Epílogo

A estrada que levava a Pedravelhas rodeava duas vezes o monte antes de chegar ao cume. Cheia de vegetação e pedregosa, teria causado um avanço lento mesmo no melhor dos tempos, mas a nevasca da noite anterior deixara-a também lamacenta. Neve no outono nas terras fluviais, não é natural, pensou sombriamente Merrett. Não tinha sido uma grande nevasca, era certo, só o suficiente para atapetar o solo durante uma noite. A maior parte começou a derreter assim que o sol surgiu. Mesmo assim, Merrett havia considerado isso um mau presságio. Entre chuvas, inundações, fogo e guerra, tinham perdido duas colheitas e boa parte de uma terceira. Um inverno prematuro significaria a fome por todas as terras fluviais. Muitas pessoas passariam fome e algumas morreriam. Merrett só esperava não ser uma dessas pessoas. Mas posso vir a ser. Com a minha sorte, posso mesmo. Nunca tive sorte nenhuma.

À sombra das ruínas do castelo, as vertentes inferiores do monte estavam cobertas por uma floresta tão densa que meia centena de fora da lei podia perfeitamente estar ali escondida. Podem estar me observando agora mesmo. Merrett olhou em volta, e nada viu além de tojo, fetos, cardos, junco e amoreiras-silvestres entre os pinheiros e as sentinelas cinza-esverdeadas. Em outros pontos, olmos e freixos despidos de folhas e carvalhos pequenos sufocavam o terreno como ervas daninhas. Não viu nenhum fora da lei, mas isso pouco queria dizer. Os fora da lei eram melhores em se esconder do que os homens honestos.

A bem da verdade, Merrett odiava a floresta, e odiava ainda mais os fora da lei. “Os fora da lei roubaram-me a vida”, fora ouvido protestando quando estava de pileque. Estava de pileque com demasiada frequência, dizia o pai, frequente e ruidosamente. É bem verdade, pensou, pesaroso. Nas Gêmeas era preciso arranjar uma distinção qualquer, caso contrário eram capazes de se esquecer de sua existência, mas descobrira que uma reputação como o maior bebedor do castelo pouco havia feito para melhorar as suas chances. Um dia esperei me tornar o maior cavaleiro que algum dia baixou uma lança para o ataque. Os deuses roubaram-me isso. Por que não haveria de beber uma taça de vinho de vez em quando? Ajuda minhas dores de cabeça. Além disso, minha mulher é uma megera, meu pai despreza-me, meus filhos são inúteis. O que tenho eu que me leve a ficar sóbrio?

Mas agora estava sóbrio. Bem, tinha bebido dois cornos de cerveja quando quebrou o jejum e uma pequena taça de tinto quando se pôs a caminho, mas isso havia sido apenas para evitar que a cabeça latejasse. Merrett sentia a dor de cabeça preparando-se atrás dos olhos e sabia que se lhe desse meia oportunidade, em breve se sentiria como se tivesse uma trovoada entre as orelhas. Às vezes, as dores de cabeça eram tão fortes que até chorar doía demais. Então tudo o que conseguia fazer era ficar deitado na cama, num quarto escuro, com um pano úmido por cima dos olhos, e amaldiçoar a sorte e o fora da lei anônimo que lhe fizera aquilo.

Só de pensar nisso, ficava ansioso. Agora não podia se dar ao luxo de ter uma dor de cabeça. Se trouxer o Petyr de volta em segurança, a minha sorte mudará. Levava o ouro, tudo que tinha de fazer era subir ao topo de Pedravelhas, encontrar-se no castelo arruinado com os malditos fora da lei, e fazer a troca. Um simples resgate. Nem ele poderia estragar aquilo... a menos que tivesse uma dor de cabeça, uma tão forte que o deixasse incapaz de montar a cavalo. Devia estar nas ruínas até o pôr do sol, não choramingando enrolado sobre si mesmo à beira da estrada. Merrett esfregou as têmporas com dois dedos. Mais uma volta ao monte e estarei lá. Quando a mensagem tinha chegado e ele se ofereceu para levar o resgate, o pai olhou-o de viés e disse:

Você, Merrett? – e desatou a rir pelo nariz, aquele hediondo heh, heh, heh que fazia quando ria. Merrett tinha sido praticamente obrigado a suplicar antes de lhe darem o maldito saco de ouro.

Algo se moveu na vegetação rasteira ao longo da beira da estrada. Merrett puxou as rédeas com força e levou a mão à espada, mas era apenas um esquilo.

– Estúpido – disse a si mesmo, voltando a enfiar a espada na bainha sem ter chegado a desembainhá-la por completo. – Os fora da lei não têm cauda. Maldito inferno, Merrett, controle-se. – Seu coração estava aos saltos no peito, como se fosse um rapazinho verde em sua primeira campanha. Como se esta fosse a mata do rei e eu me preparasse para enfrentar a antiga Irmandade, em vez do patético bando de salteadores do Senhor do Relâmpago. Por um momento sentiu-se tentado a dar meia-volta e trotar monte abaixo, em busca da cervejaria mais próxima. Aquele saco de ouro compraria um monte de cerveja, suficiente para que se esquecesse por completo de Petyr Espinha. Que o enforquem, foi ele que fez com que isso lhe acontecesse. Não é mais do que merece, depois de ir atrás de uma seguidora de acampamentos qualquer como se fosse um veado no cio.

Sua cabeça tinha começado a doer; por enquanto pouco, mas sabia que pioraria. Merrett esfregou a ponte do nariz. Na realidade não tinha nenhum direito de pensar tão mal de Petyr. Eu próprio fiz o mesmo quando era da idade dele. No seu caso, tudo que o ato tinha lhe custado foi uma gonorreia, mesmo assim não devia condenar o outro. As prostitutas tinham encantos, especialmente quando se tinha um rosto como o de Petyr. O pobre moço tinha uma esposa, com certeza, mas ela era metade do problema. Não só tinha o dobro de sua idade, como andava dormindo também com o irmão Walder, se o que se contava fosse verdade. Havia sempre muito falatório nas Gêmeas, e só uma pequena parte era verdade, mas naquele caso Merrett acreditava. Walder Negro era um homem que tomava aquilo que desejava, mesmo se fosse a mulher do irmão. Também possuíra a mulher de Edwyn, isso era de conhecimento geral. Sabia-se que a Bela Walda se enfiava em sua cama de tempos em tempos, e havia até quem dissesse que ele havia conhecido a sétima Senhora Frey bastante melhor do que deveria. Pouco admirava que se recusasse a se casar. Para que comprar uma vaca quando havia úberes por todo lado suplicando que os ordenhasse?

Praguejando em surdina, Merrett enfiou os calcanhares nos flancos do cavalo e retomou a subida. Por mais tentador que fosse detonar o ouro em bebida, sabia que se não voltasse com Petyr Espinha melhor seria não voltar nunca mais.

Lorde Walder faria noventa e dois anos em breve. Seus ouvidos tinham começado a fraquejar, os olhos já quase não funcionavam, e a gota estava tão ruim que tinha de ser carregado para todo lado. Todos os filhos concordavam que não era possível que durasse muito mais tempo. E quando ele se for, tudo mudará, e não para melhor. O pai era queixoso e teimoso, com uma vontade de ferro e uma língua viperina, mas acreditava em cuidar dos seus. De todos os seus, mesmo daqueles que lhe desagradaram e o desapontaram. Até daqueles de cujo nome não se lembra. Mas quando ele se fosse...

Quando Sor Stevron era o herdeiro, tudo era diferente. O velho passara sessenta anos treinando Stevron, e enfiou na cabeça dele que sangue era sangue. Mas Stevron tinha morrido em campanha com o Jovem Lobo no oeste – “da espera, sem dúvida”, gracejou Lothar Coxo quando o corvo lhes trouxe a notícia –, e seus filhos e netos eram uma espécie diferente de Frey. Agora o herdeiro era o filho de Stevron, Sor Ryman; um homem obtuso, teimoso e ganancioso. E depois de Ryman vinham os filhos, Edwyn e Walder Negro, que eram ainda piores.

– Felizmente – disse uma vez Lothar Coxo – odeiam-se ainda mais um ao outro do que nos odeiam.

Merrett não tinha certeza de que isso fosse auspicioso, e, já agora, o próprio Lothar podia ser mais perigoso do que qualquer dos outros dois. Lorde Walder tinha ordenado o massacre dos Stark no casamento de Roslin, mas foi Lothar Coxo quem o planejou com Roose Bolton, até o ponto de escolher que canções seriam tocadas. Lothar era um tipo muito divertido para uma bebedeira em conjunto, mas Merrett nunca seria tolo o suficiente para lhe virar as costas. Nas Gêmeas aprendia-se bem cedo que só se podia confiar nos irmãos de pai e mãe, e mesmo nesses não até muito longe.

Era provável que quando o velho morresse fosse cada filho por si, e cada filha também. O novo Senhor da Travessia manteria nas Gêmeas, sem dúvida, alguns de seus tios, sobrinhos e primos, aqueles de que gostasse ou em quem confiasse, ou, o que era mais provável, aqueles que achasse que lhe seriam úteis. O resto de nós será posto para fora, para nos virarmos sozinhos.

A perspectiva preocupava Merrett mais do que as palavras podiam exprimir. Faria quarenta anos dentro de menos de três, era velho demais para adotar a vida de cavaleiro andante... mesmo se fosse um cavaleiro, o que no caso não era. Não possuía terras nem riquezas que fossem suas. Possuía as roupas que trazia no corpo mas não muito mais, nem mesmo o cavalo que montava. Não era suficientemente inteligente para ser um meistre, não era suficientemente piedoso para septão ou selvagem o bastante para mercenário. Os deuses não me deram nenhum dom além do nascimento, e mesmo aí limitaram-me. De que servia ser filho de uma Casa rica e poderosa, quando se era o nono filho? Quando se levava em conta os netos e bisnetos, Merrett tinha mais chances de ser escolhido Alto Septão do que de herdar as Gêmeas.

Não tenho sorte nenhuma, pensou amargamente. Nunca tive nenhuma maldita sorte. Era um homem grande, largo de peito e ombros, apesar da altura mediana. Ao longo dos últimos dez anos tornara-se mole e carnudo, bem sabia, mas quando era mais novo, Merrett tinha sido quase tão robusto quanto Sor Hosteen, seu irmão de pai e mãe mais velho, que era habitualmente considerado o mais forte dos filhos de Lorde Walder Frey. Quando garoto, tinha sido enviado para Crakehall, a fim de servir a família da mãe como pajem. Quando o velho Lorde Sumner fez dele escudeiro, todos assumiram que se tornaria Sor Merrett em não mais do que alguns anos, mas os fora da lei da Irmandade da Mata de Rei tinham cagado nesses planos. Enquanto seu colega escudeiro Jaime Lannister se cobria de glória, Merrett começou por pegar uma gonorreia de uma seguidora de acampamentos e depois conseguiu ser capturado por uma mulher, aquela que chamavam de Cerva Branca. Lorde Sumner resgatou-o dos fora da lei, mas na batalha seguinte foi derrubado com um golpe de maça que lhe quebrou o elmo e o deixou sem sentidos durante uma quinzena. Disseram-lhe mais tarde que todos julgaram que morreria.

Merrett não tinha morrido, mas seus dias de luta tinham terminado. Até a mais leve pancada na cabeça lhe causava uma dor que o cegava e o reduzia às lágrimas. Sob tais circunstâncias, a cavalaria estava fora de questão, disse-lhe Lorde Sumner, não sem gentileza. Foi enviado de volta às Gêmeas para enfrentar o venenoso desdém de Lorde Walder.

Depois disso a sorte de Merrett só piorou. O pai tinha conseguido de algum modo arranjar-lhe um bom casamento; casou-se com uma das filhas de Lorde Darry, na época em que os Darry ainda se mantinham numa posição elevada nos favores do Rei Aerys. Mas pareceu que assim que deflorou a sua noiva, Aerys perdeu o trono. Ao contrário dos Frey, os Darry tinham sido proeminentes lealistas Targaryen, o que lhes custou metade das terras, a maior parte da fortuna e quase todo o poder. E quanto à senhora sua esposa, achara-o uma grande desilusão desde o primeiro momento e insistiu em levar anos pondo no mundo nada mais do que meninas: três vivas, uma natimorta e outra que morreu na infância, antes de finalmente gerar um filho. A filha mais velha revelou-se uma devassa; a segunda, uma glutona. Quando Ami foi pega nos estábulos com nada menos do que três palafreneiros, foi forçado a casá-la com um maldito cavaleiro andante. Essa situação não podia se tornar pior, tinha pensado... até Sor Pate decidir que poderia ganhar renome derrotando Sor Gregor Clegane. Ami voltou correndo, transformada em viúva, para consternação de Merrett e indubitável deleite de todos os cavalariços das Gêmeas.

Merrett atreveu-se a esperar que a sua sorte estivesse finalmente mudando quando Roose Bolton escolheu casar-se com a sua Walda, em vez de alguma de suas primas mais magras e mais agradáveis à vista. A aliança Bolton era importante para a Casa Frey e a filha ajudara a garanti-la; tinha achado que aquilo certamente contaria para alguma coisa. O velho rapidamente o desenganou.

– Ele escolheu-a porque é gorda – disse Lorde Walder. – Pensa que o Bolton não esteve se cagando para o fato de ser cria sua? Acha que ele se sentou para pensar: “Heh, Merrett Cabeça de Carneiro, é esse mesmo o homem de que preciso para meu sogro? Sua Walda é uma porca vestida de seda, foi por isso que ele a escolheu, e eu não vou lhe agradecer por isso. Teríamos obtido a mesma aliança por metade do preço, se a sua porquinha largasse a colher de vez em quando.”

A humilhação final foi entregue com um sorriso, quando Lothar Coxo o chamou para discutir o seu papel no casamento de Roslin.

– Todos temos de desempenhar o nosso papel, de acordo com os nossos dons – tinha dito o meio-irmão. – Você terá uma tarefa e só uma, Merrett, mas creio que está habilitado para ela. Quero que se assegure de que o Grande-Jon Umber fique tão bêbado que quase não consiga manter-se em pé, quanto mais lutar.

E mesmo nisso falhei. Levou o enorme nortenho a beber vinho suficiente para matar três homens normais, mas depois de Roslin ter sido levada para a cama, o Grande-Jon ainda conseguiu tirar a espada do primeiro homem que o abordou, quebrando o braço dele ao fazê-lo. Tinham sido precisos oito homens para acorrentá-lo, e o esforço deixou dois homens feridos, um morto e o pobre e velho Sor Leslyn Haigh com uma orelha a menos. Quando deixou de conseguir lutar com as mãos, Umber lutou com os dentes.

Merrett fez um momento de pausa e fechou os olhos. Sua cabeça latejava como aquele maldito tambor que havia sido tocado no casamento, e durante um momento foi com dificuldade que conseguiu se manter na sela. Tenho de continuar, disse a si mesmo. Se pudesse trazer de volta o Petyr Espinha, isso certamente o poria nas boas graças de Sor Ryman. Petyr podia ser um ramo do lado sem sol, mas não era tão frio quanto Edwyn nem tão quente quanto o Walder Negro. O rapaz ficará grato por meu papel, e o seu pai verá que sou leal, um homem que vale a pena ter por perto.

Mas só se estivesse lá com o ouro até o pôr do sol. Merrett olhou o céu de relance. Bem a tempo. Precisava de algo para firmar suas mãos. Puxou o odre que pendia da sela, tirou a rolha dele e bebeu um longo trago. O vinho era espesso e doce, tão escuro que quase chegava a ser negro, mas, deuses, era bom.

A muralha exterior de Pedravelhas rodeara em outros tempos o cume do monte como uma coroa adorna a cabeça de um rei. Só restavam as fundações e algumas pilhas de pedras partidas e manchadas de líquenes que lhe davam na altura da cintura. Merrett avançou ao longo da linha da muralha até chegar ao local onde a guarita deveria existir. As ruínas eram mais abundantes ali, e ele teve de desmontar para atravessá-las com o palafrém. A oeste, o sol havia desaparecido atrás de um banco de nuvens baixas. Tojo e fetos cobriam as vertentes, e dentro das muralhas desaparecidas as ervas daninhas batiam em sua cintura. Merrett desprendeu a espada dentro da bainha e olhou em volta com cautela, mas não viu nenhum fora da lei. Será que vim no dia errado? Parou e esfregou as têmporas com os polegares, mas isso em nada contribuiu para aliviar a pressão por trás de seus olhos. Sete malditos infernos...

De algum lugar, bem dentro do castelo, uma música tênue chegou-lhe por entre as árvores.

Merrett viu-se tremendo, apesar do manto. Abriu o odre e bebeu outro gole de vinho. Podia simplesmente voltar, cavalgar para Vilavelha e detonar o ouro em bebida. Nunca se conseguia nada de bom tratando com um bando de fora da lei. Aquela vil cadela da Wenda tinha marcado sua nádega com uma cerva quando o teve cativo. Não admirava que a esposa o desprezasse. Tenho de levar isto até o fim. Petyr Espinha poderá ser um dia Senhor da Travessia, Edwyn não tem filhos eWalder Negro só tem bastardos. Petyr vai se lembrar de quem veio buscá-lo. Bebeu outro gole, devolveu a rolha ao odre e levou o palafrém através de pedras quebradas, tojo e árvores esguias chicoteadas pelo vento, seguindo os sons até o que tinha sido o pátio do castelo.

Folhas caídas jaziam em grande número no chão, como soldados após alguma grande matança. Um homem vestido de traje verde remendado e desbotado estava sentado de pernas cruzadas num desgastado sepulcro de pedra, dedilhando as cordas de uma harpa. A música era suave e triste. Merrett conhecia a canção. No alto dos salões dos reis que partiram, Jenny dançava com os seus fantasmas...

– Saia daí – disse Merrett. – Está sentado em cima de um rei.

– O velho Tristifer não vai se importar com o meu traseiro ossudo. Chamavam-lhe o Martelo da Justiça. Há muito tempo que não ouve canções novas. – O fora da lei saltou para o chão. Saudável e magro, tinha um rosto estreito e feições de raposa, mas a boca era tão larga que o sorriso parecia tocar suas orelhas. Algumas madeixas de cabelo castanho eram sopradas sobre a sua testa. Empurrou-as para trás com a mão livre e disse: – Lembra-se de mim, senhor?

– Não. – Merrett franziu a testa. – Por que haveria de me lembrar?

– Cantei no casamento de sua filha. E creio que bastante bem. Aquele Pate com quem ela se casou era meu primo. Somos todos primos em Seterrios. Isso não o impediu de se tornar sovina quando chegou a hora de me pagar. – Encolheu os ombros. – Por que é que o senhor seu pai nunca me chamou para tocar nas Gêmeas? Será que não faço barulho suficiente para sua senhoria? Segundo o que tenho ouvido, ele gosta da coisa barulhenta.

– Traz o ouro? – perguntou uma voz mais ríspida, atrás de si.

A garganta de Merrett estava seca. Malditos fora da lei, sempre escondidos nos arbustos. Tinha sido a mesma coisa na mata do rei; apanhava-se cinco deles, e outros dez saltavam de lugar nenhum.

Quando se virou, rodeavam-no por todos os lados; um infeliz bando de velhos com rosto enrugado e rapazes de face lisa, mais novos do que o Petyr Espinha, todos eles vestidos de farrapos de tecido grosseiro, couro fervido e partes de armaduras pertencentes a homens mortos. Havia uma mulher com eles, enrolada num manto com capuz que era três vezes maior do que devia ser para lhe servir. Merrett estava perturbado demais para contá-los, mas pareciam ser pelo menos uma dúzia, talvez uma vintena.

– Eu fiz uma pergunta. – Quem falou foi um homem grande e barbudo com dentes tortos e verdes e um nariz quebrado; mais alto do que Merrett, embora não tão pesado na barriga. Um meio-elmo cobria sua cabeça e um remendado manto amarelo, os ombros largos. – Onde está seu ouro?

– No alforje. Cem dragões de ouro. – Merrett pigarreou. – Vão recebê-los quando eu vir que Petyr...

Um fora da lei atarracado e zarolho avançou antes de ele conseguir terminar, estendeu a mão para o alforje com uma ousadia que só vendo e encontrou o saco. Merrett fez um movimento para agarrá-lo, mas depois pensou duas vezes. O fora da lei abriu o cordel, tirou uma moeda e mordeu-a.

– Tem o sabor certo. – Sopesou o saco. – E também tem o peso certo.

Eles vão roubar o ouro e ficar com Petyr, pensou Merrett num súbito pânico.

– Isso é o resgate completo. Tudo que pediram. – As palmas de suas mãos suavam. Limpou-as nos calções. – Qual de vocês é Beric Dondarrion? – Dondarrion era um senhor antes de se tornar fora da lei, podia ainda ser um homem de honra.

– Ora, sou eu – disse o zarolho.

– É um diabo de um mentiroso, Jack – disse o barbudo grande com o manto amarelo. – É a minha vez de ser Lorde Beric.

– Isso quer dizer que eu tenho de ser Thoros? – o cantor riu. – Senhor, lamento dizer, mas Lorde Beric foi exigido em outro local. Os tempos que correm são difíceis, e há muitas batalhas a travar. Mas nós lidaremos com você tal como ele lidaria, nada tema.

Merrett temia muitas coisas. E a cabeça latejava. Muito mais daquilo, e estaria soluçando.

– Vocês têm o seu ouro – disse. – Deem-me o meu sobrinho, e eu vou embora. – Petyr era na realidade um meio-sobrinho-neto, mas não havia necessidade de entrar nesses detalhes.

– Ele está no bosque sagrado – disse o homem com o manto amarelo. – Vamos levá-lo até ele. Notch, segure o cavalo dele.

Merrett entregou relutantemente o arreio. Não via outra alternativa.

– Meu odre – ouviu-se dizendo. – Um gole de vinho, para sossegar a minha...

– Nós não bebemos com gente como você – disse bruscamente o do manto amarelo. – É por aqui. Siga-me.

Folhas esmagaram-se sob os calcanhares do grupo, e cada passo enfiou um espeto de dor nas têmporas de Merrett. Caminharam em silêncio, com o vento soprando em rajadas em volta deles. Tinha nos olhos a última luz do sol poente enquanto ia tropeçando nos montículos cobertos de musgo que eram tudo o que restava da fortaleza. Atrás dela ficava o bosque sagrado.

Petyr Espinha pendia do galho de um carvalho, com um nó corredio bem apertado em volta de seu pescoço longo e esguio. Os olhos saltavam de um rosto negro, olhando acusadoramente para Merrett. Chegou tarde demais, pareciam dizer. Mas não tinha chegado. Não tinha! Veio quando lhe tinham dito para vir.

– Mataram-no – coaxou.

– Inteligência aguçada como uma agulha, a deste – disse o zarolho.

Um auroque trovejava na cabeça de Merrett. Mãe, misericórdia, pensou.

– Eu trouxe o ouro.

– Isso foi bom de sua parte – disse amigavelmente o cantor. – Vamos nos certificar de que lhe seja dado bom uso.

Merrett afastou os olhos de Petyr. Sentia o sabor da bílis na garganta.

– Vocês... vocês não tinham direito de fazer isso.

– Tínhamos uma corda – disse o do manto amarelo. – Isso é direito suficiente.

Dois dos fora da lei agarraram os braços de Merrett e ataram-nos firmemente por trás das costas. Estava num choque profundo demais para oferecer resistência.

– Não – foi tudo que conseguiu dizer. – Eu só vim resgatar o Petyr. Disseram que se tivessem o ouro até o pôr do sol não lhe fariam mal...

– Bem – disse o cantor –, com essa nos pegou, senhor. Acontece que isso foi uma espécie de mentira.

O fora da lei zarolho avançou com um longo rolo de corda de cânhamo. Enrolou uma ponta em volta do pescoço de Merrett, apertou-a bem, e atou um nó forte por baixo de sua orelha. A outra ponta foi atirada por cima do galho do carvalho. O grandalhão do manto amarelo pegou-a.

– O que está fazendo? – Merrett sabia como aquilo parecia estúpido, mas não conseguia acreditar no que estava acontecendo, mesmo então. – Nunca se atreveriam a enforcar um Frey.

O do manto amarelo soltou uma gargalhada.

– Aquele outro, o rapaz das espinhas, disse a mesma coisa.

Ele não fala a sério. Não pode falar a sério.

– Meu pai vai pagá-los. Eu valho um grande resgate, mais do que Petyr, duas vezes mais.

O cantor suspirou.

– Lorde Walder pode estar meio cego e artrítico, mas não é tão burro para morder a mesma isca duas vezes. Temo que da próxima vez envie uma centena de espadas em vez de uma centena de dragões.

– E enviará mesmo! – Merrett tentou soar severo, mas a voz traiu-o. – Enviará mil espadas e matará todos vocês.

– Tem de nos pegar primeiro. – O cantor olhou de relance o pobre Petyr. – E não pode nos enforcar duas vezes, não é? – arrancou um acorde melancólico das cordas de sua harpa. – Vamos, não se borre todo. Tudo que tem de fazer é responder-me uma pergunta, e eu direi para o deixarem partir.

Merrett diria qualquer coisa se isso quisesse dizer que salvaria a vida.

– O que você quer saber? Direi a verdade, juro.

O fora da lei dirigiu-lhe um sorriso encorajador.

– Bem, acontece que andamos à procura de um cão que fugiu.

– Um cão? – Merrett não estava entendendo. – Que tipo de cão?

– Ele responde pelo nome de Sandor Clegane. Thoros diz que se dirigia às Gêmeas. Encontramos os barqueiros que fizeram a travessia do Tridente com ele, e o pobre diabo que assaltou na estrada do rei. Por acaso o viu no casamento?

– No Casamento Vermelho? – Merrett sentia-se como se o crânio estivesse prestes a explodir, mas fez o melhor que pôde para se lembrar. Houve tanta confusão, mas certamente alguém teria falado do cão de Joffrey se o tivessem visto farejando em volta das Gêmeas. – Ele não estava no castelo. Pelo menos não no banquete principal... pode ter estado no banquete bastardo, ou nos acampamentos, mas... não, alguém teria dito...

– Ele estaria acompanhado por uma criança – disse o cantor. – Uma menina magricela, com cerca de dez anos. Ou talvez um garoto da mesma idade.

– Acho que não – disse Merrett. – Que eu saiba, não.

– Não? Ah, que pena. Bem, então vai subir.

Não – guinchou Merrett sonoramente. – Não, não faça isso, eu dei a sua resposta, disse que me deixaria partir.

– Parece-me que o que eu disse foi que lhes diria para deixarem-no partir. – O cantor olhou para o do manto amarelo. – Limo, deixe-o partir.

– Vá se foder – replicou bruscamente o fora da lei grandalhão.

O cantor ofereceu a Merrett um encolher de ombros impotente e começou a tocar “O dia em que enforcaram o Robin Negro”.

Por favor. – O resto da coragem de Merrett escorria-lhe perna abaixo. – Eu não lhes fiz mal. Trouxe o ouro, como ordenaram. Respondi à pergunta. Tenho filhos.

– Que o Jovem Lobo nunca terá – disse o fora da lei zarolho.

Merrett quase não conseguia pensar devido ao latejar na sua cabeça.

– Ele envergonhou-nos, o reino inteiro estava rindo, tínhamos de limpar a mancha em nossa honra. – O pai tinha dito tudo aquilo e mais ainda.

– Talvez. O que sabe uma porcaria de um bando de camponeses sobre a honra de um lorde? – o do manto amarelo deu três voltas ao redor da mão com a ponta da corda. – Mas sabemos umas coisas a respeito de assassinato.

– Não foi assassinato. – Tinha a voz esganiçada. – Foi vingança, nós tínhamos direito à nossa vingança. Foi a guerra. Aegon, nós o chamávamos de Guizo, um pobre débil mental que nunca fez mal a ninguém, a Senhora Stark cortou a goela dele. Perdemos meia centena de homens nos acampamentos. Sor Garse Goodbrook, marido de Kyra, e Sor Tytos, filho de Jared... alguém esmagou a cabeça dele com um machado... o lobo gigante do Stark matou quatro de nossos lobeiros e arrancou o braço do mestre dos canis de seu ombro, mesmo depois de o enchermos de dardos...

– E por isso costurou a cabeça dele ao pescoço de Robb Stark depois que os dois estavam mortos – disse o do manto amarelo.

– Foi o meu pai que fez isso. Tudo o que eu fiz foi beber. Não mataria um homem por beber. – Merrett lembrou-se então de uma coisa, uma coisa que podia ser a sua salvação. – Dizem que Lorde Beric sempre concede um julgamento, que não mata nenhum homem a menos que algo seja provado contra ele. O Casamento Vermelho foi obra de meu pai, e de Ryman e de Lorde Bolton. Lothar armou as tendas de maneira a caírem e pôs os besteiros na galeria com os músicos, Walder Bastardo liderou o ataque aos acampamentos... são eles que querem, não eu, eu só bebi um pouco de vinho... vocês não têm testemunhas.

– Pois acontece que aí se engana. – O cantor virou-se para a mulher encapuzada. – Senhora?

Os fora da lei afastaram-se quando ela avançou, sem dizer palavra. Quando abaixou o capuz, algo se apertou no peito de Merrett, e por um momento não conseguiu respirar. Não. Não, eu a vi morrer. Ela esteve morta durante um dia e uma noite antes de despirem-na e atirarem seu corpo no rio. Raymund abriu a garganta dela de orelha a orelha. Ela estava morta.

O manto e o colarinho escondiam o golpe que a lâmina do irmão tinha feito, mas seu rosto estava em estado pior ainda do que ele se lembrava. A carne tornara-se esponjosa na água e tomara a cor do leite coalhado. Metade dos cabelos tinha desaparecido, e o resto ficou tão branco e quebradiço como o de uma velha. Sob o couro cabeludo destroçado, o rosto era feito de pele rasgada e sangue negro, nos locais em que a cortara com as próprias unhas. Mas os olhos eram aquilo que tinha de mais terrível. Os olhos viam-no, e o odiavam.

– Ela não fala – disse o homem grande do manto amarelo. – Vocês, malditos bastardos, cortaram a garganta dela fundo demais para isso. Mas ela lembra-se. – Virou-se para a morta e disse: – O que diz, senhora? Ele participou?

Os olhos da Senhora Catelyn não o deixaram por um instante. Assentiu com a cabeça.

Merrett Frey abriu a boca para suplicar, mas o nó corredio afogou suas palavras. Seus pés deixaram o chão, enquanto a corda cortava profundamente a carne mole por baixo de seu queixo. Subiu, esperneando e torcendo-se, subiu, subiu, e subiu.

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