XIX Volta ao lar

Sob um céu sombrio e ventoso, mourejamos todo o dia tentando encontrar na visão dos penhascos de Esherhoth uma razão de estímulo e encorajamento,, pois era a primeira coisa que víamos, em sete semanas, diferente de gelo, neve ou céu. Eles estavam assinalados no mapa como vizinhos aos pântanos de Shenshey, em direção sul e a leste da baía de Guthen. Mas este mapa da área do Gobrin não era de me­recer todo nosso crédito. E estávamos ficando extenuados.

Percebemos que estávamos mais próximos da região meridional da zona das geleiras, que o mapa indicava pelo reencontro do gelo comprimido e cheio de fissuras, no nosso segundo dia de rumo sul. O solo não estava tão convulsio­nado quanto na região das montanhas de Fogo, mas era péssimo também. Encontrávamos vastas áreas afundadas, provavelmente o leito de lagos no verão; falsos assoalhos de neve que poderiam se abrir sob os pés, como uma imensa goela, e nos tragar no bolsão de ar que ficava logo abaixo; áreas inteiras cheias de gretas e borbulhas; e cada vez mais freqüentes as grandes fissuras, velhos desfiladeiros abertos no gelo, alguns tão largos como as gargantas entre monta­nhas e outros de dois a três pés de largura, mas profundos. No odyrny nimmer (pelo diário de Estraven) o sol apareceu depois de um forte vento norte. Enquanto deslizávamos o trenó através de pontes de gelo, sobre estreitas fendas, tanto para a esquerda quanto para a direita, víamos abismos azu­lados nos quais pedras de gelo deslocadas pelos deslizadores caíam com uma sonoridade delicada, apagada, mas profun­da, como se agulhas de prata ressoassem em finas lâminas de cristal, batendo nelas ao cair.

Lembro-me bem do prazer dessa corrida, leve como um sonho, na manhã ensolarada sobre os abismos. Mas o céu começou a embranquecer, o ar tornou-se espesso; sombras desapareceram, também o azul do céu e da neve. Não estávamos preparados para o perigo da frente branca nessa superfície acidentada. Como o gelo estivesse pesadamente ondulado, eu estava empurrando enquanto Estraven puxava; eu tinha os olhos postos no trenó, minha mente concentrada nesse impulso quando, de repente, a barra como que se arrancou violentamente de minhas mãos que a agarravam firme­mente e o trenó correu veloz para a frente numa súbita investida. Agarrei-o por instinto e gritei: “Espere!”, para Estraven diminuir a marcha, pensando que ele acelerara ao encontrar um terreno fácil. Mas o trenó deteve-se subitamente, com uma forte inclinação para baixo na sua parte dianteira e Estraven não estava lá. Quase abandonei a barra de direção do trenó para ir procurá-lo. Foi pura sorte eu não o ter feito. Sustentei-o enquanto olhava estupidamente em torno, à sua procura, e foi assim que eu vi a borda de uma fenda, tornada visível pela queda de uma outra seção da ponte de gelo que se quebrara. Ele tinha caído direto, pelos pés, e nada iria impedir o trenó de segui-lo a não ser o meu peso, que sustentou firme a parte traseira dos deslizadores no gelo. Ele continuou deslizando para baixo pela força do peso de Estraven, que estava pendurado pelos arreios na boca do abismo.

Fiz toda a pressão que pude sobre a parte traseira do trenó, puxando, sacudindo violentamente e manobrando como alavanca para tirá-lo da borda do precipício. Ele não veio facilmente. Mas joguei todo o meu peso até que come­çou relutantemente a se mexer e então deslizou abrupta­mente da borda. Estraven tinha conseguido firmar suas mãos na borda do precipício e seu peso agora me ajudava. Agarrando-se com mãos e pés e puxado pelos arreios, ele chegou à borda da fissura e estatelou-se de cara no gelo. Ajoelhei-me ao seu lado, tentando desafivelar seus arreios, alarmado pela maneira como ele estava esparramado no chão, como morto, exceto pelo movimento de respiração opressa no seu peito. Seus lábios estavam cianóticos, e um dos lados do rosto arranhado e ferido.

Sentou-se afinal, desequilibrado ainda, e disse num fra­co sussurro:

— Tudo azul… azul… torres imensas lá embaixo.

— O quê?

— No abismo. Tudo azul — cheio de luz.

— Você está bem?

Procurou afivelar-se novamente.

— Você vai na frente… com uma corda… e uma bengala. — Ele ofegava. — Vá sondando o caminho.

Assim foi. Por algumas horas nos revezamos, um puxan­do e outro guiando, tateando o caminho como um gato sobre uma casca de ovo, percutindo o solo a cada passada a ser dada, com antecipação, com a bengala. Nesse ambiente de branco total não se podia ver uma fissura a não ser quando se estava em cima dela, olhando já para o fundo — e então seria tarde, pois as bordas eram íngremes e nem sempre fir­mes. Cada passada era uma surpresa, uma queda ou um so­lavanco. Nenhuma sombra. Uma esfera totalmente única, branca: nós nos movíamos no interior de uma imensa bola de vidro gelado. Nada dentro, nada fora. Mas havia racha­duras nesse vidro. Tatear e dar um passo. Tatear e dar um passo. Tatear em busca daquelas rachaduras invisíveis atra­vés das quais cairíamos, sempre, sempre, sempre… Uma tensão sem tréguas foi tomando, aos poucos, conta de todos os meus músculos. Tornou-se extremamente penoso dar um passo sequer.

— O que é que há, Genry?

Fiquei lá parado, no meio do nada. Lágrimas brotaram e congelaram minhas pálpebras, fechando-as.

— Tenho medo de cair.

— Mas você está amarrado na corda — disse ele. Veio à frente e vendo que não havia nenhuma fenda visível, per­cebeu o que se passava e disse:

— Armar acampamento.

— Não está na hora. Temos que continuar.

Mas ele já estava desamarrando a tenda. Mais tarde, após a refeição, disse: — Já era tempo de parar. Não creio que possamos continuar neste rumo. O gelo parece estar caindo em pedaços e estará sempre assim durante todo o percurso. Se pudéssemos ver, estaria bem. Mas não cegados pela brancura.

— Então como vamos chegar aos pântanos?

— Bem, se continuarmos rumo ao leste, em vez de ten­tar o sul, poderemos atingir um gelo em boas condições perto da baía de Guthen. Eu vi as geleiras uma vez no verão, de barco, na baía. Elas atingem as encostas das montanhas Vermelhas e vão alimentar os rios de gelo, abaixo, que vão até a baía. Se descêssemos uma dessas geleiras poderíamos dar uma corrida para o sul do mar de gelo até Karhide e assim entrar pelo litoral e não por terra, o que talvez seja melhor. Mas isto vai somar algumas milhas a mais -— aproximadamente entre vinte e cinqüenta, assim creio. Qual é a sua opinião, Genry?

— Minha opinião é que eu não posso dar mais vinte passos enquanto perdurar essa brancura total.

— E se conseguirmos sair dessa área de fendas?

— Bem, se sairmos dela está bem. E se o sol aparecer de novo, você senta no trenó e eu lhe faço uma corrida grátis até Karhide. — Isto era típico das nossas pobres ten­tativas de humor, nessa altura da caminhada; eram tolas mas conseguiam fazer-nos ri. — Não há nada errado comigo — falei —, exceto um medo agudo crônico.

— Medo é muito útil. Como escuridão, como sombra. — O seu sorriso era uma feia fenda, numa máscara escura, rachada e se despelando, recoberta com peles pretas e com duas pintas de rocha negras. — É estranho que a luz do dia não seja o bastante. Precisamos das sombras para poder caminhar.

— Dê-me aqui seu caderno de apontamentos. — Ele tinha anotado nossa caminhada do dia e feito cálculos de contagem de milhas e rações. Empurrou aquele bloco e seu lápis de carvão para mim. No reverso da capa, desenhei a curva dupla dentro do círculo e escureci a metade yin do símbolo; depois empurrei-lhe o caderninho de volta, per­guntando: -— Conhece esse sinal?

Olhou-o por muito tempo com um olhar estranho e retrucou: — Não.

— Ele é usado na Terra, em Hain e Chiffewar. É o yin e o yang. Luz é a mão esquerda da escuridão… Como diria? Luz, sombra. Medo, coragem. Frio, quente. Masculi­no, feminino. É como você, Therem. Ambos e um só. Uma sombra escura na neve branca.

No dia seguinte, tateamos nosso caminho para nordeste através dessa ausência branca de tudo, até que não encontramos mais nenhuma rachadura no solo — um dia inteiro de percurso. Estávamos a dois terços da ração, esperando cobrir a distância maior sem privação de alimento. Parecia-me que não importava muito se tal acontecesse, pois a dife­rença entre pouco e nada parecia muito sutil. Estraven, no entanto, estava na trilha do que chamava sua sorte, seguindo o que parecia ser a intuição ou premonição, mas que era mais experiência aplicada e raciocínio. Fomos na direção leste por quatro dias, quatro dos mais longos percursos que já fizéramos, de dezoito a vinte milhas por dia. Foi então que o tempo que se conservava parado no zero se alterou, e houve um rodopiar ininterrupto de partículas de neve em torno de nós, na frente, atrás, dos lados, nos olhos, uma tempestade começando enquanto a luz desaparecia. Ficamos três dias abrigados dentro da tenda enquanto a tempestade rugia lá fora, um longo uivo ininterrupto de pulmões que não respiravam.

— Isto vai me levar a gritar de novo — disse a Estraven, em conversação mental, e ele, com aquela formali­dade hesitante que marcava sempre esse tipo de entendi­mento: — Inútil, o vento não escutará.

Dormíamos horas seguidas, comíamos pouco, cuidáva­mos de nossas ulcerações produzidas pelo frio, inflamações e queimaduras, um pouco de conversa mental, e de novo sono. O lamento ininterrupto do vento foi morrendo aos poucos em uma espécie de murmúrio, depois em soluços, depois silêncio. O dia irrompeu. Através da válvula de abertura da porta, o brilho do céu penetrava. Aqueceu o coração embora estivéssemos muito deprimidos para sermos capazes de mostrar nosso alívio com alacridade ou expansão de movimentos. Desmontamos o acampamento — o que nos levou um par de horas, pois nos arrastávamos como dois velhos — e par­timos. O caminho era estrada abaixo, um inconfundível, leve declive — a crosta estava perfeita para esquiar. O sol bri­lhava. O termômetro, pelo meio da manhã, acusava dez graus abaixo de zero. Parecíamos adquirir forças à propor­ção que avançávamos, e o fazíamos de modo rápido e fácil. Andamos neste dia até as estrelas aparecerem no céu. Para jantar, Estraven nos regalou com uma ração completa. Na­quela média, teríamos o suficiente para mais sete dias.

— A roda da fortuna continua girando — disse ele com serenidade. — Para fazer uma boa marcha, temos que comer direito.

— Coma, beba e divirta-se — retruquei. O alimento tinha me levado a um estado de euforia. Ri-me exagerada­mente das minhas próprias palavras. — Tudo uma coisa só: comer, beber, divertir-se. Não se pode ser alegre sem comer, não é? — Isto me parecia um mistério quase igual ao do círculoyin-yang, mas não durou. Algo na expressão de Es­traven acabou com ela. Senti então vontade de chorar, mas consegui me dominar. Estraven não era tão forte quanto eu, e isto não era justo, ele iria chorar também. Mas já estava dormindo, adormecera sentado com a tigela no colo.

Não era muito próprio dele ser assim tão pouco metódico. Mas dormir era uma boa idéia.

Acordamos tarde na manhã seguinte. Fizemos uma re­feição dupla e nos pusemos nos arreios a puxar nosso trenó, agora leve, até a borda do mundo.

Para baixo dela, que era uma encosta muito íngreme, branca e vermelha, à luz pálida do meio-dia, estava à nossa vista a baía de Guthen: um mar congelado, de uma margem a outra e de Karhide até o pólo Norte.

Para descer até esse mar de gelo através de rebarbas partidas, saliências, plataformas e trincheiras de gelo que se conglomeravam entre as montanhas Vermelhas levamos aque­la tarde e o dia seguinte todo. No segundo dia abandonamos o trenó. Fizemos mochilas para carregar às costas; a tenda era o volume maior, que um de nós carregava, e os sacos de dormir o outro, sendo que as provisões estavam igualmente distribuídas. Tínhamos um peso menor que vinte e cinco libras para cada um carregar; acrescentei o fogareiro ao meu pacote. Era bom se livrar daquele infindável em­purrar e puxar, tropeçar e desembaraçar com dificuldade. Falei disso a Estraven, que relanceou o olhar para trás para o trenó abandonado, uma coisa indefesa naquele vasto tor­mento de gelo e rocha avermelhada.

— Trabalhou bem — disse ele. Sua lealdade se esten­dia, na mesma proporção, às coisas, às coisas pacientes, obsti­nadas, de confiança, que usamos e com que nos acostuma­mos por nos ajudarem a viver. Ele sentia falta do trenó.

Naquele anoitecer, o septuagésimo quinto de nossa jor­nada e o qüinquagésimo primeiro no platô,harhahad anner, abandonamos os gelos eternos do Gobrin pelo mar de gelo da baía de Guthen. Novamente viajamos muito tempo e até tarde, até escurecer. O ar era frio, mas claro e parado, e a superfície gelada, muito plana e sem trenó para arrastar, convidava a esquiar. Quando montamos nosso acampamento naquela noite era estranho pensar que, ali deitados, abaixo de nós, não havia mais milhas de gelo mas apenas uma camada de uns poucos pés e logo abaixo, água salgada. Mas não perdemos muito tempo pensando. Comemos e dormimos.

À aurora, novamente dia límpido, apesar de terrivel­mente frio, já a quarenta graus abaixo de zero ao nascer do sol; olhando na direção sul, podíamos ver o litoral, avolumando-se aqui e ali com línguas de gelo que se projetavam acima do horizonte e que iam caindo para o sul, até ficar quase uma linha horizontal. Seguimos perto da costa, no começo. Um vento norte nos favorecia até que alcançamos uma boca de vale entre duas montanhas alaranjadas; dessa garganta descia, uivando, um vendaval feroz que nos derru­bou no chão. Fugimos precipitadamente para leste, para a planície marítima, onde ao menos podíamos ficar em pé e continuar caminhando.

— Os gelos eternos do Gobrin estão nos cuspindo fora de sua boca! — exclamei.

No dia seguinte, a curva para leste do litoral estava livre, plana, à nossa frente. À nossa direita, Orgoreyn, mas aquela curva azulada adiante era Karhide.

Naquele dia acabamos com os últimos grãos de orsh e os restos do germe de kadik. Tínhamos agora para cada um duas libras de gichy-michy e seis onças de açúcar.

Não sei descrever esses últimos dias de nossa jornada muito bem porque, realmente, não consigo me lembrar deles com nitidez. A fome pode aguçar a percepção, mas não quando combinada com uma fadiga extrema; suponho que meus sentidos tenham ficado embotados. Lembro-me de ter tido câimbras de fome, mas não me lembro do sofrimento que sentia com elas. Sentia, sim, todo o tempo, um vago sentimento de liberação por haver ultrapassado um limite, e de alegria, além de uma terrível sonolência. Chegamos à terra firme no décimo segundo dia, posthe anner, e subimos com dificuldade para uma praia gelada e para dentro da desolação rochosa da costa de Guthen. Estávamos em Karhi­de. Tínhamos atingido nossa meta. Nossos estoques tinham acabado por completo. Fizemos um festival de água quente para comemorar a chegada. Na manhã seguinte, levantamo- nos para descobrir uma estrada qualquer, algum indício de habitação humana. Se havia alguma estrada, ela estava debaixo de uns dez pés de neve e talvez a tivéssemos cruzado várias vezes sem o saber. Não havia nenhum sinal de terra lavrada. Andamos vagueando de sul a oeste naquele dia e no dia seguinte. Ao entardecer deste, vimos uma luz bri­lhando numa colina distante através do escurecer quando caía uma neve fina. Calamo-nos por alguns instantes. Fi­camos parados, olhando. Afinal, meu companheiro falou, rouco:

— É uma luz?

Já era muito tarde da noite quando chegamos, camba­leando, a um vilarejo karhideano, uma rua só entre casas escuras, de tetos pontudos, a neve amontoada até a altura das suas portas de inverno. Paramos numa que parecia uma estalagem, e através de estreitas fendas das janelas filtra­va-se uma luz amarelada, a mesma que tínhamos visto da colina. Abrimos a porta e entramos.

Era odsordny anner, o octagésimo primeiro dia de nos­sa viagem; tínhamos gasto onze dias a mais do que o pre­visto por Estraven. Ele calculara com exatidão nosso supri­mento de alimentação: setenta e oito dias. Tínhamos feito oitocentas e quarenta milhas pelo marcador do trenó, mais um tanto por cálculo estimativo, dos últimos dias. Muitas dessas milhas tinham sido desperdiçadas em retrocessos, e se tivéssemos mesmo um percurso de oitocentas milhas a cobrir, talvez nunca pudéssemos levá-lo a termo; quando conseguimos um bom mapa vimos que a distância entre Pulefen e essa aldeia era de menos de setecentas e trinta milhas e todas essas milhas e dias gastos em percorrê-los tinham sido através de uma desolação inenarrável: rochas, gelo, céu e silêncio — nada mesmo, por oitenta e um dias, exceto nós dois.

Entramos numa sala grande, quente como uma estufa, iluminada fartamente e também cheia de comida e cheiro de comida, gente e vozes de gente. Segurei Estraven pelos ombros. Rostos estranhos se voltaram para nós, olhos estranhos. Eu me esquecera da existência de gente que não se parecia com Estraven. Fiquei horrorizado; na realidade era um cômodo bastante pequeno e a multidão era apenas de sete ou oito pessoas, que certamente ficaram tão surpresas quanto eu por uns instantes. Ninguém chega a Kurkurast em pleno inverno, vindo do norte, à noite. Contemplavam-nos interrogativamente e as vozes se calaram. Estraven falou, numa voz fracamente audível:

— Pedimos a hospitalidade do domínio.

Barulho, confusão, zunzum, alarme, boas-vindas.

— Viemos pelos gelos eternos do Gobrin.

Mais barulho, vozes, perguntas nos rodearam.

— Querem cuidar do meu amigo?

Pensei ter dito isso, mas foi Estraven que falou. Al­guém me fez sentar. Trouxeram-nos alimento; cuidaram de nós, aceitaram-nos, fizeram-nos sentir em casa.

Almas incultas, apaixonadas, rixentas, ignorantes — camponeses de uma terra pobre, sua generosidade trouxe um final nobre àquela áspera jornada. Davam com ambas as mãos. Nenhuma mesquinharia, nenhuma avareza. Sendo assim, Estraven recebia o que eles nos davam como um senhor entre senhores, ou um mendigo entre mendigos, um homem no meio de sua própria gente.

Para esses pescadores — aldeões, que vivem no extre­mo limite do que pode ser habitado, num continente quase no limite do habitável —, honestidade é tão importante quanto alimento. Têm que jogar limpo uns com os outros; não há o suficiente para permitir trapaças. Estraven sabia disto e quando, após dois dias, eles começaram a perguntar, discreta e indiretamente, com o devido respeito ao seu amor-próprio, por que nós escolhemos o inverno para ir aos gelos de Gobrin, ele replicou imediatamente.

— Silêncio não é o que eu gostaria de escolher e, no entanto, ele é melhor do que uma mentira.

— É bem sabido que homens respeitáveis podem ser postos fora da lei e, no entanto sua sombra não precisa se amesquinhar por esta razão — disse o cozinheiro da estalagem, que era o segundo em importância na aldeia, logo depois do chefe, e sua sala de refeições era uma espécie de salão de recepção para todos do domínio, na época do inverno.

— Uma pessoa pode ser um fora-da-lei em Karhide e a outra em Orgoreyn — disse Estraven.

— Certo, uma por seu clã e outra pelo rei em Erhenrang.

— O rei não pode reduzir o tamanho da sombra de um homem, embora possa tentar — retrucou Estraven, e o cozinheiro ficou satisfeito com a resposta. Se o próprio clã de Estraven o tivesse expulsado, ele seria considerado uma pessoa suspeita, mas as censuras reais tinham pouca impor­tância. Quanto a mim, evidentemente um estrangeiro, e sendo assim aquele que fora renegado por Orgoreyn, isto só pesava a meu favor.

Nunca dissemos nossos nomes aos hospedeiros em Kurkurast. Estraven tinha muita relutância em usar um nome falso, e nossos verdadeiros não podiam ser revelados. Era, afinal de contas, um crime dirigir a palavra a Estraven, quan­to mais abrigá-lo, vesti-lo e alimentá-lo como o estavam fazendo. Mesmo um vilarejo remoto do litoral de Guthen tem rádio e eles não podiam invocar ignorância da ordem de exílio; apenas a ignorância verdadeira da identidade do hóspede serviria, à guisa de desculpa. A sua vulnerabilidade pesava sobre a consciência de Estraven mesmo antes que ele pudesse considerá-la. Na nossa terceira noite, ele entrou no meu quarto para combinarmos a nossa próxima decisão.

Um vilarejo de Karhide é como um antigo castelo feu­dal na Terra; não possui moradias separadas. No entanto, nesses velhos edifícios dos lares, do comércio e dos codomínios (não havia um senhor de Kurkurast) e na casa dos estrangeiros, cada habitante dos quinhentos do local poderia ter privacidade e mesmo isolamento em quartos ao longo desses antigos corredores com paredes muito espessas. Cada um de nós recebera um quarto, no andar mais alto do lar. Eu estava sentado no meu, ao lado da lareira acesa, quei­mando uma turfa proveniente dos pântanos de Shenshey, turfa pequena e de aroma muito forte, quando Estraven entrou:

— Muito breve devemos sair daqui, Genry.

Lembro-me dele, lá em pé, nas sombras daquele quarto

iluminado apenas pelo fogo, pés descalços e usando apenas os calções que o chefe lhe dera. Na intimidade do seu lar, os karhideanos andam semi-vestidos ou mesmo nus. Na nossa viagem Estraven perdera toda aquela solidez compacta, ma­cia, que caracteriza fisicamente todos os gethenianos; estava macilento e cheio de cicatrizes, o rosto queimado pelo frio como se fosse por fogo. Ele era uma figura escura, áspera, e no entanto esquiva na luz fugaz e bruxuleante.

— Para onde?

— Sul e leste, acho melhor. Em direção à fronteira. Nossa primeira tarefa é descobrir um transmissor de rádio com potência bastante para alcançar sua nave. Após isto, tenho que descobrir um esconderijo ou então voltar para Orgoreyn por uns tempos, para evitar que qualquer punição caia sobre os que nos ajudaram aqui.

— Como você voltaria para Orgoreyn?

— Como fiz antes: cruzando a fronteira. Os orgotas não têm nada contra mim.

— Onde encontraremos um transmissor?

— Não antes de Sassinoth.

Recuei. Ele fez uma careta.

— Não existe nenhum mais perto?

— Cento e cinqüenta milhas mais ou menos, mas já fizemos mais em terreno pior. Há estradas por todo o cami­nho; as pessoas nos receberão. Podemos pegar uma carona num trenó elétrico.

Concordei mas fiquei deprimido à perspectiva de uma nova retomada de jornada no inverno, e esta não em direção a um abrigo, mas de volta àquela maldita fronteira de onde Estraven poderia retornar ao exílio, deixando-me só.

Fiquei cismando sobre o assunto e disse finalmente:

— Há uma condição que Karhide tem que cumprir antes de se juntar aos ecúmenos. Argaven tem que revogar seu banimento.

Ele não disse nada, ficou contemplando o fogo.

— Estou falando sério — insisti. — Primeiro as coisas mais importantes.

— Agradeço-lhe, Genry — falou. Sua voz quando fa­lava suavemente como agora tinha muito de um timbre femi­nino, rouca e pouco vibrante. Olhou-me com gentileza, sem sorrir. — Mas eu não esperava rever meu lar por muito tempo ainda. Tenho estado exilado há vinte anos, você sabe. Este banimento não é muito diferente. Cuidarei de mim, você cuide de você e do seu Conselho Ecumênico. Isto você tem que fazer sozinho. Mas ainda é muito cedo para falar nisso. Diga para sua nave baixar! Quando isto estiver feito, então pensarei no que vem depois.

Ficamos ainda dois dias em Kurkurast, alimentando-nos bem e repousando, esperando por um veículo compressor de neve que estava sendo esperado do sul e que nos daria uma carona quando voltasse. Nossos hospedeiros consegui­ram que Estraven lhes contasse toda a nossa aventura ao cruzar os gelos. Ele contou como só o sabe contar uma pessoa ligada à tradição da literatura falada; e é assim que ela se torna uma saga, cheia de locuções tradicionais e epi­sódios, e no entanto exatos e vividos, desde o fogo sulfuroso e o passo escuro entre o Drumner e o Dremegole, até as rajadas ululantes do vento que soprava entre as aberturas das montanhas na baía de Guthen; com intervalos cômicos como sua queda na fenda até as experiências místicas quan­do ele falou dos sons e dos silêncios do gelo, e de quando o tempo e as coisas não tinham sombras ou das trevas pro­fundas da noite. Eu escutava, tão fascinado quanto os de­mais, meu olhar sem se desviar do rosto sombrio do meu amigo.

Saímos de Kurkurast apertados os três dentro da ca­bine do compressor de neve, um desses grandes veículos movidos a eletricidade que esmaga e comprime contra o solo a neve acumulada nas estradas de Karhide, o principal meio de conservar as estradas abertas no inverno, pois tentar conservá-las retirando a neve e jogando para o lado tomaria todo o tempo e o dinheiro do reino, e além do mais todo o tráfego, pelo menos no inverno, é feito na base de lâminas como patins colocadas sob os veículos. O compressor trabalha numa média de duas milhas por hora, e assim chega­mos na próxima aldeia ao sul de Kurkurast após o anoitecer. Aí, como sempre, fomos bem recebidos, alimentados e abri­gados pela noite. No dia seguinte, caminhamos a pé, íamos agora em direção à terra das montanhas costeiras que rece­bem o impacto do vento norte que desce na baía de Guthen, e já numa região mais povoada, e assim seguíamos de lar em lar. De vez em quando pegávamos uma carona num trenó elétrico, uma vez até por trinta milhas. As estradas, embora nevadas caíssem freqüentemente, estavam bem duras e demarcadas. Havia sempre alimentos na nossa mochila, colocados pelos nossos hospedeiros da noite anterior; havia sempre um teto e fogo para nos abrigar e aquecer ao fim de um dia de andança.

Entretanto, esses nove dias de fácil percurso nos esquis através de uma terra hospitaleira foram os mais duros e melancólicos da nossa jornada, piores que a subida das geleiras, piores que os últimos dias de fome. A saga se acabara, pertencia ao gelo e ao passado. Estávamos muito cansados. Seguíamos em direção errada, não havia mais alegria nos nossos corações.

“Algumas vezes temos que ir contra o movimento da roda”, era a opinião de Estraven. Ele continuava na mesma firmeza, mas pela sua voz, andar, comportamento, o vigor fora substituído pela paciência, e certamente por decisão obstinada. Ele estava muito silencioso, não queria conversa mental comigo.

Chegamos a Sassinoth. Uma cidade de alguns milhares de almas, empoleirada nas vertentes montanhosas que do­minam o Ey gelado: brancos tetos, paredes cinza, monta­nhas com manchas escuras das florestas e formações rocho­sas protuberantes, campos e rios brancos; através do rio, o disputado vale do Sino th, todo branco…

Chegamos lá quase de mãos vazias. Fôramos deixando a maior parte do nosso equipamento de viagem nas mãos de nossos generosos hospedeiros e agora só tínhamos o foga­reiro Chabe, nossos esquis e as roupas que usávamos. Assim, aliviados de carga, procuramos nosso rumo, perguntando a direção a uma porção de pessoas, não da cidade, mas de uma fazenda nos arredores. Era um lugar pobre, não fazia parte de nenhum domínio, mas estava sob a administração do vale. Quando Estraven era um jovem secretário naquela administração, fizera amizade com o proprietário, e na reali­dade comprara aquela fazenda para o atual proprietário há um ano ou dois, quando estava ajudando o povo a se esta­belecer a leste do Ey com a esperança de acalmar a dispu­ta sobre a propriedade do vale. O fazendeiro, ele próprio, abriu-nos a porta; era um robusto homem de fala macia, da idade de Estraven. Seu nome era Thessicher.

Estraven caminhara nesta região com o capuz abaixado, cobrindo as feições. Ele temia que o reconhecessem; mas isto era precaução desnecessária; quem iria se dar ao traba­lho de reconhecer Harth rem ir Estraven nessa figura mal­trapilha, magra e abatida? Thessicher ficou ali olhando des­confiado, incapaz de acreditar que ele era quem dizia ser.

Levou-nos para dentro e sua hospitalidade estava à altu­ra do padrão que recebêramos, embora fosse de poucos re­cursos. Mas ele se sentia sem jeito conosco, preferiria não nos ter ali. Era compreensível, ele estava arriscando o con­fisco de sua propriedade pelo crime de nos ter abrigado. Mas como ele devia esta propriedade a uma generosidade de Estraven e poderia agora estar tão necessitado quanto nós, se ele não o tivesse ajudado então, não parecia desleal pe­dir-lhe para correr um certo risco, em troco. Meu amigo, no entanto, pedia seu auxílio não como uma retribuição de favor, mas como amizade, não contando com o seu dever, e sim com o seu afeto. Na verdade, Thessicher se acalmou após passar a sua primeira reação de alarme e, com aquela volubilidade de karhideano, tornou-se exuberante e nostál­gico, relembrando os velhos tempos e velhas amizades com Estraven ao lado do fogo durante parte da noite. Quando Estraven lhe perguntou sobre um local de esconderijo, alguma fazenda abandonada ou isolada onde um homem banido pu­desse ficar por um mês ou dois à espera da revogação da ordem de exílio, Thessicher retrucou imediatamente: “Fique aqui”.

O olhar de Estraven se iluminou ao ouvir isto, mas ponderou; e concordando em que ele não estaria muito em segurança tão perto de Sassinoth, Thessicher prometeu-lhe encontrar um esconderijo. Não seria difícil, falou, se Estra­ven tomasse um nome falso e trabalhasse como cozinheiro ou ajudante de fazenda; o que não seria agradável, mas certamente melhor do que voltar a Orgoreyn.

— Que diabo vai fazer em Orgoreyn? Vai viver de quê, lá?

— À custa da comensalidade — replicou meu amigo, com um vestígio daquele seu sorriso de lontra. — Eles dão trabalho a todos nas unidades, você sabe. Não há problcmn

Mas eu preferiria ficar em Karhide… se você acha real­mente que se pode dar um jeito…

Tínhamos guardado o fogareiro Chabe, a única coisa de valor em nosso poder; ele sempre nos serviu até o fim da jornada. Na manhã seguinte à nossa chegada na fazenda, apanhei o fogareiro e esquiei para a cidade.

Estraven, naturalmente, não veio comigo, mas me expli­cara o que tinha que fazer, e tudo correu bem. Vendi o foga­reiro no comércio local, depois apanhei a boa quantia de dinheiro apurada, dirigi-me à escola profissional onde a esta­ção de rádio estava instalada, e comprei dez minutos de “transmissão privada a recepção privada”. Todas as estações separam uma parte de seu horário diário para tais transmis­sões de ondas curtas, e a maior parte dele é utilizada pelos mercadores comunicando-se com seus agentes além-mar ou fregueses no Arquipélago, Sith ou Perunter, pois o custo é bem elevado, embora não seja absurdo. Menor que o custo de um fogareiro de segunda mão. Meus dez minutos seriam logo na 3.a hora, na parte da tarde. Eu não queria ficar esquiando de ida e volta para a fazenda de Thessicher duran­te todo o dia; por isso permaneci em Sassinoth e comprei um almoço farto, bom e barato numa das casas de pratos pron­tos. Sem dúvida a cozinha de Karhide era melhor do que a orgota. Enquanto comia, lembrei-me do comentário de Es­traven quando lhe perguntei se detestava Orgoreyn; lembrei- me de sua voz, na noite anterior, dizendo da maneira mais amena possível: “Eu preferia ficar em Karhide…” e me perguntei, não pela primeira vez, o que é patriotismo, em que consiste o amor à pátria, aquela lealdade cheia de ternu­ra que tinha despertado enternecimento na voz embargada do meu amigo, e quanto esse amor tão real pode se converter freqüentemente num fanatismo tolo e vil. Quando ele começa a se tornar nocivo?

Após o almoço, fiquei perambulando por Sassinoth. Os negócios da cidade permaneciam ativos, lojas, mercados, ruas cheias de vida, e apesar das nevadas e da temperatura a zero, tinham um aspecto irreal, como de uma peça de teatro. Eu ainda não voltara, no meu âmago, da solidão dos gelos. Sen­tia-me deslocado entre estranhos e sentia a falta da presença de Estraven ao meu lado.

Subi a rua íngreme recoberta de neve até a escola e fui introduzido na sala de rádio, onde me ensinaram a operar no transmissor de uso público. Na hora marcada enviei o sinal de “acordar” ao satélite de retransmissão que estava em ór­bita, estacionado a cerca de trezentas milhas acima de Karhide meridional. Estava lá para dar segurança numa situação destas, pois o audisível tinha desaparecido e assim eu não poderia me comunicar com Ollul para entrar em contato com a nave, e eu não tinha nem tempo nem equipamento para fazer o contato direto com a nave em órbita solar. O trans­missor de Sassinoth era mais do que adequado, mas o satéli­te não estava equipado para responder nada, só poderia en­viar a mensagem à nave. Não havia nada a fazer além de enviá-la e aguardar. Não tinha meios de saber se a mensagem fora recebida e retransmitida à nave. Não sabia se tinha feito tudo certo. Mas chegara ao estado de aceitação de todas es­sas incertezas com o coração calmo.

Quando saí, vi que tinha nevado fortemente e que seria melhor passar a noite na cidade, pois não conhecia bem as estradas para me aventurar nelas na neve e no escuro. Tendo ainda umas sobras de dinheiro, procurei uma hospedaria, mas insistiram em que fosse para o colégio; lá jantei com um bando de estudantes cheios de vida, e passei a noite num dos dormitórios. Adormeci com uma agradável sensação de segurança, provinda dessa extraordinária e infalível bondade de Karhide para com os estrangeiros. Eu viera para o país certo, logo de início, e estava de volta a ele. Mergulhado nesses pensamentos adormeci; mas acordei muito cedo e segui para a fazenda de Thessicher antes da primeira refeição, tendo passado uma noite inquieta, cheia de sonhos e sobressaltos.

O sol nascente era pequeno e de cor fria num céu vivo, e projetava sombras de cada saliência ou rachadura na neve. A estrada estava toda estriada com claros e escuros. Ninguém se movia em todos aqueles campos de neve, mas bem distan­te um pequeno vulto vinha em minha direção com aquele meneio característico e suavemente veloz de um esquiador. Muito antes de vê-lo com nitidez, reconheci Estraven.

— O que há, Therem?

— Tenho que alcançar a fronteira — disse-me sem se­quer parar quando nos cruzamos. Ele já estava sem fôlego. Fiz meia-volta e ambos seguimos para oeste, eu com dificul­dade em acompanhar sua velocidade. Onde a estrada se en­curvava para entrar em Sassinoth, ele a abandonou, esquian­do através dos campos sem cercas. Cruzamos o Ey congelado uma milha mais ou menos ao norte da cidade. As margens eram íngremes, e no fim da escalada ambos tivemos que pa­rar e descansar. Não estávamos ainda em condições para esta espécie de corrida.

— O que aconteceu? Thessicher…?

— Sim. Ouvi-o no seu rádio. Ao nascer do sol. Denunciou-me. — Seu peito arfava como quando ele estivera joga­do no chão ao sair do abismo. — Tibe deve ter posto minha cabeça a prêmio.

— Aquele maldito traidor ingrato! — murmurei, ga­guejando, não querendo me referir a Tibe, mas a Thessicher, cuja traição era cruel por ser de um amigo.

— Ele é isso — disse Estraven —, mas eu pedi dema­siado dele, exigi muito de um pobre de espírito. Escute, Genry. Volte para Sassinoth.

— Vou acompanhá-lo pelo menos até a fronteira, Therem.

— Deve haver guardas orgotas lá.

— Ficarei deste lado. Pelo amor de Deus…

Ele sorriu. Ainda respirando com muita dificuldade, levantou-se e continuou, e eu com ele.

Esquiamos através de pequenos bosques cobertos de geada e sobre as elevações e campos do vale em disputa. Não havia como esconder-se, nem esgueirar-se… Um céu banha­do de sol, um mundo branco e duas pinceladas de sombras nele, fugindo. Um solo irregular escondia-nos a fronteira até que chegamos a cerca de oito milhas dela; então vimo-la in­teira, delimitada por uma cerca, apenas uma parte das estacas emergindo na neve e o topo delas pintado de vermelho. Não havia guardas visíveis no lado orgota. No nosso lado havia rastros de esqui e para o sul pequenas figuras se movendo.

— Há guardas neste lado. Você vai ter que esperar até o escurecer, Therem.

— São os inspetores de Tibe — ele ofegava e sua voz era amarga. Girou para o lado, e disparamos para trás da pequena elevação em que já tínhamos subido, procurando a proteção mais próxima. Lá passamos o longo dia, numa vale­ta entre as árvores dehemmen, seus galhos avermelhados bem baixos em torno de nós, vergados ao peso da neve. Dis­cutimos muitos planos de ir ou para o norte ou para o sul da fronteira, para ficarmos livres desta zona muito conturbada, ou tentar ultrapassar as montanhas a leste de Sassinoth, e até mesmo de voltar para o norte do país, na zona quase desérti­ca — mas cada idéia tinha que ser posta de lado. A presença de Estraven já tinha sido denunciada e não poderíamos mais andar por Karhide às claras, como tínhamos feito até então. Nem poderíamos viajar mais secretamente por longas distân­cias, pois não tínhamos tenda, nem alimento nem muita força. Nada restava a não ser uma escapada fulminante através da fronteira, ali defronte.

Ficamos escondidos naquele buraco escuro, sob árvores sombrias e bem próximos um do outro para não desperdiçarmos o calor do corpo. Lá pelo meio-dia, Estraven cochilou um pouco, mas eu estava com muito frio e fome para poder dormir; fiquei deitado ali, numa espécie de estupor, tentando me lembrar das palavras que ele me citara uma vez: “Dois são um só, vida e morte jazendo contíguas”. Era como quan­do estávamos no interior da tenda, nos gelos — mas agora sem abrigo, sem alimento, sem calor; nada mais restava a não ser nosso companheirismo, e isto logo ia acabar.

O céu se encobriu de tarde e a temperatura começou a cair. Mesmo naquela toca, estava muito frio para se ficar imóvel. Tínhamos que marchar em volta e mesmo assim, ao escurecer, fui tomado de uma crise de tremores como a que sentira no caminhão-prisão a caminho de Pulefen. A escuri­dão parecia levar séculos para chegar. No tardio crepúsculo azulado abandonamos a valeta e rastejamos atrás de árvores e moitas até podermos distinguir a cerca da fronteira, uns pá­lidos pingos avermelhados salpicando a neve. Nenhuma luz, nem som ou movimento. Da direção sul, bem distante, vinha o difuso clarão de uma cidadezinha, alguma minúscula vila de Orgoreyn para onde Estraven poderia se dirigir com seus documentos de identificação quase inaceitáveis e ter assegurada pelo menos uma noite na prisão da comensalidade ou talvez na próxima fazenda voluntária. De repente, só neste último instante, vi o que meu egoísmo e o silêncio de Estraven tinham me ocultado: para onde ele estava indo e o que o aguardava. — Therem, espere!

Mas ele já se despencara, voando colina abaixo: um es­quiador esplêndido e veloz e desta vez sem me ter como em­pecilho. Disparou numa longa e rápida descida encurvada, fugia de mim e ia direto para os guardas armados da fron­teira. Creio ter ouvido gritos de aviso ou ordens de parar, e uma luz se acendeu em algum lugar, não estou certo; de qualquer forma, ele não parou e partiu como um raio em direção à cerca, e eles o derrubaram quando a atingiu! Não usavam a pistola sônica, mas as espingardas de caça, antiga arma que explode fragmentos de metal num disparo. Atira­ram para matar. Estava morrendo quando o alcancei, espar­ramado no chão e sem os esquis, fincados na neve, o peito estraçalhado pelos tiros. Segurei-lhe a cabeça e chamei por ele, mas não me respondeu; apenas saindo do tumulto e da desagregação de sua mente, quando penetrava na inconsciên­cia, emitiu claramente e uma só vez: “Arek!” Dessa forma, fundiu-nos ambos no mesmo amor. Então silenciou para sempre. Continuei segurando-o, ajoelhado ali na neve, en­quanto morria. Deixaram-me ficar ali com ele. Depois me ergueram, levaram-me numa direção, ele em outra, eu para a prisão, ele para as trevas.

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