a diferença de que George Mellis era herdeiro de uma fortuna apreciável da sua própria família. Por conseguinte, não o podiam animar motivos para matar alguém por dinheiro. “Estás a deixar-te arrastar pela imaginação”, terminou por decidir.
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Uma mulher afogava-se no mar glacial e ele tentava aproximar-se, mas as vagas eram demasiado alterosas. Procurou nadar mais depressa, mas os braços e as pernas pareciam de chumbo. Quando chegou ao local em que a vira debater-se, avistou um tubarão enorme que se preparava para o atacar. Nesse momento, Peter Templeton acordou, acendeu a luz e sentou-se na cama, para analisar o pesadelo.
De manhã, telefonou ao tenente -detective Nick Pappas.
Nick Pappas era um homem quase gigantesco, que não pesava menos de cento e vinte quilos, mas, como numerosos criminosos podiam testemunhar, não havia um grama de gordura supérflua no seu corpo. Pertencia à brigada de choque do Departamento de Homicídios do bairro das “meias de seda” de Manhattan.
Templeton conhecera-o, vários anos antes, quando tivera de colaborar nas investigações relacionadas com um assassino psicopata, e os dois homens haviam ficado amigos. A paixão de Pappas era o xadrez e encontravam-se uma vez por mês para disputarem uma partida.
- Homicídio. Tenente Pappas - anunciou este pelo telefone.
- É Peter, Nick.
- Viva! Como vão os mistérios da mente?
- Continuo empenhado em deslindá-los. Tina está bem?
- Fantástica. Em que o posso servir?
- Precisava de informações. Ainda mantém ligações com a Grécia?
- E de que maneira! Tenho lá uma centena de parentes, todos necessitados de dinheiro. Para vergonha da minha inteligência, costumo satisfazer-lhes os pedidos regulares. Talvez precise de uma sessão no sofá do seu consultório.
- Já não adiantava nada - afirmou Templeton. - O seu caso é incurável.
- Tina afirma a mesma coisa, por outras palavras. Que pretende saber?
- Ouviu falar de George Mellis?
- Da família dos produtos alimentares?
- Esse mesmo.
- Não frequentamos os mesmos círculos, mas sei de quem se trata. Porquê?
- Interessa-me conhecer a sua situação financeira.
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- Deixe-se de brincadeiras, a família é…
- Refiro-me a fortuna própria.
- Posso indagar, mas receio que seja pura perda de tempo. Os Mellis são ultraricos.
- Se mandar alguém contactar com o pai dele, recomende-lhe cuidados especiais, pois sofreu vários ataques cardíacos.
- Entendido. Mencionarei o facto no telegrama.
De súbito, Templeton recordou-se do sonho e solicitou:
- Não podia antes telefonar? Hoje mesmo.
- Há alguma coisa que não me revelasse, Peter? - a voz de Pappas mudou repentinamente de tom.
- Não, nada. Quero apenas satisfazer a curiosidade. Debite -me o telefonema.
- Disso, pode estar certo. Prepare -se também para pagar a conta do jantar, quando nos reunirmos para me explicar de que se trata.
- Combinado.
O psiquiatra pousou o auscultador, um pouco mais aliviado.
Kate Blackwell não se sentia bem. Encontrava -se ao telefone, sentada à secretária, quando se apercebeu do ataque súbito. Os móveis começaram a oscilar à sua volta e ela pousou as mãos no tampo com firmeza, até que tudo regressou à normalidade.
Brad Rogers entrou no gabinete pouco depois e enrugou a fronte ao ver-lhe as faces lívidas.
- Não se sente bem?
- Foi apenas uma tontura. Nada de especial.
- Quando fez o último checkup?
- Não tenho tempo para esses disparates.
- Arranje-o. Vou dizer a Annette que lhe marque consulta com John Harley.
- Nem pensar nisso! Deixe-se de pieguices, sim?
- Vai à consulta?
- Só irei para que você me não seringue a paciência.
Na manhã seguinte, a recepcionista de Peter Templeton informou:
- Está o detective Pappas na linha um.
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O psiquiatra apressou-se a levantar o auscultador.
- Olá, Nick.
- Acho conveniente termos uma conversa.
- Contactou alguém acerca de Mellis? - perguntou, dominado por repentina ansiedade.
- Com o pai. Para já, nunca teve ataques cardíacos e declarou que, para ele, o filho morreu. Deserdou-o há anos. Quando pretendi averiguar o motivo, desligoume o telefone na cara. A seguir, conversei com um dos meus colegas de Atenas e apurei que o seu George Mellis é uma delícia de rapaz. A Polícia conhece-o bem.
Manifesta um prazer especial em espancar jovens de ambos os sexos. A sua última vítima, antes de abandonar a Grécia, foi um prostituto de quinze anos.
Encontraram o seu corpo num hotel de má nota e houve quem os tivesse visto juntos antes. O velho untou as mãos das autoridades e o filho foi expulso do país.
Para sempre. Estes elementos satisfazem-no?
Reflectiu que não só o satisfaziam como o aterrorizavam.
- Obrigado, Nick. Fico em dívida para consigo.
- Se o nosso homem volta a fazer das suas, deve informar-me.
- Sem dúvida, assim que tiver a certeza.
Cortou a ligação e embrenhou-se em reflexões. Necessitava tomar uma resolução sem demora, pois George Mellis tinha consulta marcada para o meio-dia.
O dr. John Harley examinava umas radiografias, quando a recepcionista anunciou:
- Mistress Mellis pede para lhe falar, doutor. Não marcou consulta e expliquei-lhe que estava muito atarefado..
- Mande-a entrar para a sala ao lado.
Quando se lhe reuniu, o médico verificou que apresentava maior palidez que na visita anterior e os círculos violáceos em torno dos olhos mais carregados.
- Desculpe aparecer sem prevenir…
- Não tem importância, Alexandra. De que se trata?
- Sinto -me… horrivelmente.
- Tem tomado o Wellbutrin com regularidade?
- Sim.
- E continua deprimida?
- É pior do que depressão - ela torcia as mãos com
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nervosismo. - Sinto-me desesperada. Tenho a impressão de que perdi o domínio dos meus actos. Receio cometer uma loucura.
- Fisicamente, não tem nada - asseverou ele, em tom tranquilizador. - É tudo emocional. Vou receitar-lhe outro medicamento, em vez desse, Nomifensina, muito mais eficiente. Deve notar melhoras dentro de poucos dias - preencheu uma receita e estendeu-lha. - Se tal não acontecer até sextafeira, telefone-me. Talvez haja conveniência em consultar um psiquiatra.
Meia hora mais tarde, de regresso ao apartamento, Eva removeu a camada de creme que lhe empalidecia as faces e fez desaparecer os círculos violáceos de junto dos olhos.
O ritmo da operação começava a acelerar-se.
George Mellis sentava-se diante de Peter Templeton, sorridente e confiante.
- Como se sente hoje?
- Muito melhor, doutor. As sessões que tivemos, embora poucas, beneficiaram-me mais do que possa imaginar.
- Sim? Em que sentido?
- Só pela possibilidade de conversar com alguém. É o princípio em que se fundamenta a Igreja Católica: a confissão.
- Congratulo-me com isso. E sua mulher?
- Receio que não apresente melhoras - admitiu Mellis, enrugando a fronte. - Tornou a visitar o doutor Harley, mas cada vez fala mais no s uicídio. Talvez a leve para fora da cidade ou mesmo do país. Precisa de uma mudança de ambiente.
O psiquiatra julgou detectar um presságio ominoso nestas palavras e desejou ardentemente que não passasse de um produto da sua imaginação.
- A Grécia é um país tranquilo - observou com naturalidade. - Levou-a lá para conhecer a sua família?
- Ainda não, embora todos anseiem por esse momento - Mellis voltou a sorrir. - O único problema consiste em que, sempre que eu e meu pai nos encontramos, ele insiste em me convencer a assumir a direcção dos negócios.
Nesse instante, Templeton ficou sem a mínima dúvida de que Alexandra corria perigo de vida.
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Longos minutos depois de Mellis se retirar, o psiquiatra continuava sentado à secretária, debruçado sobre os seus apontamentos. Por último, levantou o auscultador e marcou] um número.
- Queria que me fizesse um favor, John. Pode averiguar onde George Mellis levou a mulher na lua -de-mel?
- Posso dizer-lhe já. Tive de os vacinar antes da partida. Estiveram na Jamaica.
“Tenho um amigo que gosta de espancar prostitutas… Recordo-me de uma ocasião em que visitámos a Jamaica juntos. Uma prostituta levou-o a um hotel de má nota e, depois de se despir, disse que queria mais dinheiro… O meu amigo arreou-lhe a valer. Aposto q ue ela não se mete noutra tão cedo…”
No entanto, continuava a não haver provas de que George Mellis planeava matar a esposa. Por outro lado, John Harley confirmara que Alexandra revelava inclinações suicidas. “O problema não me diz respeito”, tentou Templeton convencer-se. Não obstante, no fundo, sabia que tinha de o aprofundar.
Peter Templeton tivera de trabalhar para custear os estudos. O pai fora vigilante de uma escola de uma pequena povoação no Nebrasca e, mesmo com uma bolsa, ele não pudera frequentar um dos estabelecimentos de primeiro plano.
Assim, formara-se na Universidade de Nebrasca com classificação elevada e especializara-se depois em psiquiatria, carreira em que triunfara desde o início. O seu segredo consistia em que gostava sinceramente dos seres humanos e sentia preocupação pelo que lhes acontecia. Alexandra Mellis, apesar de não figurar entre os seus pacientes, inspirava-lhe interesse. Constituía a peça do puzzle que faltava e uns minutos frente a frente poderiam contribuir para que o completasse.
Pegou na ficha de George Mellis, procurou o número do telefone de casa e marcou-o. Quando se achou em contacto com Alexandra, explicou:
- Chamo-me Peter Templeton e sou..
- Sei perfeitamente quem é, doutor. George falou-me de si.
Ficou surpreendido, pois supunha que Mellis não mencionara o assunto à mulher.
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- Gostava de trocar impressões consigo, Mistress Mellis. Durante o almoço, se não vir inconveniente.
- Acerca de meu marido? Há alguma novidade?
- Não. Pensei simplesmente que convinha que conversássemos um pouco a esse respeito.
- De acordo, doutor Templeton.
E combinaram encontrar-se no dia seguinte.
Ocuparam uma mesa a um canto discreto de La Grenouille. Templeton não conseguia desviar os olhos de A lexandra desde o momento em que esta entrara.
Procurou atentamente vestígios da fadiga e da depressão a que o dr. Harley se referira, mas não os encontrou.
- Suponho que não há nada de especial sobre o estado de meu marido? - principiou ela.
- Decerto que não.
A entrevista desenrolar-se-ia com maior dificuldade do que ele previra. Ao mesmo tempo, reconhecia que pisava terreno escorregadio. Não lhe assistia o mínimo direito de violar o sigilo da relação médico-paciente, mas, por outro lado, pensava que Alexa ndra devia ser advertida.
Depois de escolherem o que queriam comer, perguntou:
- Ele explicou-lhe porque me procurou?
- Sem dúvida. Atravessa um período de tensão invulgar. Os chefes da firma de corretagem onde trabalha colocam a maior responsabilidade sobre os seus ombros. É uma pessoa muito consciente dos seus deveres, como deve ter notado.
Era incrível. Desconhecia por completo o ataque de que a irmã fora vítima.
“Porque não a terão informado?” - George mostra-se muito mais aliviado por poder discutir os seus problemas com alguém - prosseguiu ela, com um sorriso de gratidão. - Alegra-me que lhe preste assistência, doutor.
“Que inocente!” Era óbvio que idolatrava o marido, e o que Templeton tinha para lhe dizer poderia destruí-la. Como lhe revelaria que casara com um psicopata que assassinara um jovem prostituto, fora banido da família e espancara brutalmente Eva? Não obstante, deveria assumir a responsabilidade de guardar silêncio?
- A profissão de psiquiatra deve ser compensadora -
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volveu Alexandra. - Tem oportunidade de ajudar muita gente.
- Bem, há ocasiões em que o fazemos - admitiu ele. Noutras, é impossível.
O almoço começou a ser servido e abordaram assuntos banais enquanto comiam.
Templeton descobriu-se encantado! com a companhia e assolou-o certo desconforto quando chegou à conclusão de que invejava George Mellis.
- Tenho muito prazer em almoçar consigo - acabou Alexandra por dizer -, mas creio que me convidou por algum] motivo.
- Na realidade… - ele hesitou, reconhecendo que chegara o momento da verdade.
As palavras que proferiria a seguir poderiam desmoronar toda a existência dela.
Convidara-a para almoçar, disposto a revelar as suas suspeitas e a sugerir que o marido fosse internado numa clínica de enfermos mentais. Todavia, agora que a conhecia, a missão afigurava -se-lhe difícil. Evocou de novo palavras de George Mellis: “Estou preocupado com Alexandra, doutor. A noite passada falou em afogamento”. Ora, a mulher que se achava na sua frente parecia disposta a tudo menos a pôr termo à vida. Resultaria do medicamento que tomava? Podia, pelo menos, interrogá-la a esse respeito.
- John Harley diz que está a tomar…
Foi interrompido pela voz grave de George Mellis:
- Ah, estás aqui, querida! Liguei para casa e comunicaram-me que vinhas a este restaurante - virou-se para o psiquiatra. - Tenho muito prazer em vê-lo, doutor Templeton. Posso fazer-lhes companhia?
E a oportunidade perdeu-se.
- Porque queria ele falar com Alex? - murmurou Eva, com uma expressão pensativa.
- Não faço a mínima ideia - replicou Mellis. - Por sorte, ela deixou dito onde estava, para o caso de eu telefonar. Segui para lá como se tivesse asas nos pés!
- Confesso que me cheira a esturro.
- Não houve novidade. Ela garantiu-me que não tinham discutido nada em particular.
- Temos de acelerar as coisas.
- Para quando? - e ele sentiu uma excitação quase sexual
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ao formular a pergunta, pois aguardava o momento com impaciência cada vez mais difícil de conter.
- Imediatamente.
Capítulo trigésimo terceiro As tonturas agravavam-se e os assuntos começavam a enevoar-se na mente de Kate. Por vezes, ponderava as conveniências e as desvantagens de concretizar determinada fusão e, de súbito, descobria que se efectuara vários anos antes.
Começava a sentir-se preocupada e, por último, resolveu aceitar o conselho de Brad Rogers e visitou John Harley.
Havia muito tempo que o médico não lograva persuadi-la a sujeitar-se a um checkup, pelo que decidiu tirar o máximo partido da sua presença no consultório.
Examinou-a minuciosamente e, no final, pediu-lhe que aguardasse uns momentos.
Na realidade, sentia-se apreensivo. Kate Blackwell mostrava-se invulgarmente lúcida para a idade, mas havia alguns indícios menos tranquilizantes. Registavase um endurecimento nítido das artérias, o que poderia explicar as tonturas ocasionais e o enfraquecimento da memória. Conquanto devesse ter abandonado os negócios há anos, persistia empenhada em não ceder as rédeas a ninguém.
“Quem sou eu para a criticar? Já ultrapassei a idade da aposentação.”
Mais tarde, com os resultados dos testes na sua frente, Harley admitiu:
- Quem me dera ter a sua condição, Kate.
- Dispenso a graxa! Limite-se a explicar em que consiste o meu problema.
- Na idade, quase totalmente. Há um pequeno endurecimento das artérias e…
- Arteriosclerose?
- É assim que os médicos lhe chamam? - ironizou. - Seja como for, padece disso.
- É grave?
- Para a sua idade, considero normal. Estas coisas são todas relativas.
- Pode receitar-me uma mistela qualquer para acabar com
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o raio das tonturas? Desagradava-me desmaiar numa cheia de homens. Era deprimente para o meu sexo.
- Não creio que isso venha a acontecer. Quando tenciona abandonar a actividade?
- Quando tiver um bisneto que ocupe o meu lugar.
Os dois velhos amigos, que se conheciam de longa data, olharam-se em silêncio por cima da secretária. Embora nem sempre concordasse com ela, Harley admirava-lhe a coragem.
Como se lhe adivinhasse o pensamento, Kate suspirou e acrescentou:
- Sabe qual foi uma das maiores desilusões da minha vida? Eva. Gostava dela a valer. Quis entregar-lhe o mundo mas nunca se preocupou com nada, além dela própria.
- Engana-se. Tem profundo afecto por si.
- Deixe-se de lérias!
- Estou em condições de o poder afirmar - o médico fez uma pausa para escolher as palavras cautelosamente - Há pouco, sofreu um acidente horrível que quase lhe provocou a morte.
- Porque?… - balbuciou ela, sentindo as palpitações do coração acelerarem-se. - Porque não me informou?
- Ela não consentiu. Apoquentava-se tanto com a possibilidade de vir a saber, que me obrigou a prometer que guardaria silêncio.
- Valha-me Deus! Como está agora?
- Recompôs-se por completo.
- Obrigado por me ter dito, John - murmurou, com o olhar perdido no espaço. - Obrigado.
- Vou receitar-lhe uns comprimidos.
Quando ergueu os olhos do papel, Harley descobriu que ela desaparecera.
Eva abriu a porta e arregalou os olhos de incredulidade. A avó encontrava-se na sua frente, empertigada e altiva como sempre, sem deixar transpare cer o mínimo indício de fragilidade.
- Posso entrar?
- Com certeza - e a rapariga desviou-se, incapaz de compreender o que sucedia.
Kate deu alguns passos, olhou em volta sem proferir qualquer comentário, e perguntou:
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- Posso sentar-me?
- Desculpa. Sem dúvida. Estou tão… Tomas alguma coisa? Chá, café?
- Não, obrigada. Estás bem?
- Sim, obrigada. Sinto-me óptima.
- Venho do consultório do doutor Harley. Disse-me que sofreste um acidente grave.
- É verdade - Eva observava a avó com desconfiança, sem saber com exactidão o que se seguiria.
- Parece que estiveste… às portas da morte. E não consentiste que me informasse, para não me preocupar.
“Então, era isso”. Assim, sentia-se em terreno mais seguro.
- De facto…
- Isso indica que continuas a apoquentar-te comigo.
- Nunca deixei de te estimar, avó - afirmou, com lágrimas de alívio, que, no entanto, Kate interpretou como de emoção.
No instante imediato, Kate admitiu, ao mesmo tempo que acariciava a cabeça loura da neta:
- Fui uma velha tonta. Perdoa-me - puxou de um lenço de linho e assoou-se ruidosamente. - Não te devia tratar com tanta severidade.
- Não falemos mais nisso - sussurrou Eva, em voz devidamente embargada. - Agora, ficou tudo esclarecido.
- Mostrei-me casmurra e inflexível, como meu pai, mas quero compensar-te do mal que sofreste. Para já, vou reintegrar-te no testamento.
- O dinheiro não me interessa - afirmou, ao mesmo tempo que cogitava: “É demasiado agradável para corresponder à verdade!” - Só me preocupo contigo, avó.
- És minha herdeira… tu e Alexandra. São a única família que me resta.
- Tenho-me governado satisfatoriamente, mas se isso te dá prazer…
- Dá-me, e muito. Quando podes mudar-te lá para casa?
Eva hesitou apenas por uns segundos.
- Julgo preferível continuar aqui, mas irei visitar-te as vezes que desejares - meneou a cabeça com lentidão e conteve um soluço. - Nem fazes uma ideia de como me tenho sentido só!
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- Perdoas-me? - perguntou Kate, pegando-lhe na mão.
- Com certeza - foi a resposta, com uma expressão solene.
Assim que a avó saiu, Eva preparou um scotch duplo e afundou-se no sofá para recapitular a cena incrível em que acabava de participar. Apetecia-lhe soltar gritos de alegria. Ela e Alexandra eram agora as herdeiras únicas da fortuna Blackwell.
Não se lhe deparariam dificuldades para fazer desaparecer a irmã. Era George Mellis que a preocupava, pois tornara-se subitamente um empecilho.
- Houve alteração de planos - anunciou Eva a Mellis. - Kate reintegrou-me no seu testamento.
- Não me digas! - ele imobilizou a mão com que se preparava para acender um cigarro. - Parabéns!
- Se acontecesse alguma coisa agora a Alexandra, pareceria suspeito. Portanto, havemos de nos ocupar dela mais tarde, quando…
- Não concordo.
- Que queres dizer?
- Não sou estúpido, querida. Se lhe acontecesse alguma coisa, a parte dela vinha - me parar às mãos. Queres fazer-me desaparecer do meio, hem?
- Digamos que és uma complicação desnecessária - concedeu ela, com um encolher de ombros. - Estou disposta a estabelecer um acordo contigo. Divorcia-te e, quando eu herdar o dinheiro, dou-te…
- Não me faças rir. Não mudou nada. Eu e Alex encon-tramo-nos em Dark Harbor, sexta -feira à noite, como estava previsto.
Alexandra ficou extasiada, quando se inteirou da reconciliação da avó com Eva e afirmou:
- Voltamos a ser uma família unida.
O telefone tocou e Eva levantou o auscultador.
- Desculpe incomodá-la. Fala Keith Webster.
O cirurgião adquirira o hábito de telefonar duas ou três vezes por semana. Ao princípio, o seu ardor incoerente divertira-a, mas acabara por se enfastiar.
- Agora não tenho tempo. Preparava -me para sair.
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- Nesse caso, não a retenho - articulou ele, em tom de desculpa. - Queria apenas dizer que arranjei duas entradas para a corrida de cavalos da próxima semana. Como sei que é apreciadora, pensei…
- Lamento, mas talvez tenha de me ausentar da cidade nessa altura.
- Bem - o desapontamento era bem nítido na inflexão da voz. - Então, saímos para a outra semana. Comprarei bilhetes para o teatro. O que lhe apetece ver?
- Já vi tudo o que está em exibição. Desculpe, mas não posso demorar-me.
Eva cortou a ligação com um gesto de enfado. Necessitava vestir-se rapidamente, pois combinara encontrar-se com Rory Mckenna, um jovem actor da Broadway que conhecera recentemente, cinco anos mais novo do que ela e mais insaciável que um garanhão selvagem.
Quando regressava a casa, George Mellis efectuou uma paragem, a fim de comprar flores para Alexandra. Experimentava uma euforia invulgar. Afigurava-selhe uma deliciosa ironia o facto de Kate haver reintegrado Eva no testamento, mas não alterava coisa alguma. Consumado o “acidente” de Alexandra, ocupar-se-ia da cúmplice. Os preparativos achavam-se concluídos. Sexta-feira, a esposa aguardá-lo-ia em Dark Harbor.
- Só nós os dois - recomendara-lhe, beijando-a. - Dispensa todo o pessoal.
Peter Templeton não conseguia afastar Alexandra Mellis do pensamento e não parava de ouvir as palavras do marido, como um eco persistente: “Talvez a leve para fora da cidade ou mesmo do país. Precisa de uma mudança de ambiente.” O instinto assegurava -lhe que ela corria perigo, mas encontrava-se impossibilitado de intervir. Não podia procurar Nick Pappas baseado em meras suspeitas.
Necessitava de provas.
Do outro lado da cidade, no seu gabinete da Kruger-Brent, Ltd., Kate Blackwell assinava um novo testamento, em que legava tudo o que possuía às duas netas.
Algures no distrito de Nova Iorque, Tony Blackwell
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encontrava-se diante do seu cavalete, no jardim da clínica. A tela; constituía uma confusão de cores, semelhante à produzida por uma criança destituída de talento.
Não obstante, ele contemplava-a com uma expressão de prazer.
Sexta-feira, 10.57 horas.
No aeroporto La Guardiã, um táxi imobilizou-se à entrada do terminal das carreiras internas e Eva Blackwell estendeu uma nota de cem dólares ao motorista, que exibiu uma expressão de contrariedade.
- Não tem mais pequeno?
- Não.
- Nesse caso, vai ter de trocar lá dentro.
- Estou com pressa. Preciso de apanhar o próximo avião para Washington - ela consultou o relógio de pulso e tomou uma decisão. - Fique com os cem dólares.
Entrou no edifício, correu para o guiché dos voos domésticos e pediu:
- Uma passagem de ida para Washington.
- Perdeu este voo por dois minutos - informou o empregado. - Está a descolar.
- Mas tenho de seguir nele! Vou encontrar-me… - Eva parecia na iminência de se deixar dominar pelo pânico. - Não pode fazer nada?
- Acalme-se. Dentro de uma hora há outro.
- Já não… Abóbora! - tentou dominar-se. - Bem, que remédio senão esperar.
Entretanto, vou tomar um café.
O homem acompanhou-a com a vista enquanto se afastava, ao mesmo tempo que reflectia: “Que beldade! Invejo o tipo com quem vai encontrar-se com tanta pressa.”
Sexta-feira, 14.00 horas.
“Vai ser uma segunda lua-de-mel”, pensava Alexandra. A ideia excitava-a.
“Dispensa o pessoal, para ficarmos sós, querida. Passaremos um fim-de-semana estupendo.” E agora ela abandonava a confortável residência a caminho de Dark Harbor, a fim de se encontrar com George. Estava um pouco atrasada, porque almoçara com uma amiga e separara-se dela mais tarde do que previra. Por fim, comunicou à empregada:
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- Estou de volta segunda de manhã.
O telefone tocou quando transpunha a porta, mas resolveu ignorá -lo, para não perder mais tempo.
Sexta-feira, 19.00 horas.
George Mellis estudara o plano de Eva meticulosamente e reconhecera que não apresentava o mínimo ponto vulnerável. “Haverá uma lancha a motor à tua espera em Philbrook Cove. Segue nela para Dark Harbor, tomando a precaução de que não te vejam. Amarra-a à popa do Corsair. Depois, levas Alexandra a dar um passeio no iate, ao luar. Uma vez ao largo, podes fazer aquilo que tanto te agrada, mas não deixes vestígios de sangue. Lanças o corpo ao mar, metes-te na lancha, deixas o Corsair à deriva e regressas a Philbrook Cove, onde apanhas o ferryboat de Lincolnville para Dark Harbor. Mete-te num táxi para alcançar a mansão.
Arranja um pretexto qualquer para que o motorista entre e note que o Corsair não se encontra no molhe. Depois de verificares q ue Alexandra não está, telefonas à Polícia. O corpo não será encontrado, porque a corrente o arrastará para o largo.
Dois médicos eminentes confirmarão que se deve tratar de suicídio…”
A lancha encontrava-se em Philbrook, conforme o plano exigia. Mellis cruzou a baía sem acender qualquer luz, orientando-se apenas com o auxílio do luar, passou nas proximidades de várias embarcações ancoradas sem ser detectado e atingiu a doca da propriedade Blackwell, onde desligou o motor e prendeu a amarra à popa do Corsair.
Ela falava ao telefone na sala, quando ele entrou. Ao vê-lo, acenou-lhe, cobriu o bocal com a mão e articulou a meia voz que era a irmã. Escutou por um momento e replicou:
- Tenho de desligar, Eva. Almoçamos juntas para a semana.
Pousou o auscultador e estendeu os braços para o recém-chegado.
- Vieste cedo. Ainda bem.
- Tinha tantas saudades tuas que larguei tudo o que estava a fazer.
- Amo-te - murmurou e beijou-a.
- E eu adoro-te, matia mou. Livraste-te do pessoal?
- Estamos só nós. Sabes uma coisa? Fiz moussaka para ti.
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- Tive uma ideia pelo caminho. Porque não vamos dar uma volta no iate?
- Pois sim, mas a moussaka…
- O jantar pode esperar - proferiu Mellis, pousando-lhe a mão num dos seios. - Eu não.
- Muito bem - e ela soltou uma risada. - Vou mudar de roupa. Não demoro nada.
- Vejamos quem o faz primeiro.
Ele subiu ao primeiro piso e enfiou rapidamente uma camisola de lã, calça de ganga e botas de borracha. Agora que o momento se acercava, dominava-o uma excitação pres tes a explodir.
- Ganhei!
Voltou-se e viu-a à entrada do quarto, envergando uma camisola de gola alta, calça de belbutina e sapatos de lona, os longos cabelos louros presos sobre a nuca por uma fita azul. “Como é bonita! Quase faz pena desperdiçar tanta be leza!” - Também estou pronto - declarou, dando-lhe a mão e puxando-a para o corredor.
- Para que é aquilo, querido? - quis saber ela, quando viu a lancha presa à popa do iate.
- Há uma ilhota na extremidade da baía que sempre desejei explorar. Com uma embarcação mais pequena, não temos de nos preocupar com possíveis rochas à flor da água.
Içou a vela, e o vento não tardou a impelir o Corsair suavemente em direcção ao largo. Quando ultrapassaram a rebentação, a velocidade aumentou, assim como as oscilações do iate.
- É estupendo! - exclamou ela. - Sinto-me muito feliz, querido.
- Eu também.
Por razões que não conseguia definir com clareza, Mellis experimentava prazer com a felicidade de Alexandra, com a circunstância de morrer feliz. Esquadrinhou o horizonte para se certificar de que não havia embarcações nas proximidades e verificou a existência de pontos luminosos a uma distância confortável. Chegara o momento.
Fixou o leme para evitar que uma súbita rajada de vento voltasse o Corsair e aproximou-se da amurada.
- Anda cá ver uma coisa, Alex.
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Ela obedeceu e abraçou-a por um momento, antes de a beijar com intensidade.
- Ah, era isso que querias! - articulou Alexandra, quando finalmente descolaram os lábios.
Todavia ele continuou a segurá-la e principiou a erguer-lhe o corpo para a amurada, enquanto ela, passados os instantes iniciais de estupefacção, se debatia desesperadamente.
De repente, Mellis sentiu uma dor excruciante no peito e pensou: “É um ataque cardíaco!” Abriu a boca para dizer algo, mas uma golfada de sangue abafou-lhe a voz. Soltou a presa e baixou os olhos para o peito, com uma expressão de incredulidade. Tinha um largo rasgão que sangrava abundantemente. Ergueu o olhar e viu que ela empunhava uma faca, com um sorriso de triunfo.
O seu derradeiro pensamento antes de expirar foi: “Eva…”
Capítulo trigésimo quarto Eram dez horas da noite, quando Alexandra chegou à mansão de Dark Harbor.
Tentara telefonar ao marido por diversas vezes, mas não obtivera resposta. Agora, acalentava a esperança de que não estivesse zangado com a sua demora. Na realidade, houvera uma confusão estúpida. Ao princípio da tarde, quando se preparava para sair de casa, o telefone tocara e ela não fizera caso, a fim de não perder mais tempo. No entanto, a empregada fora chamá-la ao carro, que se preparava para pôr em movimento.
- É sua irmã, Mistress Mellis. Diz que precisa de lhe falar com urgência.
Quando Alexandra pegou no auscultador, Eva explicou:
- Estou em Washington a contas com um problema horrível. Temos de nos encontrar.
- Muito bem. Agora, sigo para Dark Harbor, onde George me espera, mas regressamos segunda-feira e…
- Isto não pode esperar - Eva parecia desesperada. - Queres ir esperar-me ao Aeroporto La Guardiã? Chego no avião das cinco.
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- Mas prometi a George…
- Trata-se de uma emergência, Alex. No entanto, se não pode ser…
- Espera! Está bem. Espero lá por ti.
- Obrigada, querida. Sabia que podia contar contigo. Alexandra reconheceu que a irmã lhe pedia um favor tão raramente que não reuniu coragem para recusar. Seguiria noutro avião para a ilha.
Tentou contactar o marido, mas do escritório informaram que já saíra, pelo que deixou um recado à secretária dele. Uma hora mais tarde, apeava-se de um táxi no Aeroporto La Guardiã, onde verificou que Eva não viajara no avião das cinco.
Aguardou mais duas horas, e como a irmã continuasse a não aparecer, seguiu finalmente para a ilha. Agora, ao aproximar-se de Cedar Hill, observou que não havia uma única luz acesa. Todavia, o marido já devia ter chegado. Percorreu todos os aposentos, ao mesmo tempo que o chamava, sem resultado. Por último, ligou para a residência em Manhattan, e perguntou à empregada:
- Mister Mellis está aí?
- Não, Mistress Mellis. Disse que se ausentavam ambos durante o fim-de-semana.
- Obrigada, Marie. Deve ter ficado retido algures.
Tinha de haver uma razão lógica para a sua ausência. Decerto surgira alguma coisa inesperada relacionada com o trabalho e, como sempre, os chefes tinhamno encarregado de lhe dar andamento. De qualquer modo, apareceria a todo o momento. Em seguida, Alexandra marcou o número da irmã, que atendeu com prontidão.
- Eva! Que te aconteceu?
- Isso pergunto eu! Fartei-me de esperar no Aeroporto Kennedy e acabei…
- Kennedy? Disseste que era no La Guardiã.
- Não, querida. Kennedy.
- Mas… - Alexandra interrompeu-se, reconhecendo que o pormenor deixara de se revestir de importância. - Devo ter sido eu que fiz confusão. Estás bem?
- Agora, estou, mas passei um mau bocado. Envolvi-me com um fulano, uma figura grada da polícia em Washington, e… - Eva soltou uma risada seca. - Prefiro não falar no assunto pelo telefone. Segunda-feira explico-te tudo.
- Pois sim - assentiu Alexandra, profundamente aliviada.
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- Bom fim-de-semana. Como está George?
- Ainda não chegou - esforçou-se por dominar a preocupação que começava a assolá-la. - Suponho que surgiu algum assunto de última hora no emprego e não teve oportunidade de me prevenir.
Enquanto pousava o auscultador, pensava: “Era óptimo que ela encontrasse alguém realmente maravilhoso. Um homem como George, por exemplo.”
Consultou o relógio, que indicava quase onze horas, e ponderou que ele já devia ter dito alguma coisa. Por fim, discou o número da Hanson and Han-son, mas não obteve resposta. A seguir, ligou para o clube que o marido costumava frequentar e obteve a informação de que ninguém o vira lá nesse dia. À meia-noite, achava-se alarmada e, transcorrida mais uma hora, o pânico dominava-a por completo. Não sabia o que devia fazer. Subsistia a possibilidade de ele se ver obrigado a acompanhar um cliente algures. Se telefonasse à Polícia e George aparecesse, faria uma figura ridícula.
No entanto, às duas horas da madrugada, não conseguiu conter-se mais e resolveu preveni-la. Não havia um destacamento da Polícia na ilha, pelo que a unidade mais próxima se situava no condado Waldo.
- Departamento do xerife do condado Waldo - anunciou uma voz sonolenta. - Sargento Lambert.
- Fala Alexandra Mellis, de Cedar Hill.
- Em que lhe posso ser útil, Mistress Mellis? - a sonolência extinguiu-se com prontidão.
- Para ser franca, não sei. Meu marido devia encontrar-se comigo aqui, ao princípio da noite, e ainda não apareceu.
- Hum… - o som podia interpretar-se de várias maneiras. O sargento conhecia pelos menos três razões justificativas da ausência do lar de um marido às duas horas da madrugada: louras, morenas e ruivas. - Talvez fosse retido por algum assunto relacionado com o trabalho - aventurou, com o maior tacto possível.
- Quando isso acontece, costuma telefonar.
- Sabe como essas coisas são, Mistress Mellis. Às vezes torna-se impossível interromper uma reunião para utilizar o telefone. Estou certo de que não tarda a ligar para aí.
Agora, Alexandra sentia mesmo que fazia figura ridícula. Evidentemente que a Polícia não lhe podia valer. Recordava-se
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de ler algures que uma pessoa devia ter desaparecido mais de vinte e quatro horas para que as autoridades pudessem iniciar pesquisas. E, de resto, George não se podia considerar desaparecido. Estava simplesmente atrasado.
- Deve ter razão - acabou por admitir. - Desculpe incómodo.
- Não tem importância, Mistress Mellis. Aposto que chega aí no primeiro ferryboat da manhã, às sete.
Todavia, ele não apareceu no ferryboat das sete nem no seguinte, pelo que Alexandra voltou a ligar para a residencial de Manhattan.
Entretanto, começava a invadi-la uma sensação de catástrofe. O marido sofrera um acidente, encontrava -se num hospital, enfermo ou morto. Se não tivesse havido aquela confusão com Eva… Existia a esperança de ele ter chegado a Cedar Hill à hora combinada e, não a vendo, voltado a sair. Contudo, ficavam vários pormenores por explicar. Se tal acontecesse, deixaria um bilhete. Também podia ter surpreendido ladrões e sido atacado ou raptado. Alexandra tornou a percorrer a casa, em busca de um indício, ainda que insignificante. Em seguida, dirigiu-se ao molhe, onde viu o Corsair ancorado.
Telefonou de novo à Polícia, e desta vez foi atendida pelo tenente Philip Ingram, que rendera o sargento no turno da manhã. Já se encontrava ao corrente de que George Mellis estivera ausente de casa toda a noite, pois o facto constituíra o tema principal dos comentários na esquadra, todos eles jocosos.
- Não há mesmo o mínimo sinal dele, Mistress Mellis? - perguntou para o bocal. - Está bem. Eu próprio irei aí.
Sabia que se limitaria a perder tempo, pois o marido decerto passara a noite entre os lençóis de alguma loura capitosa, mas “quando os Blackwell chamam, toda a gente acode imediatamente”.
O tenente Ingram escutou atentamente as palavras de Alexandra, revistou a casa e o molhe e chegou à conclusão de que ela tinha um problema entre as mãos.
George Mellis devia reunir-se à esposa em Dark Harbor, ao fim da tarde anterior, e não comparecera. Conquanto o problema não fosse seu. Ingram admitiu para consigo que não perderia nada em
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se mostrar solícito para com um membro da família Black-well. Assim, telefonou ao aeroporto da ilha e ao terminal do ferrvboat em Lincolnville, após o que se achou em condições de afirmar à inquieta esposa que o marido não utilizara qualquer daqueles meios de transporte nas últimas vinte e quatro horas. “E que diabo significa isto? Que razão o levaria a desaparecer da circulação?” Na sua opinião, ho mem algum em plena posse das faculdades mentais abandonaria voluntariamente a companhia de uma mulher como Alexandra.
- Investigaremos nos hospitais e ne… - interrompeu-se antes de completar a palavra ominosa. - E outros locais.
- Obrigada, tenente - articulou ela, desenvolvendo esforços desesperados para não se abandonar ao pânico. - Não necessito dizer que aprecio devidamente o interesse que manifesta.
- É o meu dever - declarou Ingram, com simplicidade.
Quando regressou à esquadra, começou a ligar para os hospitais e necrotérios, mas só obteve respostas negativas. Não havia qualquer caso de acidente em que George Mellis figurasse. A diligência imediata do tenente consistiu em telefonar a um amigo que exercia as funções de repórter no Maine Cou-rier, após o que emitiu um boletim de pessoa desaparecida destinado a todos os postos habituais.
Naquela tarde, os jornais mencionavam o assunto na primeira página:
MARIDO DE HERDEIRA BLACKWELL DESAPARECE
Peter Templeton inteirou-se do caso por intermédio do detective Nick Pappas:
- Lembra-se de me pedir informações acerca de George Mellis?
- Perfeitamente.
- Eclipsou-se.
- O quê?
- Desapareceu.
- Levou alguma coisa? Dinheiro, roupa, passaporte?
- Não. Segundo o relatório que recebi de Maine, dissipou-se na atmosfera. Na qualidade de seu psiquiatra, pensei que talvez fizesse uma ideia de como ele conseguiu executar o truque.
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- Confesso que não - declarou Templeton, com sinceridade.
- Se lhe ocorrer alguma coisa, apite, pois palpita-me que isto vai fazer correr muita tinta.
- Sem dúvida.
Meia hora depois, Alexandra telefonava a Templeton, que detectou imediatamente a inflexão de pânico na voz.
- George desapareceu! Ninguém sabe o que lhe pode ter acontecido e lembrei-me de que talvez deixasse transparecer alguma coisa, nas vossas sessões.
- Lamento, Mistress Mellis, mas não o fez - ele deplorava não dispor de qualquer informação para a tranquilizar. - Se me ocorrer algum elemento útil, telefono-lhe.
Para onde devo ligar?
- Estou a falar de Dark Harbor, mas regresso a Nova Iorque à tarde. Encontrarme- á em casa de minha avó.
Ela não podia encarar a hipótese de se achar só e falara com Kate diversas vezes durante a manhã.
- Estou certa de que não há motivo para alarme - afirmara a avó. - Provavelmente, teve de se ausentar em serviço e esqueceu-se de te prevenir.
No entanto, nenhuma das duas mulheres acreditava nesta possibilidade.
Eva assistiu à reportagem sobre o desaparecimento de George Mellis na televisão, com fotografias do exterior de Cedar Hill e Alexandra e o marido após a cerimónia nupcial. Havia igualmente uma dele, de olhar arregalado, expressão que lhe recordou a de surpresa que exibira segundos antes de morrer.
Entretanto, o comentador informava:
- Não há indícios de violência, nem surgiram pedidos de resgate. As autoridades admitem a possibilidade de George Mellis ter sido vítima de um acidente e sofrer de amnésia.
Eva esboçou um sorriso de satisfação. Nunca encontrariam o corpo, porque a corrente o arrastara para o largo. Pobre George… Seguira o seu plano com perfeição, mas ela alterara-o. Partira de avião para Maine, onde alugara uma lancha motorizada em Philbrook Cove, que seria reclamada por um “amigo”.
Depois, alugara outra numa doca próxima e utilizara-a
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para alcançar Dark Harbor, onde esperara pelo cúmplice. Tomara a precaução de limpar a coberta antes de ancorar o iate na doca. Em seguida, rebocara a lancha dele até ao molhe, devolvera a sua a quem lha alugara e tomara o avião de regresso a Nova Iorque, a fim de aguardar em casa o telefonema que Alexandra não deixaria de efectuar.
Fora um crime perfeito, que a Polícia consideraria um desaparecimento misterioso.
Por último, desligou o televisor e foi-se vestir.
Não queria chegar atrasada ao encontro com Rory McKenna.
Às seis horas da manhã seguinte, os tripulantes de um barco de pesca encontraram o corpo de George Mellis entre as pedras, na baía Penebscot. No noticiário imediato, afirmaram que se tratava de morte acidental por afogamento, mas, à medida que iam surgindo mais informações, o teor das versões começou a modificar-se. Finalmente, surgiu um comunicado oficial, segundo o qual aquilo que ao princípio fora encarado como mordeduras de tubarões constituíam ferimentos provocados por um instrumento cortante. As notícias da tarde já não deixavam margem para dúvidas:
SUSPEITA-SE DE HOMICÍDIO NA MORTE
DE GEORGE MELLIS. MILIONÁRIO ASSASSINADO.
O tenente Ingram estudou a tabela das marés e das correntes da véspera e, no final, reclinou-se na cadeira, o rosto alterado por uma expressão de perplexidade.
O corpo de George Mellis teria sido arrastado para o largo, se não ficasse preso nas pedras. O que o intrigava era o facto de tudo indicar que provinha de Dark Harbor, local onde aparentemente não estivera.
O detective Nick Pappas seguiu de avião para Maine, com o intuito de trocar impressões com o tenente Ingram.
- Penso que o meu departamento lhes pode ser útil - afirmou, depois de se saudarem. - Disponho de algumas informações interessantes acerca de George Mellis. Eu sei que o caso se desenrolou fora da nossa área de jurisdição, mas se vocês solicitassem a nossa cooperação, não hesitaríamos em a dar.
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Nos vinte anos de serviço de Ingram na Polícia do condado de Waldo, o único momento de excitação que conhecera fora no dia em que um turista embriagado alvejara a tiro a cabeça de um veado, exposta na parede de uma loja de curiosidades. Ora, o assassínio de George Mellis figurava na primeira página de toda a Imprensa, e ele pressentia uma oportunidade de ganhar notoriedade. Com um pouco de sorte, talvez até o transferissem para o departamento de detectives de Nova Iorque. Por conseguinte, murmurou:
- Bem, não sei…
Como se lhe lesse o pensamento, Nick Pappas esclareceu:
- Não pretendemos cobrir-nos de glória com isto. Vai haver forte pressão para deslindar o mistério, e se vocês o conseguissem rapidamente, facilitavam -nos a vida. Eu podia começar, fornecendo os antecedentes da vítima.
Por fim, o tenente Ingram decidiu que não tinha nada a perder.
- De acordo. Ouçamo-los.
Alexandra encontrava-se deitada, sob o efeito de sedativos. O seu espírito recusava-se obstinadamente a aceitar o facto de que o marido fora assassinado.
Ninguém dispunha do mínimo motivo para o matar. A Polícia falava de ferimentos provocados por uma faca, mas equivocava -se, sem dúvida. Só podia ter sido um acidente. “Ninguém lhe desejava a morte… Ninguém lhe desejava a morte…” A droga que o dr. Harley lhe administrara acabou por fazer efeito, e ela adormeceu.
Eva ficou abismada, quando se inteirou de que o corpo de Mellis fora encontrado.
“Mas talvez sirva para reforçar as suspeitas. Ela estava lá, na ilha.”
Kate achava-se sentada a seu lado, no sofá da sala, acabrunhada pelos acontecimentos das últimas horas - Que motivo levaria alguém a assassinar George? - murmurou.
- Não sei, avó - articulou Eva. - Sinto o coração despedaçar-se, ao pensar no desgosto de Alex.
O tenente Ingram interrogava o empregado do terminal do ferry-boat Lincoln ville- Islesboro.
- Tem a certeza absoluta de que nenhum dos Mellis utilizou oferry, sexta-feira à tarde?
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- Não o fizeram no meu turno e perguntei ao colega da manhã, que afirmou a mesma coisa. Só podiam vir de avião.
- E quanto a estranhos?
- Sabe perfeitamente que isso não acontece, nesta altura do ano. Aparecem alguns turistas no Verão, mas em Novembro nunca.
A seguir, Ingram avistou-se com o responsável do aeroporto de Islesboro, que declarou:
- Posso assegurar-lhe que George Mellis não passou por aqui, nessa tarde. Se se dirigiu à ilha, recorreu aoferry.
- Lew diz que não.
- A nado é que não o fez!
- E quanto a Mistress Mellis?
- Essa, sim. Aterrou no seu Beechcraft por volta das dez da noite. Meu filho, Charley, conduziu-a a Cedar Hill.
- Qual era o seu estado de espírito?
- É curioso que me faça essa pergunta. Parecia nervosa como uma colegial a caminho da sua primeira entrevista romântica. Toda a gente reparou. Costuma mostrar-se calma e dirigir uma palavra atenciosa a quem encontra, mas dessa vez estava com uma pressa medonha.
- Só mais uma coisa. Apareceu algum estranho nessa tarde ou noite?
- Não. Apenas as pessoas habituais.
Uma hora mais tarde, o tenente conversava com Nick Pappas pelo telefone.
- O que obtive até agora só serve para aumentar a confusão. Mistress Mellis chegou ao aeroporto de Islesboro no seu avião particular, sexta -feira à noite, por volta das dez horas, mas o marido não a acompanhava, nem apareceu noutro aparelho ou noferry. Na realidade, não existe elemento algum comprovativo de que pôs os pés na ilha em toda a noite.
- Excepto a corrente.
- Exacto.
- Quem o matou deve tê-lo lançado à água de uma embarcação, convencido de que a corrente o arrastaria para o largo. Examinou o Corsair?
- De ponta a ponta. Não apresenta o mínimo sinal de violência ou manchas de sangue.
- Gostava de mandar aí um perito. Importa-se?
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- Não, desde que você não se esqueça do nosso acordo.
- Tenho boa memória. Até amanhã.
Nick Pappas e uma equipa de técnicos apresentaram-se na manhã seguinte e o tenente Ingram acompanhou-os à doca onde o Corsair se encontrava ancorado.
Duas horas mais tarde, o chefe da equipa anunciava:
- Parece que acertámos na mouche. Há algumas manchas de sangue na parte inferior da amurada da popa.
Naquela tarde, o laboratório da Polícia confirmava que as manchas condiziam com o tipo de sangue de George Mellis.
O departamento policial das “meias de seda” de Manhattan desenvolvia azáfama invulgar. Uma série de rusgas a locais suspeitos tivera como resultado a superlotação das celas, repletas de prostitutas, bêbados e tarados sexuais. O ruído e o odor pungente atingiram os ouvidos e as narinas de Peter Temple-ton, quando entrou para falar com o tenente-detective Pappas.
- Olá, Peter. Agradeço a prontidão com que compareceu. Pelo telefone, Pappas dissera: “- Oculta-me elementos importantes, amigo. Apareça no meu gabinete antes das seis, ou mando buscá-lo pela Brigada de Choque.”
Quando a porta se fechou atrás dele, o psiquiatra inquiriu:
- De que se trata?
- Nada mais, nada menos do que de alguém particularmente inteligente. Sabe o que temos nas mãos? Um homem morto que desapareceu de uma ilha onde não pôs os pés.
- Não faz sentido.
- A quem o diz! O empregado do ferryboat e o tipo que explora o aeroporto juram que não viram George Mellis na noite em que desapareceu. A única outra via de acesso a Dark Harbor é por barco. Interrogámos todas as pessoas que alugam embarcações na área, e nada.
- Talvez ele não estivesse em Dark Harbor, nessa noite.
- Os técnicos do laboratório afirmam o contrário. Encontraram indícios de que foi lá, onde vestiu a roupa com que o encontraram morto.
- Mataram-no na casa?
- Não, no iate. Depois, lançaram o corpo pela borda fora. O assassino supôs que a corrente o arrastaria para o largo. Agora, é a minha vez de fazer perguntas. Mellis era seu paciente. Portanto, deve ter-lhe falado na mulher.
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- Que tem ela a ver com o assunto?
- Tem tudo. É a minha suspeita principal.
- Endoideceu! Porque pensa que Alexandra Mellis assassinou o marido?
- Encontrava-se lá e dispunha de um motivo. Chegou à ilha já de noite, com a desculpa incrível de que perdeu tempo no aeroporto errado à espera da irmã.
- Que diz a irmã?
- Que havia de dizer? São gémeas! Sabemos que George Mellis esteve na casa, naquela noite, mas a esposa jura que não o viu. É uma casa enorme, sem dúvida, porém, não a esse ponto. Depois, ela dispensou o pessoal, e quando perguntei porquê, alegou que a ideia foi do marido, impossibilitado de o confirmar ou negar.
- Referiu-se a um motivo - lembrou Templeton, após um momento de silêncio.
- Foi você que me colocou no bom caminho. Mistress Mellis estava casada com um psicopata que obtinha excitação sexual através de maus tratos infligidos aos prostitutos de ambos os sexos. Provavelmente, esbofeteava-a com regularidade e ela acabou por querer pôr termo ao tormento. Propôs o divórcio, ele recusou, o que não admira, dada a situação financeira da família Blackwell, e o homicídio apresentou-se como única alternativa.
- Que pretende de mim?
- Informação. Sei que almoçou com ela, há dez dias - Pappas premiu a tecla de um gravador em cima da secretária. - Quero que isto fique registado, para efeitos legais. Como se comportou? Parecia tensa, irritada, histérica?
- Nunca vi uma mulher mais descontraída e feliz com o casamento.
- Não tente ludibriar-me - advertiu, desligando o aparelho com um movimento brusco. - Procurei o doutor John Harley, esta manhã. Confessou que prestava assistência a Alexandra Mellis para evitar que se suicidasse!
Harley ficara profundamente preocupado com a visita do tenente Pappas, que entrara directamente no assunto:
- Mistress Mellis consultou-o profissionalmente, nos últimos tempos?
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- Não posso discutir os meus pacientes - foi a resposta peremptória.
- Compreendo. São amigos de longa data e pretende guardar segredo. Muito bem - Pappas levantou-se e encolheu os ombros. - investigo um homicídio. Por conseguinte, voltarei dentro de uma hora, munido de uma ordem judicial para examinar o seu ficheiro. Quando descobrir o q ue procuro, divulgá-lo-ei aos jornais.
Harley conservou-se silencioso por uns segundos e exalou um suspiro de resignação.
- Sente-se. De facto, Alexandra Mellis tem enfrentado problemas emocionais, ultimamente.
- De que género?
- Uma forte depressão nervosa. Fala mesmo em pôr termo à vida.
- Mencionou a possibilidade de se servir de uma faca?
- Não. Parece que sonhava com o afogamento. Prescrevi-lhe Wellbutrin e, mais tarde, por não produzir efeito, optei pela Nimifensina. Não sei se o resultado foi mais animador.
- Que mais? - inquiriu Pappas, enquanto os elementos formavam um panorama coerente no seu espírito.
- Revelei-lhe tudo o que sabia.
No entanto, havia mais, e John Harley sentia a consciência atormentá-lo.
Abstivera-se de mencionar o ataque brutal de George Mellis a Eva Blackwell. Em parte, porque reconhecia que devia ter informado as autoridades quando ocorrera, mas animava-o sobretudo o desejo de proteger a família Blackwell. Embora não pudesse determinar se existia alguma relação entre a agressão a Eva e a morte dele, o instinto segredava-lhe que convinha não ventilar o assunto. Na realidade, achava-se disposto a fazer tudo ao seu alcance para poupar a Kate Blackwell situações desnecessariamente penosas.
Cinco minutos depois de Harley tomar esta decisão, a recepcionista informou.- O doutor Keith Webster deseja falar-lhe. Está na linha dois. Dir-se-ia que a consciência pretendia submetê-lo a mais uma prova.
- Gostava de passar por aí esta tarde, John - declarou Webster. - Pode ser?
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- Sem dúvida. A que horas? - Às cinco, por exemplo.
- Muito bem.
Tudo indicava que o caso não tombava no esquecimento com facilidade…
Às 17.00 horas, a recepcionista introduziu o cirurgião no gabinete de Harley, que perguntou:
- Toma alguma coisa?
- Não, obrigado. Desculpe incomodá-lo, mas gostava de desfazer uma dúvida.
- Não tem importância. Do que se trata?
- Da… - Webster hesitou e aclarou a Voz. - Do espancamento de Eva Blackwell por George Me'lis.
- Continue.
- Sabia que ela esteve às portas da morte?
- Sem dúvida.
- A Polícia não foi informada, como sabemos. No entanto, agora, em face do que sucedeu, pergunto a mim mesmo se não conviria fazê-lo.
- Acho que deve proceder como melhor lhe parecer, Keith.
- Por outro lado, custa-me praticar um acto que possa afectar Eva Blackwell. Uma moça muito especial, diga-se de passagem.
- Decerto - assentiu Harley, observando o interlocutor com curiosidade.
- O pior é que, se me calo e a Polícia descobre tudo mais tarde, fico em maus lençóis.
“Ficamos!” reflectiu. De súbito, afigura-se-lhe vislumbrar uma saída possível e disse com desprendimento:
- Parece-me pouco provável que isso venha a acontecer. Ela nunca falaria nisso e, de resto, você restituiu-lhe o aspecto primitivo. Se não fosse aquela pequena cicatriz, ninguém suspeitaria de que esteve desfigurada.
- Qual cicatriz? - perguntou o cirurgião, enrugando a fronte.
- A da fronte. Segundo a própria Eva me revelou, você tenciona suprimi-la dentro de um ou dois meses.
- Não me recordo… Quando a viu pela última vez?
- Procurou-me há uns dez dias, para trocarmos impressões sobre um problema da irmã. Por acaso, a cicatriz foi o
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único indício que me permitiu verificar que era ela e não Alexandra. São gémeas idênticas, como sabe.
- Sim - Webster inclinou a cabeça com lentidão. Lembro-me de ver fotografias da irmã nos jornais. Têm uma semelhança surpreendente. E diz que só soube de quem se tratava em virtude da cicatriz resultante da operação?
- Exacto.
- Pensando bem, talvez não convenha ir à Polícia imediatamente. Quero ponderar o assunto mais uns tempos.
- Aqui para nós, acho que tomou a decisão mais sensata. São ambas mulheres encantadoras e os jornais insinuam que as autoridades julgam Alexandra autora da morte do marido. Quanto a mim, é impossível. Conheço-as desde a infância…
Todavia, o dr. Webster deixara de prestar atenção às palavras de Harley, imerso em profundas reflexões.
O cirurgião abandonou o consultório do colega, entregue a meditações cada vez mais preocupantes. Tinha a certeza absoluta de que não deixara o mínimo vestígio de cicatriz naquele rosto admirável. Não obstante, John Harley afirmava tê-la visto. A situação afigurava-se-lhe confusa e incompreensível.
Após longa meditação, julgou vislumbrar a verdade e decidiu: “Se tenho razão, a minha vida vai sofrer uma transformação radical.”
Na manhã seguinte, voltou a telefonar a Harley.
- Desculpe tornar a incomodá-lo, John, mas gostava que me esclarecesse um ponto. Disse que Eva Blackwell o procurou para trocarem impressões acerca de Alexandra?
- Sim.
- Alexandra esteve aí, depois disso?
- No dia seguinte. Porquê?
- Mera curiosidade. Pode revelar-me o motivo da visita de Eva?
- A irmã atravessava um período de grande depressão e ela queria saber se lhe podia valer.
Eva fora espancada e quase morta pelo marido de Alexandra. Agora, ele aparecera assassinado e esta figura como principal suspeita.
Keith Webster nunca duvidara de que não era um homem brilhante. No liceu, tivera de se esforçar até à exaustão para obter nota suficiente para transitar de ano. Por outro lado,
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podia considerar-se uma nulidade no campo dos desportos, pois possuía um físico pouco apropriado para o efeito. Portanto, foi com surpresa geral dos colegas e amigos que conseguiu 'ingressar na Faculdade de Medicina. Uma vez tornado médico, prosseguiu os estudos e acabou por se converter num dos melhores cirurgiões plásticos do mundo. Dir-se-ia possuir um talento especial para modelar os tecidos humanos, como o escultor trabalha com o barro. Todavia, mau grado a fama que conquistou, jamais conseguiu superar o trauma da mocidade. No íntimo, continuava sendo o adolescente que aborrecia toda a gente e as raparigas desfrutavam.
Quando finalmente marcou o número de Eva, Webster tinha as mãos alagadas em transpiração. Ela atendeu ao primeiro toque e proferiu:
- Rory?
- Não. É Keith Webster.
- Ah, olá.
- Como tem passado? - perguntou, apercebendo-se da mudança na voz dela.
- Bem, obrigada.
- Precisava falar-lhe.
- Não recebo ninguém. Se lê os jornais, sabe que meu cunhado foi assassinado.
Estou de luto.
- É precisamente acerca disso que lhe queria falar - ele limpou uma das mãos às calças e utilizou-a para pegar no auscultador, a fim de proceder a idêntica operação com a outra. - Sou possuidor de determinada informação do seu interesse.
- De que se trata?
- Prefiro não ventilar o assunto pelo telefone.
- Está bem. Quando quer passar por cá?
- Imediatamente, se não vê inconveniente.
Quando o cirurgião se apresentou no apartamento de Eva, esta acolheu-o com a advertência:
- Disponho de pouco tempo. Que pretende dizer-me, afinal?
- Isto.
Webster abriu um sobrescrito que extraiu da algibeira e
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mostrou a fotografia que continha, com uma expressão de desafio.
- Sou eu - admitiu ela, intrigada. - E depois?
- Foi tirada logo a seguir à operação. Ou, melhor, após] a retirada das ligaduras.
- Não duvido, mas continuo sem compreender.
- Nota alguma cicatriz na fronte?
A metamorfose operada no seu semblante não passou despercebida ao cirurgião, que esboçou um modesto sorriso de triunfo.
- Sente-se, Keith.
Ele instalou-se diante de Eva, na extremidade do sofá, olhando-a como que fascinado. Vira muitas mulheres bonitas ao longo da sua carreira, mas aquela atraía-o de uma maneira diferente.
- Sou toda ouvidos.
Webster começou pelo princípio. Referiu a sua visita ao dr. Harley e a cicatriz misteriosa, ao mesmo tempo que lhe observava os olhos, os quais se mantinham, todavia, inexpressivos. No final da descrição, Eva declarou:
- Não sei o que tem em mente, mas garanto-lhe que se limita a perder tempo. No que diz respeito à cicatriz, quis pregar uma pequena partida a minha irmã. E agora, se acabou de desfiar o rosário, não o retenho mais.
- Lamento tê-la incomodado - não obstante, ele permaneceu sentado. - Simplesmente, pensei que conviria falar consigo antes de me dirigir à Polícia.
- À Polícia? - ecoou ela, agora visivelmente interessada. - Para quê?
- Sou obrigado a comunicar o ataque de que foi vítima por parte de George Mellis.
Há, depois, o pormenor da cicatriz. Não o entendo, mas estou certo de que você explicará tudo de forma satisfatória para as autoridades.
Eva experimentou a primeira sensação de medo. O imbecil e insignificante indivíduo sentado na sua frente não fazia a mínima ideia do que acontecera, mas achava-se na posse de material suficiente para obrigar a Polícia a formular-lhe perguntas embaraçosas.
George Mellis visitava-a com frequência, circunstância sem dúvida observada pela vizinhança. Por outro lado, ela mentira acerca da ida a Washington, na noite da morte de Mellis, e
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não dispunha de um álibi sólido porque nunca supusera que o viria a necessitar.
Se a Polícia se inteirasse de que o cunhado a espancara quase até à morte, deparar-se-lhe-ia um excele nte móbil para o crime. A partir daí, toda a maquinação se revelaria gradualmente. Portanto, impunha-se que garantisse o silêncio daquele homem.
- Que pretende? Dinheiro?
- Não! - replicou ele, indignado.
- Então?
- Gosto muito de si - articulou, corando e fixando o olhar na carpeta. - Desgostavame profundamente que lhe sucedesse algum dissabor.
- Não se preocupe com isso - Eva conseguiu esboçar um sorriso. - Creia que nada disso tem a mínima relação com a morte de George Mellis - pegou-lhe na mão e acrescentou a meia voz: - Ficava-lhe imensamente grata se esquecesse o que acaba de mencionar. De acordo?
- Bem queria, mas o médico legista promove um inquérito preliminar, no sábado.
Na minha qualidade de cirurgião, tenho de depor e revelar tudo o que sei.
- Não é obrigado a isso! - exclamou ela, alarmada.
- Que remédio… O juramento profissional impõe-mo. Há apenas uma coisa que me impediria de o fazer…
- O quê?
A voz de Webster denunciava a máxima brandura quando anunciou:
- Homem algum pode ser forçado a depor contra a esposa!
Capítulo trigésimo quinto O casamento realizou-se dois dias antes do inquérito do médico legista, numa cerimónia discreta presidida por um magistrado no seu gabinete. A ideia de se unir pelo matrimónio a um homem como Keith Webster fazia com que Eva sentisse arrepios de repulsa, mas reconhecia que não lhe restava qualquer alternativa. “O idiota pensa que vamos estar casados durante muito tempo.” Assim que o inquérito fosse concluído, obteria a anulação, e não teria de o suportar mais.
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O tenente -detective Nick Pappas achava-se a contas com um problema. Estava convencido de que conhecia a identidade de quem matara George Mellis, mas não o podia provar. Deparava-se-lhe uma conspiração de silêncio em torno da família Blackwell que não podia desmantelar. Discutiu o assunto com o seu superior, capitão Harold Cohn, um polícia, que iniciara a carreira como simples guarda das ruas, o qual o escutou em silêncio e, no final, declarou:
- É tudo fumo, Nick. Não possui um fragmento de prova, No tribunal, rir-se-iam de nós!
- Talvez, mas tenho razão - Pappas imergiu em reflexões por um momento. - Importa-se que converse com Kate Blackwell?
- Com a breca! Para quê?