Jon

São grandes o suficiente para você? – Flocos de neve salpicavam o rosto largo de Tormund, derretendo-se em seus cabelos e sua barba.

Os gigantes balançavam lentamente no topo de mamutes ao passarem por eles, dois a dois. O garrano de Jon espantou-se, assustado por tamanha estranheza, mas era difícil dizer se o que o assustava eram os mamutes ou os seus cavaleiros. Até Fantasma recuou um passo, exibindo os dentes num rosnado silencioso. O lobo gigante era grande, mas os mamutes eram muito maiores, e havia muitos mais e muitos ainda.

Jon controlou o cavalo e manteve-o quieto, para poder contar os gigantes que emergiam da neve soprada pelo vento e das névoas pálidas que rodopiavam ao longo do Guadeleite. Já passavam bastante de cinquenta quando Tormund disse alguma coisa e Jon perdeu a conta. Deve haver centenas. Não importa quantos passassem, pareciam continuar chegando mais.

Nas histórias da Velha Ama, os gigantes eram homens muito grandes que viviam em castelos colossais, lutavam com espadas enormes e andavam por aí calçados com botas grandes o suficiente para um garoto se esconder lá dentro. Mas aqueles eram outra coisa, mais semelhantes a ursos do que a humanos, e tão peludos como os mamutes que montavam. Sentados, era difícil ver quão grandes eram. Três metros de altura, talvez, ou três metros e meio, pensou Jon. Talvez quatro metros, mas não mais do que isso. O peito inclinado podia parecer peito de homens, mas os braços eram longos demais, e a parte inferior do torso parecia ser vez e meia mais larga do que a superior. As pernas eram mais curtas do que os braços, mas muito grossas, e eles não usavam botas; os pés eram coisas largas e achatadas, duras, calosas e pretas. Sem pescoço, tinham uma cabeça enorme e pesada, que se projetava do meio das espáduas para a frente, e o rosto era achatado e brutal. Olhos de rato, que não eram maiores do que contas, quase se perdiam no interior de dobras de pele calosa; mas fungavam continuamente, capazes de farejar tanto quanto de ver.

Eles não vestem peles, percebeu Jon. Aquilo é pelo. Pelagens felpudas cobriam os corpos, espessas abaixo da cintura, mais esparsas acima. O fedor que exalavam era sufocante, mas isso talvez se devesse aos mamutes. E Joramun soprou o Berrante do Inverno e acordou gigantes da terra. Procurou as grandes espadas de três metros de comprimento, mas só encontrou clavas. A maior parte não passava de galhos de árvores mortas, algumas ainda com ramos menores presos. Algumas delas tinham bolas de pedra firmemente amarradas às extremidades, formando marretas colossais. A canção não chega a dizer se o berrante pode fazê-los adormecer de novo.

Um dos gigantes que se aproximava deles parecia mais velho do que os outros. Sua pelagem era cinza e rajada de branco, e o mamute que montava, maior do que todos os demais, também era cinza e branco. Tormund gritou qualquer coisa para ele ao passar, palavras rudes e ressonantes, numa língua que Jon não compreendia. Os lábios do gigante separaram-se para revelar uma boca cheia de enormes dentes quadrados, e ele fez um som que era meio arroto, meio trovão. Após um momento, Jon compreendeu que estava rindo. O mamute virou sua enorme cabeça para dar uma breve olhada nos dois, fazendo uma gigantesca presa passar sobre a cabeça de Jon enquanto o animal avançava pesadamente, deixando grandes pegadas na lama mole e na neve fresca ao longo do rio. O gigante gritou qualquer coisa na mesma língua grosseira que Tormund havia usado.

– Aquele era o rei deles? – perguntou Jon.

– Os gigantes não têm mais reis do que os mamutes, os ursos-das-neves ou as grandes baleias do mar cinzento. Aquele era Mag Mar Tun Doh Weg. Mag, o Poderoso. Pode ajoelhar-se diante dele se quiser, ele não vai se importar. Sei que seus joelhos de ajoelhador devem estar coçando, por falta de um rei a quem se dobrar. Mas tome cuidado para que ele não pise em você. Os gigantes têm olhos ruins, e pode ser que ele não veja um corvozinho lá embaixo, junto aos pés.

– O que você disse a ele? Isso era o Idioma Antigo?

– Sim. Perguntei se ele estava montando o pai, já que se pareciam tanto, com a diferença de que o pai cheirava melhor.

– E o que ele respondeu?

Tormund Punho de Trovão abriu um sorriso desdentado.

– Perguntou-me se quem estava a cavalo ao meu lado era a minha filha, com as suas bochechas lisas e rosadas. – O selvagem tirou neve do braço e fez o cavalo dar meia-volta. – Pode ser que ele nunca tenha visto um homem sem barba. Ande, vamos voltar. Mance fica muito irritado quando não me encontra no lugar de costume.

Jon deu meia-volta e seguiu Tormund de volta à cabeça da coluna, com o novo manto caindo, pesado, dos ombros. Era feito de peles de ovelha não lavadas, e usava-o com o lado da lã para dentro, como os selvagens tinham sugerido. Mantinha bastante bem a neve afastada, e à noite era bom e quente, mas também havia ficado com o manto negro, dobrado por baixo da sela.

– É verdade que você uma vez matou um gigante? – perguntou a Tormund enquanto avançavam. Fantasma saltava em silêncio ao lado deles, deixando rastros de patas na neve recém-caída.

– Ora, por que deveria duvidar de um homem poderoso como eu? Era inverno e eu era meio garoto, e estúpido como os garotos são. Avancei longe demais e meu cavalo morreu, e depois uma tempestade apanhou-me. Uma tempestade verdadeira, não uma nevasquinha como esta. Ha! Sabia que ia congelar antes do fim. De modo que encontrei uma giganta adormecida, abri a barriga dela, e enfiei-me dentro. Manteve-me bem quentinho, ah, sim, mas o fedor quase acabou comigo. O pior foi que ela acordou quando a primavera chegou e achou que eu era seu bebê. Deu-me de mamar durante três luas completas antes que eu conseguisse fugir. Ha! Mas há horas em que sinto saudades do sabor do leite de gigante.

– Se ela o alimentou, não pode tê-la matado.

– E não matei, mas vê se não espalha isso por aí. Tormund, Terror dos Gigantes, soa melhor do que Tormund, Bebê de Gigante, e esta é a verdade verdadeira.

– Então como foi que arranjou os outros nomes? – perguntou Jon. – Mance chamou-o de Soprador de Chifres, não foi? Rei-Hidromel do Solar Ruivo, Esposo de Ursas, Pai de Tropas? – era do sopro no chifre que queria realmente ouvir falar, mas não se atrevia a perguntar tão diretamente. E Joramun soprou o Berrante do Inverno e acordou gigantes da terra. Teriam eles vindo daí, eles e aqueles mamutes? Teria Mance Rayder encontrado o Berrante de Joramun e dado a Tormund para soprar?

– Todos os corvos são assim tão curiosos? – perguntou Tormund. – Bom, aqui vai uma história para você. Foi em outro inverno, ainda mais frio do que aquele que passei dentro da giganta, e nevava de dia e de noite, flocos de neve do tamanho de sua cabeça, não estas coisinhas. Nevava tanto que a aldeia inteira estava meio enterrada. Eu estava em meu Solar Ruivo, só com um barril de hidromel para me fazer companhia e nada para fazer a não ser bebê-lo. Quanto mais bebia, mais pensava numa mulher que vivia ali perto, uma mulher boa e forte, com o maior par de tetas que você já viu. Tinha um gênio difícil, aquela, mas, oh, também sabia ser quente, e no meio do inverno um homem precisa de seu calor.

“Quanto mais bebia, mais pensava nela, e quanto mais pensava, mais duro ficava o meu membro, até que não aguentei mais. Idiota como era, enfiei-me em peles da cabeça aos pés, enrolei a cara numa volta de lã, e lá fui à procura dela. A neve caía com tanta força que me virou uma ou duas vezes, e o vento soprava através de mim e congelava meus ossos, mas finalmente cheguei em sua casa, todo enfaixado como estava.

“A mulher tinha um gênio terrível, e deu uma luta e tanto quando pus as mãos nela. Por pouco não conseguia levá-la para casa e tirá-la de dentro daquelas peles, mas quando fiz isso, oh, ela foi ainda mais quente do que eu me lembrava, e passamos um belo tempo juntos, e depois adormeci. Na manhã seguinte, quando acordei, a forte nevasca tinha parado e o sol brilhava, mas eu não estava em estado de aproveitá-lo. Estava todo ferido e rasgado, com metade de meu membro arrancado a dentadas, e bem ali no chão estava a pele de uma ursa. E não demorou muito tempo para que o povo livre começasse a contar histórias sobre um urso sem pelos visto na floresta, seguido pelo mais estranho par de filhotes que já se viu. Ha! – deu uma palmada numa coxa carnuda. – Gostaria de voltar a encontrá-la. Aquela ursa era boa na cama. Nunca mulher nenhuma me deu uma luta daquelas, nem filhos tão fortes.”

– O que faria se a encontrasse? – perguntou Jon, sorrindo. – Disse que ela arrancou seu membro com os dentes.

– Só metade. E metade de meu membro é duas vezes maior do que o de outro homem qualquer. – Tormund resfolegou. – E agora você... é verdade que cortam seus membros quando os levam para a Muralha?

– Não – disse Jon, afrontado.

– Eu acho que deve ser verdade. Se não, por que é que rejeita Ygritte? Ela quase não lhe daria luta, me parece. A moça quer você lá dentro, isso tá bem na cara.

Está na cara até demais, pensou Jon, e parece que metade da coluna já percebeu isso. Estudou a neve que caía para que Tormund não o visse corar. Sou um homem da Patrulha da Noite, lembrou a si próprio. Mas então por que se sentia como se fosse uma donzela tímida?

Passava a maior parte dos dias na companhia de Ygritte, e a maior parte das noites também. Mance Rayder não se mostrara cego perante a desconfiança que o Camisa de Chocalho nutria pelo “corvo-que-veio”, por isso, depois de dar a Jon o novo manto de pele de ovelha, sugeriu que talvez preferisse acompanhar Tormund Terror dos Gigantes. Jon sentiu-se feliz por concordar, e no dia seguinte Ygritte e o Lança-Longa Ryk também tinham trocado o bando do Camisa de Chocalho pelo de Tormund.

– O povo livre acompanha quem quiser – a moça lhe disse –, e nós estamos de saco cheio do Saco de Ossos.

Todas as noites, quando montavam o acampamento, Ygritte estendia as suas peles de dormir ao lado das dele, quer estivesse perto da fogueira, quer estivesse longe. Uma vez, acordou com ela aninhada a si, com o braço apoiado em seu peito. Permaneceu imóvel por muito tempo, escutando a respiração dela, tentando ignorar a tensão na virilha. Era frequente que os patrulheiros dividissem as peles para obter calor, mas suspeitava que calor não era tudo que Ygritte queria. Depois disso, começou a usar Fantasma para mantê-la afastada. A Velha Ama costumava contar histórias sobre cavaleiros e suas senhoras que dormiam na mesma cama com uma lâmina entre eles, em nome da honra, mas Jon achava que aquela devia ser a primeira vez que um lobo gigante fazia as vezes de espada.

Mesmo assim, Ygritte persistia. Na antevéspera, Jon cometera o erro de desejar ter água quente para um banho.

– A fria é melhor – ela disse de imediato –, se tiver alguém para aquecê-lo depois. O rio ainda só está meio gelado, vai lá.

Jon riu.

– Você me mataria congelado.

– Todos os corvos têm medo de pele de galinha? Um bocadinho de gelo não vai matar você. Eu salto junto pra provar.

– E passamos o resto do dia com a roupa molhada e congelada agarrada à pele? – retrucou.

– Jon Snow, você não sabe nada. Não se mergulha vestido.

– Não mergulho e ponto – disse com firmeza, logo antes de ouvir Tormund Punho de Trovão berrar por ele (não tinha ouvido, mas não importa).

Os selvagens pareciam achar Ygritte uma grande beleza, por causa de seus cabelos; cabelos ruivos eram raros entre o povo livre, e dizia-se que aqueles que o possuíam tinham sido beijados pelo fogo, o que supostamente era sinal de sorte. Os cabelos de Ygritte até podiam ser sinal de sorte, e certamente eram ruivos, mas eram também tão embaraçados que Jon se sentia tentado a perguntar se ela só o escovava na mudança da estação.

Sabia que na corte de um senhor a garota nunca teria sido considerada algo mais do que comum. Tinha um rosto redondo de camponesa, nariz achatado e dentes ligeiramente tortos, e os olhos eram afastados demais. Jon havia reparado em tudo isso na primeira vez que a viu, quando encostou o punhal na garganta dela. Mas nos últimos tempos andava reparando em outras coisas. Quando ela sorria, os dentes tortos não pareciam importar. E talvez seus olhos fossem afastados demais, mas eram de uma cor bonita, azul-acinzentada, e tão cheios de vida como nenhum outro que já tivesse visto. Às vezes, cantava numa voz grave e rouca que o estimulava. E às vezes, junto à fogueira, quando ela se sentava abraçando os joelhos com as chamas a despertar ecos em seus cabelos vermelhos, e o olhava, sorrindo apenas... bem, isso também estimulava algumas coisas.

Mas ele era um homem da Patrulha da Noite, tinha prestado um juramento. Não tomarei esposa, não possuirei terras, não gerarei filhos. Proferira as palavras perante o represeiro, perante os deuses do pai. Não podia desdizê-las... assim como não podia admitir o motivo de sua relutância a Tormund Punho de Trovão, Pai de Ursos.

– Não gosta da garota? – perguntou-lhe Tormund enquanto passavam por mais vinte mamutes, estes transportando selvagens no topo de altas torres de madeira em vez de gigantes.

– Gosto, mas eu... – O que posso dizer para convencê-lo? – Ainda sou novo demais para casar.

– Casar? – Tormund soltou uma gargalhada. – Quem falou em casamento? No sul um homem precisa se casar com todas as garotas com quem dorme?

Jon sentia que estava enrubescendo novamente.

– Ela falou em meu favor quando o Camisa de Chocalho quis me matar. Não quero desonrá-la.

– Você agora é um homem livre, e Ygritte, uma mulher livre. Onde está a desonra se dormirem juntos?

– Ela pode engravidar.

– Sim, pode-se ter esperança nisso. Um filho forte ou uma menina cheia de vida e de risos, beijada pelo fogo, e que mal há nisso?

As palavras falharam-lhe por um momento.

– O menino... a criança seria um bastardo.

– Os bastardos são mais fracos do que as outras crianças? Mais enfermiços, mais sujeitos a erro?

– Não, mas...

– Você mesmo é um bastardo. E se a Ygritte não quiser um filho, ela vai até uma bruxa qualquer dos bosques para beber uma taça de chá de lua. Você não tem nada a ver com isso, depois de a semente ter sido plantada.

Não serei pai de um bastardo.

Tormund balançou sua cabeça desgrenhada.

– Vocês, os ajoelhadores, são grandes bobos. Por que roubou a garota se não a queria?

Roubar? Eu não...

– Você, sim – disse Tormund. – Matou os dois homens com quem ela estava e levou-a consigo, que nome dá a isso?

– Levei-a prisioneira.

– Obrigou-a a se entregar a você.

– Sim, mas... Tormund, juro que nunca toquei nela.

– Tem certeza de que não cortaram seu membro? – Tormund encolheu os ombros, como que para dizer que nunca conseguiria compreender tal loucura. – Bem, agora é um homem livre, mas se não quer a moça, é melhor que arranje uma ursa. Se um homem não usa o membro, ele vai ficando cada vez menor, até que um dia quer mijar e não o encontra.

Jon não tinha resposta para aquilo. Não era de admirar que os Sete Reinos considerassem o povo livre pouco acima dos animais. Eles não têm leis, nem honra, nem sequer simples decência. Roubam-se continuamente uns aos outros, reproduzem-se como animais, preferem a violação ao casamento, e enchem o mundo de filhos ilegítimos. E, no entanto, estava começando a gostar de Tormund Terror dos Gigantes, apesar do grande saco de vento e mentiras que o homem era. E do Lança-Longa também. E Ygritte... não, não pensarei em Ygritte.

Mas com Tormund e Lança-Longa seguiam outros tipos de selvagem; homens como o Camisa de Chocalho e o Chorão, que tão depressa abririam sua goela quanto escarrariam em você. Havia Harma Cabeça de Cão, uma mulher que mais parecia um barril atarracado, com lajes de carne branca no lugar das bochechas, que odiava cães e matava um a cada quinzena para arranjar uma cabeça nova para a sua insígnia; o Styr sem orelhas, Magnar de Thenn, que era considerado por seu povo mais deus do que homem; Varamyr Seis-Peles, um pequeno rato em forma de homem, cujo garanhão era um urso-das-neves branco e selvagem, que tinha quase quatro metros de altura quando ficava em pé nas patas traseiras. E onde quer que Varamyr e o urso fossem, três lobos e um gato-das-sombras seguiam-nos. Jon estivera em sua presença apenas uma vez, e uma vez fora o bastante; bastou ver o homem para se sentir irritado, ao mesmo tempo que o pelo no pescoço de Fantasma havia se eriçado quando o lobo avistou o urso e aquele grande gato preto e branco.

E havia gente ainda mais feroz do que Varamyr, vinda das regiões mais setentrionais da floresta assombrada, dos vales escondidos das Presas de Gelo e de lugares ainda mais estranhos: os homens da Costa Gelada, que seguiam em bigas feitas de ossos de morsa, puxadas por matilhas de cães selvagens; os terríveis clãs do rio de gelo, dos quais se dizia que se banqueteavam com carne humana; os habitantes das cavernas, com o rosto pintado de azul, roxo e verde. Jon contemplara com os próprios olhos os homens de Cornopé, que avançavam a trote, em coluna, sobre pés nus que tinham solas duras como couro fervido. Não tinha visto snarks nem grumequins, mas, até onde sabia, Tormund poderia ter alguns para comer no jantar.

Jon calculava que metade da tropa dos selvagens passara toda a vida sem ver a Muralha, nem que fosse de relance, e, entre esses, a maioria não sabia uma palavra do Idioma Comum. Não importava. Mance Rayder falava o Idioma Antigo, até cantava nele, dedilhando o seu alaúde e enchendo a noite com música estranha e selvagem.

Mance tinha passado anos reunindo aquela vasta e lenta tropa, falando aqui com uma mãe de clã e ali com um magnar, conquistando uma aldeia com palavras simpáticas, outra com uma canção e uma terceira com o gume da espada, fazendo a paz entre Harma Cabeça de Cão e o Senhor dos Ossos, entre os Cornopés e os Corredores da Noite, entre os homens-morsa da Costa Gelada e os clãs canibais dos grandes rios de gelo, fundindo uma centena de punhais diferentes numa única grande lança, apontada ao coração dos Sete Reinos. Não tinha coroa nem cetro, nem vestes de seda e veludo, mas para Jon estava claro que Mance Rayder era mais rei do que se assim fosse chamado.

Jon tinha se juntado aos selvagens por ordem de Qhorin Meia-Mão.

– Cavalgue com eles, coma com eles, lute com eles – dissera-lhe o patrulheiro, na noite antes de morrer. – E observe. – Mas, com toda a sua observação, pouco aprendera. Meia-Mão suspeitava que os selvagens tinham subido às desoladas e estéreis Presas de Gelo em busca de alguma arma, de algum poder, de algum terrível feitiço para derrubar a Muralha... mas, se tinham encontrado algo assim, ninguém andava se vangloriando abertamente do fato, nem o mostrava a Jon. E Mance Rayder tampouco tinha lhe confidenciado qualquer um de seus planos, qualquer parte de sua estratégia. Desde aquela primeira noite, quase não vira o homem, exceto a distância.

Vou matá-lo, se tiver de ser. A ideia não dava a Jon nenhuma alegria; não haveria honra em tal morte, e significaria também a sua. Mas não podia deixar que os selvagens abrissem uma brecha na Muralha, que ameaçassem Winterfell e o Norte, as terras acidentadas e os Regatos, Porto Branco e a Costa Pedregosa, até mesmo o Gargalo. Havia oito mil anos que os homens da Casa Stark viviam e morriam para proteger seu povo contra tais atacantes e piratas... e, bastardo ou não, era o mesmo sangue que corria em suas veias. Além disso, Bran e Rickon ainda estão em Winterfell. Assim como Meistre Luwin, Sor Rodrik, a Velha Ama, Farlen, o mestre dos canis, Mikken, em sua forja, e Gage, junto aos fornos... todos os que conheci, todos os que amei. Se Jon tinha de matar um homem por quem tinha meia admiração e do qual quase gostava para salvar aqueles que amava dos caprichos de Camisa de Chocalho, Harma Cabeça de Cão ou Magnar de Thenn, era isso que pretendia fazer.

Apesar de tudo, rezava aos deuses do pai para que o poupassem dessa tarefa tão desoladora. A tropa movia-se lentamente, sobrecarregada que estava com todos os rebanhos, crianças e pequenos tesouros dos selvagens, e as neves tinham tornado o progresso ainda mais lento. A maior parte da coluna estava agora para lá do sopé dos montes, escorrendo ao longo da margem ocidental do Guadeleite como mel numa manhã fria de inverno, seguindo o curso do rio em direção ao coração da floresta assombrada.

E Jon sabia que em algum lugar mais adiante, perto, o Punho dos Primeiros Homens se erguia por sobre as árvores, abrigando trezentos irmãos negros da Patrulha da Noite, armados, montados e à espera. O Velho Urso tinha enviado outros batedores além do Meia-Mão, e decerto Jarman Buckwell ou Thoren Smallwood já teriam retornado com a informação sobre aquilo que vinha descendo das montanhas.

Mormont não fugirá, pensou Jon. É velho demais e chegou longe demais. Atacará, e que se danem os números. Um dia, em breve, ouviria o som de berrantes de guerra e veria uma coluna de cavaleiros caindo sobre eles com esvoaçantes mantos negros e aço frio nas mãos. Trezentos homens não podiam esperar matar cem vezes mais, claro, mas Jon achava que não precisariam fazer isso. Ele não precisa matar mil homens, apenas um. Mance é tudo que os mantém juntos.

O Rei-para-lá-da-Muralha estava fazendo tudo o que podia, mas os selvagens mantinham-se irremediavelmente indisciplinados, e isso tornava-os vulneráveis. Aqui e ali, na serpente com léguas de comprimento que era a sua linha de marcha, havia guerreiros tão bons como quaisquer membros da Patrulha, mas cerca de um terço deles encontrava-se agrupado nas duas extremidades da coluna, na vanguarda de Harma Cabeça de Cão e na retaguarda selvagem, com os seus gigantes, auroques e lançadores de fogo. Outro terço seguia com o próprio Mance, perto do centro, defendendo carroças, trenós e carros puxados por cães que levavam a maior parte das provisões e dos abastecimentos da tropa, tudo que restara da colheita do verão anterior. O resto, dividido em pequenos bandos sob o comando de homens como o Camisa de Chocalho, Jarl, Tormund Terror dos Gigantes e Chorão, servia como batedores, forrageiros e “chicotes”, galopando sem cessar ao longo da coluna, para mantê-la em movimento de uma forma mais ou menos ordenada.

E ainda mais relevante era que só um em cem selvagens se encontrava montado. O Velho Urso vai atravessá-los como um machado atravessa mingau de aveia. E quando isso acontecesse, Mance os perseguiria com suas forças centrais, tentando minimizar a ameaça. Se caísse na luta que se seguiria, Jon estimava que a Muralha estaria a salvo durante mais cem anos. Caso contrário...

Abriu e fechou os dedos queimados de sua mão da espada. A Garralonga estava pendurada na sela, com o botão de pedra esculpida em forma de cabeça de lobo e o macio punho de couro ao alcance da mão.

A neve caía com força quando alcançaram o bando de Tormund, várias horas depois. Fantasma partiu ao longo do caminho, misturando-se à floresta ao farejar uma presa. O lobo gigante voltaria quando acampassem para passar a noite, o mais tardar à alvorada. Por mais longe que andasse, Fantasma sempre voltava ... e o mesmo, ao que parecia, fazia Ygritte.

– Então – gritou a garota quando o viu – já acredita em nós, Jon Snow? Viu os gigantes em seus mamutes?

– Ha! – gritou Tormund, antes de Jon conseguir responder. – O corvo está apaixonado! Quer casar com um!

– Com um gigante? – Lança-Longa Ryk riu.

– Não, com um mamute! – berrou Tormund. – Ha!

Ygritte trotou para o lado de Jon enquanto este reduzia o passo do garrano. Ela dizia ser três anos mais velha do que ele, embora fosse quinze centímetros mais baixa; qualquer que fosse a sua idade, a garota era uma coisinha rija. Cobra das Pedras chamara-a de “esposa de lança” quando a tinham capturado no Passo dos Guinchos. Não era casada e sua arma favorita era um pequeno arco curvado feito de chifre e represeiro, mas “esposa de lança” ajustava-se a ela mesmo assim. Lembrava a Jon um pouco sua irmã, Arya, embora esta fosse mais nova e provavelmente mais magra. Era difícil dizer se Ygritte era magra ou gorda, com todas as peles que usava.

– Conhece “O último dos gigantes”? – sem esperar resposta, Ygritte continuou: – É preciso uma voz mais grave do que a minha para cantá-la como deve ser. – E então cantou: – Ooooooh, sou o último dos gigantes, o meu povo do mundo partiu.

Tormund, Terror dos Gigantes, ouviu as palavras e sorriu.

O último dos gigantes de montanha, que um dia tudo possuiu – berrou em resposta através da neve.

Lança-Longa Ryk juntou-se a eles, cantando:

Oh, o povo pequeno roubou-me as florestas, roubou-me os rios e os montes.

E atravessou meus vales com uma grande muralha, e pescou meus peixes das fontes – responderam-lhe Ygritte e Tormund, em vozes adequadamente gigânticas.

Os filhos de Tormund, Toregg e Dormund, juntaram também suas vozes graves à canção, seguidos por Munda e todos os demais. Outros começaram a bater com as lanças em escudos de couro para marcar um ritmo grosseiro, até todo o bando de guerreiros estar cantando enquanto avançava.

Em salões de pedra fazem suas grandes fogueiras,

em salões de pedra forjam suas afiadas lanças.

Enquanto eu caminho sozinho nas montanhas,

sem nenhum companheiro além das lembranças.

Caçam-me sempre com cães à luz do dia,

Caçam-me sempre com archotes no escuro.

Pois os homens pequenos não poderão ver-se altos,

se caminharem gigantes no futuro.

Oooooo, sou o ÚLTIMO dos gigantes,

Por isso aprenda bem a minha canção.

Pois quando eu partir nascerá o silêncio,

e durante muito tempo as canções morrerão.

Havia lágrimas no rosto de Ygritte quando a canção terminou.

– Por que está chorando? – perguntou Jon. – Foi só uma canção. Há centenas de gigantes, acabei de vê-los.

– Oh, centenas – disse ela, furiosa. – Não sabe nada, Jon Snow. Você... JON!

Jon virou-se ao ouvir o súbito som de asas. Penas azul-acinzentadas encheram seus olhos, enquanto garras afiadas se enterravam em seu rosto. Uma dor rubra atravessou-o, súbita e violenta, enquanto asas batiam em volta de sua cabeça. Viu o bico, mas não houve tempo para levantar uma mão ou estendê-la para alguma arma. Jon cambaleou para trás, seu pé saltou do estribo, o garrano fugiu em pânico, e de repente estava caindo. E a águia ainda se agarrava ao seu rosto, com as garras rasgando-o enquanto a ave batia as asas, guinchava e bicava. O mundo virou de pernas para o ar, num caos de penas, carne de cavalo e sangue, e então o chão surgiu e esmagou-o.

Quando deu por si, estava caído sobre o rosto, com gosto de lama e sangue na boca, e Ygritte ajoelhava-se protetoramente sobre ele, com um punhal de osso na mão. Ainda ouvia asas, embora não visse a águia. Metade de seu mundo estava negra.

– Meu olho – disse, num pânico súbito, levando a mão ao rosto.

– É só sangue, Jon Snow. Ela errou o olho, só rasgou um pouco de sua pele.

Sentia o rosto latejar. Viu com o olho direito, enquanto esfregava o esquerdo para limpá-lo do sangue, que Tormund se encontrava perto deles, berrando. Então ouviram-se batidas de cascos, gritos, e o chocalhar de velhos ossos.

– Saco de Ossos – rugiu Tormund –, chame seu corvo infernal!

– O corvo infernal tá ali! – Camisa de Chocalho apontou para Jon. – Sangrando na lama como um cão sem fé! – A águia desceu, batendo as asas, e foi pousar no crânio rachado de gigante que servia de elmo ao guerreiro. – Venho por ele.

– Então venha buscá-lo – disse Tormund –, mas é melhor vir de espada na mão, porque é assim que vai encontrar a minha. Pode ser que ferva os seus ossos e use seu crânio para mijar. Ha!

– Quando eu furar você e deixar sair o ar, vai encolher até ficar menor do que aquela garota. Afaste-se, senão Mance vai ficar sabendo disso.

Ygritte levantou-se.

– O quê? É Mance que o quer?

– Foi o que eu disse, não foi? Ponha o cara sobre seus pés pretos.

Tormund franziu a testa para Jon.

– É melhor ir, se é Mance quem chama.

Ygritte ajudou-o a se levantar.

– Tá sangrando como um javali na matança. Olhe o que o Orell fez com o lindo rosto dele.

Será que uma ave pode odiar? Jon matara o selvagem Orell, mas uma parte do homem permanecia dentro da águia. Os olhos dourados olhavam-no com fria malevolência.

– Eu vou – disse. O sangue continuava a escorrer para dentro de seu olho direito, e a bochecha era uma explosão de dor. Quando a tocou, as luvas pretas se mancharam de vermelho. – Deixem-me apanhar o garrano. – O que queria não era o cavalo e sim Fantasma, mas não se via o lobo gigante em lugar nenhum. A essa altura, pode estar muito distante, dilacerando a goela de algum alce. Talvez isso fosse bom.

O garrano fugiu dele quando se aproximou, sem dúvida assustado pelo sangue que tinha no rosto, mas Jon acalmou-o com algumas palavras ditas em voz baixa, e algum tempo depois conseguiu aproximar-se o suficiente para pegar as rédeas. Ao montar, sentiu a cabeça rodopiar. Vou precisar tratar disso, pensou, mas não agora. Que o Rei-para-lá-da-Muralha veja o que a águia dele me fez. A mão direita abriu-se e fechou-se, e Jon estendeu-a para a Garralonga e pôs a espada bastarda ao ombro antes de dar meia-volta e seguir a trote para onde o Senhor dos Ossos o esperava com seu bando.

Ygritte também estava à espera, montada no cavalo com uma expressão feroz no rosto.

– Também vou.

– Suma. – Os ossos da placa de peito do Camisa de Chocalho tiniram. – Mandaram-me buscar o corvo-que-desceu e mais ninguém.

– Uma mulher livre leva o cavalo para onde quiser – disse Ygritte.

O vento estava soprando neve nos olhos de Jon. Sentia o sangue congelando em seu rosto.

– Ficamos conversando ou vamos embora?

– Vamos embora – disse o Senhor dos Ossos.

Foi um galope duro. Percorreram a coluna ao longo de mais de três quilômetros, por entre flocos de neve rodopiantes, depois cortaram através de um emaranhado de carroças de bagagem e atravessaram o Guadeleite no local onde o rio fazia uma grande curva para leste. Uma crosta de gelo fino cobria os baixios do rio; a cada passo, os cascos dos cavalos quebravam-na e atravessavam-na, até chegarem a águas mais profundas, dez metros mais adiante. A neve parecia cair ainda mais depressa na margem oriental, e os montes de neve acumulada também eram mais profundos. Até o vento é mais frio. E a noite estava caindo.

Mas mesmo através da neve soprada pelo vento, a forma do grande monte branco que pairava acima das árvores era inconfundível. O Punho dos Primeiros Homens. Jon ouviu o guincho da águia por cima de sua cabeça. Um corvo olhou-o do alto de um pinheiro marcial e lançou um cuorc quando ele passou. Teria o Velho Urso feito seu ataque? Em vez do estrondo do aço e do ruído seco das flechas levantando voo, Jon ouvia apenas o suave esmagamento da crosta gelada por baixo dos cascos do garrano.

Deram a volta em silêncio até a vertente sul, onde a subida era mais fácil. Foi aí que Jon viu o cavalo morto, estatelado no sopé do monte, meio enterrado na neve. Entranhas jorravam da barriga do animal como serpentes congeladas, e uma de suas patas tinha desaparecido. Lobos, foi o primeiro pensamento de Jon, mas não estava certo. Os lobos comiam os animais que matavam.

Mais garranos estavam espalhados pela encosta, com as patas retorcidas de um modo grotesco e olhos cegos fixos na morte. Os selvagens rastejavam sobre eles como moscas, despindo-os de selas, arreios, embrulhos e armaduras, e cortando sua carne com machados de pedra.

– Para cima – disse Camisa de Chocalho a Jon. – O Mance tá lá no alto.

Desmontaram junto à muralha anelar para se enfiarem através de um vão inclinado entre as pedras. A carcaça de um garrano felpudo e castanho estava empalada nos espigões afiados que o Velho Urso havia colocado dentro de todas as entradas. Ele estava tentando sair, não entrar. Não havia sinal de um cavaleiro.

Lá dentro havia mais, e pior. Jon nunca antes vira neve cor-de-rosa. O vento soprava em rajadas à sua volta, puxando seu pesado manto de pele de ovelha. Corvos esvoaçavam de um cavalo morto para o seguinte. Será que aqueles corvos são selvagens ou dos nossos? Jon não sabia dizer. Perguntou a si mesmo onde estaria agora o pobre Sam. E o que seria.

Uma crosta de sangue congelado rangeu por baixo do calcanhar de sua bota. Os selvagens estavam despindo os cavalos mortos de todos os restos de aço e couro, chegando mesmo a arrancar suas ferraduras dos cascos. Alguns vasculhavam pacotes que tinham achado, em busca de armas ou alimentos. Jon passou por um dos cães de Chett, ou aquilo que dele restava, jazendo numa poça viscosa de sangue meio congelado.

Ainda havia algumas tendas em pé no lado mais distante do acampamento, e foi nesse lugar que encontraram Mance Rayder. Sob o manto rasgado de lã negra e seda vermelha usava cota de malha preta e felpudos calções de pele, e na cabeça tinha um grande elmo de bronze e ferro, com asas de corvo nas têmporas. Jarl encontrava-se com ele, bem como Harma Cabeça de Cão; Styr também estava lá, assim como Varamyr Seis-Peles, com seus lobos e seu gato-das-sombras.

O olhar que Mance lançou a Jon foi ameaçador e frio.

– O que aconteceu com seu rosto?

Ygritte respondeu:

– Orell tentou arrancar-lhe um olho.

– Perguntei a ele. Perdeu a língua? Talvez devesse, para nos poupar de mais mentiras.

Styr, o Magnar, puxou uma longa faca.

– O rapaz talvez possa ver com mais clareza com um olho em vez de dois.

– Gostaria de ficar com o olho, Jon? – perguntou o Rei-para-lá-da-Muralha. – Se sim, diga-me quantos eram. E tente falar a verdade dessa vez, Bastardo de Winterfell.

Jon tinha a garganta seca.

– Meu senhor... o que...

– Não sou o seu senhor – disse Mance. – E o que é bastante claro. Seus irmãos morreram. A questão é: quantos?

O rosto de Jon latejava, a neve continuava caindo e era difícil pensar. Não pode se recusar, não importa o que lhe seja solicitado, Qhorin lhe dissera. As palavras prenderam-se em sua garganta, mas Jon forçou-se a dizer:

– Éramos trezentos.

– Éramos? – disse Mance vivamente.

– Eram. Eram trezentos. – Não importa o que lhe seja solicitado, disse o Meia-Mão. Então por que me sinto tão covarde? – Duzentos de Castelo Negro, e cem da Torre Sombria.

– Essa é uma canção mais verdadeira do que a que cantou em minha tenda. – Mance olhou para Harma Cabeça de Cão. – Quantos cavalos encontrou?

– Mais de cem – respondeu a enorme mulher –, menos de duzentos. Há mais mortos a leste, debaixo da neve, é difícil saber quantos. – Atrás dela encontrava-se o seu porta-estandarte, segurando uma vara com a cabeça de um cão na ponta, suficientemente fresca para ainda estar vertendo sangue.

– Não devia ter mentido para mim, Jon Snow – disse Mance.

– Eu... eu sei. – O que poderia dizer?

O rei selvagem estudou seu rosto.

– Quem tinha o comando aqui? E diga-me a verdade. Era Rykker? Smallwood? Não pode ter sido o Wythers, ele era fraco demais. De quem era esta tenda?

Já disse demais.

– Não encontrou o corpo dele?

Harma fungou, lançando desdém pelas narinas.

– Que idiotas esses corvos pretos.

– Da próxima vez que me responder com uma pergunta, dou você ao Senhor dos Ossos – prometeu Mance Rayder a Jon. Aproximou-se dele. – Quem comandava aqui?

Mais um passo, pensou Jon. Mais alguns centímetros. Deslocou a mão para mais perto do cabo da Garralonga. Se ficar de boca fechada...

– Tente pegar nessa maldita espada, e eu corto sua cabeça de bastardo antes de você ter tempo de tirá-la da bainha – disse Mance. – Estou perdendo rapidamente a paciência com você, corvo.

– Diga – exortou Ygritte. – Ele está morto, seja quem for.

Seu franzir de sobrancelhas fez rachar a crosta de sangue que tinha no rosto. Isso é difícil demais, pensou Jon, desesperado. Como é que eu faço papel de vira-casaca sem me transformar em um? Qhorin não havia lhe dito. Mas o segundo passo é sempre mais fácil do que o primeiro.

– O Velho Urso.

– Aquele velho? – o tom de Harma mostrava descrença. – Veio em pessoa? Então quem comanda em Castelo Negro?

– Bowen Marsh. – Daquela vez, Jon respondeu imediatamente. Não pode se recusar, não importa o que lhe seja solicitado.

Mance soltou uma gargalhada.

– Se isso for verdade, temos a guerra ganha. Bowen sabe bastante mais sobre contar espadas do que algum dia soube a respeito de usá-las.

– O Velho Urso comandava – disse Jon. – Este lugar era alto e forte, e ele tornou-o mais forte. Cavou fossos e colocou estacas, armazenou comida e água. Estava pronto para...

– ... mim? – concluiu Mance Rayder. – Se estava. Se eu tivesse sido suficientemente tolo para assaltar seu monte, poderia ter perdido cinco homens para cada corvo que matasse e ainda estaria com sorte. – Os lábios endureceram. – Mas quando os mortos caminham, muralhas, estacas e espadas não significam nada. Não se pode lutar com os mortos, Jon Snow. Ninguém sabe disso tão bem quanto eu. – Ergueu o olhar para o céu que escurecia e disse: – Os corvos podem nos ter ajudado mais do que julgam. Tenho perguntado a mim mesmo por que não sofremos ataques. Mas ainda há uma centena de léguas de caminho, e o frio aumenta. Varamyr, mande seus lobos farejarem o rastro das criaturas, não quero que nos apanhem desprevenidos. Senhor dos Ossos, duplique todas as patrulhas, e certifique-se de que todos os homens têm archotes e pederneira. Styr, Jarl, vocês partem à primeira luz da aurora.

– Mance – disse Camisa de Chocalho –, quero uns ossos de corvo.

Ygritte pôs-se diante de Jon.

– Não pode matar um homem por mentir para proteger seus antigos irmãos.

– Eles ainda são seus irmãos – declarou Styr.

– Não são – insistiu Ygritte. – Ele não me matou, como lhe disseram para fazer. E matou o Meia-Mão, como todos vimos.

A respiração de Jon condensava no ar. Se mentir para Mance, ele saberá. Olhou Mance Rayder nos olhos, abriu e fechou a mão queimada.

– Uso o manto que me deu, Vossa Graça.

– Um manto de pele de ovelha! – disse Ygritte. – E há muitas noites dançamos por baixo dele!

Jarl soltou uma gargalhada, e até Harma Cabeça de Cão deu um sorrisinho.

– Ah, então é isso, Jon Snow? – perguntou brandamente Mance Rayder. – Ela e você?

Era fácil perder o rumo para lá da Muralha. Jon já não sabia se ainda era capaz de distinguir a honra da vergonha, ou o certo do errado. Que o pai me perdoe.

– Sim – disse.

Mance fez um aceno.

– Ótimo. Então vão com Jarl e Styr de manhã. Ambos. Longe de mim separar dois corações que batem como um só.

– Iremos para onde?

– Subir a Muralha. Já é mais do que hora de provar a sua lealdade com algo mais do que palavras, Jon Snow.

Magnar não ficou satisfeito.

– O que eu faço com um corvo?

– Ele conhece a Patrulha e conhece a Muralha – disse Mance – e conhece Castelo Negro melhor do que qualquer assaltante. Se não for tolo, vai encontrar uso para ele.

Styr lançou-lhe um olhar carrancudo.

– O coração dele pode ainda ser negro.

– Se for, arranque-o. – Mance virou-se para Camisa de Chocalho. – Meu Senhor dos Ossos, mantenha a coluna em movimento a qualquer preço. Se chegarmos à Muralha antes de Mormont, vencemos.

– Vão se mover. – A voz de Camisa de Chocalho estava carregada e irada.

Mance assentiu e afastou-se, com Harma e Seis-Peles ao seu lado. Os lobos e o gato-das-sombras de Varamyr seguiram atrás. Jon e Ygritte foram deixados com Jarl, Camisa de Chocalho e Magnar. Os dois selvagens mais velhos olharam Jon com rancor mal disfarçado, enquanto Jarl dizia:

– Ouviu, partimos ao nascer do dia. Traga toda a comida que puder, não vai haver tempo para caçar. E trate dessa cara, corvo. Isso tá uma porcaria.

– Tratarei – disse Jon.

– É melhor que não esteja mentindo, garota – disse o Camisa de Chocalho a Ygritte, com os olhos brilhantes por baixo do crânio de gigante.

Jon desembainhou Garralonga.

– Afaste-se de nós se não quiser o que Qhorin teve.

– Não tem nenhum lobo aqui pra ajudá-lo, rapaz. – Camisa de Chocalho estendeu a mão para sua espada.

– Tem certeza? – Ygritte soltou uma gargalhada.

Sobre as pedras da muralha anelar, Fantasma baixava a cabeça, com os pelos brancos eriçados. Não soltava um som, mas seus olhos vermelho-escuros falavam de sangue. O Senhor dos Ossos afastou lentamente a mão da espada, recuou um passo, e deixou-os com uma praga.

Fantasma caminhou ao lado dos garranos de Jon e Ygritte enquanto desciam o Punho. Só quando já estavam no meio da travessia do Guadeleite é que Jon se sentiu suficientemente em segurança para dizer:

– Não pedi para você mentir por mim.

– Não menti – disse ela. – Só não lhes contei uma parte, nada mais.

– Disse...

– ... que fodemos muitas noites debaixo de seu manto. Mas não lhes disse quando começamos. – O sorriso que lhe deu era quase tímido. – Arranje outro lugar para o Fantasma dormir esta noite, Jon Snow. É como o Mance diz: as ações são mais verdadeiras do que as palavras.

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