Estava desenterrando legumes no jardim de um morto quando ouviu a cantoria.
Arya retesou-se, quieta como pedra, escutando, subitamente esquecida das três cenouras fibrosas que tinha na mão. Pensou nos Saltimbancos Sangrentos e nos homens de Roose Bolton, e um arrepio de medo correu por sua espinha. Não é justo, quando finalmente encontramos o Tridente, quando pensávamos que estávamos quase a salvo.
Mas por que os Saltimbancos estariam cantando?
A canção pairava sobre o rio, vinda de algum lugar para lá da pequena elevação que havia a leste.
– Vou à Vila Gaivota ver a bela donzela, ei-ou, ei-ou...
Arya levantou-se, com as cenouras penduradas na mão. Soava como se o cantor viesse ao longo da estrada que ladeava o rio. No meio das couves, Torta Quente também o ouviu, julgando pela expressão que tinha no rosto. Gendry fora dormir à sombra do chalé incendiado, e não estava em estado de ouvir qualquer coisa.
– Co’a ponta da espada roubarei um beijo dela, ei-ou, ei-ou. – parecia ouvir também uma harpa, ao fundo do suave rumorejar do rio.
– Está ouvindo? – perguntou Torta Quente num sussurro rouco, enquanto se abraçava a um monte de couves. – Alguém está vindo.
– Vá acordar Gendry – disse-lhe Arya. – Sacuda-o só pelo ombro, não faça muito barulho. – Gendry era fácil de acordar, ao contrário do Torta Quente, que precisava levar pontapés e ouvir gritos.
– Será o meu amor, descansando sob a tela, ei-ou, ei-ou. – A canção tornava-se mais alta a cada palavra.
Torta Quente abriu os braços. As couves caíram ao chão com ruídos surdos e suaves.
– Temos de nos esconder.
Onde? O chalé incendiado e seu jardim descuidado ficavam bem ao lado das margens do Tridente. Havia alguns salgueiros crescendo ao longo do rio, e grupos de caniços nos baixios lamacentos atrás deles, mas a maior parte do terreno ao redor era dolorosamente aberta. Eu sabia que nunca deveríamos ter saído da floresta, pensou ela. Mas tinham tanta fome, e o jardim era uma tentação tão grande. O pão e o queijo que tinham roubado de Harrenhal acabara seis dias antes, quando eles se encontravam no meio da floresta.
– Leve Gendry e os cavalos para trás do chalé – decidiu. Lá ainda havia parte de uma parede que permanecia em pé, suficientemente grande, talvez, para esconder dois rapazes e três cavalos. Se os cavalos não relincharem, e aquele cantor não vier meter o nariz no jardim.
– E você?
– Eu me escondo ao pé da árvore. Ele provavelmente vem sozinho. Se me incomodar, mato-o. Vá!
Torta Quente partiu, e Arya largou as cenouras e puxou a espada roubada por sobre o ombro. Tinha prendido a bainha nas costas; a espada fora forjada para um adulto, e batia no chão quando ela a usava na cintura. Além disso é pesada demais, pensou, sentindo falta da Agulha, como acontecia sempre que pegava naquela coisa desajeitada. Mas era uma espada, e podia matar com ela, isso bastava.
Ligeira, correu para o grande e velho salgueiro que crescia ao lado da curva da estrada e caiu sobre um joelho entre a grama e a lama, no interior do véu de ramos que roçavam o chão. Oh, velhos deuses, rezou enquanto a voz do cantor se tornava mais forte, oh, deuses das árvores, escondam-me, e façam com que passem por mim. Então, um cavalo relinchou e a voz interrompeu-se subitamente. Ele ouviu, compreendeu, mas talvez esteja sozinho, ou, se não estiver, talvez tenham tanto medo de nós como nós temos deles.
– Ouviu aquilo? – disse uma voz de homem. – Parece que há alguma coisa atrás daquela parede.
– Sim – respondeu uma segunda voz, mais grave. – O que acha que pode ser, Arqueiro?
Então são dois. Arya mordeu o lábio. Não conseguia vê-los de onde estava ajoelhada, por causa do salgueiro. Mas conseguia ouvir.
– Um urso. – Uma terceira voz, ou a primeira outra vez?
– Um monte de carne num urso – disse a voz grave. – Um monte de gordura também, no Outono. Boa para comer, se for bem cozida.
– Poderia ser um lobo. Talvez um leão.
– Você acha que com quatro patas? Ou com duas?
– Não importa. Importa?
– Que eu saiba, não. Arqueiro, o que pretende fazer com todas essas flechas?
– Lançar umas tantas atrás daquela parede. Seja o que for que está escondido ali, vai sair bem depressa, espere e verá.
– Mas e se for algum homem honesto que está ali? Ou uma pobre mulher com um bebezinho de peito?
– Um homem honesto sairia e mostraria a cara. Só um fora da lei fugiria e se esconderia.
– Bem, é verdade. Então mande lá as suas flechas.
Arya ficou em pé de um salto.
– Não! – mostrou-lhes a espada. Viu que eram três. Só três. Syrio podia lutar com mais de três, e ela talvez tivesse Torta Quente e Gendry para lutar com ela. Mas eles são garotos, e estes são homens.
Eram homens a pé, sujos da viagem e salpicados de lama. Identificou o cantor pela harpa que embalava contra o gibão, como uma mãe embalaria um bebê. Um homem pequeno, de uns cinquenta anos, tinha a boca grande, o nariz marcante e cabelos castanhos que já rareavam. Suas roupas, de um verde desbotado, estavam consertadas aqui e ali com remendos de couro velho, e trazia na cintura um molho de facas de arremessar e, a tiracolo, um machado de lenhador.
O homem que seguia a seu lado era uns bons trinta centímetros mais alto, e parecia um soldado. De seu cinto de couro com rebites pendia uma espada longa e um punhal, fileiras de anéis de aço sobrepostos estavam costuradas em sua camisa, e sua cabeça estava coberta por um meio elmo de ferro negro em forma de cone. Tinha dentes estragados e uma cerrada barba castanha, mas era o manto amarelo com capuz que chamava a atenção. Grosso e pesado, manchado aqui por mato e ali por sangue, puído ao longo da bainha e remendado com pele de veado no ombro direito, o manto dava ao homem o aspecto de um enorme pássaro amarelo.
O último dos três era um jovem tão esguio como o seu arco, embora não fosse tão alto. Ruivo e sardento, usava uma brigantina com rebites, botas de cano alto, luvas de couro sem dedos e uma aljava a tiracolo. As penas de suas flechas eram de ganso cinza, e seis delas estavam espetadas no chão à sua frente, como uma pequena cerca.
Os três homens olharam-na, ali, em pé, no meio da estrada, de espada na mão. Então o cantor tocou uma corda num gesto indolente.
– Menino – disse –, abaixe já essa espada se não quiser se machucar. É grande demais para você, garoto, e além disso o Anguy aqui conseguiria atravessá-lo com três flechas antes de você pensar em nos alcançar.
– Não conseguiria nada – disse Arya –, e eu sou uma menina.
– Ah, e não é que é verdade? – o cantor fez uma reverência. – As minhas desculpas.
– Continue pela estrada afora. Limite-se a andar adiante e continue a cantar, para que saibamos onde está. Vá embora e deixe-nos em paz, e eu não os mato.
O arqueiro sardento soltou uma gargalhada.
– Limo, ela não nos mata, ouviu?
– Ouvi – disse Limo, o soldado grande com a voz grave.
– Filha – disse o cantor –, abaixe essa espada, que nós levamos você para um lugar melhor e colocamos alguma comida nessa barriga. Há lobos por esses lados, e também leões, e coisas piores. Não é lugar para uma menininha ficar vagueando sozinha.
– Ela não está sozinha. – Gendry saiu a cavalo de trás da parede do chalé, e Torta Quente veio atrás, trazendo o cavalo de Arya pela arreata. Vestindo a cota de malha e com uma espada na mão, Gendry quase parecia um homem-feito, e perigoso. Torta Quente parecia Torta Quente. – Faça o que ela diz, e deixe-nos em paz – preveniu Gendry.
– Dois e três – contou o cantor – e é só isso? E também cavalos, lindos cavalos. Onde foi que os roubaram?
– São nossos. – Arya observou-os cuidadosamente. O cantor tentava distraí-la com a sua conversa, mas o perigo estava no arqueiro. Se ele arrancar uma flecha do chão...
– Vão nos dizer seus nomes como homens honestos? – perguntou o cantor aos rapazes.
– Sou o Torta Quente – disse o Torta Quente de imediato.
– Ora, e que bom para você. – O homem sorriu. – Não é todos os dias que conheço um garoto com um nome tão saboroso. E como se chamam os seus amigos, Costeleta de Carneiro e Pombinha?
Gendry franziu a testa de cima de sua sela.
– Por que devo lhe dizer o meu nome? Ainda não ouvi o seu.
– Bom, não seja por isso, sou Tom de Seterrios, mas todos me chamam de Tom Sete-Cordas, ou então Tom das Sete. Este grande grosseirão com dentes marrons é o Limo, abreviatura de Manto Limão. Ele é amarelo, está vendo, e o Limo é um cara amargo. E este jovem rapaz aqui é Anguy, ou Arqueiro, como gostamos de chamá-lo.
– E agora, quem são vocês? – exigiu saber o Limo, na voz grave que Arya tinha ouvido através dos ramos do salgueiro.
Ela não ia revelar seu verdadeiro nome assim tão facilmente.
– Se quiser que seja Pombinha, sou Pombinha – disse. – Não me importo.
O grandalhão soltou uma gargalhada.
– Uma pombinha com uma espada – disse. – Ora, eis uma coisa que não se vê todos os dias.
– Eu sou o Touro – disse Gendry, imitando Arya. Não podia censurá-lo por preferir Touro a Costeleta de Carneiro.
Tom Sete-Cordas arrancou um acorde da harpa.
– Torta Quente, Pombinha e Touro. Fugidos da cozinha de Lorde Bolton, não?
– Como sabe? – quis saber Arya, inquieta.
– Tem o símbolo dele no peito, pequena.
Havia se esquecido disso por um instante. Sob o manto, ainda usava o gibão de pajem, com o homem esfolado do Forte do Pavor cosido no peito.
– Não me chame de pequena!
– Por que não? – disse Limo. – É bastante pequena.
– Sou maior do que era. Não sou uma criança. – As crianças não matam gente, e ela já havia feito isso.
– Já tinha percebido, Pombinha. Nenhum de vocês é criança, não se pertenciam a Bolton.
– Nunca fomos dele. – Torta Quente nunca sabia quando devia ficar calado. – Estávamos em Harrenhal antes de ele chegar, só isso.
– Então são filhotes de leão, é isso? – perguntou Tom.
– Também não. Não somos de ninguém. E vocês, são de quem?
Anguy, o Arqueiro, disse:
– Somos homens do rei.
Arya franziu a testa.
– Qual deles?
– O Rei Robert – disse Limo, com seu manto amarelo.
– Aquele velho bêbado? – perguntou Gendry em tom de escárnio. – Está morto, um javali qualquer matou-o, todo mundo sabe disso.
– Bem, rapaz – disse Tom Sete-Cordas –, e é uma pena. – Fez soar um acorde triste na harpa.
Arya não achava nem um pouco que eles fossem mesmo homens do rei. Pareciam-se mais com fora da lei, todos andrajosos e esfarrapados. Nem sequer tinham cavalos para montar. Homens do rei teriam cavalos.
Mas Torta Quente interveio ansiosamente.
– Andamos à procura de Correrrio – disse ele. – A quantos dias de viagem fica, vocês sabem?
Arya sentiu-se capaz de matá-lo.
– Cale-se, senão encho essa sua grande boca estúpida de pedras.
– Correrrio fica a uma longa distância para montante – disse Tom. – A uma distância longa e faminta. Não querem uma refeição quente antes de seguirem caminho? Há uma estalagem ali adiante, não muito longe, que é de uns amigos nossos. Podíamos dividir umas cervejas e um pouco de pão, em vez de lutar uns com os outros.
– Uma estalagem? – pensar em comida quente fez a barriga de Arya trovejar, mas não confiava naquele Tom. Nem todo mundo que nos falava de forma amistosa era realmente nosso amigo. – Fica perto, você diz?
– Três quilômetros a montante – disse Tom. – Uma légua, no máximo.
Gendry parecia tão incerto quanto ela.
– O que quer dizer com amigos? – perguntou ele com cautela.
– Amigos. Esqueceu-se do que são amigos?
– O nome da estalajadeira é Sharna – interveio Tom. – Tem uma língua afiada e um olho feroz, admito, mas o coração é bom e gosta de menininhas.
– Eu não sou uma menininha – disse Arya, zangada. – Quem mais está lá? Você disse amigos.
– O marido de Sharna, e um garoto órfão que eles acolheram. Não lhe farão mal. Há cerveja, se achar que já tem idade. Pão fresco e talvez um pouco de carne. – Tom olhou de relance para o chalé. – E mais o que quer que tenham roubado do jardim do Velho Pate.
– Não roubamos nada – disse Arya.
– Então será que é filha do Velho Pate? Uma irmã? Uma esposa? Não minta para mim, Pombinha. Fui eu mesmo quem enterrou o Velho Pate, bem ali, debaixo daquele salgueiro onde estava escondida, e você não se parece com ele. – Arrancou da harpa um som triste. – Enterramos muitos bons homens neste último ano, mas não queremos enterrar você, juro pela minha harpa. Arqueiro, mostre-lhe.
A mão do arqueiro moveu-se mais depressa do que Arya julgaria possível. A flecha passou por sua cabeça assobiando, a dois centímetros de sua orelha, e foi se enterrar no tronco do salgueiro, que ficava atrás. Nesse momento, o arqueiro já tinha uma segunda flecha encaixada e a corda puxada. Antes Arya achava que entendia o que Syrio queria dizer com rápida como uma cobra e suave como seda de verão, mas agora sabia que não. A flecha zumbiu atrás dela como uma abelha.
– Errou – disse.
– Tola é você se acha isso – disse Anguy. – Elas vão para onde as mando.
– E vão mesmo – concordou Limo Manto Limão.
Havia uma dúzia de passos entre o arqueiro e a ponta da espada dela. Não temos escolha, compreendeu Arya, desejando ter um arco como o dele, e a perícia para usá-lo. Sombriamente, baixou a pesada espada até a ponta tocar o chão.
– Vamos ver essa estalagem – admitiu, tentando esconder a dúvida que tinha no coração atrás de palavras ousadas. – Caminhem em nossa frente e nós seguiremos atrás a cavalo, para podermos ver o que estão fazendo.
Tom Sete-Cordas fez uma profunda reverência e disse:
– À frente, atrás, não faz diferença. Venham, rapazes, vamos mostrar-lhes o caminho. Anguy, é melhor guardar essas flechas, não vamos precisar delas aqui.
Arya embainhou a espada e atravessou a estrada até onde os amigos estavam a cavalo, mantendo distância dos três estranhos.
– Torta Quente, pegue essas couves – disse enquanto saltava para a sela. – E as cenouras também.
Por uma vez, ele não discutiu. Puseram-se a caminho como ela quis, avançando lentamente com os cavalos ao longo da estrada sulcada, uma dúzia de passos atrás dos três caminhantes. Mas não muito tempo depois, de algum modo, estavam bem na cola deles. Tom Sete-Cordas caminhava devagar, e gostava de ir dedilhando a harpa à medida que avançava.
– Conhecem algumas canções? – perguntou-lhes. – Adoraria ter alguém com quem cantar, adoraria mesmo. O Limo não consegue cantar afinado, e o nosso rapaz do arco só conhece baladas da Marca, todas com cem versos de comprimento.
– Na Marca cantamos canções de verdade – disse brandamente Anguy.
– Cantar é idiota – disse Arya. – Cantar faz barulho. Ouvimos você de muito longe. Podíamos ter matado você.
O sorriso de Tom indicava que ele não tinha a mesma opinião.
– Há coisas piores do que morrer com uma canção nos lábios.
– Se houvesse lobos por aqui, saberíamos – resmungou o Limo. – Ou leões. Esta floresta é nossa.
– Não sabiam que nós estávamos aqui – disse Gendry.
– Ora, rapaz, não devia ter tanta certeza assim – disse Tom. – Às vezes um homem sabe mais do que diz.
Torta Quente mexeu-se na sela.
– Eu conheço a canção sobre o urso – disse. – Pelo menos parte dela.
Tom correu os dedos pelas cordas.
– Então vamos ouvi-la, menino das tortas. – Atirou a cabeça para trás e cantou: – Havia um urso, um urso, um urso! Preto e castanho e coberto de pelo...
Torta Quente juntou-se a ele cheio de energia, chegando mesmo a balançar um pouco na sela, nas rimas. Arya fitou-o, espantada. Tinha uma boa voz e cantava bem. Nunca fez nada bem, a não ser cozinhar, pensou consigo mesma.
Um pequeno riacho desaguava no Tridente um pouco mais à frente. Enquanto o atravessavam, a cantoria espantou um pato que estava no meio dos juncos. Anguy parou, pegou o arco, encaixou uma flecha e abateu-o. A ave caiu nos baixios, não muito longe da margem. Limo tirou o manto amarelo e entrou na água até os joelhos para recuperá-la, sem parar de se queixar.
– Acha que a Sharna terá limões lá embaixo, naquela adega dela? – perguntou Anguy a Tom enquanto observavam o Limo espirrar água, praguejando. – Certa vez, uma garota de Dorne fez pato com limões para mim. – Parecia cheio de desejo.
Tom e Torta Quente reataram a canção do outro lado do riacho, com o pato já preso ao cinto de Limo, por baixo de seu manto amarelo. De algum modo, a canção fez com que os quilômetros parecessem mais curtos. Não demorou realmente muito tempo até a estalagem aparecer à frente deles, erguendo-se da margem do rio onde o Tridente fazia uma grande curva para o norte. Arya observou-a com suspeita ao se aproximar, de olhos semicerrados. Não parecia um covil de fora da lei, tinha de admitir; aparentava um local amigável, até mesmo acolhedor, com seu andar superior caiado e o telhado de ardósia e a fumaça que saía em preguiçosas espirais da chaminé. Estábulos e outros edifícios secundários rodeavam-na, e havia um vinhedo nos fundos, e macieiras e um pequeno jardim. A estalagem até tinha seu próprio ancoradouro, que se projetava pelo rio, e...
– Gendry – chamou Arya, com voz baixa e urgente. – Eles têm um barco. Podíamos fazer o resto do caminho até Correrrio navegando. Seria mais rápido do que a cavalo, eu acho.
Ele pareceu duvidar.
– Você alguma vez já velejou?
– Iça-se a vela – disse ela – e o vento empurra.
– E se o vento estiver soprando na direção errada?
– Então há remos para remar.
– Contra a corrente? – Gendry franziu a testa. – Isso não seria devagar? E se o barco virar e cairmos na água? Seja como for, o barco não é nosso, é da estalagem.
Podíamos roubá-lo. Arya mordeu o lábio e nada disse. Desmontaram em frente aos estábulos. Não se via mais nenhum cavalo, mas Arya reparou no estrume fresco em muitas das cocheiras.
– Um de nós devia vigiar os cavalos – disse, cautelosa.
Tom ouviu-a.
– Não há necessidade disso, Pombinha. Venha comer, eles vão ficar suficientemente seguros.
– Eu fico – disse Gendry, ignorando o cantor. – Pode vir me buscar depois de ter comido alguma coisa.
Assentindo, Arya foi atrás de Torta Quente e Limo. Ainda levava a espada na bainha, a tiracolo, e mantinha uma mão perto do cabo do punhal que roubara de Roose Bolton, para o caso de não gostar do que quer que encontrassem lá dentro.
O letreiro pintado por cima da porta mostrava a imagem de um velho rei qualquer ajoelhado. Lá dentro ficava a sala comum, onde uma mulher feia e muito alta, com um queixo protuberante, estava em pé, de mãos no quadril, encarando-a com ar zangado.
– Não fique aí parado, menino – exclamou. – Ou é uma menina? Seja como for, está bloqueando a porta. Ou entra ou sai. Limo, que foi que eu disse a respeito do meu chão? Você está pura lama.
– Abatemos um pato. – Limo mostrou-o como uma bandeira de paz.
A mulher arrancou-o de sua mão.
– O que você quer dizer é que o Anguy abateu um pato. Tire as botas, você é surdo ou é só burro? – virou-se. – Marido! – chamou, em voz alta. – Venha aqui pra cima, os rapazes voltaram. Marido!
Um homem com um avental sujo subiu a escada da adega, resmungando. Era uma cabeça mais baixo do que a mulher, e tinha o rosto grumoso e uma pele amarelada e solta, que ainda mostrava as marcas de um tipo qualquer de varíola.
– Estou aqui, mulher, pare de berrar. O que foi agora?
– Pendure isto – disse ela, entregando-lhe o pato.
Anguy remexeu os pés.
– Estávamos pensando em comê-lo, Sharma. Com limões. Se tiver alguns.
– Limões. E onde iríamos arranjar limões? Você acha que está em Dorne, meu idiota sardento? Por que não dá um pulo lá atrás até os limoeiros e colhe um balde para a gente, e também algumas azeitonas e romãs das boas? – sacudiu um dedo em frente ao nariz dele. – Ora bem, suponho que podia cozinhá-lo com o manto do Limo, se quisesse, mas só depois que o pato passar uns dias pendurado. Ou você vai comer coelho, ou não vai comer. Coelho assado no espeto é o mais rápido, se tiver fome. Ou talvez o queira cozido, com cerveja e cebolas.
Arya quase conseguia sentir o gosto do coelho.
– Não temos dinheiro, mas trouxemos algumas cenouras e couves que poderíamos trocar com você.
– Ah, trouxe? E onde estão elas?
– Torta Quente, dê as couves para ela – disse Arya, e ele entregou, embora se aproximasse da velha tão cautelosamente como se ela fosse Rorge, Dentadas ou Vargo Hoat.
A mulher inspecionou bem os legumes, e melhor o garoto.
– Onde está essa torta quente?
– Aqui. Eu. É o meu nome. E ela é a... ah... Pombinha.
– Debaixo do meu teto, não. Dou nomes diferentes aos clientes e aos pratos, para distingui-los uns dos outros. Marido!
O Marido tinha ido até lá fora, mas, ao ouvir o grito da mulher, apressou-se a voltar.
– O pato está pendurado. O que foi agora, mulher?
– Lave estes legumes – ordenou ela. – Os outros, sentem-se enquanto eu começo a cuidar dos coelhos. O garoto vai lhes trazer bebidas. – Olhou ao longo de seu grande nariz para Arya e Torta Quente. – Não tenho o hábito de servir cerveja a crianças, mas a sidra acabou, não há vacas para dar leite, e a água do rio tem gosto de guerra, com todos os mortos que vêm à deriva. Se lhes servisse uma tigela de sopa cheia de moscas mortas, vocês a tomariam?
– Arry tomaria – disse Torta Quente. – A Pombinha, quero dizer.
– E Limo também – sugeriu Anguy, com um sorriso manhoso.
– Não se preocupe com Limo – disse Sharna. – Há cerveja para todos. – E desapareceu na direção da cozinha.
Anguy e Tom Sete-Cordas ocuparam a mesa perto da lareira, enquanto Limo pendurava seu grande manto amarelo num cabide. Torta Quente deixou-se cair pesadamente num banco, junto à mesa perto da porta, e Arya enfiou-se ao lado dele.
Tom pegou a harpa.
– Uma estalagem solitária na estrada da floresta – cantou, inventando lentamente uma melodia que se adaptasse às palavras. – A mulher do estalajadeiro era feia como uma besta.
– Cale a boca, senão não vai ter coelho para ninguém – preveniu-o Limo. – Sabe como ela é.
Arya debruçou-se, aproximando-se de Torta Quente.
– Sabe manejar um veleiro? – perguntou. Antes de ele ter tempo de responder, um rapaz atarracado com quinze ou dezesseis anos apareceu com canecas de cerveja. Torta Quente pegou reverentemente a sua, com as duas mãos, e quando bebeu um trago, deu o sorriso mais largo que Arya já tinha visto nele.
– Cerveja – sussurrou – e coelho.
– Bem, à saúde de Sua Graça – gritou alegremente Anguy, o Arqueiro, erguendo a caneca. – Que os Sete protejam o rei!
– Todos os doze que há por aí – resmungou Limo Manto Limão. Bebeu, e limpou a espuma da boca com as costas da mão.
O Marido entrou em grande correria pela porta da frente, com um avental cheio de legumes lavados.
– Há cavalos estranhos nos estábulos – anunciou, como se eles não soubessem.
– Sim – disse Tom, colocando a harpa de lado –, e melhores do que os três que você deu.
O Marido deixou cair os legumes sobre uma mesa, aborrecido.
– Não os dei. Vendi por um bom preço, e arranjei também um esquife para nós. E, seja como for, o seu grupinho deveria tê-los trazido de volta.
Sabia que eles eram fora da lei, pensou Arya, escutando. A mão desceu para baixo da mesa e tocou o cabo do punhal, para se assegurar de que ainda estava lá. Se tentarem nos roubar, vão se arrepender.
– Não vieram para onde estávamos – disse Limo.
– Bem, eu mandei-os. Vocês deviam estar bêbados, ou dormindo.
– Nós? Bêbados? – Tom bebeu um longo trago de cerveja. – Nunca.
– Podia tê-los pego você mesmo – disse Limo.
– O que, só com o garoto aqui? Já lhes disse duas vezes, a velha estava na Charneca dos Cordeiros ajudando a Fern a parir o bebê. E o mais certo é ter sido um de vocês quem plantou o bastardo na barriga da pobre garota. – Deu a Tom um olhar azedo. – Você, aposto, com essa sua harpa, cantando todas essas canções tristes só para fazer a pobre Fern tirar a roupa de baixo.
– Se uma canção leva uma donzela a querer tirar a roupa e sentir o bom sol quente beijar sua pele, ora, será culpa do cantor? – perguntou Tom. – E, além disso, ela gostava era do Anguy. “Posso tocar o seu arco?”, ouvi Fern perguntando-lhe. “Ooohh, é tão liso, e duro. Acha que eu podia dar uma puxadinha nele?”
O Marido resfolegou.
– Você ou o Anguy, não faz diferença. São tão culpados como eu pelos cavalos. Eram três, sabe? O que pode um homem fazer contra três?
– Três – disse Limo em tom de escárnio –, mas um era mulher e o outro tava acorrentado, foi você mesmo que disse.
O Marido fez uma careta.
– Uma mulher grande, vestida como um homem. E o que estava acorrentado... Não gostei da expressão nos olhos dele.
Anguy exibiu um sorriso por cima da cerveja.
– Quando não gosto dos olhos de um homem, espeto uma flecha num deles.
Arya recordou a flecha que roçara em sua orelha. Queria saber disparar flechas.
O Marido não se mostrou impressionado.
– E você fique calado quando os mais velhos estão conversando. Beba a sua cerveja e segure essa língua, senão mando a velha mostrar-lhe uma colher de pau.
– Os mais velhos falam demais, e não preciso que me diga para beber a minha cerveja. – E deu um grande trago, para mostrar que era assim.
Arya fez o mesmo. Depois de passar dias bebendo de riachos e poças e, depois, do lamacento Tridente, a cerveja tinha um sabor tão bom quanto os golinhos de vinho que o pai costumava deixá-la beber. Começava a vir da cozinha um cheiro que lhe enchia de água a boca, mas seus pensamentos ainda estavam todos naquele barco. Manejá-lo será mais difícil do que roubá-lo. Se esperarmos até estarem todos dormindo...
O criado voltou a aparecer com grandes pães redondos. Arya partiu um pedaço, esfomeada, e atirou-se nele. Mas era difícil de mastigar, estava espesso e grumoso, e queimado embaixo.
Torta Quente fez careta assim que o provou.
– Este pão é ruim – disse. – Está queimado, e duro.
– É melhor quando há guisado para mergulhá-lo nele – disse Limo.
– Não é, não – disse Anguy –, mas com guisado é menos provável que quebre um dente.
– Podem comê-lo ou passar fome – disse o Marido. – Tenho cara de ser um maldito padeiro? Gostaria de vê-los fazer melhor.
– Eu conseguiria – disse Torta Quente. – É fácil. Você amassou demais a massa, é por isso que é tão difícil mastigar. – Bebeu outro gole de cerveja e desatou a falar, com gosto, de pães, tortas e empadas, tudo aquilo que adorava. Arya rolou os olhos.
Tom sentou-se diante dela.
– Pombinha – disse ele –, ou Arry, ou seja lá qual for o seu verdadeiro nome, isto é para você. – Pousou um pedaço sujo de pergaminho na mesa de madeira entre ambos.
Ela olhou o pergaminho com desconfiança.
– O que é isso?
– Três dragões de ouro. Precisamos comprar aqueles cavalos.
Arya olhou-o com cautela.
– Os cavalos são nossos.
– O que quer dizer é que foi você que os roubou, não é? Não há vergonha nisso, menina. A guerra transforma muita gente honesta em ladrões. – Tom bateu com o dedo no pergaminho dobrado. – Estou lhe pagando um bom preço. Mais do que qualquer cavalo vale, para falar a verdade.
Torta Quente pegou o pergaminho e desdobrou-o.
– Não há ouro nenhum – protestou em voz alta. – Só há coisas escritas.
– Sim – disse Tom –, e lamento por isso. Mas, depois da guerra, pretendemos fazer esse ouro, tem a minha palavra como homem do rei.
Arya afastou-se da mesa e pôs-se em pé.
– Vocês não são homens do rei coisa nenhuma, são assaltantes!
– Se algum dia tivesse encontrado verdadeiros assaltantes, saberia que eles nunca pagam, nem mesmo em papel. Não é para nós que levamos seus cavalos, filha, é para o bem do reino, para que possamos nos deslocar mais depressa e travar as batalhas que precisam ser travadas. As batalhas do rei. Negaria isso ao rei?
Estavam todos a observá-la: o Arqueiro, o grande Limo, e o Marido, com seu rosto pálido e olhos esquivos. Até Sharna, que espreitava da porta da cozinha. Vão roubar os cavalos, diga eu o que disser, compreendeu. Vamos ter de ir a pé até Correrrio, a menos que...
– Não queremos papel – com uma palmada, Arya arrancou o pergaminho das mãos de Torta Quente. – Podem ficar com nossos cavalos em troca daquele barco que está lá fora. Mas só se nos mostrarem como manejá-lo.
Tom Sete-Cordas fitou-a por um momento, e depois sua grande boca acolhedora torceu-se num sorriso deplorável. Riu alto. Anguy juntou-se a ele, e então desataram todos a rir, Limo Manto Limão, Sharna e o Marido, até o criado, que saíra de trás dos barris com uma besta debaixo de um braço. Arya quis gritar com eles, mas em vez disso deu um sorriso...
– Cavaleiros! – o grito de Gendry parecia esganiçado por causa do susto. A porta abriu-se de rompante, e ali estava ele. – Soldados – arquejou. – Pela estrada do rio, uma dúzia deles.
Torta Quente ficou em pé de um salto, derrubando a caneca, mas Tom e os outros permaneceram imperturbados.
– Não há motivo para derramar boa cerveja no meu chão – disse Sharna. – Volte a se sentar e acalme-se, garoto, o coelho vem aí. Você também, garota. Seja qual for o mal que lhe foi feito, está feito e acabou-se, e agora está com homens do rei. Nós vamos mantê-la a salvo o melhor que pudermos.
A única resposta de Arya foi estender a mão para a espada, mas antes de tê-la meio desembainhada, Limo agarrou seu pulso.
– Não vamos ter mais nada disso. – Torceu-lhe o braço até que sua mão se abriu. Os dedos dele eram duros, cheios de calos, e terrivelmente fortes. Outra vez!, pensou Arya. Está acontecendo outra vez, como na aldeia, com Chiswyck, Raff e a Montanha Que Cavalga. Iam roubar sua espada e voltar a transformá-la num rato. A mão livre fechou-se em volta de sua caneca e brandiu-a contra o rosto de Limo. A cerveja saltou por cima da borda e derramou-se para dentro dos olhos dele, e ela ouviu o nariz do homem quebrar e viu o sangue jorrar. Quando ele soltou um urro, levou as mãos ao rosto, e ela viu-se livre.
– Fujam! – gritou, saltando.
Mas Limo logo caiu de novo sobre ela, com longas pernas que faziam com que um de seus passos se igualasse a três dos dela. Arya retorceu-se e esperneou, mas ele a pegou sem esforço e manteve-a pendurada enquanto o sangue corria por seu rosto.
– Pare com isso, tolinha – gritou, sacudindo-a de um lado para o outro. – Pare com isso, já! – Gendry fez um movimento para ir ajudá-la, mas parou quando Tom Sete-Cordas se pôs à sua frente com um punhal.
A essa altura, já era tarde demais para fugir. Ouvia cavalos lá fora, e o som de vozes de homens. Um momento mais tarde, um homem entrou, pavoneando-se, pela porta, um tyroshi ainda maior do que Limo, com uma grande barba espessa, pintada de verde vivo nas pontas, mas crescendo grisalha. Atrás dele veio um par de besteiros que ajudavam um homem ferido a caminhar entre os dois, e depois mais...
Arya nunca vira bando mais andrajoso, mas nada havia de andrajoso nas espadas, machados e arcos que traziam. Um ou dois deram olhadelas curiosas para ela ao entrar, mas nenhum disse uma palavra. Um homem zarolho com um elmo redondo e enferrujado farejou o ar e sorriu, enquanto um arqueiro com a cabeça cheia de duros cabelos loiros gritava por cerveja. Depois deles, entrou um lanceiro com um elmo encimado por um leão, um homem mais velho e coxo, um mercenário de Bravos, um...
– Harwin? – sussurrou Arya. E era! Sob a barba e os cabelos emaranhados encontrava-se o rosto do filho de Hullen, que costumava levar o pônei dela pelo pátio, arremeter contra o boneco com Jon e Robb, e beber em excesso em dias de festa. Estava mais magro, de certo modo mais duro, e em Winterfell nunca tinha usado barba, mas era ele... um homem de seu pai. – Harwin! – contorcendo-se, atirou-se para a frente, tentando se livrar da mão de ferro de Limo. – Sou eu – gritou –, Harwin, sou eu, não me reconhece, não me reconhece? – as lágrimas chegaram, e deu por si chorando como um bebê, exatamente como uma menininha estúpida qualquer. – Harwin, sou eu!
Os olhos de Harwin desceram do rosto de Arya para o homem esfolado que trazia no gibão.
– Como é que me conhece? – disse, franzindo a testa, desconfiado. – O homem esfolado... quem é você, algum criado do Lorde Sanguessuga?
Por um momento, Arya não soube como responder. Tivera tantos nomes. Teria apenas sonhado com Arya Stark?
– Sou uma menina – fungou. – Fui copeira de Lorde Bolton, mas ele ia me deixar com o bode, e por isso fugi com Gendry e Torta Quente. Você tem de me reconhecer! Costumava levar o meu pônei quando era pequena.
Os olhos do homem esbugalharam-se.
– Pela bondade dos deuses – disse, numa voz estrangulada. – Arya Debaixo-dos-Pés? Limo, largue-a.
– Ela quebrou meu nariz. – Limo largou-a sem cerimônia no chão. – Quem, com os sete infernos, é que ela deveria ser?
– A filha do Mão. – Harwin ajoelhou-se diante dela. – Arya Stark, de Winterfell.