XV
A luz do Sol penetrou pelo cortinado e acordou Tomás. Estremunhado, consultou o relógio e verificou que era ainda madrugada. Olhou para a janela, tão surpreendido com a claridade diurna que a mente despertou por completo. Sol a esta hora? Considerando que o Verão já chegara, isso só podia significar que o comboio se deslocara para norte durante a noite, o que o deixou curioso.
Sentiu a respiração pesada de Nadezhda sobre o pescoço e moveu-se com muito cuidado, de modo a não a acordar. Deslizou para fora do beliche, vestiu-se e correu a porta do compartimento para ir ao quarto de banho, sempre com gestos silenciosos. O Transiberiano parecia um comboio-fantasma, o corredor do vagão da primeira classe deserto àquela hora matinal. Nem a provodnitsa dava sinais de vida.
Quando regressou, sentou-se à janela e afastou ligeiramente o cortinado, espreitando lá para fora.
Uma planície colorida estendia-se até onde a vista alcançava, os verdes e amarelos da taiga a misturarem-se com os azuis cristalinos dos lagos e riachos que cruzavam a floresta de pinheiros, de larícios, de abetos. Aqui e ali desco-bria-se uma casota de madeira, um estábulo ou um palheiro, ou então a desolação industrial de fábricas abandonadas, as paredes sujas, os metais enferrujados, as chaminés negras.
Depressa reapareciam, porém, as aldeias pitorescas; viam-se animais a pastar em grandes prados ou apenas o dédalo de coníferas a estender-se pelo horizonte, as copas aguçadas retalhando o azul profundo do céu limpo. Por vezes vinham nuvens cinzentas que descarregavam água, mas era apenas por breves momentos; logo o sol voltava, mais brilhante ainda se possível, o reflexo da luz límpida a refulgir nas 121
folhas molhadas como o cintilar encandeante das pedras preciosas.
"Dobroye utro, Tomik", soou uma voz sonolenta, dando os bons dias.
Tomás desviou a atenção da paisagem.
"Olá, princesa." Ergueu-se e foi beijar a russa, que o espreitava do beliche, a cabeça envolta no cobertor quente, os cabelos cor de cobre espalhados pela almofada, as pálpebras ainda entreabertas. "Já acordaste?"
"Estendi a mão e vi que tinhas desaparecido", murmurou num queixume, simulando um beicinho. "O que estás a fazer aí?"
O português voltou para junto da janela e correu a cortina, revelando a paisagem.
"Estava a apreciar o campo", disse ele. "Sabes onde estamos?"
Nadezhda esticou a cabeça e, abrindo os olhos a custo, observou o panorama.
Sentia-se ainda a despertar, a mente lenta e preguiçosa, e levou alguns instantes a reconhecer aquelas paragens.
"Já passámos as estepes", constatou. "Isso significa que o Volga ficou para trás." Reflectiu mais um instante. "Devemos estar na região do Viátka."
"É bonita."
Ela enroscou-se ainda mais nos cobertores.
"Mas tem cuidado, Tomik", avisou, a voz rouca de sono. "Não vejas de mais, pode ser perigoso."
"Perigoso? Porquê?"
"Isto é o sector de Kirov." Estreitou os olhos, adoptando um tom de secretismo. "Área militar." Fez uma pausa, para melhor efeito. "Toda esta zona esteve fechada aos visitantes durante muitos anos e ainda hoje é algo sensível."
Tomás olhou furtivamente para a porta da cabina, como se receasse a entrada de alguém.
"Estás a falar a sério?"
A russa riu-se.
"Estou", disse. "Mas não te preocupes, Tomik. Estamos no Transiberiano e ninguém nos vai incomodar."
Ainda inquieto, Tomás observou de relance a paisagem.
"Depois do que vi naquela estação, quando fomos comprar o jantar, já nada me admira." Desinteressou-se da paisagem e passou a mão pelo estômago. "Olha lá, não tens fome?"
"Queres comer?"
122
"Bem, sempre temos de tomar o pequeno-almoço..."
Nadezhda sentou-se no beliche e espreguiçou-se, destapando o tronco. Os olhos de Tomás desviaram-se, quase sem querer, para os seios nus, cheios e atrevidos, os mamilos grandes e rosados a arrebitarem como chupetas. A russa notou-lhe o olhar guloso e, depois de um longo bocejo, sorriu.
"Não sei bem qual o género de pequeno-almoço que tens em mente", observou, maliciosa. "Mas eu cá quero comidinha quente. Vamos ao vagão-restaurante?"
"O quê? Aquela porcaria? Não é melhor esperarmos pela próxima paragem e irmos lá fora comprar alguma coisa, como fizemos ontem?"
"Estás louco, Tomik? A próxima paragem é Ekaterinburg."
"E então?"
"Nós só vamos chegar a Ekaterinburg lá pelo final da tarde."
O português endireitou-se, surpreendido.
"Tanto tempo?"
"Sim, o Transiberiano não vai parar até lá."
Tomás considerou as opções. Não eram nenhumas; ou melhor, havia duas: ou passava fome ou se submetia à ementa do vagão-restaurante. O estômago ditou-lhe a decisão final.
"Vamos lá ao restaurante."
Eram ainda seis da manhã e quase tiveram de arrancar o mal-humorado cozinheiro da cama. Instalaram-se junto a uma das janelas do vagão-restaurante e encomendaram umas panquecas blini, compota, pão e torradas, ele a regar o pequeno-almoço com um ácido sok de laranja, ela com uma chávena de leite quente.
O vagão ia vazio, o que não era de estranhar àquela hora matinal; os restantes passageiros dormiam ainda ao longo de toda a composição.
Sentindo-se confortáveis, deixaram-se ficar colados à janela, preguiçosos e folgados, a gozar o sol baixo de sudeste; era fraco, mas sempre amornava a pele.
"Então?", provocou ela. "Gostaste da nossa brincadeira ontem à noite?"
"Gostei tanto que estava capaz de repetir."
Nadezhda riu-se.
"Não perdes uma oportunidade, hem?" Bebeu um golo de leite. "E dormiste bem?"
123
"Tive dificuldade em adormecer."
"Ah, sim? Porquê?"
Tomás encolheu os ombros.
"Sei lá." Coçou o queixo, meditativo. "Fiquei a pensar naquilo que me contaste ontem."
"A minha pesquisa na Sibéria?"
"Sim."
"O que tem ela de especial?"
"Não sei... há algo de estranho nisso tudo."
"Estranho? O que é estranho?"
Tomás respirou fundo, decidido a tirar as suas dúvidas a limpo.
"Olha, a questão é esta", disse, as palavras mais firmes, o tom determinado.
"Por que razão estava o Filipe interessado nesse assunto?"
"Era por causa do estudo internacional em que ele se encontrava envolvido. O
que tem isso de estranho?"
"Mas que estudo era esse?"
"Ele não me explicou bem", admitiu a russa. "Mas o que eu percebi é que o Filhka e outros cientistas queriam medir as mudanças climáticas e prever a sua evolução. Foi por isso que ele me contratou. Como eu estava a tirar Climatologia na faculdade, suponho que me encontrava na posição ideal para participar nesse estudo."
Tomás torceu a boca, intrigado.
"Mas isso não faz muito sentido", exclamou.
"O que não faz sentido?"
"O Filipe estar envolvido num estudo desses." Abanou a cabeça. "Não faz sentido."
"Porquê?"
"Porque essa área não tem qualquer relação com os seus interesses profissionais. O Filipe é um geólogo consultor da indústria energética, não um climatologista."
"Desculpa, Tomik, mas a ligação parece-me óbvia."
"Óbvia? Em quê?"
A russa fez um ar impaciente, olhando-o como uma professora olha para um aluno que não sabe a matéria mais elementar.
124
"Tu fazes ideia do que se está a passar com o clima do nosso planeta?"
"Bem, sei o que os jornais dizem."
"E o que dizem os jornais?"
"A temperatura está a subir."
Nadezhda apontou para cima, como se indicasse uma direcção.
"Está a disparar", exclamou. "Num século já trepou um grau e meio."
O historiador esboçou uma careta céptica.
"Chamas disparar a uma mera subida de um grau e meio? Não achas que estás a exagerar um bocadinho?"
"Blin!", praguejou ela. "Um grau e meio é muito, o que pensas tu? Tens alguma noção de qual a diferença de temperatura média entre a última era glaciar e agora?"
"Sei lá."
"Manda um número."
"Uns dez ou vinte graus, acho eu."
A russa abanou a cabeça e os lábios espessos curvaram-se num sorriso sem humor.
"Cinco graus", disse. "Cinco." Inclinou-se para a frente. "Sabes o que isso quer dizer? Basta baixarmos cinco miseráveis graus para o planeta ficar congelado.
Agora imagina o que acontecerá se, pelo contrário, subirmos cinco graus..."
"Assamos?", riu-se Tomás.
"Tomik, isto não é para brincar!", protestou ela. "Se a temperatura média do planeta subir cinco graus, e vai subir, podes ter a certeza de que haverá regiões que se tornarão inabitáveis, sem dúvida nenhuma. Olha, só para que saibas, lembra-te disto: desde que em 1850 se começaram a fazer registos das temperaturas, onze dos doze anos mais quentes de que há memória ocorreram depois de 1995. As consequências da continuação desta tendência são catastróficas. Para começar, o nível do mar irá subir, o que, como deves calcular, se revelará desastroso."
"Sim", concordou Tomás, considerando o problema. "Se o gelo dos pólos derreter, o nível do mar irá subir, isso é evidente. O problema é saber quanto."
"Olha, bastam cinquenta centímetros para engolir toda a Polinésia."
O historiador encolheu os ombros.
"E chato para os Polinésios", concedeu. "Mas cinquenta centímetros não me parecem nada de dramático para o resto do mundo."
125
"Cinquenta centímetros bastam para submergir parte da costa do teu país", disse ela, apontando-lhe o dedo. "Desde o início do século xx, e por causa do aquecimento global, o nível do mar já subiu dezassete centímetros. Mas o problema é que irá subir mais do que isso."
"Quanto?"
"A informação paleoclimática é muito clara. A última vez que as regiões polares estiveram consistentemente mais quentes do que agora foi há cento e vinte e cinco mil anos, quando as temperaturas eram uns três graus Celsius mais altas do que agora, devido a diferenças na órbita da Terra. Nessa altura, o gelo polar retrocedeu e o nível das águas subiu em todo o planeta entre quatro e seis metros."
"Quanto?", admirou-se Tomás. "Seis metros?"
"Sim", confirmou ela. "E na altura o gelo não derreteu todo. Se vier a derreter, calcula-se que a subida atingirá os sete metros", estimou, erguendo a mão com a palma para baixo, como se mostrasse assim o nível da água a subir. "Serão engolidas muitas ilhas e parte da costa de todos os continentes."
"Mas há assim tanta água congelada nos pólos que faça o nível do mar subir sete metros?"
"Claro que há. A Antárctida, por exemplo, é um continente inteiro cheio de gelo, por vezes com espessura superior a quatro quilómetros. Se todo esse gelo derreter, vai ser uma chatice. E depois há ainda a Gronelândia."
O historiador dobrou os lábios enquanto ponderava o problema.
"Pois é", assentiu ele. "Isso é complicado."
"E o pior é que o problema mais grave não está no gelo dos pólos. Se o derretimento desse gelo contribuir para a subida das águas em sete metros, há ainda a considerar uma maior subida do nível do mar devido a um outro fenómeno."
"O nível do mar vai subir mais do que sete metros?"
"Claro."
"Mas porquê?"
"Por causa de uma lei da física", disse ela. "Nunca ouviste dizer que o calor dilata os corpos?"
"Sim, no liceu."
"Pois será isso o que vai acontecer. As medições efectuadas desde 1961
mostram que a temperatura média global dos oceanos já aumentou até profundidades de três mil metros e que a maior parte do calor do planeta está a ser absorvida pelo mar."
"E então?"
126
"O problema é que o aumento do calor irá dilatar toda a água existente no planeta. A dilatação será imperceptível num metro cúbico de água, mas garanto-te que se vai notar quando estivermos a falar dos triliões de metros cúbicos de toda a água dos oceanos. E será justamente essa dilatação acumulada que fará o nível das águas do mar subir mais de sete metros."
"Quão mais? Oito metros? Nove?"
"Eu disse-te que, segundo a análise paleoclimática, a subida do nível do mar atingirá os seis metros caso o aumento das temperaturas globais chegue aos três graus, não é? Mas no plioceno, quando o clima também era três graus mais quente do que agora, essa subida chegou aos vinte e cinco metros."
"O quê?"
"Tomik, os cálculos actuais apontam para um aquecimento entre um e seis graus este século, provavelmente mais perto dos seis. Isto significa um Verão permanente por toda a parte, com grandes pedaços de terra invadidos pelo mar, os continentes quase reduzidos a ilhas, as regiões tropicais transformadas em desertos, secas cada vez mais graves, tempestades crescentemente violentas, incêndios florestais generalizados, erosão dos solos, alteração dos ciclos climáticos, destruição de colheitas e o alastrar das doenças tropicais. A malária, por exemplo, vai espalhar-se pela Europa, e o mesmo acontecerá com outras pragas até agora só conhecidas no Terceiro Mundo."
"Porra!"
"E sabes por que razão tudo isso está iminente?"
"Sim, os jornais e as televisões falam nisso", disse ele. "Por causa dos fumos da poluição."
Nadezhda fez que não com a cabeça.
"Resposta errada."
Tomás esboçou um ar muito admirado.
"Não é a poluição?"
"Depende do que entendes por poluição."
"Poluição é todo o fumo que sai dos tubos de escape e das chaminés, suponho eu."
"Pois ficas a saber que esses fumos travam o aquecimento."
"Desculpa, mas estás enganada. Ainda no outro dia li uma notícia a dizer que o aquecimento global é provocado pelo fumo dos automóveis e das fábricas."
"Estás a fazer confusão entre as duas coisas", esclareceu ela. "Mas isso é 127
normal, muita gente mistura tudo."
"Não estou a entender."
"Ao contrário do que se pensa, o fumo dos tubos de escape e das chaminés das fábricas não provoca o aquecimento do planeta. É até o oposto. Há estudos que mostram que essa poluição faz baixar a temperatura."
Tomás meneou a cabeça, recusando-se a aceitar aquela afirmação.
"Desculpa lá, Nadia, mas isso não faz sentido nenhum. Sempre ouvi dizer que os fumos provocavam o aquecimento global."
Nadezhda suspirou.
"Não é bem assim", insistiu ela. "O que provoca o aquecimento do planeta não é o fumo. É a queima dos combustíveis fósseis."
Tomás curvou a boca e o rosto exibiu uma expressão vazia.
"Não é tudo a mesma coisa?"
"Ouve, Tomik", disse ela, tentando reordenar os seus pensamentos. "Quando se queima combustível no motor de um automóvel ou na chaminé de uma central térmica, são libertadas três coisas: energia, dióxido de carbono e aerossóis. A energia é o objectivo do exercício, uma vez que é para a obter que se queimam os combustíveis fósseis." Fez um gesto rápido com a mão, como se sacudisse qualquer coisa. "Tudo o resto são consequências indesejáveis. O dióxido de carbono é o que desencadeia o aumento da temperatura, dado que se trata de um composto que, ao ser libertado para a atmosfera, permite a entrada do calor do Sol, mas não o deixa sair, transformando assim o planeta numa estufa gigantesca. Os aerossóis, por seu turno, provocam a poluição do ar, que, curiosamente, tem um efeito oposto ao do dióxido de carbono. A libertação de aerossóis levou ao aparecimento nas grandes cidades de nuvens de smog, as quais começaram a funcionar como um gigantesco espelho, reflectindo os raios solares para o espaço, o que produzia um efeito de arrefecimento que compensava o aquecimento provocado pelo dióxido de carbono.
Estás a perceber?"
"Mais ou menos", retorquiu ele, vacilante. "Trocado por miúdos, o que estás a querer dizer é que o dióxido de carbono aumenta a temperatura, mas os aerossóis diminuem. É isso?"
"É isso. Acontece que, como a poluição aumentou imenso e tornou o ar das grandes cidades irrespirável, foram introduzidas na década de 1980 alterações técnicas que reduziram a emissão de aerossóis. Ora, ao contrário do dióxido de carbono, que perdura na atmosfera durante séculos, os aerossóis só se mantêm por algumas semanas. Com a redução da sua emissão, pararam as chuvas ácidas e o ar tornou-se mais puro, mas o problema é que o efeito de arrefecimento provocado pelos aerossóis desapareceu, enquanto o efeito de aquecimento do dióxido de carbono se manteve. Conclusão: sem o travão do arrefecimento gerado pelo smog, as 128
temperaturas dispararam desde 1980."
Tomás coçou a cabeça.
"Estou a perceber." Olhou-a como quem teve uma ideia, mas sem a certeza de que fosse boa. "Isso significa que o aquecimento global tem uma solução fácil, não é?"
"Qual?"
"Reintroduzam-se os aerossóis."
Nadezhda fez uma careta.
"Não serve. Seria trocar uma morte por outra. Em vez de morrermos assados, morreríamos asfixiados."
O historiador considerou essa perspectiva.
"Pois, não é grande negócio, não", concordou. "Nesse caso, só nos resta parar com a emissão de dióxido de carbono."
"É lógico."
"E é possível parar?"
"Em teoria, sim. Basta deixarmos de queimar combustíveis fósseis. Mas, na prática, as coisas são bem mais complicadas. Os combustíveis fósseis constituem a fonte energética na qual assenta a economia mundial e o que se está a verificar não é um abrandamento na emissão de dióxido de carbono, mas uma aceleração."
"Porquê? Ninguém vê o que se está a passar?"
"Os países em vias de desenvolvimento recusam-se a parar a emissão de dióxido de carbono, uma vez que precisam dos combustíveis fósseis para desenvolverem as suas economias. O caso mais preocupante é o da China, onde o automóvel está a substituir a bicicleta como principal meio de transporte." Fez uma pausa, de modo a sublinhar o que ia dizer. "Tomik, na China há muita gente."
Arregalou os olhos. "Já viste toda aquela população a andar de automóvel?"
Tomás absorveu a ideia.
"Pois, é um grande problema, é."
"E o que está em causa não são apenas os automóveis. O pior é que os Chineses decidiram assentar a sua infra-estru-tura energética no carvão, que emite muito mais dióxido de carbono do que o petróleo. Eles planearam construir mais de trezentas novas centrais a carvão até 2020. É uma catástrofe. Segundo os nossos cálculos, nesse ano a China será o maior aquecedor de todo o planeta."
129
"Então isto não vai parar!"
"Pois, parece que não."
A russa pegou numa caneta e escreveu três letras sobre a toalha de papel posta na mesa.
"Sabes o que é isto?"
"Não."
"São as iniciais de partes por milhão em volume, ou ppm. É uma forma de medir o dióxido de carbono na atmosfera. Estabelece a relação entre o número de moléculas de gás com efeito de estufa e o número total de moléculas de ar seco. Por exemplo, 200 ppm significa que há duzentas moléculas de gás com efeito de estufa em cada milhão de moléculas de ar seco."
"Muito bem. E então?"
"O nosso planeta teve, nos seus primórdios, uma atmosfera repleta de dióxido de carbono, como Vénus, o que impossibilitava o aparecimento de vida animal em terra. Acontece que o mar e as plantas são absorventes naturais do dióxido de carbono, pelo que ambos começaram a actuar e, ao longo de milhões de anos, fizeram diminuir o dióxido de carbono na atmosfera. Os estudos paleoclimáticos mostram que o dióxido de carbono é responsável por metade das alterações térmicas do passado. Quando havia muito dióxido de carbono na atmosfera, a temperatura tendia a subir. Quando diminuía, a temperatura tendia a baixar. Ora há quinhentos anos o dióxido de carbono atingiu o mínimo de 270 ppm. Mas a expansão da presença humana, com a consequente destruição das florestas e a queima de lenha, a que se acrescentou depois a queima de carvão e de petróleo para obtenção de energia, fez aumentar o dióxido de carbono até aos 380 ppm actuais."
"Isso é muito?"
"É só o valor mais alto dos últimos seiscentos e cinquenta mil anos."
"Caramba. E dizes tu que continua a crescer?"
"Continua, e muito! Se solidificássemos todo o dióxido de carbono que lançamos anualmente para a atmosfera, criaríamos uma montanha com dois quilómetros de altura. Uma montanha por ano, Tomik." Suspirou. "Mas o pior vai acontecer quando um dia cruzarmos o valor crítico."
"Qual valor crítico?"
"Os 550 ppm." Abriu os braços, como se abraçasse um grande objecto.
"Imagina que estás no topo de uma montanha e começas a empurrar uma grande pedra, primeiro com pouca força, mas aumentando-a gradualmente. De início a pedra não se mexe, não é? Mas, quando a força com que a empurras cruzar um valor crítico, a pedra começa a mexer. Primeiro devagar, até que ganha uma dinâmica própria e já nem precisa de ser empurrada para rolar pela encosta abaixo, provocar 130
uma avalanche e destruir uma aldeia lá ao fundo do vale." Estreitou os olhos.
"Repara, foi ao cruzar um valor crítico de força que consegui fazer mexer a pedra.
Depois a catástrofe ocorreu já sem a minha ajuda." Bateu com o dedo na mesa. "É
disto que estou a falar. A medida que lançamos carbono para a atmosfera estamos a empurrar o clima no sentido de se cruzar um valor crítico. A maior parte dos cientistas acha que o valor crítico são os 550 ppm de carbono. Quando cruzarmos esse valor, assamos."
"Temos actualmente 380 ppm, não é?", constatou Tomás. "Isso significa que ainda estamos longe dos 550 ppm." Encolheu os ombros. "Temos ainda tempo mais do que suficiente para parar antes de atingirmos esse valor."
"Receio que não seja assim tão simples."
"Então?"
"Em primeiro lugar, ninguém sabe ao certo qual o valor crítico. Há quem pense que já o cruzámos e que a catástrofe é agora inevitável e há quem ache que o limiar crítico está nos 400 ou nos 450 ppm, embora o consenso científico aponte de facto para os 550 ppm. Mas, mesmo que o valor crítico seja este, temos de nos lembrar de que o efeito é cumulativo. Se, graças a um qualquer milagre, conseguíssemos parar já hoje a emissão de dióxido de carbono, mesmo assim a sua concentração atmosférica iria continuar durante um milénio, uma vez que esse é o tempo que o mar e as plantas demoram a reabsorver esta quantidade do composto."
O rosto de Tomás contraiu-se numa expressão de espanto.
"Quanto?"
"Um milénio."
"Porra."
"Repara que, como o efeito é cumulativo, estamos a sentir agora a concentração gerada nos últimos cinquenta anos. A actual concentração será sentida nos próximos anos. Se parássemos hoje a emissão de dióxido de carbono, ainda assim a concentração prosseguiria à média de um e meio ppm por ano, até atingir os 450 ppm em 2100." Ergueu o indicador, em advertência. "Isso se parássemos hoje."
"Estou a ver."
"O pior é que não conseguimos parar hoje. A China está a industrializar-se e a índia também, e esses dois países precisam dos combustíveis fósseis para o seu desenvolvimento. Por outro lado, os grandes produtores mundiais de dióxido de carbono, os Estados Unidos e a Europa, habituaram-se aos confortos proporcionados pela actual economia energética e não a dispensam, uma vez que têm de assegurar a continuação do seu crescimento económico. E há ainda a nossa Santa Rússia, o segundo maior produtor do mundo de dióxido de carbono, com os seus graves problemas de poluição e com a sua tecnologia obsoleta, que continuará a emitir este composto como quem produz pãezinhos. Tudo isto somado, sabes no que resulta?"
131
"Em mais calor."
"Em muito mais calor", reforçou ela, acentuando o muito. "Os estudos paleoclimáticos mostram que no plioceno, quando os níveis de dióxido de carbono andavam pelos actuais 380 ppm, a temperatura do planeta era mais quente quase três graus. Mas, como a tendência mundial é de aceleração nas emissões de dióxido de carbono, temos que nos preparar para algo de muito mais grave. Ao actual ritmo, a concentração atmosférica deste composto atingirá os 1100 ppm em 2100."
"Meu Deus!"
"Os modelos climáticos consideram imperativo que estabilizemos a situação nos 450 ppm. Isso traria um aquecimento moderado, com alguma linha de costa submersa pelo mar, um aumento da desertificação, uma intensificação da violência das tempestades e mais incêndios florestais, mas nada de demasiado sério.
Poderíamos sobreviver. O problema é que os 450 ppm já não são possíveis, uma vez que só as nossas actuais emissões vão cumulativamente elevar a concentração de dióxido de carbono até esse valor em 2100. Ora, como às actuais emissões temos ainda de acrescentar as futuras, eu diria que a situação já está descontrolada."
Tomás mordeu o lábio, angustiado.
"E de que maneira", assentiu sombriamente. "Estamos tramados."
"Percebes agora qual a ligação entre o negócio do petróleo e o aquecimento do planeta?"
"Sim."
Nadezhda contemplou melancolicamente a paisagem que desfilava em corrida para lá da janela. A taiga estendia-se pela linha do horizonte num imenso e plácido oceano de coníferas, as copas cónicas e estreitas apontadas para o céu, eram agulhas verdes espetadas no vazio azul. De olhos presos na floresta imensa, imaginou o terrível destino a que aquele maravilhoso pulmão permanecia alheio, imaginou o fogo que um dia o iria consumir, como se aquelas árvores esbeltas fossem vítimas inocentes alinhadas para a fogueira, condenadas às chamas eternas do inferno que se acercava, furtivo e impiedoso.
"O Filhka tinha uma maneira terrível de descrever o que nos espera ainda neste século." Abanou a cabeça. "Usava uma palavra assustadora."
"O quê?"
A russa respirou fundo e voltou a encarar Tomás.
"Apocalipse."
XVI
Tomás encontrava-se imerso num livro de poemas de Fernando Pessoa, que 132
providencialmente trouxera para passar o tempo, quando uma voz em russo encheu os altifalantes do Transiberiano, como acontecia sempre que se aproximavam de uma estação. Acto contínuo, sentiu Nadezhda levan-tar-se e tirar a mala do armário.
"Chegámos", anunciou ela de surpresa.
O português rodou a cabeça, atarantado, não estava à espera que aquele fosse o destino; é verdade que já se encontravam ali fechados havia três dias, mas as coisas anunciadas assim de repente deixavam-lhe a impressão de uma interrupção brusca da viagem.
"O quê?", balbuciou. "Onde? Chegámos onde?"
"Chegámos ao nosso destino, Tomik", sorriu a russa. "Vá, pega na tua mala, mexe-te."
Tomás espreitou pela janela e, para além da escuridão, vislumbrou as águas frias de um rio correrem paralelas à linha férrea, era uma vigorosa mancha escura de líquido, negra como crude, as luzes da outra margem reflectidas no cintilante espelho preto, pareciam formas bamboleantes que dançavam ao ritmo nervoso da ondulação. Decorria a terceira noite de viagem e a composição começou a abrandar, o travão guinchando nos carris. As luzes da outra margem fo-ram-se acumulando, mais e mais, até se tornar evidente que tinham abandonado a taiga e cruzavam já o casario do que parecia uma grande cidade.
"Onde estamos?"
"Este é o Angara."
"Angara? Esta terra chama-se Angara?"
Nadezhda riu-se.
"Não, tonto. O rio chama-se Angara."
"E a cidade?"
"Irkutsk."
O Transiberiano parou e os dois desceram as escadinhas com cuidado. A gare estava cheia; eram viajantes que desembarcavam e familiares que os aguardavam, vendedores à espera de clientes e ferroviários a andarem de um lado para o outro.
Um burburinho atraiu a atenção para um reencontro; no meio de um grupo vislumbrava-se o camuflado de um soldado na emoção do acolhimento pela família.
"Deve vir da Chechénia, coitado", observou Nadezhda.
Ao percorrer a plataforma, Tomás não pôde deixar de se sentir impressionado com a grandeza da movimentada estação, um belo edifício amarelo e verde, de linhas clássicas, cúpulas em ferro ao estilo Art nouveau. A sua companheira de viagem foi direita ao guichet das informações e veio de lá com um papelinho de horários.
133
"Temos ainda de apanhar uma camioneta", anunciou ela, acenando com o papelinho.
"O quê? Isto ainda não acabou?"
"Não, Tomik. Falta-nos mais um bocado."
Tomás rolou os olhos, agastado com a notícia.
"Porra", exclamou. "Que seca."
Nadezhda não fez caso dos protestos e concentrou-se na tabela de horários que lhe tinham entregado no guichet.
"Há uma camioneta que sai daqui da estação amanhã às nove da manhã", constatou. "Mas se formos ao terminal de autocarros teremos um outro mais cedo, aí pelas oito. Qual preferes?"
"Eu prefiro ir descansar", resmungou ele, massajando os rins. "Estou moído desta viagem, não posso mais. Três dias num comboio é dose para cavalo."
Fazia um certo frio quando saíram à rua, passava das dez e meia da noite.
Nadezhda chamou um táxi e em dois minutos viram-se a atravessar a ponte sobre o Angara e a mergulhar na velha urbe. Apesar de a iluminação nocturna revelar os encantos da grande cidade siberiana, Tomás não prestou muita atenção ao que girava à sua volta; sentia-se demasiado fatigado para apreciar fosse o que fosse, mostrava-se indiferente à novidade e só queria cair numa cama.
Acabaram a noite num pequeno hotel junto ao estádio. Comeram em silêncio uma sopa borshch e um goluptsi assado e adormeceram logo que se deitaram, aquecidos pelo corpo um do outro.
O dia nasceu esplendoroso.
Depois do pequeno-almoço de leite e kbachapuri, chamaram um táxi e fizeram-se à cidade. Já parcialmente refeito da exaustão dos três dias no comboio, Tomás colou-se ao vidro do automóvel e sorveu Irkutsk com os olhos.
A cidade era diferente do que esperava. Admirou-se sobretudo com a elegância arquitectónica dos edifícios, linhas distintas que Irkutsk aliava a um certo ar cosmopolita; definitivamente, ninguém diria que estavam numa terra perdida algures no meio da Ásia, a uns meros dois passos da Mongólia. A arquitectura apresentava os imponentes traços europeus do século xix, elegante e clássica, intercalada por graciosas casas de madeira, aqui e ali um mamarracho da era soviética a destoar na composição quase harmoniosa.
"E bonito, isto", comentou o visitante, sem tirar os olhos das ruas.
"Claro que é bonito", concordou Nadezhda. "Irkutsk era uma cidade aristocrática, conhecida como a Paris da Sibéria."
134
"Que nome tão burguês", disse ele. "Esses ares parisienses devem ter acabado logo que os comunistas tomaram o poder, não?"
"Estás enganado. Os czaristas resistiram aqui muito tempo, o que pensas tu?
Os comunistas só conseguiram entrar na cidade em 1920."
O táxi cruzou toda a parte velha de Irkutsk pela longa Ulitsa Karla Marksa, até apanhar lá ao fundo a Ulitsa Oktyabrskoy Revolyutsii e deixá-los no terminal de autocarros. Nadezhda pediu setecentos rublos a Tomás e entrou na bilheteira, de onde saiu com dois rectângulos na mão.
"Procura a camioneta que vai para Khuzhir", pediu ela.
Tomás olhou para as indicações no topo dos vidros e encolheu os ombros.
"Desculpa, Nadia, não percebo nada", disse, sentindo-se uma nulidade, um verdadeiro peso morto. "Está tudo escrito em caracteres cirílicos."
"B//«/", blasfemou a russa, os olhos em busca da sinalização para Khuzhir.
"Por que razão não aprendem vocês a ler como toda a gente?"
Acomodaram-se nos últimos assentos da camioneta, que já ronronava para aquecer o motor. O veículo enchia-se de passageiros de traços asiáticos e origem evidentemente humilde, buryats que traziam caixas com pintos e sacos de plástico carregados de compras; uns eram camponeses, outros pescadores, e todos exalavam o odor forte das gentes rudes da província.
Partiram minutos mais tarde, ziguezagueando pelo emaranhado urbano até deixarem a cidade e gradualmente entrarem na taiga, percorrendo uma estrada paralela à cadeia de montanhas Primorskij Hrebet. O percurso pareceu-lhes mo-nótono, tão entediante que, embalado pelo balouçar preguiçoso da camioneta, Tomás foi sentindo os olhos pesarem-lhe e a cabeça cambalear, como se respondesse sim aos urros do motor; um e outro solavanco despertaram-no a espaços, fa-zendo-o endireitar-se com brusquidão e sorrir fugazmente à sua companheira de viagem, mas depressa voltava a deslizar para o sossego, invadido por uma pesada e irresistível lassidão, até que o sono foi assentando e mesmo os abanões mais violentos deixaram de o incomodar.
A súbita percepção de que algo de novo acontecera desper-tou-o da sua letargia. Ergueu a cabeça e, estremunhado ainda, ignorando o pescoço dorido pelo incómodo da posição em que adormecera, tentou perceber o que se passava.
Parada.
A camioneta estava parada. O motor tinha sido desligado e os passageiros erguiam-se com dificuldade dos seus assentos, agarrando sacos e pegando em caixas, esticando-se para desentorpecerem os corpos moídos e soltando as pequenas risadas do penitente que antecipa com alívio o fim do suplício. Olhou para o lado e 135
viu Nadezhda pôr-se de pé, também ela se aprontava.
"Chegámos?"
"Ainda não, Tomik."
O português olhou em redor, sem compreender. Os passageiros continuavam a preparar-se para sair, alguns já saltavam lá para fora, e a camioneta encontrava-se definitivamente estacionada.
"O que se passa?"
"Estamos em Sakhyurta", disse ela, fazendo-lhe sinal de que saísse. "Vamos agora apanhar o ferry."
"Ainda há um ferry para apanhar?" Teve uma expressão de desespero. "Mas esta maldita viagem não acaba?"
Nadezhda apontou para a frente. Tomás olhou e, para além da verdura nua que cobria o parque onde a camioneta se imobilizara, viu um pequeno cais e um vasto lençol de água a reluzir ao sol, os reflexos bailando no espelho irrequieto.
"Temos de ir para o outro lado."
Saltaram para a rua e a russa levou Tomás por um caminho íngreme e acidentado que desembocou no topo de uma falésia, junto a um penedo situado a alguns metros de altura. A vista dali de cima era magnífica; a superfície líquida serpenteava diante deles, cercada por penhascos à esquerda, uma língua de terra em frente e o fio do horizonte à direita, para além do qual se estendia a planície de água.
"Que mar é este?", admirou-se o português.
"É o Baikal."
"O quê?"
"É o Baikal", repetiu ela. "O maior lago do mundo. Con-centra-se aqui um quinto da água potável existente em todo o planeta."
Tomás cravou os olhos incrédulos no azul cristalino das águas mansas, agitadas com doçura por uma ondulação ténue.
"Não pode ser. Um quinto da água potável do planeta?"
"É incrível, não é? Em extensão, o Baikal é maior do que o teu país, vê lá tu."
"A sério?"
"Chamamos-lhe a pérola da Sibéria, por ser assim tão bonito." Fez uma careta. "Mas lá na faculdade o Baikal é mais conhecido como a cozinha da Sibéria."
"De pérola a cozinha vai uma grande distância", sorriu Tomás. "Por que razão lhe dão esse nome horroroso?"
136
"É só na faculdade que lhe chamamos assim", sublinhou ela. "Sabes, este lago é muito estudado no meu curso devido à sua influência em todo o clima da região. E
aqui que se cozinha o tempo da Sibéria, daí a alcunha. O facto é que os sistemas meteorológicos da Ásia dançam ao ritmo do que se passa no Baikal."
Tomás contemplou o espelho azul que se intrometia por entre o verde-acastanhado da estepe, como uma estrada, reflectindo o céu e os flocos de nuvens. A água era transparente, tão límpida que conseguia mesmo vislumbrar cardumes a serpentearem sob a superfície, os peixes virando para um ou para outro lado todos ao mesmo tempo, como um único corpo.
"Que pureza", observou, inspirando o ar fresco perfumado pelas fragrâncias da erva rasteira. "Ainda bem que há sítios no mundo onde a poluição não chegou."
A russa afinou a voz.
"Não é bem assim", corrigiu-o. "Existe uma fábrica de celulose em Baikalsk, mesmo na ponta sul do lago, que anda há quatro décadas a despejar detritos nestas águas."
"Não me digas."
"E não é tudo. O delta do rio Selenga, que é tão grande que tem quase o tamanho da França, desagua na margem sul com detritos orgânicos e inorgânicos das minas de Buryatia e da pastorícia da Mongólia. É uma imundície pegada. E o cúmulo é que descobriram agora petróleo aqui no Baikal e querem construir um oleoduto."
"Mas a água está tão limpa..."
"O Baikal é um lago enorme", explicou ela. "E felizmente a poluição tem ficado confinada a zonas específicas, como o delta do Selenga e a ponta sul. Mas, se não tivermos cuidado, qualquer dia tudo isto desaparece."
Tomás suspirou e ficou um longo momento a contemplar o lago. Os olhos percorreram todo o horizonte, começando na pequena enseada à esquerda, onde reluziam os telhados baixos da aldeia piscatória de Sakhyurta, e acabaram por pousar no cais, lá em baixo, onde uma rampa de cimento desembocava na água, como uma ponte inacabada.
"O ferry nunca mais aparece?"
"Ele já vem, tem paciência."
"Vamos para onde, afinal?"
A russa apontou para a língua de terra em frente.
"Para aquela ilha ali."
A ilha erguia-se perto, separada do continente por uma estreita passagem, a 137
terra ondulada acastanhada pela estepe.
"Que ilha é esta?"
"É uma ilha mágica."
O português franziu o sobrolho.
"Mágica em que sentido?"
"É uma ilha xamane, um sítio de meditação onde o mundo da matéria interage com o mundo dos espíritos."
"Estás a gozar..."
"A sério. Este é um sítio sagrado e misterioso, o palco de lendas e de contos de fadas, a casa dos espíritos do Baikal. Os místicos dizem que se encontra aqui um dos cinco pólos globais da energia xamane."
"Ah, sim?" Contemplou a ilha com mais atenção, ardendo de curiosidade, num misto de fascínio e cepticismo, como se esperasse que das suas brumas emergisse o mistério, que da sua sombra se fizesse luz. "Como é que ela se chama?"
"Olkhon."
Quando o ferry apareceu, surpreendeu os dois pacatamente sentados na casa de chá de um acampamento yurt, junto ao lago, a tomarem uma tisana de pimenta e a deliciarem-se com uns pirozhki doces. Terminaram a bebida com vagar, pagaram e caminharam de volta para a camioneta, para onde convergiam já os restantes passageiros. O parque de estacionamento agitou-se em uníssono; ouviam-se gritos e ordens, motores a serem ligados, buzinadelas e portas a bater, eram todos os autocarros, camiões e automóveis que se preparavam para retomar a viagem.
O ferry manobrou até se colocar em posição e, uma vez ancorado em segurança, abriu a sua grande porta e, como um monstro esfaimado de goela escancarada, engoliu os veículos que se alinhavam diante dele. O espaço no batelão não era grande, apenas ali cabiam dois autocarros lado a lado e uma mão-cheia de automóveis, e os passageiros tiveram mesmo de empurrar um dos autocarros pela rampa. Toda a operação acabou por levar mais tempo do que a travessia em si, uma viagem que durou uns meros quinze minutos.
O primeiro ponto por que passaram foi o ventoso cabo Kobylia Golova, o formato das rochas lembrava um cavalo de pedra a beber água no lago. Uma buryat que vinha com eles na popa observou, orgulhosa, os cabelos negros e lisos a esvoaçarem, que Genghis Khan e os seus guerreiros, todos eles também buryat, outrora tinham saciado ali a sua sede.
"Dizem até que o grande conquistador do universo foi aqui enterrado", explicou a mulher.
138
"Quem?"
"O grande conquistador do universo", repetiu. "Genghis Khan."
Passaram ao lado da pequena baía de Khul e ancoraram em plena estepe, onde o grande barco despejou a sua carga sobre rodas.
Olkhon.
Chegaram a Olkhon, a ilha mágica.
A camioneta retomou viagem e cruzou a pradaria nua aos solavancos, o motor a urrar com a aceleração esforçada, o escape a bufar o fumo negro do gasóleo queimado. A erva rente amontoada em tufos estendia-se até ao lago, mas depressa surgiram sinais de que a paisagem possuía contornos diferentes noutros pontos. Em alguns minutos apareceram renques de árvores à direita; era a taiga que subia pelos montes e disputava à estepe o controlo da ilha; a pradaria estava voltada para a margem norte, a floresta de coníferas virada para o lago aberto.
Serpentearam pelas elevações da passagem Khaday e desceram para a planície junto ao Baikal. A camioneta atravessou uma aldeia e prosseguiu, a margem ocidental da ilha a abrir-se em pequenas baías e graciosas enseadas; do outro lado do estreito vislumbrava-se a taiga continental, escarpada nas montanhas. O veículo aproximou-se de um povoado e só então abrandou a marcha.
"Khuzhir", anunciou Nadezhda.
Tomás animou-se no assento.
"Chegámos?"
"Quase."
A camioneta imobilizou-se na praça principal de Khuzhir e o motor emitiu um ronco final antes de se calar definitivamente, como o derradeiro suspiro de um moribundo. Os passageiros desaguaram pela porta numa grande excitação e foram acolhidos por vizinhos e conhecidos numa animada algazarra, parecia que a aldeia inteira tinha acorrido à chegada da camioneta em busca das novidades da civilização. Concentraram-se todos diante da bagageira para retirar os produtos que tinham ido comprar a Irkutsk e a confusão era tal que Tomás e Nadezhda quase tiveram de lutar para recuperar as suas malas.
Já com a bagagem na mão, a russa foi ao Gastronom, a mercearia da praça, e saiu com um homem de meia-idade.
"Arranjei boleia", anunciou. "Mas vais ter de pagar dez dólares, Tomik."
O homem levou-os para um velho Lada meio enferrujado, parecia um pequeno Fiat da década de 1970, e convidou-os a entrar. Os três acomodaram-se no espaço apertado e o automóvel fez-se à estrada com um estranho fragor no motor e o escape a libertar uma densa fumarada negra. Não tiveram de andar muito, porém; 139
apenas atravessaram uma aldeia e, quatro quilómetros depois de Khuzhir, chegaram a um acampamento yurt ao pé do lago, onde o carro os deixou.
Os yurts tinham sido erguidos junto à praia, como cogumelos brancos espalhados à beira da baía de Ulan-Khushin. Eram frágeis construções cilíndricas com a estrutura de madeira tapada por uma cobertura de tela clara, como uma tenda, a entrada escondida pelo que parecia ser um tapete com motivos geométricos carmesim; o telhado cónico era coberto pela mesma tela e tinha vagamente o aspecto de um capacete mongol. Algumas pessoas deambulavam pelo acampamento, a maior parte turistas ocidentais, mas também se avistavam russos e buryats autóctones.
Pararam um instante, como que extasiados a apreciar a beleza exótica daquele magnífico recanto. Tudo ali aparentava serenidade, o tomilho desabrochado em flor, os larícios pujantes; parecia um lugar saído de um conto de fadas. Ouviam-se vozes e o pipilar das aves, mas era o Baikal que dominava o cenário. O ondular suave das águas afagava docemente a areia branca da praia, o lago a cintilar num fascinante azul-turquesa; dir-se-ia que tinham chegado às Caraíbas da Ásia.
"Então, Casanova?", perguntou uma voz. "Por aqui?"
As palavras foram pronunciadas em português e Tomás identificou a sua alcunha dos tempos do liceu, quando todos o conheciam como o maior pinga-amores de Castelo Branco. Voltou-se e encarou o homem que falara atrás de si.
Era Filipe.
XVII
O Sol deitava-se devagar por detrás dos montes, à esquerda, pintando o poente de um violeta luminoso; mas o fim de tarde em Olkhon assumia sobretudo o frio tom do azul-acinzentado, obscurecendo as montanhas nevadas e a taiga para lá de Maloye Morye, o estreito que separa a ilha da costa continental que cerca o Baikal.
Sentados em cadeiras dispostas sobre a areia, os dois portugueses contemplavam as ondas dóceis do lago com duas bebidas na mesa, um kvas semialcoólico para Tomás, um mors escarlate para Filipe. Nadezhda tinha ido dar uma volta ao acampamento, deixando-os sós a trocar memórias dos seus tempos no liceu, reminiscências de rapazes que partilhavam cumplicidades antigas, narrativas das tropelias e namoricos que tinham valido a Tomás a sua alcunha; e foi durante uma pausa no relato galhofeiro de episódios quase esquecidos, quando já parecia que não tinham mais assunto para alimentar a conversa e as palavras lhes morriam na boca em silêncios embaraçados, que o recém-chegado tocou por fim no tema que ali o trouxera.
"Como é que vieste parar a este sítio?"
140
Filipe fez um estalido com o canto dos lábios.
"É uma longa história", disse, como se a tarefa de a contar fosse demasiado grande para si. "E tu, Casanova? O que estás tu aqui a fazer?"
"É outra longa história", riu-se Tomás, ecoando a resposta que ouvira.
"Gosto de longas histórias, sobretudo quando não são minhas. Conta lá a tua."
Tomás observou com atenção o seu velho amigo do liceu. Filipe mantinha a expressão de garoto traquinas que sempre lhe bailara nos olhos pálidos, mas havia já rugas a cortar-lhe o rosto e o cabelo rebelde aloirado tinha-se tornado parcialmente grisalho; era como se o tivessem metido numa máquina do tempo, num dia parecia fresco, no outro apareceu gasto; de um modo estranho era simultaneamente a mesma pessoa e alguém diferente.
"Não há muito para contar, mas o pouco que sei é perturbador", observou Tomás, regressando ao presente. Afinou a voz e concentrou-se no que tinha a dizer.
Era chegado o momento de abrir o jogo. "Em 2002 foram assassinados dois cientistas quase ao mesmo tempo, um americano na Antárctida, um espanhol em Barcelona. Ambos tinham o teu nome nas agendas e havia um papelinho com um triplo seis ao lado dos seus corpos baleados." Observou Filipe de relance, avaliando o modo como ele reagia ao que lhe estava a relatar. Sem surpresa, viu-o endireitar o corpo, o sorriso a evaporar-se-lhe do semblante, o rosto a fechar-se com gravidade.
"Na altura em que eles morreram, tu desapareceste de circulação e não voltaste a ser visto. Nas agendas das vítimas constava igualmente o nome de um cientista inglês que também se evaporou nessa altura. Nunca mais ninguém ouviu falar de vocês."
Filipe parecia-lhe tenso a escutar a narrativa, quase alerta, não havia dúvida de que o assunto lhe dizia respeito. "Há algumas semanas, e depois de muito tempo sem uma única pista sobre o vosso paradeiro, foi interceptado um e-mail que o inglês te enviou com uma mensagem um pouco estranha. A mensagem mencionava o sétimo selo. Ora, consultando o Novo Testamento, verificamos que o triplo seis e o sétimo selo constituem dois elementos simbólicos de grande importância no último dos textos bíblicos, o Apocalipse." Abriu as mãos com as palmas para cima, como se expusesse uma evidência. "Como deves compreender, todos estes factos fizeram levantar muitos sobrolhos e suscitaram imensa curiosidade sobre o que tens a dizer."
Filipe mordeu o lábio e olhou-o, perscrutador.
"Curiosidade por parte de quem?"
"Ora, da polícia, claro."
"Qual polícia?"
"A Interpol."
O amigo estudou-o inquisitivamente.
"Tu agora és polícia?"
141
Tomás soltou uma gargalhada.
"Claro que não. Lecciono História na Universidade Nova de Lisboa."
"Então qual é o teu papel nesta história?"
"Os tipos da Interpol contactaram-me para os ajudar a deslindar o caso. Tão simples quanto isso."
"Mas porque te contactaram justamente a ti? O que tens tu de tão especial que lhes possa ser útil?"
"Eles sabiam da nossa relação nos tempos de Castelo Branco. Além do mais, e como criptanalista e perito em línguas antigas, precisavam de mim para desvendar esse mistério do triplo seis bíblico."
"Deixa-me ver se compreendo." Apontou-lhe o dedo. "Tu estás a trabalhar para a Interpol?"
"Sim, fui contratado para os assessorar nesta investigação."
"E é por isso que estás aqui?"
"Sim."
Filipe calou-se um instante, avaliando a situação.
"Confesso que tudo isto é um pouco inesperado, não te imaginava a par de toda esta trapalhada." Ergueu o sobrolho e fitou o amigo. "Diz-me uma coisa, achas que eu matei os dois cientistas?"
"Não, não acho." Hesitou. "Quer dizer, não acho nem deixo de achar. Na verdade, não tenho elementos suficientes para formar uma opinião sobre esse assunto."
"E o que pensa a Interpol?"
Tomás inspirou devagar, pesando as palavras.
"Eles querem saber mais", disse por fim. "Mas não nego que a descoberta da relação entre ti e os cientistas assassinados e o facto de teres desaparecido na mesma altura em que eles morreram deixou os tipos da Interpol... como direi?, deixou-os...
enfim, cheios de suspeitas, não é? E a constatação de que há uma relação entre o sétimo selo, mencionado no e-mail que recebeste, e o triplo seis, encontrado ao lado das duas vítimas, ambas as expressões provenientes do mesmo texto bíblico, não ajudou muito a retirar-te da lista dos suspeitos, como deves compreender."
Filipe estreitou os olhos, perscrutando o velho amigo do liceu, atento à sua reacção à pergunta que tinha para lhe fazer.
"Olha lá, a Interpol não sabe que eu estou aqui, pois não?"
142
"Não, cumpri à risca as tuas instruções, fica descansado."
"Não disseste a ninguém que vinhas para aqui?"
"Não, ninguém sabe de nada."
"De certeza?"
"Quer dizer, a Interpol sabe que eu estou em viagem para te encontrar, claro, mas não lhes disse para onde ia."
Filipe pareceu descontrair-se, embora não muito.
"Se me tivesse apercebido de que estavas atrás deste assunto, não te tinha dito que viesses cá."
"Porquê?"
"Porque esta história é muito perigosa, Casanova. Ao vires cá, e estando tu a par de alguns acontecimentos e a mando de uma organização policial, criou-se um problema de segurança, percebes?"
"Não, não percebo."
"A tua presença aqui é um risco."
"Então porque me disseste que viesse?"
O amigo suspirou.
"Eu não sabia da tua ligação à Interpol." Olhou distraidamente o copo vermelho com mors que tinha na mão. "Tinha saudades do meu país, há muito tempo que não te via e suponho que, quando dei com a tua mensagem no site do liceu, cedi à nostalgia. Foi uma estupidez, mas está feito."
Filipe calou-se, pensativo e preocupado. A presença do velho amigo tinha repercussões que inicialmente não considerara e precisava de ponderar a situação.
"Não entendo", disse Tomás, preenchendo o silêncio embaraçoso. "Se estás inocente, por que razão tens medo da Interpol?"
O amigo soergueu uma sobrancelha, como se a pergunta fosse absurda.
"Eu disse-te que estava inocente?"
A frase ficou suspensa entre os dois, como uma nuvem negra antes de se desfazer em trovoada.
"Não estás?"
Filipe sorriu sem vontade e, desfocando os olhos do horizonte, bebeu um trago de mors.
"Esta história é muito complicada", disse sombriamente. "Muito complicada."
143
Fez-se uma pausa. A conversa parecia avançar aos solavancos, cheia de subentendidos e insinuações, silêncios comprometedores e sentidos ocultos, como se o mais revelador não fosse o que era dito, mas o que ficava por dizer.
"Tens alguma responsabilidade nestas mortes?", arriscou Tomás.
Silêncio.
"Na vida temos sempre responsabilidade em tudo o que acontece à nossa volta."
Novo silêncio.
Esta última resposta trazia ainda mais subentendidos, mas Tomás não se deu por satisfeito; precisava de romper aquela névoa de subtilezas que lhe toldava o entendimento e clarificar as coisas.
"Mas foste tu quem... quem provocou estas mortes?"
Mais um suspiro de Filipe.
"Talvez seja melhor eu contar-te a história desde o princípio."
"Sim, talvez seja melhor."
O amigo levou o copo à boca e engoliu metade do mors; era como se buscasse ali alento para encetar a sua narrativa.
"Toda esta situação começou em 1997, no Japão", disse, a sua mente a viajar no tempo. "Como consultor da Galp e do governo português para a área energética, integrei a comitiva de Portugal que foi participar na grande conferência climática de Quioto." Olhou para Tomás. "Já deves ter ouvido falar nessa conferência, suponho."
"Sim, foi aquela que acabou com um acordo sobre o ambiente, não foi?"
"Justamente", confirmou. "O Protocolo de Quioto." Afinou a voz. "O que aconteceu em Quioto foi que a maior parte dos países desenvolvidos assumiu o compromisso solene de, até 2012, reduzir as emissões globais de dióxido de carbono para valores inferiores aos de 1990. Havia sinais de que o planeta estava a aquecer devido à queima dos combustíveis fósseis e Quioto assinalou a vontade internacional de controlar a situação."
"Graças a Deus."
"Foi o que a generalidade dos cientistas pensou." Ergueu as mãos e os olhos para o céu, num gesto teatral. "Graças a Deus que se fazia alguma coisa!" Encarou Tomás. "Mas houve alguns peritos que participaram nessa conferência e que se aperceberam de que tudo aquilo não passava de fachada. Por pequenos pormenores de conversas entre delegações e pela forma como cada delegação enunciava generosas intenções gerais, mas evitava comprometer-se em medidas específicas que envolvessem custos, esses especialistas chegaram à conclusão de que, na hora da verdade, os políticos iriam roer a corda e adiar o problema, atirá-lo para os seus 144
sucessores."
"Porquê?"
"Por causa das ramificações do protocolo, claro. É que o essencial dos cortes nas emissões de dióxido de carbono recaiu sobre o mundo industrializado. A União Europeia com-prometeu-se a reduzir as suas emissões em oito por cento, o Japão em seis por cento e os Estados Unidos, que são o maior emissor de dióxido de carbono do planeta, em sete por cento."
"Isso é pouco?"
"Não, é magnífico." Fez uma pausa, para acentuar a frase seguinte. "Se fosse para fazer."
"E não era?"
Filipe abanou a cabeça.
"Não", murmurou. "Havia três problemas. O primeiro é que os Americanos não se atreviam a enfrentar os interesses instalados. Cortar na emissão de dióxido de carbono significa atacar três indústrias de grande importância na América: a indústria petrolífera, a indústria automóvel e a indústria do carvão. Os ocupantes da Casa Branca pura e simplesmente não têm coragem de enfrentar estes colossos."
"Estou a perceber."
"O segundo problema era aqui a Rússia. O aquecimento global é uma catástrofe para muitos países, mas não para este." Apontou na direcção das montanhas e da taiga, do outro lado do lago. "Aqui na Sibéria, por exemplo, os Invernos mais moderados e curtos só têm vantagens agrícolas. Além disso, se a tundra derreter, será mais fácil e barato explorar o petróleo russo do Árctico. O gelo fica mais fino e as perfurações tornam-se mais simples. Ora o petróleo corresponde a um terço das exportações da Rússia, pelo que este país, que é o terceiro maior emissor mundial de dióxido de carbono, não tem nenhum interesse em pôr fim ao aquecimento do planeta. Pelo contrário, só tem a ganhar com isso."
"Bem, uma postura dessas mina qualquer esforço para controlar as coisas."
"Sem dúvida", concordou Filipe. "Mas havia ainda um terceiro problema.
Quioto conferiu muitas obrigações ao mundo industrializado, que é quem emite a maior parte do dióxido de carbono que está a causar o aquecimento global, mas ignorou os países em vias de desenvolvimento."
"Isso parece-me lógico, ou não?", atalhou Tomás. "Se é o mundo industrializado que está a causar o problema, é o mundo industrializado que tem de o resolver."
145
O amigo fez uma careta.
"Não é bem assim", corrigiu. "Os países em vias de desenvolvimento ameaçam tornar-se grandes emissores de dióxido de carbono."
Tomás riu-se.
"Estás a insinuar que países como Moçambique são uma ameaça à estabilidade climática do planeta?"
"Moçambique não. Mas a China e a índia sim." Inclinou-se na cadeira. "Vê se percebes uma coisa: todo o acto económico é um acto de consumo energético."
Apontou para o copo com o líquido cor de laranja nas mãos de Tomás. "Por exemplo, esse kvas aí. O kvas é uma bebida doce e semial-coólica feita de cevada e centeio. Isso significa que foi preciso usar tractores para cultivar e colher a cevada e o centeio. Ora os tractores movem-se a gasóleo. Depois foi preciso destilar a bebida.
Para o fazer usou-se energia eléctrica, grande parte da qual é produzida com recurso a combustíveis fósseis. De seguida foi necessário fabricar a garrafa, e isso exigiu calor gerado nos fornos pelos combustíveis fósseis. Finalmente, teve de se transportar a garrafa de kvas até ao supermercado e daí até este acampamento yurt, e isso só se tornou possível consumindo mais combustível." Bateu com o indicador no copo de Tomás. "Se é preciso energia para produzir o insignificante pedaço de kvas que tens aqui na mão, imagina a energia que é necessária para gerar cada um dos triliões de bens que toda a humanidade produz diariamente: hambúrgueres, batatas, fruta, brinquedos, roupa, automóveis... eu sei lá!"
"O que queres dizer é que cada bem que consumimos resulta de uma cascata de operações que consomem energia."
"É isso mesmo. Ou, por outras palavras, a actividade económica e a energia são duas faces da mesma moeda."
"Yin e yang."
"Uma não existe sem a outra." Voltou a encostar-se na cadeira, a sua ideia já enfatizada. "Isto significa que o crescimento económico requer energia e a energia gera crescimento económico, um processo que ninguém deseja ver interrompido.
Repara neste ciclo: a riqueza suscita vontade de fazer compras, as compras geram procura, a procura requer mais fábricas e mais matéria-prima, as fábricas e a matéria-prima produzem mais bens, a produção de bens gera crescimento económico, o crescimento económico suscita vontade de fazer compras, as compras geram procura... e assim por diante." Ao voltar ao ponto de partida sorriu.
"Actividade económica e energia são duas faces da mesma moeda."
"Já percebi. Mas o que tem isso a ver com a China e com a índia?"
"A forte relação entre a energia e o crescimento económico é algo que os cidadãos europeus ou americanos mal percebem. Estamos de tal modo habituados à 146
abundância que nem vemos que as duas coisas são na verdade a mesma. Aceitamos tudo como quem aceita o ar que respira, é como se fosse um direito adquirido. Mas quem vive nos países mais pobres tem perfeita consciência da importância da energia para conseguir que a vida ande para a frente. Falta-lhes tudo e sobretudo falta-lhes energia, razão pela qual lhe dão muito valor. Eles sabem que precisam de electricidade para iluminar a sala de aulas ou para pôr uma bomba de água potável a funcionar e sabem que precisam de gasóleo para fazerem mexer o tractor necessário para a colheita que lhes irá matar a fome ou para irem de camioneta até à vila e venderem os seus produtos no mercado. Os países mais pobres têm perfeita noção da importância da energia para gerar o crescimento económico."
"E então?"
Filipe passou a mão pelos caracóis do seu cabelo claro.
"Acontece que a China e a índia estão determinadas a quebrar as barreiras do desenvolvimento." Apontou para trás, na direcção de sul. "Vejamos ali o caso dos nossos vizinhos chineses. Durante décadas, a China de Mao Tsé Tung alimentou um imenso desprezo pela indústria automóvel, que considerava um símbolo da burguesia decadente. Toda a gente andava a pé ou de bicicleta e a pobreza era generalizada. Mas quando Mao desapareceu as coisas mudaram. A nova liderança chinesa percebeu que precisava de gerar crescimento económico e o país começou a valorizar o que antes desprezava. Os Chineses produziram e venderam automóveis pela primeira vez em 2002, entrando num tal frenesim consumista que a General Motors previu que um quinto da sua produção iria ser canalizada para o mercado chinês. Todos os anos há mais automóveis na China, ao ponto de o país ter agora sete das dez cidades mais poluídas do mundo. Milhões e milhões de chineses consideram que ter um automóvel é um símbolo de estatuto social." Inclinou a cabeça. "Consegues imaginar o impacto que isto tem na economia energética mundial?"
"Bem, significa que há mais um jogador neste mercado, não é?"
"Casanova, não estou a falar de um país qualquer. Estou a falar de um país com muita gente." Sublinhou o número, sílaba a sílaba. "Mais de mil milhões de pessoas." Arregalou os olhos. "São mais de mil milhões de pessoas a querer andar de automóvel, são mais de mil milhões de pessoas a querer consumir combustível, são mais de mil milhões de pessoas a emitir enormes quantidades de dióxido de carbono para a atmosfera."
Tomás coçou a cabeça.
"Pois, a Nadia já me tinha falado nisso", disse. "É um problema, não é?"
"Um problemão! A China já ultrapassou os países industrializados na procura de electricidade e de combustíveis industriais e o país é, neste momento, o segundo maior consumidor de energia do mundo, preparando-se para ultrapassar em breve o primeiro, os Estados Unidos. Os Chineses estão a engolir os recursos energéticos 147
com uma sofreguidão incrível. Para alimentar essa fome insaciável, entraram em força no mercado de consumo de petróleo, desequilibrando a oferta e a procura, e estão a investir fortemente no carvão, o combustível fóssil que mais gases emite para intensificar o efeito estufa. Dentro de algum tempo, a China será responsável por dois quintos de todo o carvão queimado no planeta e um sétimo de toda a electricidade produzida, grande parte dela gerada pela queima de carvão ou de petróleo. Feitas as contas, a China emitirá em breve um quinto de todo o dióxido de carbono lançado na atmosfera."
"Caramba."
"Agora junta à China todos os países que se querem desenvolver. Junta a índia, a Rússia e a América Latina. Todos a quererem automóveis, frigoríficos, ar condicionado, televisores... tudo! Imagina o impacto que isto tem na produção de calor e no consumo dos recursos energéticos existentes."
"Sim, isto vai ser complicado."
"Complicado?" Filipe quase ficou escandalizado com a escolha da palavra.
"Nós caminhamos alegremente para a catástrofe, aceleramos na auto-estrada do suicídio e nem sequer nos apercebemos disso. O consumo de energia e a emissão de dióxido de carbono não estão a abrandar, mas a acelerar. E a acelerar exponencialmente. Toda a economia energética, da produção ao consumo, está a ser virada de pernas para o ar, com o equilíbrio da oferta e da procura prestes a entrar em ruptura. Além disso, o clima mostra-se totalmente alterado. O aquecimento dos últimos cinquenta anos duplicou de intensidade em relação aos últimos cem anos e o nível do mar subiu dezassete centímetros no século xx. Chove mais no Leste do continente americano e no Norte da Europa e chove menos no Sul da Europa, em África e na Ásia. Desde a década de 1970 que aumentou a actividade dos ciclones no Atlântico Norte e em 2005 apareceu o primeiro furacão na costa ocidental da Europa, o Vince, que entrou no Norte de Portugal já como tempestade tropical.
Desde que há registos meteorológicos, nunca se tinha visto um furacão nessas paragens. E o mesmo se passa no Atlântico Sul. Um furacão designado Catarina cruzou a costa brasileira em 2004, um fenómeno tão inédito que os meteorologistas brasileiros levaram algum tempo a acreditar no que as fotografias de satélite lhes mostravam." Fez uma curta pausa. "O painel intergovernamental de cientistas criado pela ONU estabeleceu em 07 que as temperaturas do planeta deverão subir este século entre um e seis graus e que em geral os fenómenos meteorológicos vão ficar mais extremos: chuvas mais fortes, secas mais graves, ventos mais violentos, tempestades mais brutais." Abanou a cabeça. "E o pior é que o clima poderá estar à beira de cruzar um valor crítico, percebes? Um valor para lá do qual são desencadeados fenómenos que vão tornar inabitáveis importantes partes do planeta."
"Que valor crítico? Estás a falar dos 550 ppm de dióxido de carbono na atmosfera?"
148
"Também estou a falar disso, mas estou a falar sobretudo do que acontecerá quando se ultrapassar uma determinada temperatura."
"Bem, presumo que fique tudo gradualmente mais quente, não é?"
"Não, não é. A natureza está concebida de forma a que, em certos pontos críticos, se produzam alterações abruptas. E essas alterações são determinadas muitas vezes por valores térmicos. Por exemplo, a água permanece líquida à medida que a temperatura baixa, mas, quando se atingem os zero graus, fica de repente sólida. Estás a ver? Os zero graus são um valor crítico, a partir do qual tudo muda."
"Sim, estou a perceber. Mas onde queres tu chegar?"
"O que te estou a tentar explicar é que o mesmo se passa com o clima. A partir de uma certa temperatura, as coisas mudam radicalmente e o planeta pode tornar-se inabitável para grande parte da vida actualmente existente, incluindo a humana."
Tomás fez um ar céptico.
"Espera aí", disse. "Uma coisa é sabermos que a água se torna repentinamente sólida aos zero graus, outra é dizer que as alterações do clima serão tão bruscas que a própria sobrevivência da humanidade está ameaçada. Não achas que estás a exagerar um bocadinho?"
Um suspiro paciente foi a primeira resposta. Filipe ergueu-se da cadeira e espreguiçou-se.
"Anda daí, Casanova", disse, começando a caminhar pela areia da praia.
"Vou mostrar-te uma coisa."
XVIII
As águas do Baikal vinham abraçar a areia em vagas suaves; o lago era manso e na superfície escura viam-se pontinhos brilhantes, pareciam diamantes a reflectir o cintilar do Sol no crepúsculo. Filipe tirou os sapatos e calcorreou a berma, chapinhando na água.
"Vem aqui", convidou. "Experimenta a água."
Tomás também descalçou os sapatos e pisou o líquido borbulhante, mas parou de imediato.
"Está fria", queixou-se, saltitando apressadamente de regresso à areia.
O amigo riu-se.
"Não fujas, grande maricas. Anda aqui para a água."
"Estás maluco?"
Filipe baixou-se e mergulhou a mão no lago.
149
"Achas que está fria, é?"
"Gelada."
O geólogo endireitou-se e sacudiu a mão molhada, salpicando as calças e o pullover.
"E, no entanto, esta água fria é essencial para manter o nosso planeta vivo."
"Lá estás tu a exagerar", exclamou Tomás. "Toda a gente sabe que a vida prefere a água quente."
Filipe começou a caminhar ao longo do lago, os pés sempre a chapinharem na água, enquanto Tomás mantinha uma distância prudente ao lado, acompanhando-o pela areia.
"Deixa-me explicar-te uma coisa, Casanova", disse Filipe, os olhos presos nas ondinhas que se desfaziam aos seus pés. "Embora não nos apercebamos disso, a Terra é um ser vivo. Da mesma maneira que o ser humano é um ser vivo constituído por biliões de seres vivos, as células, a Terra é um ser vivo constituído por biliões de seres vivos, a fauna e a flora. Por exemplo, se a temperatura mudar muito na Lua ou em Vénus, isso é indiferente para esses planetas, uma vez que estão ambos mortos, não passam de pedra e poeira. Tanto lhes faz que faça muito frio como muito calor, os planetas mortos são como esculturas de mármore. Mas as alterações térmicas não são indiferentes para a Terra, que se encontra viva e que, por isso, está constantemente a regular a sua temperatura e composição. Estás a acompanhar o meu raciocínio?"
"Hmm... mais ou menos."
"Uma das coisas que a ciência já percebeu é que a Terra, como qualquer ser vivo que a habita, tem a capacidade de se auto-regular." Ergueu o dedo, para salientar uma ressalva. "Mas, também como qualquer ser vivo, isso só acontece dentro de determinados parâmetros de temperatura." Deu um pontapé numa onda, provocando um borbulhar aparatoso. "No caso aqui da água, descobriu-se que a temperatura crítica são os dez graus. Quando a temperatura sobe acima dos dez graus, a água tende a ficar livre de nutrientes, o que prejudica a vida. Daí que as águas tropicais sejam tão transparentes e límpidas: não têm nutrientes, à excepção de uma limitada quantidade de algas. Essas águas estão para o mar como os desertos estão para a terra. Pela inversa, as florestas do mar são as águas do Árctico e do Antárctico, uma vez que esses oceanos polares estão a temperaturas abaixo dos dez graus e, por isso, podem encontrar-se nutrientes por toda a parte."
"Desculpa, mas isso não é bem assim", argumentou Tomás. "Que eu saiba existe muita vida marinha nas águas tropicais."
"Só em profundidade, Casanova." Apontou para baixo. "Só lá no fundo, onde a temperatura está abaixo dos dez graus, é que a vida marinha encontra nutrientes."
"Hmm."
150
"Isto significa que a maior parte dos oceanos são desertos."
"Estás a falar a sério?"
"Muito a sério", insistiu Filipe. "As águas acima dos dez graus na camada superior cobrem oitenta por cento da superfície de água no mundo. Quer dizer que oitenta por cento da superfície do mar é um deserto."
Tomás curvou a boca.
"Não fazia a mínima ideia."
"As implicações desta descoberta são graves. Se a temperatura global subir, a percentagem de água quente aumentará, o que terá como consequência o alargamento do deserto marítimo."
"Estou a perceber."
Filipe remexeu-se no seu lugar.
"Agora presta atenção, Casanova, porque isto é importante", enfatizou. Fez um gesto que cobriu o horizonte verde em Olkhon e a taiga na outra margem do lago. "Este fenómeno de desertificação no mar também ocorre em terra. Descobriu-se que, cá fora, as temperaturas críticas não são os dez graus, como no mar, mas os vinte. Quando a temperatura desce abaixo dos vinte graus, como acontece no Inverno, a água da chuva permanece muito tempo na terra e o solo mantém-se húmido, o que facilita o crescimento da vida. Mas quando, no Verão, as temperaturas médias rondam os vinte graus, a água da chuva tende a evaporar-se rapidamente, secando os solos. A Terra, enquanto ser vivo que se auto-regula, respondeu a este problema fazendo com que a estação das chuvas ocorra justamente no Verão. A chuva mais frequente compensa a evaporação, estás a perceber? Mas, quando a temperatura média sobe acima dos vinte e cinco graus, a evaporação torna-se demasiado rápida e, a não ser que a chuva seja quase contínua, a terra transforma-se em deserto."
"E as florestas equatoriais? Que eu saiba, estão acima dos vinte e cinco graus."
"As florestas equatoriais, como a Amazónia ou a grande floresta do Congo, constituem justamente uma nova resposta de auto-regulação deste formidável ser vivo que é a Terra. Como a evaporação com altas temperaturas é muito rápida, a Terra criou ali um ecossistema que consegue aguentar as nuvens sobre a floresta, obtendo assim chuva quase contínua, estás a perceber?"
"Ah, então a floresta atrai as nuvens."
"Isso. Mas este sistema também só é viável dentro de determinados limites térmicos."
"Porquê?"
151
"Por causa das propriedades da água, Casanova. Uma subida de quatro graus da temperatura média acelera ainda mais a evaporação e destrói este equilíbrio, transformando a floresta equatorial num deserto."
"Como sabes tu isso?"
"Basta olhar para os desertos, como o Saara, por exemplo. A temperatura aí é tão elevada que a água se evapora toda demasiado depressa, secando os solos. Pois sabes o que separa uma floresta equatorial de um deserto?" Uma curta pausa. "Uns meros quatro graus Celsius. Há apenas quatro graus de diferença entre uma grande floresta virgem e um deserto, o que significa que esses quatro graus cruzam algures um valor crítico."
"Estou a perceber."
"Daí que o aumento da temperatura global seja um problema muito grande se ultrapassar determinado limite térmico. E o pior é que há indicações de que esse processo já foi desencadeado."
Tomás fez um ar apreensivo.
"Como assim?"
"Nunca ouviste falar no efeito Budyko?"
"Efeito quê?"
"Mikhail Budyko é o maior climatologista russo. Ele descobriu que a neve reflecte para o espaço a maior parte do calor do Sol que sobre ela incide, o que ajuda a manter o clima frio. O problema é que, como o dióxido de carbono libertado pelos combustíveis fósseis elevou a temperatura global, a neve começou a derreter, deixando emergir o solo escuro que havia por baixo. Ora esse solo, como é escuro, absorve o calor, o que provoca mais calor, o qual provoca mais derretimento de neve, o que faz emergir mais solo escuro que provoca ainda mais calor, numa espiral sem fim. É isso o efeito Budyko."
"A Nadia falou-me nisso."
"Pois, ela esteve envolvida nas primeiras medições aqui na Sibéria. O grave é que a temperatura cruzou um tal limite que este tipo de processo foi desencadeado em todo o planeta, incluindo no mar. Só em 05 desapareceu catorze por cento do gelo permanente do Árctico. Catorze por cento! Sabes porquê? Porque os oceanos estão a aquecer. Como a água ficou mais quente, começou a derreter mais gelo, o que é um problema porque, como te disse, o gelo funciona como um espelho e reflecte mais de oitenta por cento do calor do Sol. Já o oceano, pelo contrário, absorve mais de noventa por cento desse calor, uma vez que é escuro. Estás a ver as consequências, não estás? Como o gelo está a derreter, há mais oceano a receber calor, o que torna a água mais quente e faz derreter ainda mais gelo, o que diminui 152
mais a superfície reflectora e alarga de novo a superfície absorvente de calor, num ciclo vicioso que intensifica o efeito estufa. E isto não é tudo. Como o oceano está mais quente, a água fica mais pobre em nutrientes e em algas. Ora são as algas que atiram o dióxido de carbono para o fundo do mar. Como há menos algas, o dióxido de carbono fica à superfície, o que também agrava ainda mais o efeito estufa. Como o calor aumenta, a água perde mais nutrientes e sobrevivem ainda menos algas, deixando cá em cima maiores quantidades de dióxido de carbono, que agravam mais e mais o efeito de estufa, e assim por diante numa nova espiral interminável. É uma espécie de efeito Budyko marítimo."
"Mas isso está mesmo a acontecer?"
"Pois está. E em toda a parte. Olha para as florestas equatoriais de que estávamos a falar ainda há instantes. Como a temperatura aumentou, elas estão a diminuir. O problema é que sem a sombra das árvores o solo aquece mais e, consequentemente, faz aquecer mais o planeta, o que provoca uma maior diminuição das florestas e retira sombra a mais solos, que assim aquecem mais e provocam maior diminuição florestal, num novo ciclo vicioso. Aliás, já aí estão os primeiros sinais deste fenómeno. A Amazónia viveu em 2005 uma seca nunca vista. Secaram vários afluentes do rio Amazonas e a água potável teve de ser enviada por helicópteros para aldeias da grande floresta supostamente húmida. E sabes por que razão se utilizaram helicópteros? Porque a água dos rios estava demasiado baixa para a navegação! A seca de 2005 pode ter sido o primeiro sinal do iminente e catastrófico colapso da Amazónia, que é inevitável se as temperaturas subirem três a quatro graus Celsius.
Nessa situação, a floresta transformar-se-á num deserto." Indicou a taiga lá ao fundo.
"É preciso, além do mais, notar que a morte das florestas provoca uma brutal libertação de dióxido de carbono, que intensifica o efeito de estufa. Por outro lado, repara que as árvores são a esponja natural que absorve o dióxido de carbono.
Menos árvores significa menor absorção de dióxido de carbono, o que agrava igualmente o efeito de estufa."
"Mas então o que queres dizer é que entrámos em toda a parte num ciclo vicioso que provoca mais e mais calor."
"É isso mesmo", confirmou Filipe. "É por isso que te digo que, quando é cruzada determinada temperatura crítica, são desencadeados fenómenos descontrolados. Como já te expliquei, a Terra é um ser vivo com capacidade de auto-regulação, o que significa que sempre conseguiu manter-se próxima da temperatura e da composição química mais adequadas à vida. Fez isso durante três mil milhões de anos. Mas agora, devido a libertação em massa de dióxido de carbono dos combustíveis fósseis, a temperatura aproxima-se de um valor crítico a partir do qual o planeta perde capacidade de auto-regulação. E é justamente isso o que torna o aquecimento global potencialmente catastrófico."
Filipe mudou de direcção e saiu da água, dirigindo-se para as cadeiras que haviam abandonado alguns minutos antes. Tomás acompanhou-o de ar pensativo, 153
desconfortável com aquela avalancha de dados assustadores.
"Pronto, já percebi que a situação é grave", disse. "Mas qual a relevância de tudo isso para a nossa conversa?"
"A relevância, Casanova, é que durante a conferência de Quioto houve alguns técnicos que se aperceberam de que o acordo não passava de uma fachada. As questões de fundo foram deliberadamente ignoradas. Quioto reuniu muitos países, cada um com a sua própria agenda, mas poucos reflectiam uma preocupação genuína com aquilo que suscitara a reunião: as mudanças climáticas. Pelo contrário, nós víamos os políticos a piscarem o olho e a dizerem que o que verdadeiramente lhes interessava não era o aquecimento do planeta, mas o arrefecimento da economia. Aceitavam todas as medidas que fossem boas ou inofensivas para a sua economia e rejeitavam todas as que lhes pareciam prejudiciais. Esse era o estado de espírito dominante. No raciocínio dos políticos, o que acontecer daqui a vinte anos já não será com eles, uma vez que está fora do seu horizonte de reeleição. Os governantes que vierem a seguir que resolvam o problema."
"Eles diziam mesmo isso?"
"Em público não, claro. Perante os microfones assumiam uma postura de grande responsabilidade e pareciam genuinamente preocupados com o aquecimento global. Uns verdadeiros estadistas. Mas em privado nós bem os víamos a encolher os ombros e a rir-se do que eles próprios tinham acabado de declarar em público. A verdade é que se estavam pura e simplesmente nas tintas!"
"Mas então essa conferência não serviu para nada..."
"Foi uma fachada. O problema é que, pelo modo como as coisas se apresentam, as emissões de dióxido de carbono não vão abrandar, mas acelerar.
Aliás, já estão a acelerar. Além do mais, Quioto partia do princípio ingénuo de que basta fechar a torneira do dióxido de carbono para o problema do aquecimento global se resolver." Fez um gesto brusco com a mão, cortando o ar. "Nada mais errado. O aquecimento do planeta é cumulativo. Mesmo que paremos hoje de emitir dióxido de carbono, e não vamos parar, o aquecimento prosseguirá durante décadas.
O valor crítico de 550 ppm será inevitavelmente cruzado e o planeta vai mesmo fritar. Perante a actual evolução, parece-me seguro dizer que deveremos ultrapassar os 1100 ppm ainda durante este século." Fez uma expressão impotente. "É uma catástrofe."
Tomás fixou-o nos olhos, inquieto com o que acabara de escutar. Parte disto já lhe tinha sido explicado por Nadezhda, mas era chocante ouvi-lo, mesmo que pela segunda vez.
"O que se pode fazer?"
Filipe sorriu.
"Foi justamente isso que perguntei a mim próprio em Quioto. O que se pode 154
fazer?"
A interrogação ficou um longo instante a flutuar entre os dois amigos.
Chegaram junto das duas cadeiras pousadas sobre a areia e sentaram-se.
"E então?"
"Vim a descobrir que eu não era o único a formular essa pergunta. Havia outros técnicos que perceberam o logro da conferência e que se questionaram quanto ao que poderiam realmente fazer. Em conversas nos corredores ou na cafetaria, descobrimos que partilhávamos as mesmas preocupações e formámos um pequeno grupo." Riu-se, a memória mergulhada nas reminiscências de Quioto. "Sabes qual o nome que nos demos a nós próprios?"
"Hmm."
"Os quatro cavaleiros do Apocalipse. Vê se estes nomes te dizem alguma coisa: Howard Dawson, Blanco Roca e James Cummings."
Tomás reconheceu-os.
"Os dois primeiros são os tipos que morreram, não são?"
"Sim. O Howard era um climatologista da delegação americana e o Blanco um físico integrado na comitiva espanhola."
"E o terceiro é o inglês que também desapareceu."
"Nem mais. O James foi o consultor científico da delegação britânica."
"Contigo, dá quatro."
"Os quatro cavaleiros do Apocalipse."
"Na Bíblia, os quatro cavaleiros são aqueles que provocam o apocalipse..."
"No nosso caso, queríamos ser os quatro cavaleiros que impediam o apocalipse."
"E isso é possível?"
"Foi o que perguntámos a nós próprios. Como climatologista, o Howard tinha muita informação privilegiada, resultado de observações que estava a efectuar por todo o planeta, sobretudo nas zonas geladas. Contou-nos que a grande maioria dos glaciares está a arder. Os glaciares dos Alpes já perderam cinquenta por cento do seu gelo e os dos Andes triplicaram a velocidade de recuo, diminuindo um quarto da sua superfície em apenas três décadas."
"Porra."
"A temperatura do solo no Alasca aumentou no século xx entre dois e cinco graus Celsius e nove estações do Árctico registaram subidas da temperatura de 155
superfície da ordem dos cinco graus Celsius. O aquecimento global já provocou a desintegração de cinco das nove plataformas de gelo existentes na Península Antárctica. A Gronelândia e o planalto tibetano registam fenómenos semelhantes."
"Tudo isso foi o americano que vos contou?"
"Sim, mas disse-nos muito mais. O El Nino, por exemplo. Sabes o que é?"
"Já li nos jornais", disse Tomás, fazendo um esforço de memória. "É um fenómeno meteorológico no Pacífico, não é?"
"Mais ou menos. O El Nino é o aparecimento periódico de água quente nas latitudes tropicais do Pacífico Oriental. A emergência destas águas alimenta violentas tempestades no Pacífico, inundações na Califórnia e no golfo do México e secas na Austrália e em África. Ao longo da história, o El Nino revelou-se um fenómeno cíclico, alternando a cada quatro anos com La Nina, um fenómeno exactamente oposto, uma vez que envolve o aparecimento de água fria naquela mesma zona. Acontece que, a meio da década de 1970, o padrão foi alterado e o El Nino mostra tendência para se tornar quase permanente, chegando a durar seis anos."
"E os outros oceanos? Também sofreram alterações?"
"As alterações estão em toda a parte, Casanova. As ondas do Atlântico Norte sobem hoje cinquenta por cento mais alto do que na década de 1960. Isso deve-se a alterações subtis na temperatura da água."
"Hmm."
"O que se passa é que descobrimos que o clima é muito mais volátil do que antes se pensava. Pequeníssimas mudanças suscitam alterações desproporcionadas no equilíbrio global."
"Uma espécie de efeito borboleta."
"Isso. E ninguém vai escapar. O Midwest dos Estados Unidos, por exemplo, que tem sido o celeiro da América, está em vias de se tornar um deserto. E o Sul da Europa também. As vagas de calor tornaram-se mais frequentes e mais longas e um processo de desertificação gradual já se encontra em curso em Itália, na Grécia, em Espanha e em Portugal, com o Saara a crescer para norte. Isto tem implicações catastróficas. Olha o que se passou com as grandes vagas de calor de 2003 e 2007 no Sul da Europa. Para além dos gigantescos fogos que consumiram em Portugal uma superfície florestal do tamanho do Luxemburgo, a onda de temperaturas elevadas em 2003 provocou uma quebra de vinte por cento na colheita de cereais e inflacionou os preços em cinquenta por cento. E em 2007 foi ainda pior, com temperaturas recorde a provocarem milhares de incêndios na Grécia, na Turquia e nos Balcãs. Dubrovnik chegou a ser evacuada e os Gregos tiveram de declarar o estado de emergência em todo o país quando os incêndios descontrolados mataram mais de sessenta pessoas em três dias e chegaram aos subúrbios de Atenas."
156
"Achas que essas calamidades se vão tornar frequentes?"
"Ah, não tenhas dúvidas. Estes incêndios foram apenas o prelúdio do que vem aí e repara que surgem numa altura em que se percebe que o planeta precisa de duplicar a sua produção alimentar nos próximos trinta anos, de modo a sustentar uma população que deverá duplicar em sessenta anos. O problema é que a desertificação, a erosão dos solos e a salinização estão a reduzir a terra arável a um ritmo de um por cento ao ano." Inclinou a cabeça para sublinhar este ponto. "Um por cento ao ano significa dez por cento numa década. Há quem diga que, daqui a algumas décadas, metade do globo encontrar-se-á coberto pelo deserto. Os resultados já estão à vista: o crescimento da produção alimentar atingiu o seu pico em meados da década de 1980 e apresenta-se agora em declínio."
"Estás a falar a sério?"
"Por que razão pensas tu que estamos tão preocupados? Os modelos mostram que, duplicando-se o dióxido de carbono na atmosfera, a maior parte dos Estados Unidos estará submetida a graves secas, com o consequente colapso agrícola.
Bastará subir um grau para que apareçam desertos no Nebraska, no Wyoming, em Montana e no Oklahoma. E, acima dos dois graus Celsius, também o Sul da Europa estará transformado num deserto. Alguns cientistas franceses, por exemplo, puseram-se a projectar em quanto aumentará a evaporação de água em toda a região mediterrânica quando ocorrer uma ligeira subida da temperatura. Os modelos de computador revelaram que a evaporação diminuirá, o que é surpreendente, uma vez que o calor aumenta a evaporação. Depois de analisarem melhor os dados, os cientistas perceberam que a evaporação irá diminuir pela simples razão de que deixará de haver água no solo: sem água não há evaporação. Isso significa que o Saara cruzou o Mediterrâneo e o Sul da Europa estará transformado num deserto."
Acenou com três dedos. "O painel da ONU prevê que, se o limiar dos três graus for cruzado, a desertificação poderá conduzir a uma fome generalizada no planeta. A produção agrícola chinesa, por exemplo, entrará em ruptura total, com os campos de arroz, milho e trigo a decaírem quarenta por cento. As populações destas novas zonas desertas terão de fugir em massa Para norte, em busca de comida, o que implica que se verão forçadas a invadir os já densamente povoados países industrializados do Norte, onde a produção alimentar também estará sob pressão. Como é evidente, os habitantes destes países vão reagir muito negativamente a essa invasão de es-fomeados e os conflitos serão inevitáveis. Os partidos fascistas, com promessas de travar pela força as hordas de refugiados famintos, irão tornar-se dominantes."
"Isso é assustador."
"É, não é? E receio não te ter revelado ainda o pior."
Tomás ergueu o sobrolho, inquieto.
"O que queres dizer com isso?"
"Quero dizer que o mais grave não é isto que te contei."
157
"Então o que é?"
Filipe suspirou e olhou para o amigo, ganhando balanço para entrar na questão que verdadeiramente o aterrorizava.
"Sabes o que é uma extinção em massa?"
XIX
O crepúsculo já pintara o céu de violeta e lilás sobre o horizonte e uma brisa fria e agreste cortava a praia, erguendo pequenas nuvens de areia. O ar tornava-se desagradável, mas Tomás sentia-se preso à cadeira, incapaz de interromper o fio da conversa. A referência a extinções em massa parecia-lhe uma coisa do mundo da ficção, linguagem catastrofista sem qualquer relação com a realidade, mas ouvir a expressão naquele contexto era diferente. Interrogou o amigo com os olhos e, contendo a impaciência, aguardou que ele revelasse o que ainda não tinha contado.
"A vida no nosso planeta já conheceu cinco grandes extinções em massa", começou Filipe por dizer, depois de uma curta pausa para ganhar fôlego. "A mais famosa foi a do cretácico, há sessenta e cinco milhões de anos, provocada pela queda de um meteoro na península do Iucatão, no México. Esse impacto alterou o clima e provocou uma mortandade generalizada, pondo fim à era dos dinossauros."
"Sim, foi uma grande catástrofe."
"O que pouca gente sabe é que não foi a pior. A mais grave de todas as extinções ocorreu no pérmico, há quase duzentos e cinquenta milhões de anos.
Nessa altura, sem que se saiba ainda exactamente porquê, desapareceram abruptamente noventa e cinco por cento dos animais que conhecemos pelos registos fósseis." Soprou. "Puf! Noventa e cinco por cento." Deixou o valor ecoar na mente de Tomás. "Isso representou mais de metade das famílias de espécies existentes. Só entre os insectos desapareceu cerca de um terço das espécies, no que foi a única vez na história do planeta em que os insectos morreram em massa. A extinção do pérmico representou o momento em que a vida na Terra esteve mais perto do aniqui-lamento total."
"Eu sei muito bem o que se passou no pérmico", atalhou Tomás. "O que não percebo é qual a relevância desses acontecimentos para a nossa conversa."
"É muito simples, Casanova. A análise geológica às amostras do pérmico revela alterações nos isótopos de carbono, indiciando que algo de terrivelmente errado ocorreu na biosfera e no ciclo do carbono." Respirou fundo. "O que eu quero dizer é que a extinção do pérmico coincidiu com um abrupto aumento de gases de estufa na atmosfera. As temperaturas subiram seis graus Celsius." Estendeu seis dedos diante dos olhos do amigo. "Seis graus. Tantos quantos o painel da ONU
prevê para o final deste século."
Tomás ficou um instante calado, fitando Filipe.
158
"Estás a brincar."
"Quem me dera."
"Qual era a concentração de dióxido de carbono na atmosfera quando ocorreu a extinção do pérmico?"
"Quatro vezes mais do que os actuais 380 ppm. Mais ou menos o que se prevê que venhamos a ter no final deste século." Filipe baixou o braço esquerdo e apanhou um pedaço de areia, que deixou escoar devagar por entre os dedos. "Para além da subida de seis graus de temperatura, os estudos geológicos mostram que o planeta se tornou subitamente árido, com os desertos a cobrirem o Sul da Europa e dos Estados Unidos e o nível do mar a elevar-se vinte metros."
"Exactamente o que se prevê para este século", constatou Tomás. "E dizes tu que isso foi abrupto?"
"Sim."
"Bem, nós ao menos temos algum tempo, não é? Não vamos apanhar com as mudanças de um dia para o outro."
"Casanova, quando eu digo abrupto, estou a utilizar referências à escala da longa vida do planeta. As alterações climáticas da grande extinção do pérmico ocorreram num período excepcionalmente rápido. Por rápido, quero dizer dez mil anos."
Tomás arregalou os olhos, horrorizado.
"Dez mil anos?"
"Em termos geológicos, dez mil anos correspondem a uma mudança abrupta."
"Mas as mudanças actuais vão ocorrer já este século..."
Filipe abanou afirmativamente a cabeça.
"Julgas que não sei isso?"
"Mas isto é... é uma catástrofe!"
"Pois é. Existem estudos que mostram que entre um terço e metade das espécies actualmente existentes estarão extintas por volta de 2050. E, se a coisa não for travada, dentro de alguns séculos a grande extinção do pérmico irá parecer uma brincadeira de crianças."
"Temos de parar já a emissão de dióxido de carbono."
"Pois temos, mas não sei se ainda vamos a tempo."
"Tem de haver um acordo político radical."
"Sem dúvida, mas temos de ser realistas: esse acordo ainda não existe. E, 159
mesmo que venha a existir, repito que pode ser tarde de mais. O planeta é uma máquina muito pesada e custa muito pô-la em marcha. Mas, a partir do momento em que ela entra em marcha, já não é possível travá-la, da mesma maneira que a pedra, quando começa a rolar pela encosta da montanha, já não pára."
"Porquê? Por causa do efeito cumulativo do dióxido de carbono?"
"Sim. Mas também por causa de outra coisa de que eu ainda não te falei. O
metano."
"Qual metano? Que conversa é essa?"
"O dióxido de carbono é um poderoso gás de estufa, mas não é o pior. O
verdadeiro demónio é o metano que se encontra oculto no fundo do mar ou debaixo do gelo, contido pelo frio ou pelas altas pressões. O metano é vinte vezes mais poderoso do que o dióxido de carbono como gás de estufa. Acontece que, se a temperatura subir, desencadeia-se um processo que liberta o metano, trazendo-o para a atmosfera. Isso é que será a grande chatice! Uma vez o metano cá fora, o aquecimento da atmosfera irá acelerar exponencialmente. Supõe-se que isso aconteceu na extinção marítima do paleoceno, quando desapareceu tudo o que vivia no fundo dos oceanos, há mais de cinquenta milhões de anos."
"E quando é que o metano começa a ser libertado?"
Filipe encheu os pulmões antes de responder sombriamente.
"Já começou."
Fez-se silêncio na praia. Tomás esfregou o queixo, tentando digerir esta nova revelação.
"O que queres dizer com isso?"
O amigo fez um gesto em direcção à taiga, do outro lado do lago.
"Está a acontecer aqui na Sibéria", disse. "O gelo da tundra começou a derreter e por baixo encontra-se o metano. Como a temperatura disparou aqui na região, fomos ver o que se está a passar nos lagos que descongelaram. O que vimos deixou-nos aterrados: o metano já começou a borbulhar. Ele está a libertar-se a um ritmo cinco vezes superior ao que as estimativas previam. À medida que o gelo for recuando na Sibéria, mais metano virá cá para fora."
"E agora?"
"O efeito Budyko também já foi desencadeado no metano. Há quem acredite que é como se já tivéssemos empurrado a pedra e ela já estivesse a rolar pela encosta. O efeito cumulativo do dióxido de carbono poderá ter tornado inevitável o colapso da Amazónia. Se a grande floresta desaparecer, serão libertados 250 ppm para a atmosfera, o que nos atirará para uma subida de quatro graus Celsius. Nesse 160
limiar, o equilíbrio poderá revelar-se impossível, uma vez que a libertação do metano siberiano será acelerada. Isso catapultar-nos-á inexoravelmente para uma subida de seis graus que, por sua vez, irá libertar o metano marítimo." Suspirou. "Se isso acontecer, ultrapassaremos os níveis da grande extinção do pérmico."
"Meu Deus!"
"É imperativo que a temperatura não suba acima dos dois graus, de modo a não desencadear o processo que levará o planeta a cruzar o limiar do metano. Há quem ache que isto já não é possível, uma vez que o processo adquiriu uma dinâmica própria, mas a maior parte dos cientistas acredita que ainda vamos a tempo. Para que a travagem aconteça, no entanto, a emissão de gases de estufa tem de cruzar imediatamente o pico e baixar noventa por cento até 2050. Os 550 ppm têm de ser evitados, custe o que custar."
"Mas será que os políticos têm consciência disso?"
Filipe sorriu sem vontade.
"Ninguém tem consciência de nada, Casanova." Abanou a cabeça. "O mais incrível, para mim, é esta indiferença geral que está instalada. Não sei se já reparaste, mas costuma existir um grande contraste nas reacções dos peritos e do público em relação a um determinado tema. Quando confrontado com uma grande mudança, o público tende a ficar muito mais alarmado do que os peritos."
"Achas?"
"Claro. Olha o nuclear, por exemplo. As pessoas que não entendem bem as questões relacionadas com a energia nuclear assustam-se mais do que os peritos, que conhecem o assunto a fundo e se sentem mais tranquilos." Pigarreou. "Mas aqui é ao contrário. O público parece muito descontraído com a questão do aquecimento global, enquanto os peritos estão em pânico. Em pânico, ouviste?" Quase soletrou a palavra pânico. "Quando os cientistas do painel da ONU vieram a público e confirmaram que, nas próximas décadas, as tempestades vão ficar mais violentas, o deserto irá alastrar para mais de metade do planeta e o nível do mar vai subir uma dezena de metros ou mais, o que seria normal acontecer? Acho que a CNN teria de interromper a emissão com grande espalhafato, milhões de pessoas deveriam ter saído às ruas em terror a exigir mudanças imediatas na política energética, os dirigentes políticos teriam de vir à televisão anunciar medidas de emergência para enfrentar esta catástrofe. Não achas que isso seria uma reacção normal?"
Tomás ainda estava a recuperar do choque das revelações sucessivas e balançou mecanicamente a cabeça.
"És capaz de ter razão."
"Mas não foi isso o que aconteceu, pois não? Os cientistas fizeram um anúncio com esta dimensão e... e só faltou ver as pessoas bocejarem de tédio! Achas 161
isto normal?" Voltou a abanar a cabeça. "E os políticos, que deviam ter juízo na cabeça, estão na mesma! Foi por isso que ficámos muito preocupados com a postura que detectámos nos governantes, todos eles com aquela filosofia do deixa andar e o raciocínio de que os que vêm a seguir que desliguem a luz e paguem a conta.
Primeiro em Quioto, depois em encontros que fomos tendo ao longo do tempo, nós os quatro fomos conversando sobre o maior desafio que a humanidade hoje enfrenta: será possível impedir o apocalipse?"
Tomás inclinou-se na cadeira, traindo uma ansiedade mal disfarçada.
"Chegaram a alguma conclusão?"
"Concluímos que precisávamos de fazer uma avaliação rigorosa de duas coisas fundamentais, ambas relacionadas entre si: o aquecimento do planeta e o estado das reservas mundiais de petróleo. E precisávamos de desenvolver um plano energético alternativo para entrar em vigor quando as condições se tornarem propícias."
"Isso parece-me muita coisa."
"E é. O trabalho revelou-se verdadeiramente ciclópico e nós, feitas as contas, não passávamos de quatro gatos-pinga-dos. Felizmente os nossos talentos complementavam-se, de maneira que decidimos dividir as tarefas. O Howard conseguiu um posto importante na Antárctida, onde o aquecimento é mais acelerado do que no resto do planeta e onde se encontram os melhores registos paleoclimáticos, e foi para lá desenvolver novos trabalhos para perceber melhor a alteração do clima. O
James e o Blanco eram físicos com grande capacidade, o Blanco mais teórico, o James mais prático. Ficaram ambos encarregados de procurar soluções tecnológicas inovadoras. E eu, que me sinto como peixe na água na área energética, dediquei-me à avaliação das reservas globais de combustíveis fósseis, de modo a poder indicar qual o momento psicológico adequado para avançar com as soluções que o James e o Blanco viessem eventualmente a desenvolver."
"E foi isso o que vocês andaram a fazer este tempo todo?"
"Sim, embora não de uma forma totalmente estanque. O James e o Blanco trabalhavam muito em conjunto, enquanto eu me encontrava mais próximo do Howard. Cheguei a ir à Antárctida ver os trabalhos paleoclimáticos em que ele estava envolvido." O seu olhar perdeu-se na memória dessa viagem. "Aquilo é muito curioso, sabes? Uma das coisas que descobri é que penetrar nas camadas de gelo é como viajar no tempo."
"Em que sentido?"
"O gelo da Antárctida é formado por camadas sucessivas de neve, não é?
Essas camadas vão-se acumulando umas em cima das outras ao longo de milhares de anos. Ora cada camada de neve contém pequenas bolhas de ar, o que significa que, se fizermos um furo suficientemente profundo no gelo e recolhermos uma 162
camada que tem duzentos mil anos, poderemos detectar nela bolhas com o ar existente nesse período e analisar o seu conteúdo. É assim que se percebe, por exemplo, qual o nível de dióxido de carbono que numa determinada época existia na atmosfera e qual a temperatura média nessa altura. O Howard mostrou-me um pedaço de gelo extraído a três mil e quinhentos metros de profundidade na base de Vostok, no centro da Antárctida. A análise desse gelo mostrou que o planeta está agora perto do ponto mais quente do último meio milhão de anos."
"Estou a perceber. E fazias esse trabalho com o Howard?"
"Não, ia apenas acompanhando as coisas. Mas é um facto que, no nosso grupo, as parelhas se formaram em função da proximidade das áreas de trabalho. Por exemplo, numa das minhas viagens ao Cazaquistão, para inspeccionar o grande campo petrolífero de Kashagan, passei aqui pela Rússia e, a pedido do Howard, contratei pessoal para fazer medições climatéricas na Sibéria, onde as temperaturas, tal como na Antárctida, estão a subir mais do que a média planetária."
"Foi nessa altura que conheceste a Nadia."
"Ela contou-te?"
"Sim."
"É verdade, contratei-a na Universidade de Moscovo, com a ajuda de um professor russo amigo do Howard." Piscou o olho, numa tentativa de aligeirar a conversa. "É um belo naco, hem?"
Tomás quase corou.
"Sim, é engraçada."
"Já lhe puseste o dente em cima?"
"Quem, à Nadia?"
Filipe riu-se.
"Não, à Madre Teresa de Calcutá!", exclamou, irónico. "Claro que à Nadia, meu cretino."
"Porquê? Achas que devia?"
"Deves estar a brincar, Casanova. Se bem te conheço dos tempos do liceu, deves-lhe ter saltado em cima logo na primeira noite."
"Que disparate!"
"Eu conheço-te, Casanova. De ginjeira. E, a menos que alguma coisa tenha mudado, tenho a certeza que elas continuam a não resistir a esses teus olhos verdes e a essas falinhas mansas de pinga-amor."
Tomás fez uma expressão impaciente, de quem não estava a gostar do rumo 163
da conversa.
"Bem, já nos estamos a desviar do assunto", disse. Fechou o semblante, tentando redireccionar o tema. "Há uma coisa no meio de tudo isto que ainda não percebi."
"Diz."
"Por que razão vocês eram apenas quatro? Porque não alargaram o grupo, considerando a dimensão da tarefa?"
"Por uma questão de segurança."
"Segurança? Segurança em relação a quê?"
O amigo abanou a cabeça e sorriu sem vontade, quase com tristeza.
"Vê-se mesmo que não conheces os interesses que estão em jogo."
"Estás a falar de quê?"
"Estou a falar do maior negócio do mundo. O petróleo."
"O que tem ele?"
"O que achas que aconteceria quando as fabulosas fortunas e o imenso poder que são alimentados pelo petróleo descobrissem que havia uns palermas a fazer um trabalho que poderia pôr em causa a fonte dessas suas fortunas e desse seu poder?"
"Imagino que não ficariam satisfeitos."
"Pois, não ficariam satisfeitos, não. Isso parece-me certo."
"Mas o que tem isso de especial? Que eu saiba há milhares de cientistas em todo o mundo a estudar as alterações climáticas. É evidente que a indústria petrolífera não deve gostar muito disso, mas.... e depois? Se não gostam, paciência.
Não é por a indústria petrolífera não gostar que os cientistas deixam de fazer o seu trabalho, ou é?"
Filipe permaneceu um momento calado, como se ponderasse o que poderia dizer.
"Há coisas que tu não sabes sobre a nossa investigação."
"Como, por exemplo?"
O amigo remexeu-se na cadeira, desconfortável. A conversa entrava numa área perigosa.
"Deixa-me responder-te com uma outra pergunta", sugeriu. "O que fariam os homens que controlam o maior negócio do mundo se soubessem que esse seu negócio estava ameaçado de morte?"
Tomás considerou esta pergunta.
164
"Sei lá. O que fariam eles?"
Filipe inclinou-se na cadeira, os olhos comprimidos, as sobrancelhas carregadas.
"Chegámos ao ponto de partida."
"Qual ponto de partida?"
"O que vieste tu aqui fazer?"
"Eu? Já te disse, Filipe. Vim por causa da investigação à morte dos dois cientistas."
O amigo permaneceu um instante calado, à espera que esta observação se revelasse na íntegra.
"Então já respondeste à pergunta."
Tomás olhou-o, baralhado.
"Qual pergunta?"
"O que fariam os homens que controlam o maior negócio do mundo se soubessem que esse seu negócio estava ameaçado?"
"Sim, o que fariam eles?"
Filipe respirou fundo.
"Olha para o que aconteceu ao Howard e ao Blanco." Recostou-se na cadeira e contemplou o lago que desaparecia nas trevas siberianas, envolto na profunda sombra da noite, apenas se ouvia o suave marulhar das ondas a beijarem a praia.
"Tens aí a resposta."