AS AREIAS DO TEMPO
Escrito por Sidney Sheldon, em 1989,
10ª EDIÇÃO
A Espanha, com suas paixões ardentes, ainda dilacerada pelos ódios da sangrenta Guerra Civil, é o cenário deste novo e inesquecível romance de Sidney Sheldon, o autor mais lido no mundo. A história se passa logo depois da morte de Francisco Franco, o ditador que governou o país com mãos de ferro por quase quarenta anos.
Em 1976, o carismático e idealista líder do proscrito movimento separatista basco, Jaime Miró, liberta da cadeia em Pamplona dois companheiros condenados à morte e foge, perseguido pela polícia e pelo exército.
O cruel e vingativo Ramón Acoca, no comando da implacável perseguição, desconfia de que os bascos estão refugiados num convento cisterciense nos arredores de Ávila e resolve invadi-lo. Essa decisão desencadeia acontecimentos que vão repercutir-se e emocionar as pessoas do mundo inteiro, que por duas semanas acompanharão atentas a uma terrível caçada humana.
Na pungente beleza da região rural espanhola, o convento repousa, em eterna devoção a Deus. Mas mesmo aí os conflitos do mundo eclodem. As freiras desta ordem, uma das mais rigorosas do mundo, obrigadas ao silêncio total e à reclusão absoluta, subitamente expulsas do ambiente aconchegante e seguro do convento, são brutalizadas e levadas para Madrid, presas. Mas quatro conseguem escapar e, arremessadas no perigo e na aventura, vêem-se presas de paixões proibidas a que não podem ceder mas não ousam negar.
Irmã Teresa, a mais velha, com sessenta e poucos anos, estava no convento há trinta anos, fugindo do destino implacável que lhe concedera uma voz maravilhosa e um rosto feio, uma linda irmã e a desilusão com o único homem que amou em toda a sua vida.
Irmã Lucia, ardorosa beleza siciliana, estava há poucos meses no convento, um refúgio de uma vida sobressaltada e nebulosa, envolvida com a Máfia e procurada em toda a Europa por dois assassinatos. Rubio Arzano, o fiel guerreiro, arrisca a vida para salvá-la, mesmo sabendo que nunca poderá possuí-la.
Irmã Graciela é uma linda jovem que entrou para o convento ainda adolescente, angustiada e desesperada, sem jamais ter conhecido um momento sequer de paz e amor, o que vai encontrar entre as freiras cistercienses. É o bravo Ricardo Melhado, que renunciou à sua herança para lutar pela causa em que acredita, quem deseja desesperadamente casar com essa irresistível beldade espanhola.
Irmã Megan é loura, de um tipo que não parece espanhol, abandonada ainda bebê na casa de um camponês nos arredores de Ávila, criada num orfanato; entrou para o convento porque não tinha para onde ir, mas vive torturada pela ansiedade em descobrir quem é, que foram seus pais, por que a abandonaram.
As Areias do Tempo é uma aventura inesquecível, que combina ação constante e atrações irresistíveis, com um suspense excepcional, as descobertas se sucedendo a todo o instante, no ritmo vertiginoso e fascinante que só o autor extraordinário como Sidney Sheldon é capaz de oferecer.
Sidney Sheldon é o autor de O Outro Lado da Meia-Noite, Um Estranho no Espelho, A Outra Face, A Herdeira, A Ira dos Anjos, Se Houver Amanhã e Um Capricho dos Deuses, todos bestsellers internacionais. A Outra Face foi aclamado pelo New York Times como "o melhor romance de mistério do ano". Sheldon ganhou um Prémio Tony pela peça da Broadway Redhead e um Oscar por The Bachelor and the Bobby Soxer. Escreveu roteiros de vários filmes e criou quatro séries de longa duração para a televisão, incluive Hart to Hart (Casal Vinte, no Brasil) e I Dream of Jeannie (Jeannie É um Gênio), que produziu e dirigiu. Sidney Sheldon vive no Sul da Califórnia e admite ser fanático pelo trabalho. "Não posso evitar", diz ele. "Adoro escrever".
Seus romances, inclusive o mais recente, Um Capricho dos Deuses, foram todos primeiros lugares nas listas de bestellers, e alguns foram transformados em minesséries de grande sucesso para a TV.
AGRADECIMENTO
Meus agradecimentos especiais a Alice Fischer, cuja ajuda na pesquisa para este romance foi inestimável.
MENSAGENS
As vidas de todos os grandes homens lembram
Que podemos tornar nossas vidas sublimes,
E, ao partirmos, deixar para trás
Pegadas nas Areias do Tempo
Henry Woodsworth Longfellow
Um Salmo da Vida
Os mortos não precisam levantar. São uma parte da terra agora, e a terra nunca pode ser conquistada, sobreviverá a todos os sistemas de tirania.
Aqueles que nela entraram de maneira honrada - e não houve homens que entraram mais honrosamente do que os que morreram na Espanha - já alcançaram a imortalidade.
Ernest Hemingway
A Espanha dilacerou a terra com unhas,
Quando Paris era mais bela.
A Espanha projetou sua vasta árvore de sangue,
Quando Londres cuidava de seu jardim e seu lago de cisnes.
Pablo Neruda
Nota do Autor
Esta é uma obra de fição. E, no entanto…
A terra romântica do flamenco e Dom Quixote, de señoritas de aparências exóticas, com travessas de casco de tartaruga nos cabelos, é também a terra de Torquemada, da Inquisição espanhola e de uma das mais sangrentas guerras civis da história. Mais de meio milhão de pessoas morreram nas batalhas pelo poder entre os republicanos e os rebeldes nacionalistas da Espanha. Em 1939, entre Fevereiro e Junho, foram cometidos 269 assassinatos políticos, e os nacionalistas executaram, em média, mil republicanos por mês, sem permissão para o lamento.
Foram incendiadas e destruídas 160 igrejas, e freiras foram arrancadas à força de conventos, "como se fossem prostitutas num bordel", escreveu o duque de Saint-Simon, a respeito de um conflito anterior entre o governo espanhol e a igreja. Sedes de jornais foram saqueadas, e greves e motins tornaram-se endémicos em todo o país. A guerra civil terminou com a vitória dos nacionalistas, sob o comando de Franco; depois da sua morte, a Espanha tornou-se uma monarquia.
A Guerra Civil, que se prolongou de 1936 a 1939, pode estar oficialmente encerrada, mas as duas Espanhas que lutaram nunca se reconciliaram. Hoje, outra guerra continua a assolar a Espanha, a guerra de guerrilha travada pelos bascos para recuperarem a autonomia que tinham sob a República e perderam com o regime de Franco. A guerra está sendo travada com atentados a bomba, assaltos a bancos para financiar os atentados, assassinatos e distúrbios.
Quando um membro da ETA, um grupo guerrilheiro basco clandestino, morreu num hospital de Madrid, após ser torturado pela polícia, os distúrbios subsequentes em todo o país levaram à demissão do diretor-geral da polícia espanhola, cinco chefes de segurança e duzentos altos funcionários policiais.
Em 1986, em Barcelona, os bascos queimaram a bandeira espanhola em público; em Pamplona, milhares de pessoas fugiram apavoradas quando nacionalistas bascos entraram em conflito com a polícia, numa sucessão de motins que se espalhava por toda a Espanha e ameaçaram a estabilidade do governo. A polícia paramilitar retaliou com a maior violência, disparando a esmo contra casas e lojas de bascos. O terrorismo continua, e é mais violento que nunca.
Esta é uma obra de fição. E, no entanto…
Capítulo 1
PAMPLONA, ESPANHA 1976
Se o plano falhar, todos nós morreremos. Ele repassou-o mentalmente pela última vez, sonhando, avaliando, à procura de defeitos. Não encontrou nenhum. O plano era usado e exigia um cálculo do tempo cuidadoso, em frações de segundos. Se desse certo, seria um feito espetacular, digno de El Cid. Se falhasse…
"Bom, o tempo de se preocupar já passou", pensou Jaime Miró. "É tempo de ação".
Jaime Miró era um mito, um herói para o povo basco e anátema para o governo espanhol. Tinha mais de um metro e oitenta de altura, rosto forte e inteligente, corpo musculoso e olhos escuros taciturnos. Testemunhas tendiam a descrevê-lo como mais alto do que era, mais moreno do que era, mais impetuoso do que era.
Era um homem complexo, um realista que compreendia as enormes desigualdades contra si, um romântico disposto a morrer por aquilo em que acreditava.
Pamplona era uma cidade enlouquecida. Era a última manhã das corridas de touros, a Fiesta San Fermín, a celebração anual realizada de 7 a 14 de Junho. Trinta mil visitantes enxameavam a cidade, procedentes do mundo inteiro. Alguns estavam ali apenas para observar o perigoso espetáculo da corrida dos touros, outros queriam provar sua coragem, correndo na frente dos animais em disparada. Todos os quartos de hotel há muito que estavam ocupados, e universitários de Navarra dormiam em vãos de portas, saguões de bancos, automóveis, na praça central, e até mesmo nas ruas e calçadas da cidade.
Os turístas lotavam os cafés e os hotéis, assistindo aos ruidosos e pitorescos desfiles de gigantes de papier-mâché e escutando as músicas das bandas que desfilavam. Os participantes do desfile usavam mantos violetas, com capuzes verdes, vermelhos ou dourados. Fluindo as ruas, as procissões pareciam rios de arco-íris. A explosão de fogos de artifício pelos postes e fios dos bondes aumentavam o barulho e a confusão geral.
A multidão comparecia à tourada final da tarde, mas o evento mais espetacular era o encierro - a corrida matutina dos touros que lutariam mais tarde, naquele mesmo dia.
Dez minutos antes da meia-noite, na noite da véspera, os touros eram levados dos corrales de gas, pelas ruas escuras da parte inferior da cidade, atravessando o rio por uma ponte, até o curral na base da Calle Santo Domingo, fechada por barricadas de madeira em cada esquina, até alcançarem os currais de Plaza de Hemingway, onde ficavam até a tourada à tarde.
De meia-noite às seis horas da manhã os visitantes permaneciam acordados, bebendo, cantando e fazendo amor, excitados demais para dormir. Os que participariam da corrida de touros usavam um lenço vermelho de San Fermín em volta do pescoço.
Às quinze para as seis da manhã as bandas começaram a circular pelas ruas, tocando a música vibrante de Navarra. Às sete horas em ponto um rojão voava pelo ar, para anunciar a abertura dos portões do curral. A multidão era dominada por uma expectativa febril. Momentos depois um segundo rojão era disparado, um aviso à cidade de que os touros já estavam correndo. O que se seguia era um espetáculo inesquecível.
Primeiro vinha o som. Começava como um tênue e distante sussurro no vento, quase imperceptível, depois ficava cada vez mais alto, até se transformar numa explosão de cascos batendo, e subitamente seis bois e seis touros apareciam. Cada um pesando cerca de setecentos quilos, avançavam pela Calle Santo Domingo como expressos mortíferos. Por dentro das barricadas de madeira instaladas em cada esquina, para manter os touros confinados a uma única rua, havia centenas de jovens ansiosos e nervosos, decididos a provar sua bravura enfrentando os animais enfurecidos.
Os touros corriam da extremidade da rua, passavam pela Calle Laestrafeta e a Calle de Javier, passavam por farmácias e lojas de roupas, pelo mercado de frutas, a caminho da Plaza de Hemingway, e soavam gritos de olé da multidão frenética. Com a chegada dos animais, começavam uma debandada desesperada para escapar aos chifres afiados e cascos letais. A repentina realidade da morte se aproximando fazia com que alguns participantes corressem para a segurança dos vãos de portas e saídas de incêndio. Eram acompanhados por escárnios de "cobardon". Os poucos que tropeçavam e caíam no caminho dos touros eram logo puxados para um lugar seguro.
Um menino e o avó escondiam-se atrás de uma barricada, ofegantes com a emoção do espetáculo que ocorria tão perto dali.
- Olhe só para eles! - exclamou o velho. - Magnífico!
O menino estremeceu.
- Tenho medo, avó.
O velho passou o braço por seus ombros.
- Sim, Manuelo. É assustador, mas também maravilhoso. Já corri com os touros uma vez. Não há nada igual. Você testa a si mesmo contra a morte, e isso faz com que se sinta um homem.
Em geral, levava dois minutos para os animais galoparem pelos novecentos metros da Calle Santo Domingo até a arena; no momento em que os touros entravam no curral, um terceiro rojão devia surgir no céu. Naquele dia o terceiro rojão não explodiu, pois ocorreu um incidente que nunca antes acontecera nos quatrocentos anos de história de touros de Pamplona.
Enquanto os animais avançavam pela rua estreita, meia dúzia de homens, vestidos nos trajes pitorescos da "feria", mudaram as posições das barricadas. Os touros foram obrigados a deixar a rua exclusiva e ficaram à solta no coração da cidade. O que, um momento antes, fora uma comemoração feliz se transformou no mesmo instante num pesadelo. Os animais frenéticos atacaram os espectadores atordoados. O menino e o avó foram dos primeiros a morrer, derrubados e pisoteados pelos touros. Violentas chicotadas atingiram um carrinho de bebê e mataram a criança indefesa, derrubando a mãe com a cara esmagada. A morte pairava no ar por toda a parte. Os animais colidiam com espectadores desprotegidos, derrubando mulheres e crianças, enfiando os chifres compridos e fatais nas pessoas, barracas de comida e estátuas, arrasando tudo o que tinha o azar de se encontrar pela frente. Todos gritavam desesperados, na tentativa de escapar do caminho dos animais enfurecidos.
Um furgão vermelho brilhante apareceu à frente dos touros, que se viraram para atacá-lo, seguindo pela Calle de Estrella, a rua que levava ao "cárcel", a prisão de Pamplona.
O "cárcel" é um prédio de pedra, de dois andares, janelas gradeadas, aparência assustadora. Há guaritas nos quatro cantos, e a bandeira espanhola, vermelha e amarela, tremula por cima da porta. Um portão se abre para um pequeno pátio. O segundo andar do prédio consiste de celas, em que estão os presos condenados à morte. No interior da prisão, um corpulento guarda, com um uniforme da Polícia Armada, conduzia um sacerdote de hábito preto pelo corredor do segundo andar. O guarda carregava uma submetralhadora. Ao perceber a expressão inquisitiva nos olhos do sacerdote à visão de arma, o guarda explicou:
- O cuidado nunca é demais aqui, padre. Temos a escória da terra neste andar.
O guarda pediu ao padre que passasse por um detetor de metal, muito parecido com os usados nos aeroportos.
- Desculpe, padre, mas os regulamentos…
- Não tem problema, meu filho.
No momento em que o padre passou, uma sirene estridente irrompeu no corredor. Instintivamente, o guarda contraiu a mão que empunhava a submetralhadora. O padre virou-se e sorriu para o guarda, murmurando:
- A culpa é minha. - Removeu uma pesada cruz de metal que pendia do pescoço numa corrente de prata e entregou-a ao guarda.
Quando tornou a passar, o detetor permaneceu em silêncio. O guarda devolveu a cruz e os dois continuaram a jornada pelas profundezas da prisão.
O mau cheiro no corredor, perto das celas, era opressivo. O guarda estava com um ânimo filosófico.
- Está perdendo seu tempo aqui, padre. Estes animais não têm almas para serem salvas.
- Ainda assim, meu filho, devemos tentar.
O guarda sacudiu a cabeça.
- Posso lhe garantir que os portões do inferno estão à espera para escolher os dois.
O padre olhou surpreso para o guarda.
- Dois? Fui informado que havia três que precisavam de confissão.
O guarda encolheu os ombros.
- Poupamos um pouco do seu tempo. Zamora morreu na enfermaria essa manhã. Ingrato. - Eles alcançaram as celas mais distantes. - Chegamos, padre.
O guarda destrancou a porta de uma cela, depois recuou, cauteloso, enquanto o padre entrava. Tornou a trancar a cela e ficou parado no corredor, alerta a qualquer sinal de problema.
O padre aproximou-se do vulto no imundo catre da prisão.
- Seu nome, meu filho?
- Ricardo Mellado.
O padre fitou-o atentamente. Era difícil dizer com o que o homem parecia. O rosto estava inchado e esfolado, os olhos quase fechados. Através de lábios grossos, o homem murmurou:
- Fico contente que tenha vindo, padre.
- Sua salvação é o dever da igreja, meu filho.
- Eles vão me enforcar esta manhã?
O padre afagou-lhe o ombro, gentilmente.
- Foi condenado a morrer pelo garrote.
- Não!
- Lamento muito. As ordens foram dadas pelo primero-ministro pessoalmente. - O padre pôs a mão na cabeça do preso e entoou: - Diz-me teus pecados…
- Pequei muito em pensamento, palavra e ação, padre, e arrependo-me de todos os pecados com toda a força do coração.
- Ruego a nuestro Padre celestial para la salvación de tua alma. En el nombre del padre, del Hijo y del Espiritu Santo…
O guarda, escutando do lado de fora da cela, pensou: “Uma perda de tempo estúpida. Deus cuspirá no olho deste”.
O padre acabou.
- Adiós, meu filho. Que Deus receba sua alma em paz.
O padre encaminhou-se para a porta da cela. O guarda abriu-a, depois recuou, a arma apontada para o preso. Depois de trancar a porta, o guarda deslocou-se para a cela seguinte.
Abriu a porta e disse:
- Ele é todo seu, padre.
O padre entrou na segunda cela. O homem também fora brutalmente espancado. O padre fitou-o em silêncio por um longo momento.
- Qual é seu nome, meu filho?
- Felix Carpio. - Era um homem corpulento e barbudo, com uma cicatriz recente e lívida na face, que a barba não conseguia esconder. - Não tenho medo de morrer, padre.
- Isso é ótimo, meu filho. Ao final, nenhum de nós é poupado.
Enquanto o padre ouvia a confissão de Carpio, ondas de som distantes, a princípio abafadas, depois se tornando mais altas, começaram a reverberar pelo prédio. Era a trovoada de cascos e gritos da multidão em fuga. O guarda prestou atenção ao barulho, sobressaltado. Os sons aproximavam-se depressa.
- É melhor se apressar, padre. Alguma coisa estranha está acontecendo lá fora.
- Já acabei.
O guarda abriu a porta da cela, o padre saiu para o corredor. A porta foi trancada de novo. Havia um estrépito rumoroso na frente da prisão. O guarda virou-se para espreitar pela janela estreita e gradeada.
- Que barulho será esse?
O padre disse:
- Parece que alguém deseja uma audiência conosco. Pode me emprestar isso?
- Emprestar o quê?
- Sua arma, por favor.
Enquanto falava, o padre aproximou-se do guarda. Em silêncio, removeu o topo da cruz que prendia no pescoço, revelando um estilete comprido. Num movimento rápido, mergulhou o estilete no peito do guarda.
- Saiba, meu filho - murmurou, enquanto tirava a submetralhadora das mãos do guarda agonizante -, que Deus e eu decidimos que você não precisa mais desta arma. - Fazendo devotadamente o sinal da cruz, Jaime Miró acrescentou:
- In Nomine Patris…
O guarda caiu no chão de cimento. Jaime Miró tirou-lhe as chaves e abriu rapidamente as portas das duas celas. Os sons da rua tornavam-se mais intensos.
- Vamos embora - ordenou Jaime.
Ricardo Mellado pegou a submetralhadora.
- Você dá um padre e tanto. Quase me convenceu. - Ele tentou sorrir, com a boca inchada.
- Eles pegaram vocês de jeito, não é mesmo? Mas não se preocupe. Todos pagarão por isso. O que aconteceu com Zamora?
Jaime Miró passou os braços pelos dois homens e ajudou-os a avançarem pelo corredor.
- Os homens espancaram-no até a morte. Pudemos ouvir os seus gritos. Levaram-no depois para a enfermaria e disseram que ele morreu de infarto.
Havia uma porta de ferro trancada à frente.
- Esperem aqui. - Disse Jaime Miró. Aproximou-se da porta e informou ao guarda no outro lado:
- Já acabei aqui.
O guarda abriu a porta.
- É melhor se apressar, padre. Há algum distúrbio ocorrendo lá fora… - Não concluiu a frase.
Enquanto o estilete de Jaime penetrava no corpo, o sangue esguichou pela boca do guarda. Jaime fez sinal para os dois homens.
- Vamos.
Felix Carpio pegou a arma do guarda e começaram a descer.
A cena lá fora era um caos. A polícia corria de um lado para outro, freneticamente, na tentativa de descobrir o que acontecia e controlar as pessoas que, aos berros, no pátio, debatiam-se para fugir dos touros enfurecidos. Um dos touros investira contra a entrada do prédio, esmagando a entrada de pedra. Outro dilacerava o corpo de um guarda uniformizado no chão.
O furgão vermelho encontrava-se no pátio, o motor ligado.
Na confusão, os três homens passaram quase despercebidos e aqueles que os viram escapar estavam ocupados demais em salvar as próprias vidas para tomar alguma providência. Em silêncio, Jaime e seus companheiros embarcaram a traseira do furgão, que logo partiu acelerado, dispersando os pedestres desesperados pelas ruas apinhadas.
A Guarda Civil, a polícia rural paramilitar, em uniforme verde e quepe preto de couro envernizado, tentava em vão controlar a multidão histérica. A Polícia Armada, guarnecendo as capitais das províncias, também eram impotentes diante da confusão generalizada. As pessoas procuravam fugir em todas as direções, na tentativa desesperada de escapar dos touros enfurecidos. Os touros representavam menos perigo do que as próprias pessoas, que se pisoteavam na ânsia da fuga.
Jaime olhou consternado para o espetáculo atordoante de velhos e mulheres sendo derrubados sob os pés da multidão.
- Não foi planejado para acontecer assim! O furgão deveria estar à espera nas barricadas para controlar os touros!
Olhava desolado para a carnificina, mas não podia fazer coisa alguma para detê-la. Fechou os olhos para não ver.
O furgão chegou aos arredores de Pamplona e seguiu para o sul, deixando para trás o clamor e a confusão da multidão em pânico.
- Para onde estamos indo, Jaime? - perguntou Ricardo Mellado.
- Há uma casa segura perto da Torre. Ficaremos lá até escurecer e depois seguiremos em frente.
Felix Carpio estremecia de dor. Jaime Miró observou-o, com uma expressão compadecida.
- Chegaremos num instante, amigo - murmurou, gentilmente.
Ele não conseguia tirar da cabeça a cena terrível de Pamplona.
Meia hora depois, eles se aproximaram da pequena aldeia de Torre e contornaram-na, seguindo para uma casa isolada nas montanhas. Jaime ajudou os dois homens a saltarem da traseira do furgão.
- Vocês serão apanhados à meia-noite - informou o motorista.
- Avise-os para trazerem um médico - disse Jaime. - E livre-se desse furgão.
Os três entraram na casa. Era uma casa de fazenda, simples e confortável, com uma lareira na sala de estar e viga no teto. Havia um bilhete na mesa. Jaime Miró leu-o e sorriu para a frase de recepção: Mi casa es su casa. Encontrou garrafas de vinho no bar e serviu bebida para os três.
- Não há palavras para lhe agradecer, amigo. A você - brindou Ricardo Mellado.
Jaime levantou o copo.
- À liberdade.
Um canário cantou de repente numa gaiola. Jaime foi até lá e observou sua agitação por um momento. Depois, abriu a gaiola, tirou o passarinho gentilmente e levou-o para uma janela aberta.
- Voe para longe, pajarito - murmurou. - Todas as criaturas vivas devem ser livres.
Capítulo 2
Madrid
O primeiro-ministro Leopoldo Martínez estava possesso. Era um homem pequeno, de óculos, todo o corpo tremia enquanto falava.
- Jaime Miró deve ser detido! - gritou, a voz alta estridente. - Estão me entendendo? - Olhou furioso para a meia dúzia de homens reunidos na sala. - Estamos à procura de um único terrorista, e todo o exército e a polícia são incapazes de encontrá-lo.
A reunião estava ocorrendo no Palácio Moncloa, residência e local de trabalho do primeiro-ministro, a cinco quilômetros do centro de Madrid, na Carretera da Galicia, uma estrada sem placas de identificação. O prédio era de alvenaria, verde, com sacada de ferro batido, janelas verdes e guaritas em cada canto.
Era um dia quente e seco, e através das janelas, até onde a vista podia alcançar, colunas de ondas de calor elevavam-se como batalhões de soldados fantasmas.
- Ontem Miró converteu Pamplona num campo de batalha. - Martínez bateu o punho na mesa. - Assassinou dois guardas e tirou dois dos seus assassinos da prisão. Muitos inocentes foram mortos pelos touros que ele soltou nas ruas.
Por um instante, ninguém disse nada. Ao assumir o cargo, o primeiro-ministro declarou, presunçoso:
- Meu primeiro ato será acabar com esse grupo separatista. Madrid é a grande unificadora. Transforma andaluzes, bascos, catalães e galegos em espanhóis.
Fora excessivamente otimista. Os bascos, fervorosos em sua independência, tinham outras idéias, e a onda de atentados a bomba, assaltos a bancos e manifestações de terroristas da organização ETA (Euzkadi Ta Azkatasuna) continuara sem cessar.
O homem à direita de Martínez na reunião disse calmamente:
- Eu o encontrarei.
Era o coronel Ramón Acoca, o chefe do GOE, Grupo de Operaciones Especiales, criado para perseguir os terroristas bascos. Acoca era um gigante, de sessenta e poucos anos, rosto marcado por cicatrizes, olhos frios e implacáveis. Fora um jovem oficial sob o comando de Francisco Franco durante a Guerra Civil e ainda era fanaticamente devotado à filosofia de Franco:
"Somos responsáveis apenas perante Deus e a história."
Acoca era um oficial brilhante e fora um dos assessores em que Franco mais confiara. O coronel sentia saudade da disciplina de punho de ferro, a punição rápida daqueles que questionavam ou desobedeciam à lei. Passara pelo turbilhão da Guerra Civil, com sua aliança nacionalista de monarquistas, generais rebeldes, latifundiários, a alta hierarquia da Igreja e os falangistas fascistas de um lado, e as forças do governo republicano, incluindo socialistas, comunistas, liberais e separatistas bascos e catalães, no outro. Fora um terrível período de destruição e morte, uma loucura que atraíra homens e material bélico de uma dúzia de países, deixando um saldo de mortos assustador. E agora os bascos voltaram a lutar e matar.
O coronel Acoca comandava um grupo eficiente e implacável de antiterroristas. Seus homens trabalhavam em operações clandestinas, usavam disfarces e não eram divulgados ou fotografados, por medo de retaliação.
"Se alguém pode deter Jaime Miró, é o coronel Acoca", pensou o primeiro-ministro. Mas havia um problema: "Quem vai deter o coronel Acoca?"
A entrega do comando ao coronel não fora idéia do primeiro-ministro. Ele recebera um telefonema no meio da noite na sua linha particular, reconhecera a voz no mesmo instante.
- Estamos muito preocupados com as atividades de Jaime Miró e seus terroristas. Sugirimos que ponha o coronel Ramon Acoca no comando do GOE. Entendido?
- Entendido, senhor. Será imediatamente providenciado.
A ligação fora cortada.
A voz pertencia a um membro do OPUS DEI. A organização era uma calada secreta que incluía banqueiros, advogados, dirigentes de poderosas corporações e ministros do governo. Corriam rumores de que tinham enormes recursos à sua disposição, mas era um mistério de onde procedia o dinheiro ou como era usado e manipulado. Não era considerado saudável fazer muitas perguntas a esse respeito.
O primeiro-ministro pusera o coronel Acoca no comando, de acordo com as instruções, mas o gigante mostrara-se um fanático incontrolável. Seu Gênio criara um reinado de terror.
O primeiro-ministro pensou nos terroristas bascos que os homens de Acoca haviam capturado perto de Pamplona. Foram julgados e condenados à morte. O coronel Acoca insistira para que fossem executados pelo bárbaro garrote vil, a gargantilha de ferro com um espigão que era apertada aos poucos, até que partia a vértebra e cortava a medula espinhal das vítimas.
Jaime Miró tornou-se uma obsessão para o coronel Acoca.
- Quero sua cabeça - disse o coronel Acoca - Cortemos sua cabeça e o movimento basco morre.
"Um exagero", refletiu o primeiro-ministro, embora devesse admitir que havia um fundo de verdade. Jaime Miró era um líder carismático, fanático em relação à sua causa e por isso perigoso. Mas à sua maneira", concluiu o primeiro-ministro, "o coronel Acoca é igualmente perigoso."
Primo Casado, o diretor-geral de segurança Pública, estava falando:
- Excelência, ninguém podia prever o que aconteceu em Pamplona. Jaime Miró é…
- Sei o que ele é - interrompeu o primeiro-ministro bruscamente. - Quero saber onde ele está. - Virou-se para o coronel Acoca.
- Estou em sua pista - disse o coronel Acoca, a voz provocando um calafrio pela sala. - Gostaria de lembrar a Vossa Excelência que não estamos lutando contra um homem apenas. Mas sim contra todo o povo basco. Eles forneceram alimentos, armas e abrigo a Jaime Miró e a seus terroristas. O homem é um herói para eles. Mas não se preocupe. Muito em breve ele será um herói enforcado. Depois que eu lhe oferecer um julgamento justo, é claro.
"Não nós. Eu." O primeiro-ministro especulou se os outros haviam notado. "Sem dúvida", ele pensou, nervosamente, "alguma coisa precisará ser feita em relação ao coronel muito em breve."
O primeiro-ministro levantou-se.
- Isso é tudo por enquanto, senhores.
Todos se levantaram para sair, à exceção do coronel Acoca, que ficou. Leopoldo Martínez começou a andar de um lado para o outro.
- Malditos bascos. Por que não podem ficar satisfeitos em serem apenas espanhóis? O que mais querem?
- São ávidos por poder - disse Acoca. - Querem autonomia, sua própria língua e bandeira…
- Não enquanto eu ocupar este cargo. Não permitirei que destruam a Espanha. O governo lhes dirá o que podem e o que não podem fazer. Não passam de uma ralé que…
Um assessor entrou na sala.
- Com licença, Excelência. O bispo Ibáñez chegou.
- Mande-o entrar.
Os olhos do coronel contraíram-se.
- Pode estar certo de que a Igreja se encontra por trás de tudo isso. É tempo de lhes ensinarmos uma lição.
"A Igreja é uma das grandes ironias da nossa história", pensou o coronel Acoca, amargurado.
No começo da Guerra Civil, a Igreja Católica ficara do lado das forças nacionalistas. O papa apoiava o Genralíssimo Franco, e com isso lhe permitira proclamar que lutava no lado de Deus.
Mas quando as igrejas, mosteiros e padres bascos foram atacados, a Igreja retirara esse apoio.
- Deve conceder mais liberdade aos bascos e catalães - exigira a Igreja. - E deve suspender as execuções de padres bascos.
O Generalíssimo Franco ficara furioso. Como a Igreja ousava fazer exigências ao governo?
Iniciara-se então uma guerra de atributos. Mais igrejas e mosteiros foram atacados pelas forças de Franco. Freiras e padres foram assassinados. Bispos foram postos sob prisão domiciliar, e sacerdotes por toda a Espanha foram multados por fazerem sermões considerados sediciosos pelo governo. Só quando a Igreja o ameaçou de excomunhão é que Franco interrompeu os ataques.
"A maldita igreja!", pensou Acoca. Voltara a interferir após a morte de Franco. Ele virou-se para o primeiro-ministro.
- É tempo do bispo ser informado sobre quem manda na Espanha.
O bispo Calvo Ibáñez era magro, aparência frágil, uma nuvem de cabelos brancos turbilhonando em torno da cabeça. Olhou os dois homens através do pincenez.
- Buenas tardes.
O coronel Acoca sentiu a bílis subir pela garganta. A mera visão dos cléricos deixava-o doente. Eram traidores levando seus estúpidos cordeiros para o matadouro.
O bispo ficou parado, à espera de um convite para se sentar. O que não aconteceu. E também não foi apresentado ao coronel. Era uma desfeita deliberada.
O primeiro-ministro olhou para Acoca, em busca de orientação.
O coronel disse, bruscamente:
- Recebemos algumas informações desagradáveis. Dizem que rebeldes bascos estão realizando reuniões em mosteiros católicos. Também há informações de que a Igreja está permitindo que mosteiros e conventos guardem armas para os rebeldes. - Havia ódio em sua voz. - Ao ajudarem os inimigos da Espanha, vocês também se tornam inimigos da Espanha.
O bispo Ibáñez fitou-o em silêncio por um momento, depois virou-se para o primeiro-ministro Martínez.
- Com todo respeito, Excelência, somos todos filhos da Espanha. Os bascos não são inimigos. Tudo o que pedem é liberdade para…
- Eles não pedem! - bradou Acoca. - Exigem! Circulam pelo país saqueando, assaltando bancos e matando polícias… E ainda ousa dizer que não são nossos inimigos?
- Reconheço que houve excessos indesculpáveis. Mas às vezes, quando se luta por aquilo em que se acredita…
- Eles não acreditam em coisa alguma, a não ser em si mesmos. Não se importam com a Espanha. É como disse um dos nossos grandes escritores: "Ninguém na Espanha se preocupa com o bem comum. Cada grupo se interessa apenas por si mesmo. A Igreja, os bascos, os catalães. Cada um diz que se fodam os outros."
O bispo sabia que o coronel Acoca citara errado Ortega y Gasset. A citação inteira incluía o exército e o governo; mas, sabiamente, não disse nada. Tornou a se virar para o primeiro-ministro, à espera de uma discussão racional.
- Excelência, a Igreja Católica…
O primeiro-ministro achou que Acoca já fora longe demais.
- Não nos interprete mal, bispo. Em princípio, é claro, este governo está dando total apoio à Igreja Católica.
O coronel Acoca interveio outra vez.
- Mas não podemos permitir que suas igrejas, mosteiros e conventos sejam usados contra nós. Se continuarem a permitir que os bascos guardem armas e realizem reuniões neles, terão de arcar com as consequências.
- Tenho certeza de que as informações que recebeu estão equivocadas - declarou o bispo, suavemente. - Mas pode estar certo de que ordenarei uma investigação imediata.
O primeiro-ministro murmurou:
- Obrigado, bispo. Isso é tudo que pedimos.
Martínez e Acoca ficaram observando o bispo se retirar. Depois o primeiro-ministro perguntou:
- O que acha?
- Ele sabe o que está acontecendo.
O primeiro-ministro suspirou. "Já tenho problemas suficientes neste momento sem criar uma crise com a Igreja."
- Se a Igreja é a favor dos bascos, então está contra nós. - A voz do coronel Acoca era mais enérgica agora. - Eu gostaria que me concedesse permissão para dar uma lição ao bispo.
O primeiro-ministro foi contido pela expressão de fanatismo nos olhos do coronel. Tornou-se cauteloso.
- Tem mesmo informações de que as igrejas estão ajudando os rebeldes?
- Claro, Excelência.
Não havia como determinar se o homem dizia mesmo a verdade.
O primeiro-ministro sabia o quanto Acoca odiava a Igreja. Mas talvez fosse bom deixar que a Igreja sentisse o gosto do açoite, desde que o coronel Acoca não fosse longe demais. O primeiro-ministro Martínez ficou imóvel por um instante, pensativo. Foi Acoca quem rompeu o silêncio:
- Se as igrejas estão abrigando terroristas, então elas devem ser punidas.
Relutante, o primeiro-ministro anuiu com a cabeça.
- Por onde vai começar?
- Jaime Miró e seus homens foram vistos em Ávila ontem. Provavelmente estão escondidos no convento local.
O primeiro-ministro se decidiu.
- Reviste-o.
Essa decisão desencadeou uma sucessão de acontecimentos que sacudiu toda a Espanha e abalou o mundo.
Capítulo 3
ÁVILA
O silêncio era como uma nevasca amena, suave e aconchegante, tão tranquilizante quanto o sussurro de um vento de verão. O convento Cisterciense da Estrita Observância ficava nos arredores da cidade murada de Ávila, a mais alta cidade da Espanha, 112 quilômetros a noroeste de Madrid.
O convento fora construído para o silêncio. As regras haviam sido adotadas em 1601, e permaneceram inalteradas ao longo dos séculos: liturgia, exercício espiritual, reclusão rigorosa, permanência e silêncio. Sempre silêncio.
O convento era um conjunto simples de prédios de pedra, em torno de um claustro, dominado pela igreja. Ao redor do prédio central as arcadas abertas permitiam que a claridade se espalhasse pelos largos blocos de pedra do chão, onde as freiras deslizam sem fazer barulho. Havia quarenta freiras no convento, rezando na igreja e vivendo no claustro.
O convento de Ávila era um dos sete que restaram na Espanha, um sobrevivente das centenas que haviam sido destruídos na Guerra Civil, num dos periódicos movimentos anti-Igreja que dominam o país ao longo dos séculos.
O convento Cisterciense de Estrita Observância era devotado exclusivamente a uma vida de orações. Era um lugar sem estações ou tempo, e aquelas que ali ingressavam se tornavam para sempre isoladas do mundo exterior. A vida cisterciense era contemplativa e penitencial; o ofício divino era recitado todos os dias, e a clausura era completa e permanente.
Todas as irmãs vestiam-se de forma idêntica, e seus trajes, como tudo no convento, eram caraterizados pelo simbolismo de séculos. O capuche, o manto e capuz, simbolizava inocência e simplicidade, a túnica de linho representava a renúncia às coisas do mundo e mortificação; o escapulário, pequenos quadrados de lã usados sobre os ombros, indicava a disposição para o trabalho árduo. Uma touca, uma cobertura de linho disposta em dobras por cima da cabeça e em volta do queixo, lados do rosto e pescoço, completava o uniforme.
Dentro dos muros do convento havia um sistema de escadas e passagens internas ligando o refeitório, sala comunitária, celas e capela, predominando por toda a parte um ambiente de amplitude fria e limpa. Janelas de treliça com vidro grosso davam para um jardim murado. Cada janela era guarnecida com barras de ferro e ficava acima da linha de visão, para que não houvesse distrações externas. O refeitório era amplo e austero, as janelas tinham persianas e cortinas. As velas nos castiçais antigos projetavam sombras evocativas nos tetos e paredes.
Em quatrocentos anos, nada mudara dentro dos muros do convento, excepto os rostos. As irmãs não tinham pertences pessoais, pois desejavam ser pobres, emulando a pobreza de Cristo. A própria igreja era desprovida de ornamentos, salvo uma cruz de ouro maciço, de valor inestimável, antigo presente de uma rica postulante. Por estar tão em desacordo com a austeridade da ordem, era mantida num armário no refeitório.
Uma cruz de madeira simples pendia no altar da igreja.
As mulheres que partilhavam suas vidas com o Senhor viviam juntas, trabalhavam juntas, comiam juntas e rezavam juntas, mas nunca se tocavam e se falavam. As únicas exceções permitidas eram quando ouviam a missa ou quando a reverenda superiora Betina lhes falava na privacidade de sua sala. Mesmo então, uma antiga linguagem de sinais era usada ao máximo possível.
A reverenda madre era uma religiosa com cerca de setenta anos, expressão inteligente, jovial e dinâmica, glorificada na paz e alegria de vida no convento, uma vida consagrada a Deus.
Protetora irredutível de suas freiras, sentia muita angústia quando era necessário impor a disciplina, mais do que aquela que estava sendo punida.
As freiras circulavam pelos claustros e corredores de olhos abaixados, mãos cruzadas dentro das mangas, na altura do peito, passando e repassando por suas irmãs sem qualquer palavra ou sinal de reconhecimento. A única voz no convento era a dos sinos - os sinos que Vitor Hugo chamou de "A ópera dos Campanários".
As irmãs vinham de antecedentes díspares e de muitos países diferentes. Pertenciam a famílias de aristocratas, camponeses, soldados… Chegaram ao convento como ricas e pobres, instruídas e ignorantes, miseráveis e exaltadas, mas ali eram todas iguais aos olhos de Deus, unidas em seu desejo de casamento eterno com Jesus.
As condições de vida no convento eram espartanas. No inverno o frio era cortante, e uma luz pálida filtrava-se pelas janelas gradeadas. As freiras dormiam plenamente vestidas em enxergas de palha, cobertas por mantas ásperas de lã, cada uma em sua pequena cela, mobilada apenas com uma cadeira de pau, de encosto reto.
Não havia lavatório, um pequeno jarro de barro e uma bacia ficava no chão, no canto da cela. Nenhuma freira tinha permissão para entrar na cela da outra, à exceção da reverenda madre Betina. Não havia nenhum tipo de recreação, apenas trabalho e orações.
Havia áreas de trabalho para tricotar, encadernar livros, fiar e fazer pão. Havia oito horas de oração diárias: matinas, laudes, primas, terças, sextas, nonas, vésperas e completas. Havia ainda outras devoções: bênçãos, hinos e litanias.
Matinas era a oração que se fazia quando metade do mundo estava dormindo e a outra metade absorvida no pecado.
Laudes, o ofício do amanhecer, seguia-se às matinas, o nascer do sol aclamando como a figura de Cristo, triunfante e glorificado.
Primas era a oração matutina da igreja, pedindo as bênçãos para as obras do dia.
Terças, acontecia às nove horas da manhã, consagrada por Santo Agostinho ao Espírito Santo.
Sextas, eram às onze e meia, evocada para extinguir o calor das paixões humanas.
Nonas, era recitada em silêncio às três horas da tarde, a hora da morte de Cristo.
Vésperas, era o serviço vespertino da igreja, como laudes fora a oração do amanhecer.
Completas, eram às últimas horas canônicas dos ofícios divinos. Uma forma de orações noturnas, um preparativo para a morte e também para o sono, encerrando o dia com uma declaração de submissão amorosa: Manus tuas, domine, comendo spiritum meum. Redemisti nos, domine, deus, veritatis.
Em algumas das outras ordens a flagelação fora abolida, mas sobrevivia nos conventos e mosteiros Cistercienses de clausura.
Pelo menos uma vez por semana, e às vezes todos os dias, as freiras puniam seus corpos com a Disciplina, um açoite de trinta centímetros de comprimento, de corda fina, encerado, com seis pontas nodosas que provocavam uma dor angustiante; era usado para espancar as costas, pernas e nádegas. Bernard de Clairvaux, o ascético abade dos Cistercienses, advertira: "O corpo de Cristo está aniquilado… nossos corpos devem se conformar à semelhança do corpo ferido de Nosso Senhor."
Era uma vida mais austera do que em qualquer prisão, mas as irmãs viviam em êxtase, como jamais ocorrera no mundo exterior. Haviam renunciado ao amor físico, bens pessoais e liberdade de opção, mas ao abrirem mão dessas coisas também renunciaram à ganância e competição, ódio e inveja, a todas as pressões e tentações que o mundo exterior impunha. No interior do convento reinava uma paz absoluta e o inefável sentimento de alegria pela união com Deus. Havia uma serenidade indescritível dentro dos muros e nos corações das mulheres que ali viviam.
Se o convento era uma prisão, tratava-se de uma prisão no Éden de Deus, com o conhecimento de uma eternidade feliz para as que escolheram livremente ingressar e permanecer ali.
A irmã Lucia foi despertada pelo repicar do sino do convento. Abriu os olhos surpresa e desorientada por um momento.
Na pequena cela em que dormia ainda estava escuro, uma escuridão desoladora. O som do sino avisava-lhe que eram três horas da madrugada, quando o ofício das vigílias começava.
"Droga! Esta rotina vai me matar", pensou irmã Lucia.
Recostou-se no catre pequeno e desconfortável, desesperada por um cigarro. Relutante, saiu da cama. O pesado hábito que usava até para dormir roçava contra sua pele sensível como lixa.
Pensou em todas as lindas roupas de estilistas penduradas em seu apartamento em Roma e no Chalé em Gstaad.
Irmã Lucia podia ouvir o movimento suave e farfalhante das freiras, reunindo-se no corredor. Negligente, ela arrumou a cama e também saiu para o extenso corredor, onde freiras entravam em fila, olhos abaixados. Lentamente, todas começavam a encaminhar-se para a capela.
"Parecem um bando de pinguins idiotas", pensou irmã Lucia. Não conseguia entender porque aquelas mulheres haviam deliberadamente renunciado às suas vidas, desistindo de sexo, belas roupas e boa comida. "Sem estas coisas, que motivo existe para continuar a viver? E as malditas regras!"
Quando irmã Lucia entrara no convento, a reverenda madre avisara-lhe:
- Deve andar com a cabeça baixa. Mantenha as mãos cruzadas por dentro do hábito. Dê passos curtos. Ande devagar. Nunca deve fazer contato visual com qualquer das outras irmãs ou sequer olhar para elas. Não pode falar. Seus ouvidos são para escutar as palavras de Deus.
- Está bem, reverenda madre.
Durante o mês seguinte Lucia recebera as instruções.
- As que vieram para cá não tinham a intenção de se juntarem às outras, mas sim habitar a sós com Deus. A solidão do espírito é essencial para uma união com Deus. É salvaguardada pelas regras do silêncio.
- Está bem, reverenda madre.
- Deve sempre obedecer ao silêncio dos olhos. Fitar as outras nos olhos a distrairia com imagens inúteis.
- Está bem, reverenda madre.
- A primera lição que aprenderá aqui será retificar o passado, expulsar os velhos hábitos e inclinações seculares, apagar todas as imagens do passado. Fará penitência de purificação e mortificação para se despojar da vontade e amor próprios. Não basta se arrepender das ofensas passadas. Quando compensar não apenas seus pecados, mas também por todos os pecados que já foram cometidos.
- Está bem, reverenda madre.
- Deve lutar contra a sensualidade, o que João da Cruz chamou de "a noite dos sentidos".
- Está bem, reverenda madre.
- Cada freira vive em silêncio e solidão, como se já estivesse no céu. Nesse silêncio puro e precioso, pelo qual tanto anseia, ela é capaz de escutar o silêncio infinito e possuir Deus.
Ao final do primeiro mês, Lucia recebera os votos iniciais.
Tivera que cortar os cabelos no dia da cerimônia. Fora uma experiência traumática. A reverenda madre cuidava disso pessoalmente. Convocara Lucia à sua sala e fizera um sinal para que ela se sentasse. Prostrara-se às suas costas e, antes que Lucia percebesse o que estava acontecendo, ouvira o barulho da tesoura e sentira alguma coisa puxando-lhe os cabelos.
Começara a protestar, mas compreendera subitamente que aquilo só podia melhorar o seu disfarce. "Poderei deixá-lo crescer de novo mais tarde", pensara. "Enquanto isso, ficarei parecendo uma galinha depenada."
Ao voltar para o cubículo lúgubre que lhe fora designado Lucia pensara: "Este lugar é um ninho de serpentes." O chão consistia de tábuas soltas. A enxerga e a cadeira de encosto reto ocupava a maior parte do espaço. Sentira-se ansiosa por ler um jornal. "Não há a menor possibilidade", refletia. Naquele lugar nunca tomava conhecimento dos jornais, muito menos escutavam rádio ou viam televisão. Não havia qualquer ligação com o mundo exterior.
Contudo, o que mais afetava os nervos de Lucia era o silêncio desolador. A única comunicação era feita através de sinais com as mãos, e aprendê-los a levara a loucura. Quando precisava de uma vassoura, devia deslocar a mão direita estendida da direita para a esquerda, como se estivesse varrendo.
Quando a reverenda madre estava insatisfeita, unia os dedos mínimos três vezes, na frente do corpo, os outros dedos comprimidos contra as palmas. Quando Lucia se mostrava lenta na execução de seu trabalho, a reverenda madre comprimia a palma da mão direita contra o ombro esquerdo. Para censurar Lucia, ela coçava a própria face, perto do ouvido direito, com todos os dedos da mão direita, num movimento para baixo.
"Pelo amor de Deus", pensava Lucia, "parece que ela está coçando uma mordida de pulga."
Elas chegaram à capela. As freiras rezaram silenciosamente; contudo, os pensamentos de irmã Lucia se concentravam em coisas mais importantes do que Deus.
"Mais um ou dois meses, quando a polícia parar de me procurar, sairei deste hospício."
Depois das orações matutinas, irmã Lucia marchou com as outras para o refeitório, violando furtivamente os regulamentos, como fazia todos os dias, ao estudar os rostos das companheiras.
A sua única diversão. Ela achava incrível pensar que nenhumas das irmãs sabia como as outras pareciam.
Sentia-se fascinada pelos rostos das freiras. Algumas eram jovens, algumas velhas, outras bonitas, e feias. Não podia compreender por que todas pareciam tão felizes. Havia três rostos que Lucia achava particularmente interessantes. Um era o da irmã Teresa, que parecia ter cerca de sessenta anos. Estava longe de ser bonita, mas possuía uma espiritualidade que lhe proporcionava um encanto quase sublime. Parecia estar sempre sorrindo interiormente, como se estivesse por dentro de algum segredo maravilhoso.
Outra freira que Lucia considerava fascinante era a irmã Graciela, uma mulher de beleza extraordinária, com trinta e poucos anos. Tinha a pele azeitonada, feições refinadas, olhos que pareciam poços negros luminosos.
"Ela poderia ter sido uma estrela de cinema", pensou Lucia.
"Qual é a sua história? Por que se enterraria num lugar como este?"
A terceira freira que lhe atraía o interesse era a irmã Megan. Olhos azuis, sobrancelhas e pestanas louras. Tinha vinte e poucos anos, rosto viçoso e franco.
"O que ela está fazendo aqui? O que todas essas mulheres estão fazendo aqui? Ficam trancafiadas por trás desses muros, dormindo numa cela mínima, uma comida horrível, oito horas de orações, trabalho árduo e muito pouco sono. Devem ser loucas… todas elas."
Estava numa situação melhor do que as outras, porque teriam de ficar ali pelo resto de suas vidas, enquanto ela sairia dentro de um ou dois meses. "Talvez três", pensou. "Este é um esconderijo perfeito. Eu seria uma tola se fosse embora de forma precipitada. Dentro de poucos meses a polícia vai pensar que morri. Quando sair daqui e pegar meu dinheiro na Suíça, talvez escreva um livro a respeito desse hospício."
Poucos dias antes, a reverenda madre pedira à irmã Lucia que fosse ao escritório para buscar um papel; enquanto estava ali, ela aproveitara para começar a revistar os arquivos.
Infelizmente, fora surpreendida no ato de bisbilhotar.
- Fará penitência com a Disciplina - decidira a reverenda madre Betina.
Irmã Lucia baixara a cabeça humildemente e sinalizava:
- Sim, reverenda madre.
Lucia votara à sua cela, e minutos depois as freiras passando pelo corredor puderam ouvir o som terrível do açoite assoviando pelo ar e caindo várias vezes. O que não podia saber era que a irmã Lucia estava açoitando a cama.
"Essas malucas podem ser sadomasoquistas, mas eu não vou entrar nessa."
Elas estavam sentadas no refeitório, quarenta freiras, em duas mesas compridas. A dieta Cisterciense era rigorosa vegetariana. Como o corpo ansiava por carne, o seu consumo era proibido. Muito antes do amanhecer, era servido uma xícara de chá ou café e um pedaço de pão seco. A refeição principal era feita às onze horas da manhã e consistia de uma sopa rala, uns poucos legumes, e de vez em quando um pedaço de fruta.
A reverenda madre tinha instruído Lucia:
- Não estamos aqui para agradar a nossos corpos, mas sim para agradar a Deus.
"Eu não serviria este desjejum a meu gato", pensou irmã Lucia. "Estou aqui há dois meses, e aposto que já perdi uns quatro ou cinco quilos. É a versão divina de uma dieta rigorosa."
Quando o desjejum terminou, duas freiras levaram bacias de lavar louça para as extremidades das mesas. As irmãs em cada mesa levaram seus pratos para a irmã com a bacia, que lavou cada um, enxugou com uma toalha e devolveu à outra irmã. A água foi ficando cada vez mais escura e gordurosa.
"E elas vão viver assim pelo resto de suas vidas", pensou irmã Lucia, repugnada. "Mas não posso me queixar. Ainda é melhor do que uma sentença de prisão perpétua…"
Ela seria capaz de trocar sua alma imortal por um cigarro.
A meio quilômetro dali, pela estrada, o coronel Ramón Acoca e duas dúzias de homens cuidadosamente escolhidos do "GOE", o Grupo de Operaciones Especiales, preparava-se para atacar o convento.
Capítulo 4
O coronel Ramón Acoca possuía os instintos de um caçador.
Adorava a perseguição, mas era o ato de matar que lhe proporcionava uma satisfação visceral. Confidenciara certa vez a um amigo: "Tenho um orgasmo quando mato. Não faz diferença se é um cervo, um coelho ou um homem… Há alguma coisa em tirar a vida que faz com que uma pessoa se sinta como Deus."
Agora trabalhava no serviço de informações militares e alcançara uma reputação de ser brilhante rapidamente. Era destemido, implacável e inteligente, uma combinação que atraíra a atenção de um dos auxiliares diretos do general Franco.
Ingressara no estado-maior de Franco como tenente, e em menos de três anos alcançara o posto de coronel, uma façanha sem precedentes. Recebera o comando dos falangistas, o grupo especial usado para aterrorizar os opositores a Franco.
Fora durante a guerra que Acoca recebera a visita de um emissário do "OPUS DEI"
- Quero que compreenda que estamos lhe falando com permissão do general Franco.
- Claro, Senhor.
- Estamos observando-o há algum tempo, coronel. E estamos satisfeitos com o que vemos.
- Obrigado, Senhor.
- De vez em quando, temos certas missões que são digamos assim… confidenciais. E muito perigosas.
- Eu compreendo, senhor.
- Temos muitos inimigos. Pessoas que não compreendem a importância do trabalho que realizamos.
- Posso imaginar, senhor.
- Às vezes elas interferem em nossos planos. Não podemos permitir que isso aconteça.
- Claro que não, senhor.
- Creio que poderíamos usar um homem como você, coronel. Acho que nos compreendemos.
- Claro, senhor. Eu me sentiria honrado em prestar qualquer serviço.
- Gostaríamos que permanecesse no exército. Isso será valioso para nós. Mas de vez em quando vamos designá-lo para atuar em nossos projetos especiais.
- Obrigado, senhor.
- Nunca deve falar sobre isso com ninguém.
- Nunca, senhor.
O homem deixara Acoca nervoso. Havia alguma coisa nele que era extremamente assustadora.
Com o tempo, o coronel Acoca fora convocado a realizar algumas missões para o "OPUS DEI". Como fora avisado, todas eram perigosas. E absolutamente confidenciais.
Numa dessas missões, Acoca conhecera uma linda moça, de excelente família. Até aquele momento, todas as suas mulheres tinham sido prostitutas ou vivandeiras. Acoca sempre as tratava com um desdém brutal. Algumas chegaram a se apaixonar por ele, atraídas por sua força. Essas recebiam o pior tratamento.
Mas Susana Cerredilla pertencia a um mundo diferente. O pai era professor na Universidade de Madrid, e a mãe, uma advogada.
Susana tinha 17 anos, corpo de uma mulher e o rosto angelical de uma Madona. Ramón Acoca jamais conhecera ninguém como aquela criança-moça. Sua gentil vulnerabilidade despertara-lhe uma ternura que jamais imaginara poder sentir. Apaixonou-se loucamente por ela, e o sentimento foi recíproco, por razões que nem os pais nem Acoca compreendiam.
A lua-de-mel fora como se Acoca tivesse conhecido outra mulher. Conhecera o desejo, mas não a combinação de amor e paixão era algo que nunca experimentara antes.
Três meses depois do casamento, Susana informava-lhe que estava grávida. Acoca sentira a maior emoção. Para aumentar sua alegria, fora destacado para um posto na linda aldeia de Castiblanco, no país basco. Era o outono de 1936, quando a luta entre republicanos e nacionalistas se tornava mais ferrenha.
Numa tranquila manhã de domingo, Ramón Acoca e a sua esposa tomavam café na Plaza da aldeia quando subitamente surgiram vários manifestantes bascos.
- Quero que vá para casa - dissera Acoca à esposa. - Vai haver problemas.
- E você?
- Vá logo, por favor, ficarei bem.
Os manifestantes estavam começando a escapar ao controle.
Com alívio, Ramón Acoca observara Susana afastar-se da multidão, a caminho de um convento na outra extremidade da praça.
E no momento em que ela chegava, a porta do convento se abrira de repente e bascos armados, escondidos no interior, saíram com as armas disparando. Acoca vira impotente a esposa cair sob uma saraivada de balas. Fora nesse dia que jurara vingança contra os bascos. A Igreja também fora responsável.
E agora ele estava em Ávila, diante de outro convento.
"Desta vez eles morrerão."
Dentro do convento, na escuridão antes, do amanhecer, irmã Teresa segurava a Disciplina com a mão direita e açoitava o próprio corpo com violência sentindo as pontas nodosas cortarem-na, enquanto recitava em silêncio o Miserere. Quase soltou um grito alto, mas o barulho não era permitido, e por isso ela reprimiu os gritos. "Perdoa-me, Jesus, por meus pecados. Sê testemunha que puni a mim mesma, como tu foste punido, e que me infligi ferimentos, como ferimentos te foram infligidos. Deixa-me sofrer, como tu sofreste."
Ela estava quase desmaiando de dor. Flagelou-se por mais três vezes e depois arriou, agoniada, sobre o catre. Não arrancara sangue. Isso era proibido. Estremecendo contra a agonia que cada movimento provocava, irmã Teresa guardou o açoite na caixa preta e largou-a num canto. Estava sempre ali, uma lembrança constante de que o menor pecado devia ser pago com a dor.
A transgressão de irmã Teresa ocorrera naquela manhã, quando virava uma esquina do corredor, olhos baixos, e esbarrara em irmã Graciela. Sobressaltada, fitava o rosto da irmã Graciela. Irmã Teresa imediatamente comunicara a infração, e a reverenda madre Betina franzira o rosto em desaprovação, fizera o sinal da Disciplina, deslocando a mão direita de ombro para ombro, três vezes, a mão fechada, como se empunhasse o açoite, o polegar sob o indicador.
Deitada em seu catre, irmã Teresa não conseguira tirar da cabeça o rosto de extraordinária beleza da jovem que contemplara.
Ela sabia que, enquanto vivesse, nunca se falariam e nunca mais tornaria a fitá-la, pois o menor indício de intimidade entre as freiras era punido com rigor. Num clima de rígida austeridade moral e física, não era permitido qualquer tipo de relacionamento. Se duas irmãs trabalhavam lado a lado e pareciam desfrutar da companhia silenciosa uma da outra, a reverenda madre logo as separava. As irmãs também não tinham permissão para sentar ao lado da mesma pessoa à mesa por duas vezes consecutivas. A Igreja delicadamente chamava a atração de uma freira por outra de "uma amizade particular", e a penalidade era rápida e severa. Irmã Teresa assumira a punição por violar a regra.
Agora o requinte do sino chegou aos ouvidos de irmã Teresa como se soasse muito longe. Era a voz de Deus, repreendendo-a.
Na cela ao lado o som do sino ressoou pelos corredores dos sonhos da irmã Graciela, misturando-se com os rangidos lúbricos das molas da cama. O mouro avançava em sua direção, nu, a virilidade intumecida, as mãos se estendendo para agarrá-la. Irmã Graciela abriu os olhos, instantaneamente desperta, o coração disparado num frenesim. Olhou à volta, apavorada, mas estava sozinha na pequena cela e ouvia-se apenas o repicar tranquilizador do sino.
Irmã Graciela ajoelhou-se ao lado da cama. "Jesus, agradeço por me livrar do passado. Agradeço pela alegria que sinto por estar aqui, à Sua luz. Deixe-me experimentar apenas a felicidade do Seu ser. Ajude-me, meu Amado, a ser sincera ao Seu chamado. Ajude-me a aliviar o pesar do Seu sagrado coração."
Ela levantou-se e arrumou a cama com cuidado, depois juntou-se à procissão de freiras que se encaminhavam em silêncio para as matinas na capela. Podia sentir o cheiro familiar de velas acesas e as pedras gastas sob os pés metidos em sandálias.
No início, assim que entrara para o convento, irmã Graciela não compreendera quando a reverenda madre lhe dissera que uma freira era uma mulher que renunciava a tudo, a fim de possuir tudo. Tinha 14 anos na ocasião. Agora, 17 anos depois, aquilo era evidente para ela. Na contemplação, possuía tudo, pois a contemplação era a mente respondendo à alma, as águas que corriam em silêncio. Seus dias eram preenchidos por uma paz maravilhosa.
"Obrigada por me deixar esquecer, Pai. Obrigada por ficar do meu lado. Eu não poderia enfrentar o terrível passado sem Ti. Obrigada… Obrigada… Obrigada…"
Quando as matinas acabaram, as freiras voltaram às suas celas para dormir até às laudes, o nascer do sol.
Lá fora, o coronel Ramón Acoca e seus homens avançaram rapidamente pela escuridão. Ao chegarem ao convento, o coronel disse:
- Jaime Miró e seus homens estarão armados. Não corram riscos. - Olhou para a fachada do convento, e por um instante viu outro convento, com guerrilheiros bascos saindo, e Susana tombando sob uma saraivada de balas. E acrescentou:
- Não se preocupem em capturar Miró vivo.
Irmã Megan foi despertada pelo silêncio. Era um silêncio diferente, comovente, um ímpeto apressado de ar, um sussurro de corpos. Havia sons que ela nunca ouvira antes, em seus 15 anos no convento. Foi subitamente invadida por uma premonição de que havia algo muito errado.
Levantou-se sem, fazer barulho na escuridão e abriu a porta de sua cela. Era inacreditável, mas o longo corredor de pedra estava cheio de homens. Um gigante com uma cicatriz no rosto saía da cela da reverenda madre, puxando-a pelo braço. Megan ficou chocada. "Estou tendo um pesadelo", pensou. "Estes homens não podem estar aqui".
- Onde o estão escondendo? - perguntou o coronel Acoca.
A reverenda madre Betina tinha uma expressão de horror atordoado.
- Psiu! Este é um templo de Deus. Está profanando-o. - Sua voz era trêmula. - Devem se retirar já.
O coronel apertou-lhe o braço com mais força e sacudiu-a.
- Quero Miró, irmã.
O pesadelo era real.
Outras portas de celas começaram a ser abertas e mais freiras apareceram, com expressões de total confusão. Nunca houvera coisa em sua experiência que as preparasse para aquele acontecimento extraordinário.
O coronel Acoca empurrou a reverenda madre para longe e virou-se para Patrício Arrieta, um dos seus ajudantes principais:
- Revistem tudo. De alto a baixo.
Os homens de Acoca começaram a se espalhar, invadindo a capela, o refeitório e as celas, acordando as freiras que ainda dormiam e forçando-as rudemente a se levantarem e seguirem pelos corredores até à capela. As freiras obedeciam sem dizer nada, mantendo mesmo nessa hora o voto de silêncio. Para Megan, a cena era como um filme sem som.
Os homens de Acoca estavam imbuídos de um senso de vingança.
Todos eram falangistas e lembravam muito bem que a Igreja se virara contra eles durante a Guerra Civil e apoiara os legalistas contra seu amado líder, o Generalíssimo Franco. Aquela era a oportunidade de uma desforra. A força e o silêncio das freiras deixavam os homens ainda mais furiosos.
Ao passar por uma das celas, Acoca ouviu um grito lá dentro. Olhou e viu um dos seus homens arrancando o hábito de uma freira. Ele seguiu em frente.
Irmã Lucia foi despertada por gritos de homens. Sentou-se em pânico. "A polícia me descobriu", foi seu primeiro pensamento. "Preciso sair daqui imediatamente." Mas não havia meio de sair do convento, a não ser pela porta da frente do convento.
Levantou-se apressada e espiou pelo corredor. A visão com que seus olhos defrontaram era espantosa. O corredor não estava cheio de guardas, mas sim de homens em trajes civis, armas em punho, destruindo lampiões e mesas. A confusão era total, enquanto eles corriam de um lado para outro.
A reverenda madre Betina estava parada no centro do caos rezando em silêncio, enquanto contemplava a profanação de seu amado convento. Irmã Megan foi para seu lado e Lucia se apressou em ir para junto das duas.
- Oh que dia… o que está acontecendo? - perguntou Lucia. - Quem são eles? - Eram as primeiras palavras em voz alta desde que ingressara no convento.
A reverenda madre pôs a mão direita sob sua axila esquerda, três vezes, o sinal para esconder. Lucia fitou-a, incrédula.
- Pode falar agora! Vamos sair daqui, pelo amor de Deus! E é mesmo pelo amor de Deus!
Patrício Arrieta aproximou-se de Acoca.
- Já procuramos por toda parte, coronel. Não há sinal de Jaime Miró ou de seus homens.
- Procurem de novo - insistiu Acoca, obstinado.
Foi neste momento que a reverenda madre lembrou-se do único tesouro que o convento possuía. Dirigiu-se à irmã Teresa e sussurrou:
- Tenho uma missão para você. Pegue a cruz de ouro e leve-a para o convento em Mendavia. Precisa tirá-la daqui. Depressa!
Irmã Teresa tremia tanto que sua touca adejava em ondas.
Olhava fixamente para a reverenda madre, paralisada. Passara os últimos trinta anos de sua vida no convento. A perspectiva de sair dali estava além da imaginação e fez o sinal de "não posso."
A reverenda madre estava frenética.
- A cruz não deve cair nas mãos desses homens de Satã. Faça isso por Jesus.
Uma luz surge nos olhos de irmã Teresa. Ela empertigou-se, fez o sinal de "por Jesus." Virou-se e seguiu apressada para a capela.
Irmã Graciela aproximou-se do grupo, olhando atordoada para a confusão desvairada do lugar.
Os homens estavam se tornando cada vez mais violentos, quebrando tudo pela frente. O coronel Acoca observava-os com uma expressão de aprovação. Lucia virou-se para Megan e Graciela.
- Não sei o que vocês duas estão pensando, mas eu vou sair daqui. Vocês vêm comigo?
Elas fitaram-na, aturdidas demais para responderem.
Irmã Teresa aproximou-se delas, apressada, carregando alguma coisa envolta por uma lona. Alguns homens conduziam mais freiras para o refeitório.
- Vamos logo - insistiu Lucia.
As irmãs Teresa, Megan e Graciela hesitaram por um momento, depois seguiram Lucia para a porta da frente. Ao virarem a extremidade do comprido corredor, perceberam que a enorme porta fora arrombada. Um homem seguiu de repente na frente delas.
- Estão indo para algum lugar? Podem voltar. Meus amigos têm planos para vocês.
Lucia disse:
- Temos um presente para você.
Ela pegou um dos pesados castiçais de metal que ficavam nas mesas dos vestíbulos, e sorriu. O homem ficou perplexo.
- O que pode fazer com esse castiçal?
- Isto! - Lucia bateu com o castiçal na cabeça do homem, e ele caiu no chão, inconsciente.
As três freiras ficaram horrorizadas.
- Depressa! - Disse Lucia.
Um instante depois, Lucia, Megan, Graciela e Teresa estavam no pátio da frente, correndo para o portão, sob a noite estrelada. Lucia parou.
- Vou me separar de vocês. Eles vão procurá-las, e por isso é melhor saírem daqui o mais depressa possível. - Virou-se e começou a sair para as montanhas, que se elevavam ao longe, muito acima do convento. "Eu me esconderei na Suíça. É muito azar. Aqueles filhos da mãe destruíram uma cobertura perfeita."
Enquanto subia pela encosta, Lucia olhou para baixo. Lá de cima, podia avistar as três irmãs. Por mais incrível que pudesse parecer, continuavam paradas na frente do portão do convento, como três estátuas vestidas de preto. "Pelo amor de Deus!", pensou. "Saiam logo daí, antes que eles as peguem! Depressa!"
Elas não podiam se mexer. Era como se todos os seus sentidos tivessem permanecido paralizados por tanto tempo que agora se encontravam incapazes de absorver o que lhes acontecia. As freiras olhavam para os pés. Tão atordoadas que não podiam pensar. Haviam passado tanto tempo enclausuradas por trás dos portões de Deus, apartadas do mundo, que agora, fora dos portões protetores, viam-se dominadas por sentimentos de confusão e pânico. Não tinham a menor idéia que rumo seguir ou o que fazer.
Lá dentro, a vida toda era organizada para elas. Haviam sido alimentadas, vestidas, instruídas sobre o que fazer e quando fazer. Viviam pelas regras. Agora, subitamente, não havia mais regras. O que Deus queria delas? Qual seria o Seu plano? Ficaram paradas, juntas, com medo de falarem, com medo de olharem uma para a outra.
Hesitante, irmã Teresa apontou para as luzes de Ávila, ao longe, e fez sinal de "por ali." Indecisas, elas começaram a se encaminhar para a cidade.
Observando-as do alto da colina, Lucia pensou: "Não suas idiotas! Este será o primeiro lugar em que eles vão procurá-las. Ora, o problema é de vocês. Já tenho os meus." Ficou parada por um instante, observando as freiras se encaminharem para a perdição, direto para o matadouro. "Merda."
Lucia desceu a encosta, tropeçando em pedras soltas, correu atrás das irmãs, o hábito incômodo diminuindo a velocidade.
- Esperem um instante! - gritou. - Parem!
As irmãs pararam e se viraram. Lucia aproximou-se correndo, a respiração ofegante.
- Estão indo pelo caminho errado. O primeiro lugar que irão procurar vocês será na cidade. Devem se esconder em algum outro lugar.
As três irmãs fitaram-na em silêncio. Lucia acrescentou, impaciente:
- As montanhas. Subam as montanhas. Sigam-me. - Virou-se e começou a voltar para as montanhas. As outras ficaram olhando e depois de um instante partiram no seu encalço, uma a uma.
De vez em quando Lucia olhava para trás, para se certificar que as outras a seguiam. "Por que não posso cuidar da minha própria vida?" pensou. "Elas não são responsabilidade minha. E é mais perigoso se ficamos juntas." Continuou a subir, cuidando para que as outras não a perdessem de vista.
As irmãs encontraram a maior dificuldade na escalada, e cada vez ficavam mais lentas, Lucia parava e esperava por elas.
"Vou me livrar delas amanhã."
- Precisamos andar mais depressa - exortou Lucia.
A batida chegara ao fim no convento. As freiras atordoadas, os hábitos amarrotados e manchados de sangue, estavam sendo embarcadas em caminhões fechados, anônimos.
- Leve-as de volta para o quartel-general em Madrid - exortou o coronel Acoca. - E mantenha todas no isolamento.
- Sob que acusação?
- Esconder terroristas.
- Claro, coronel. - Patrício Arreta hesitou por instantes. - Quatro freiras estão desaparecidas.
Os olhos do coronel Acoca tornaram-se frios.
- Encontre-as.
O coronel Acoca retornou a Madrid e foi se reportar ao primeiro-ministro.
- Jaime Miró escapou antes de chegarmos ao convento.
Martínez balançou a cabeça.
- Eu já soube. - Não pôde deixar de especular se Jaime Miró alguma vez estivera no convento. De uma coisa estava certo. O coronel Acoca estava perigosamente escapando ao controle.
Houvera violentos protestos pelo brutal ataque ao convento. O primeiro-ministro escolheu as palavras com todo cuidado:
- Os jornais estão me criticando pelo acontecido.
- Os jornais estão transformando esse terrorista num herói - retrucou Acoca, impassível. - Não podemos permitir que nos pressionem.
- Ele está causando muito embaraço ao governo, coronel. E as quatro freiras… se elas falarem…
- Não se preocupe. Não vão longe. Eu as pegarei, e encontrarei Miró.
O primeiro-ministro já decidira que não podia mais correr riscos.
- Coronel, quero que providencie para que as 36 freiras sejam bem tratadas, e estou ordenando que o exército participe da busca a Miró e os outros. Vai trabalhar com o coronel Sostelo.
Houve uma pausa longa e perigosa.
- Qual de nós estará no comando da operação?
Os olhos de Acoca eram frios. O primeiro-ministro engoliu em seco.
- Você, é claro.
Lucia e as três irmãs viajaram pelo início da manhã, seguindo para o norte, na direção das montanhas, afastando-se de Ávila e do convento. As freiras, acostumadas a se movimentarem em silêncio, quase não faziam barulho. Os únicos sons eram o farfalhar dos hábitos, o retinir dos rosários, o estalido ocasional de um graveto quebrado e as respirações ofegantes, enquanto subiam cada vez mais.
Chegaram a um platô na montanha Guadarrama e avançaram por uma estrada esburacada, margeada por muretas de pedra.
Passaram, por campos com ovelhas e cabras. Ao nascer do sol, já haviam percorrido vários quilômetros e se encontravam num bosque, nos arredores da pequena aldeia de Villacastín.
"Vou deixá-las aqui", decidiu Lucia. "Seu Deus pode cuidar delas agora. Sem dúvida, Ele cuidou muito bem de mim", pensou, amargurada. "A Suíça está mais longe do que nunca. Não tenho dinheiro nem passaporte, estou vestida como um agente funerário. A esta altura, aqueles homens já sabem que escapamos. Ficarão à nossa procura até nos encontrarem. Quanto mais cedo eu sair daqui sozinha, melhor."
Mas nesse instante aconteceu uma coisa que a levou a mudar de planos.
Irmã Teresa avançava entre as árvores quando tropeçou e o embrulho que guardava com tanto cuidado caiu na terra. A lona se abriu, e Lucia descobriu-se a olhar para uma cruz de ouro, grande, lavrada com requinte, faiscando aos raios do sol nascente.
"É ouro de verdade", pensou. "Alguém lá em cima está mesmo cuidando de mim. Aquela cruz é um maná. Um autêntico maná. A minha passagem para a Suíça."
Lucia observou irmã Teresa pegar a cruz e tornar a enrolar a lona, com todo cuidado. Sorriu satisfeita. Seria fácil tomá-la.
As freiras fariam qualquer coisa que ela mandasse.
A cidade de Ávila estava em alvoroço. As notícias do ataque ao convento haviam se espalhado depressa, e o padre Berrendo foi escolhido para uma confrontação com o coronel Acoca. O padre tinha mais de setenta anos, com uma fragilidade exterior que não condizia com a força interior. Era um pastor afetuoso e compreensivo para com seus paroquianos. Naquele momento, porém, sentia uma fúria incontrolável.
O coronel Acoca deixou-o à espera por uma hora, depois permitiu que o levassem até sua sala.
Padre Berrendo foi logo dizendo, sem qualquer preâmbulo:
- Você e seus homens atacaram um convento sem a menor provocação. Foi um ato de loucura.
- Procuramos apenas cumprir o nosso dever - retrucou o coronel, num tom ríspido. - O convento abrigava Jaime Miró e seu bando de assassinos. Com isso, as próprias irmãs foram responsáveis pelo que aconteceu. Estão detidas para interrogatório.
- O senhor encontrou Jaime Miró no convento? - perguntou o padre, irritado.
O coronel Acoca respondeu suavemente:
- Não. Ele e seus homens escaparam antes da nossa chegada. Mas vamos encontrá-lo, e se fará justiça.
"A minha justiça", pensou o coronel Acoca, selvagemente.
Capítulo 5
As freiras avançavam devagar, com seus trajes inadequados para o terreno acidentado. As sandálias eram finas demais para proteger-lhes os pés contra o terreno pedregoso, e os hábitos ficavam presos a tudo. Irmã Teresa descobriu que nem sequer podia dizer o seu rosário. Precisava das duas mãos para evitar que os galhos lhe batessem no rosto.
À luz do dia, a liberdade parecia ainda mais aterradora do que antes. Deus expulsara as irmãs do Éden para um mundo estranho e assustador, retirando Sua orientação, em que elas haviam se apoiado por tanto tempo. Descobriram-se num território inexplorado, sem mapas e sem bússola. Os muros que as protegeram do mal por tantos anos haviam desaparecido, e sentiam-se desprotegidas e expostas. O perigo rondava por toda a parte, e não mais dispunham de um refúgio.
Eram alienígenas. As vistas e sons eram fascinantes. Havia o zumbido dos insetos e o canto dos pássaros, o céu muito azul, tudo investindo contra seus sentidos. E havia algo mais que era desconcertante.
Ao fugirem do convento, Teresa, Graciela e Megan evitaram com todo o cuidado olhar uma para a outra, atendo-se instintivamente às regras. Agora, no entanto, cada uma se descobria a estudar avidamente os rostos das outras. Além disso, após tantos anos de silêncio, encontravam dificuldades para falar; e quando falavam, as palavras eram hesitantes, como se isso fosse novo e desconhecido. Suas vozes soavam estranhas nos próprios ouvidos. Apenas Lucia parecia desinibida e segura, e as outras se submeteram automaticamente à sua liderança.
- É melhor nos apresentarmos. Sou a irmã Lucia - apresentou-se ela.
- Sou a irmã Graciela.
"A de cabelos escuros, beleza excepcional."
- Sou a irmã Megan.
"A jovem loura, com olhos azuis deslumbrantes."
- Sou a irmã Teresa.
"A mais velha do grupo. Cinquenta anos? Sessenta?"
Enquanto paravam no bosque para descansar, perto da aldeia, Lucia pensou: "Elas são como aves recém-nascidas, caídas dos ninhos. Não durariam cinco minutos sozinhas. Ora, azar delas. Vou partir para a Suíça com a cruz."
Lucia foi até à beira da clareira em que se encontravam e olhou através das árvores para a pequena aldeia lá em baixo.
Poucas pessoas andavam na rua, mas não havia sinal dos homens que invadiram o convento. "Agora", pensou Lucia. "Esta é a minha oportunidade." Ela virou-se para as outras.
- Vou descer até a aldeia para tentar arrumar comida. Esperem aqui. - Acenou com a cabeça para irmã Teresa. - Venha comigo.
Irmã Teresa ficou confusa. Durante trinta anos obedecera apenas às ordens da reverenda madre Betina, e agora, subitamente, aquela irmã assumira o comando. "Mas o que está acontecendo é a vontade de Deus", pensou. "Ele escolheu-a para nos guiar e assim ela fala com Sua voz."
- Devo levar esta cruz para o convento em Mendavia o mais depressa possível.
- Está bem. Quando chegarmos lá embaixo, pediremos para nos informarem o caminho.
As duas começaram a descer a encosta para a aldeia, Lucia atenta a qualquer perspectiva de problema. Não havia nenhuma.
"Vai ser muito fácil", pensou ela. Chegaram aos arredores da aldeia. Uma placa informava: VILLACASTÌN. À frente ficava a rua principal. À esquerda, uma rua pequena e deserta.
Ótimo, pensou Lucia. Não havia ninguém para testemunhar o que estava prestes a acontecer. Ela entrou pela rua secundária.
- Vamos por aqui. Haverá menos possibilidade de alguém nos ver.
Irmã Teresa balançou a cabeça e seguiu-a, obediente. A questão agora era como lhe tirar a cruz.
"Eu poderia agarrar a cruz e correr", pensou Lucia, "mas ela provavelmente gritaria e atrairia muita atenção. É melhor dar um jeito para que fique quieta."
Um pequeno galho de uma árvore estava caído no chão, à sua frente. Lucia parou, inclinou-se para pegá-lo. Era pesado.
"Perfeito." Esperou que irmã Teresa a alcançasse.
- Irmã Teresa…
A freira virou-se para fitá-la. No momento em que Lucia começava a levantar o porrete, uma voz de homem disse, surgindo do nada.
- Deus esteja com vocês, irmãs.
Lucia virou-se, pronta para correr. Um homem se encontrava parado ali, usando um hábito marrom comprido e capuz de frade.
Era alto e magro, rosto aquilino, a expressão mais santa que Lucia já vira. Os olhos pareciam luzir com uma quente luz interior, a voz era suave e gentil.
- Sou o frei Miguel Carrillo.
A mente de Lucia estava em disparada. Seu primeiro plano fora interrompido. Mas agora, subitamente, tinha outro melhor.
- Graças a Deus que nos encontrou - murmurou.
Aquele homem seria sua garantia de fuga. Saberia o meio mais fácil de deixar a Espanha.
- Viemos do convento Cisterciense perto de Ávila - explicou Lucia. - Ontem à noite ele foi invadido por alguns homens. As freiras foram levadas. Mas nós e outras duas conseguimos escapar.
Quando o frade respondeu, a voz estava impregnada de raiva:
- Venho do mosteiro de San Generro, onde estive durante os últimos vinte anos. Fomos atacados anteontem - suspirou. - Sei que Deus tem algum desígnio para todos os seus filhos, mas devo confessar que no momento não compreendo qual possa ser.
- Esses homens estão à nossa procura - disse Lucia. - É importante que saiamos da Espanha tão depressa quanto possível. Sabe como se pode fazer?
Frei Carrillo sorriu gentilmente.
- Acho que posso ajudá-las, irmã. Deus nos reuniu. Leve-me para o lugar em que estão as outras.
Em poucos minutos Lucia levou o frade para o bosque e anunciou:
- Este é o frei Carrillo. Ele passou os últimos vinte anos num mosteiro. Veio para nos ajudar.
As reações ao frade foram diferentes. Graciela não ousou fitá-lo diretamente, Megan estudou-o com olhares rápidos e interessados, e Irmã Teresa considerou-o como um mensageiro enviado por Deus para levá-las ao convento em Mendavia.
Frei Carrillo disse:
- Os homens que atacaram o convento estão sem dúvida à procura de vocês. Mas ficarão atentos a quatro freiras. A primeira coisa que devem fazer é trocar de roupa.
- Não temos outras roupas - lembrou Megan.
Frei Carrillo deu-lhe um sorriso beatífico.
- Nosso Senhor tem um vasto guarda-roupas. Não se preocupe, minha criança. Ele nos proverá. Vamos para a aldeia.
Eram duas horas da tarde, o momento da siesta, e frei Carrillo e as quatro freiras desceram pela rua principal da aldeia, alertas a qualquer sinal dos perseguidores.
As lojas estavam fechadas, mas os restaurantes e bares se encontravam abertos, e deles saía uma música estranha, estridente e dissonante. Frei Carrillo percebeu a expressão espantada no rosto de irmã Teresa e explicou:
- Isso é rock and roll. Uma música bem popular entre os jovens hoje em dia.
Duas moças estavam paradas na frente de um bar e ficaram olhando para as freiras, que também olharam, aturdidas com suas estranhas roupas. Uma delas usava uma saia tão curta que mal cobria as coxas, a outra estava com uma saia mais comprida, só que aberta nos lados. As duas usavam blusas de tricot muito justas sem mangas.
"É como se estivessem quase nuas", pensou irmã Teresa, horrorizada.
Um homem estava na porta, com um suéter de gola rolê, um casaco de aparência estranha, sem gola, e um pendente de brilhante no pescoço.
Cheiros estranhos receberam as freiras quando passaram por uma bodega. Nicotina e uísqui.
Megan olhava fixamente para alguma coisa no outro lado da rua. Ela parou.
- O que houve? Qual é o problema? - perguntou frei Carrillo.
Ele virou-se para olhar. Megan observava uma mulher carregando um bebê. Quantos anos haviam passado desde a última vez em que vira um bebê ou mesmo uma criança pequena? Desde o orfanato, há 14 anos. O choque súbito fez com que Megan compreendesse o quanto sua vida estivera distante do mundo exterior.
Irmã Teresa também olhava para o bebê, mas pensava em outra coisa. "É o bebê de Monique." A criança no outro lado da rua começou a gritar. "Está chorando porque eu o abandonei. Mas não, isso é impossível. Aconteceu há trinta anos." Irmã Teresa virou-se, os gritos do bebê ressoando-lhe nos ouvidos. Eles seguiram em frente.
Passaram por um cinema. O cartaz na marquise anunciava:
"Três amantes", e as fotografias mostravam mulheres sumariamente vestidas, abraçando um homem com o peito nu.
- Ora, elas estão… estão quase nuas! - exclamou irmã Teresa.
Frei Carrillo franziu o rosto.
- Tem razão. É vergonhoso o que o cinema tem permissão para mostrar hoje em dia. Esses filmes são pura pornografia. Os atos mais pessoais e íntimos são apresentados, para todos verem. Transformam os filhos de Deus em animais.
Passaram por uma loja de ferragens, num salão de beleza, numa floricultura e numa loja de doces, todas fechadas para a siesta. As irmãs pararam diante de cada loja e olharam aturdidas as vitrines, cheias de objetos outrora familiares, agora mera recordação.
Ao se aproximarem de uma loja de roupas femininas, frei Carrillo disse:
- Parem.
As cortinas nas vitrines estavam arriadas, e um cartaz na porta avisava: FECHADA.
- Esperem aqui, por favor.
As quatro mulheres observaram, enquanto ele dobrava a esquina e desaparecia. Trocaram olhares, aturdidas. O que ele ia fazer? E se não voltasse? Poucos minutos depois elas ouviram o barulho da porta da frente sendo aberta. Frei Carrillo ali estava, com uma expressão radiante. Gesticulou para que entrassem.
- Depressa!
Depois que todas estavam dentro da loja, ele trancara a porta, Lucia perguntou:
- Como pôde…?
- Deus provê uma porta dos fundos, assim como a porta da frente - respondeu, solenemente.
Mas havia uma insinuação maliciosa em sua voz que fez Megan sorrir.
As irmãs correram os olhos pela loja, assustadas. Era uma cornucópia multicolorida de vestidos e suéteres, sutiãs e meias, sapatos de salto alto e chapéus. Artigos que não viam há anos.
E os estilos pareciam muito estranhos. Havia bolsas e charpes, estojos de maquilagem e blusas. Era coisa demais para absorver.
As freiras ficaram imóveis, atordoadas.
- Devemos nos apressar antes que a siesta acabe e a loja seja reaberta - advertiu frei Carrillo. - Sirvam-se. Escolham o que acharem melhor.
Lucia pensou: "Graças a Deus que posso outra vez me vestir como uma mulher." Ela encaminhou-se para um cabideiro com vestidos e começou a examiná-los. Encontrou uma saia beje com uma blusa de seda castanho-amarelada para acompanhá-la. "Não é belenciaga, mas servirá por enquanto." Apanhou também uma calcinha, um sutiã e um par de botas confortáveis. Foi para trás de um cabideiro, despiu-se e em poucos minutos estava pronta para partir.
As outras demoraram a escolher suas roupas.
Graciela pegou um vestido branco de algodão que ressaltava os cabelos escuros e a pele morena, além de um par de sandálias.
Megan pegou um vestido de algodão estampado que descia abaixo dos joelhos e sandálias de saltos baixos.
Irmã Teresa teve a maior dificuldade para escolher um traje.
A variedade de opções era desconcertante. Havia sedas e flanelas, tweeds e couro… algodão, sarja e veludo… vestidos axadrezados e listrados de todas as cores. E todos pareciam… "sumários", foi a palavra que lhe veio à mente. Durante os últimos trinta anos cobrira-se decentemente com os hábitos pesados de sua vocação. E agora lhe pediam que os removesse e pusesse aquelas criações indecentes. Acabou escolhendo a saia mais comprida que pôde encontrar e uma blusa de algodão, de mangas compridas e gola alta.
Frei Carrillo exortou-as:
- Depressa, irmãs. Troquem logo de roupa.
Elas se entreolharam, embaraçadas. Ele sorriu.
- Ficarei à espera no escritório, é claro. - Foi para os fundos da loja e entrou no escritório. As irmãs começaram a se despir, terrivelmente inibidas pela presença das outras.
No escritório, frei Carrillo puxara uma cadeira para a porta, subira nela, e olhava pela bandeira da porta, enquanto as irmãs se despiam. Estava pensando: "Qual delas vou comer primeiro?"
Miguel Carrillo iniciara sua carreira de ladrão quando tinha apenas dez anos. Nascera com cabelos louros encaracolados e um rosto angelical, o que se tornou de valor inestimável na carreira que escolheu. Começou de baixo, furtando bolsas e pequenos objetos em lojas. À medida que se tornou mais velho, expandiu sua carreira e começou a roubar bêbados e explorar mulheres ricas. Como era muito atraente, teve um enorme sucesso. Inventou vários golpes originais, cada um mais engenhoso do que o anterior.
Infelizmente, o último golpe foi sua desgraça.
Apresentou-se como frei de um mosteiro distante, Carrillo viajou de igreja em igreja, solicitando abrigo para a noite.
Era sempre atendido, e pela manhã, quando abria a porta da igreja, o padre descobria que todos os artefatos valiosos haviam desaparecido, junto com o bom frei.
Infelizmente, o destino o traiu. Duas noites antes, em Béjar, uma pequena cidade perto de Ávila, o padre voltou inesperadamente, e Miguel Carrillo foi surpreendido no ato de roubar o tesouro da igreja. O padre era corpulento e forte, derrubou Carrillo no chão e anunciou que ia entregá-lo à polícia.
Um pesado cálice de prata caíra no chão, Carrillo pegou-o e golpeou o padre. Ou o cálice era muito pesado ou o crânio do padre muito frágil, pois o homem morreu. Miguel Carrillo fugiu em pânico, ansioso em ficar o mais longe possível do local do crime.
Passou por Ávila e soube do ataque ao convento, desfechado pelo coronel Acoca e os seus agentes secretos do "GOE". E o destino quis que Carrillo se descobrisse no caminho das quatro freiras fugitivas.
Agora, ansioso na expectativa, estudou os corpos nus e pensou: "Há outra possibilidade interessante. Como o coronel Acoca e seus homens estão à procura das irmãs, deve haver uma boa recompensa por suas cabeças. Vou comê-las primeiro e depois entregá-las a Acoca." As mulheres, à exceção de Lucia, que já terminara de se vestir, estavam totalmente nuas. Carrillo observou-as vestirem desajeitadas as novas roupas de baixo. Mas logo se arrumaram, abotoando com alguma dificuldade os botões a que não estavam acostumadas, puxando os zíperes, querendo sair dali depressa, antes de serem descobertas.
Está na hora de entrar em ação, pensou Carrillo, feliz.
Desceu da cadeira e voltou à loja. Aproximou-se das mulheres, estudou-as com aprovação e disse:
- Excelente. Ninguém deste mundo pensaria que vocês são freiras. Gostaria de sugerir lenços para a cabeça.
Escolheu um lenço para cada uma e observou-as a ajeitá-los em suas cabeças.
Miguel Carrillo tomou sua decisão. Graciela seria a primeira. Era sem dúvida uma das mulheres mais bonitas que já vira.
"E que corpo! Como ela pôde desperdiçar tudo isso com Deus? Eu lhe ensinarei o que fazer com seus atributos."
Disse a Lucia, Teresa e Megan:
- Vocês devem estar com fome. Podem ir até ao café por onde passamos e nos esperar ali. Irei à igreja e pedirei algum dinheiro emprestado ao padre, para podermos comer. - Virou-se para Graciela. - Quero que venha comigo, irmã, para explicar ao padre o que aconteceu no convento.
- Eu… eu… está bem.
Carrillo acrescentou para as outras:
- Estaremos com vocês de novo dentro de pouco tempo. Sugiro que saiam pela porta dos fundos. - Observou Lucia, Teresa e Megan saírem. Depois que ouviu a porta dos fundos fechar, virou-se para Graciela. "Ela é fantástica", pensou. "Talvez eu a mantenha comigo, usando-a em alguns golpes. Ela pode se tornar uma grande ajuda." Graciela olhava para ele.
- Estou pronta.
- Ainda não. - Carrillo fingiu estudá-la um momento. - Não, acho que não vai dar. Esta roupa está errada em você. Tire-a.
- Mas… por quê?
- Não combina com você. As pessoas ficarão olhando, e não quer atrair muita atenção.- Ela hesitou, depois foi para trás do cabideiro. - Ande depressa. Não dispomos de muito tempo.
Contrafeita, Graciela tirou o vestido pela cabeça. Estava de calcinha e sutiã quando Carrillo surgiu subitamente.
- Tire tudo. - A voz dele era rouca.
Graciela fitou-o atordoada.
- Como? Não! - Ela estava gritando. - Eu… não… posso… por favor…
Carrillo chegou mais perto.
- Eu a ajudarei, irmã. - Estendeu as mãos, arrancou o sutiã, rasgou a calcinha.
- Não! - berrou Graciela. - Não deve fazer isso! Pare!
Carrillo sorriu.
- Carita, estamos apenas no começo. Garanto que vai adorar. - Seus braços fortes envolveram-na. Forçou-a para o chão e levantou o hábito.
Foi como se uma cortina na mente de Graciela se abrisse de repente. Era o mouro tentando entrar nela, dilacerando suas profundezas, os gritos estridentes da mãe. E Graciela pensou, apavorada: "Não, não outra vez. Não, por favor… não outra vez…"
Ela se debatia agora, desesperada, lutando contra Carrilo, na tentativa de se levantar.
- Mas que droga! - exclamou Carrillo.
Bateu com o punho no rosto de Graciela, e ela caiu para trás, atordoada, tonta.
Descobriu-se a retroceder no tempo.
De volta… de volta…
Capítulo 6
LAS NAVAS DE MARQUÉS, ESPANHA 1950
Graciela tinha cinco anos de idade. Suas lembranças mais antigas eram de uma procissão de homens nus entrando e saindo da cama de sua mãe. A mãe explicou:
- Eles são seus tios. Deve mostrar respeito.
Os homens eram rudes e grosseiros, careciam de afeição.
Ficavam por uma noite, uma semana, um mês, depois desapareciam.
Quando partiam, Dolores Pinero procurava imediatamente por um novo homem.
Na juventude, Dolores Pinero fora uma beldade, e Graciela herdara a aparência da mãe. Mesmo quando criança, Graciela era fascinante, com malares salientes, pele azeitonada, cabelos pretos lustrosos, pestanas densas e compridas. O corpo jovem encerrava muitas promessas.
Com a passagem dos anos, o corpo de Dolores Pinero fora dominado pela gordura, e o rosto maravilhoso marcado pelos golpes amargos do tempo. Embora não fosse mais bonita, ela era acessível e possuía a reputação de ser uma ardorosa parceira na cama. Fazer amor era o seu único talento, e ela o empregava para agradar aos homens, na esperança de mantê-los, tentar comprar o amor com seu corpo. Ganhava a vida mal como costureira, porque era indiferente a seu ofício e só contratada pelas mulheres da aldeia que não tinham condições de pagar às melhores.
Dolores Pinero desprezava a filha, pois era uma lembrança constante do único homem que ela já amara. O pai de Graciela era um mecânico, jovem e bonito, que cortejava a bela e jovem Dolores. Ansiosa, ela se deixara seduzir. Quando anunciara que estava grávida, ele desaparecera, deixando Dolores com a maldição de sua semente.
Dolores tinha um temperamento explosivo e desforrou-se na criança. Sempre que Graciela fazia alguma coisa que a desagradava, a mãe a espancava e gritava:
- Você é tão estúpida quanto seu pai!
Não havia a menor possibilidade da criança escapar à sua sessão de golpes ou gritos constantes. Graciela rezava todas as manhãs, ao despertar: "Por favor, Deus, não deixe que mamãe me bata hoje." Ou: "Por favor, Deus, faça mamãe feliz hoje." Ou: "Por favor, Deus, faça com que mamãe diga que me ama hoje."
Quando não estava atacando Graciela, a mãe a ignorava.
Graciela preparava as próprias refeições e cuidava de suas roupas. Fazia o lanche que levava para a escola e dizia à professora:
- Minha mãe fez empanadas hoje. Ela sabe que eu gosto muito de empanadas.
Ou:
- Rasguei o vestido, mas minha mãe costurou para mim. Ela adora fazer as coisas para mim.
Ou:
- Minha mãe e eu vamos ao cinema amanhã.
E isso partia o coração da professora. Las Navas del Marqués é uma pequena aldeia, a uma hora de Ávila. Como todas as aldeias, por toda a parte, todo o mundo sabia da vida de todo o mundo.
O estilo de vida de Dolores Pinero era uma desgraça e refletia sobre Graciela. As outras mães não deixavam que suas filhas brincassem com ela, para que sua moral não fosse abalada.
Graciela frequentava a escola na Plazoleta del Cristo, mas não tinha amigas, nem companheiras de brincadeiras. Era uma das alunas mais inteligentes da escola, mas as notas eram péssimas.
Não conseguia se concentrar, pois estava sempre cansada.
A professora a advertia:
- Deve deitar mais cedo, Graciela, para estar bem descansada para fazer seus deveres direito.
Mas a exaustão nada tinha haver com deitar tarde. Graciela e a mãe partilhavam uma casa pequena de dois cômodos. A menina dormia num sofá na sala mínima, com apenas uma cortina fina e surrada a separá-la do quarto. Como Graciela podia falar à professora sobre os sons obscenos que a despertavam à noite e a mantinham acordada, enquanto a mãe fazia amor com qualquer estranho que por acaso estivesse em sua cama?
Quando Graciela levava o boletim para casa, a mãe sempre gritava:
- Estas são as notas que eu já esperava! E sabe por que tira essas notas péssimas? Porque você é estúpida! Muito estúpida!
E Graciela acreditava, fazia o maior esforço para não chorar.
À tarde, depois das aulas, Graciela vagueava sozinha, andando pelas ruas estreitas e sinuosas, com acácias e plátanos, passando por casas de pedra caiadas de branco, em que os pais amorosos viviam com suas famílias. Graciela tinha muitos colegas, mas todos apenas em sua mente. Eram lindas meninas e garotos simpáticos, convidavam-na para todas as suas festas, serviam bolo e sorvete. Os amigos imaginários eram gentis e afetuosos, todos consideravam-na muito inteligente. Quando a mãe não estava por perto, Graciela mantinha longas conversas com os amigos imaginários.
"Quer me ajudar com os deveres de casa, Graciela? Não sei somar, e você é muito boa nisso."
"O que vamos fazer esta noite, Graciela? Podemos ir ao cinema ou passear pela cidade e tomar uma coca-cola."
"Será que sua mãe a deixaria vir jantar conosco esta noite, Graciela?"
"Acho que não vai dar. Minha mãe se sente muito sozinha quando não estou em casa. Afinal, sou tudo o que ela tem."
Aos domingos, Graciela levantava-se cedo e vestia-se sem fazer barulho, tomando cuidado para não acordar a mãe e qualquer que fosse o tio que estivesse na cama. Depois, ia para a igreja de San Juan Baptista, onde o padre Pérez falava sobre as alegrias da vida após a morte, uma vida de conto de fadas, com Jesus; e Graciela sentia-se ansiosa em morrer e se encontrar com Jesus.
Padre Pérez era um homem atraente, de quarenta e poucos anos. Assistia os ricos e pobres, doentes e saudáveis, desde que viera para Las Navas del Marqués, vários anos antes. Não havia segredos na pequena aldeia que ele não conhecesse. Padre Pérez conhecia Graciela como uma frequentadora assídua da igreja e também estava a par das histórias sobre o constante fluxo de estranhos que partilhavam a cama de Dolores Pinero. Não era um lar apropriado para uma criança, mas não havia nada que ele pudesse fazer a esse respeito. Admirava-se por Graciela se sair tão bem.
Era uma menina boa e gentil, nunca se queixava ou falava sobre a vida doméstica.
Graciela aparecia na igreja todas as manhãs de domingo com uma roupa limpa e arrumada, que ele sabia ter sido lavada por ela. Padre Pérez sabia que ela era escorraçada pelas outras crianças da aldeia, e seu coração se confrangia. Fazia questão de passar alguns momentos com Graciela depois da missa, todos os domingos; e quando dispunha de tempo, levava-a um café para tomar um sorvete.
No inverno a vida da Graciela era uma paisagem desolada, monótona e sombria. Las Navas del Marqués ficava num vale, cercado de montanhas, por causa disso, os invernos duravam seis meses. Os verões eram mais fáceis de suportar, pois os turistas chegavam e enchiam a aldeia com risos e danças, as ruas fervilhavam. Os turistas reuniam-se na Plaza de Manuel Delgado Barredo, com seus pequenos coretos de pedra, escutavam a orquestra e observavam os nativos dançarem a sardana, a dança folclórica de muitos séculos, sempre descalços, as mãos dadas, dando voltas graciosas, num círculo colorido. Graciela gostava de observar os visitantes, sentados nos cafés de beira de calçada com seus aperitivos ou envolvidos nas compras no mercado de peixe. À uma hora da tarde a bodega estava sempre repleta de turistas, bebendo chateo e comendo pedaços de carne, frutos do mar, azeitonas e batatas fritas.
O mais excitante para Graciela era assistir ao passeo, todos os dias, ao fim da tarde. Rapazes e moças andavam de um lado para outro da Plaza Mayor, em grupos segregados, os rapazes olhavam para as moças, enquanto pais, avós e amigos vigiavam atentos dos cafés na calçada. Era o tradicional ritual de acasalamento, mantido há séculos. Graciela ansiava em participar, mas a mãe proibia.
- Quer ser uma puta? - gritava para a filha. - Fique longe de rapazes. Eles só querem uma coisa de você. - Uma pausa e ela acrescentava, amargurada: - Sei por experiência própria.
Se os dias eram suportáveis, as noites eram uma agonia.
Através da cortina que separava as camas, Graciela podia ouvir os sons dos gemidos, estertores e respiração ofegante, e sempre as obscenidades.
- Mais depressa… com mais força!
- Cóge-me!
- Mámame la verga!
- Mételo en el culo!
Antes dos dez anos de idade, Graciela já ouvira todas as palavras obscenas do vocabulário espanhol. Eram sussurradas e gritadas, balbuciadas e gemidas. Os gritos de paixão repugnavam Graciela e ao mesmo tempo lhe despertavam estranhos anseios.
Quando Graciela estava com 14 anos, o mouro entrou em cena.
Era o maior homem que Graciela já vira. A pele era de preto lustroso e a cabeça raspada. Tinha ombros enormes, peito estufado e braços musculosos. O mouro chegou durante a noite, quando Graciela dormia. Ela só o viu pela manhã, quando ele empurrou a cortina para o lado e passou por sua cama, completamente nu, a caminho da privada nos fundos. Graciela fitou-o e quase soltou um grito de espanto. Ele era enorme, em todas as partes. "Isso vai matar minha mãe", pensou Graciela. O mouro a viu.
- Ora, ora… o que temos aqui? Dolores Pinero deixou a cama apressada e veio se postar ao seu lado.
- Minha filha - disse, bruscamente.
Uma onda de embaraço envolveu Graciela ao ver o corpo nu da mãe junto do homem. O mouro sorriu, exibindo dentes bonitos, brancos e regulares.
- Qual é o seu nome, guapa?
Graciela estava envergonhada demais com a nudez do homem para falar.
- Ela se chama Graciela, e é retardada.
- Ela é linda. Aposto que você parecia assim quando jovem.
- Ainda sou jovem - respondeu Dolores em tom áspero, virando-se para a filha e acrescentou: - Vista-se ou vai chegar atrasada na escola.
- Está bem, mamãe.
O mouro ficou parado ali, contemplando-a. A mãe pegou-lhe o braço musculoso e murmurou, insinuante:
- Vamos voltar para a cama, querido. Ainda não acabamos.
- Mais tarde - respondeu o mouro, ainda olhando para Graciela.
O mouro ficou. Todos os dias, ao voltar da escola, Graciela rezava para que ele tivesse ido embora. Por motivos que não compreendia, aquele homem a deixara apavorada. Sempre era polido com ela, e nunca tentara coisa alguma, mas Graciela sentia calafrios só de pensar nele.
O tratamento que ele dispensava à mãe era bem diferente.
Passava a maior parte do dia na pequena casa, bebendo sem parar.
Tomava qualquer dinheiro que Dolores ganhava. Às vezes, à noite, no meio do ato de amor, Graciela o ouvia espancar a mãe. Pela manhã, Dolores Pinero aparecia com um olho roxo ou um lábio partido.
- Por que atura esse homem, mamãe?
- Você não compreendia. Ele é um homem de verdade, não um anão como os outros. Sabe como satisfazer uma mulher. - Dolores passou a mão pelos cabelos, num gesto coquete. - Além do mais, ele está perdidamente apaixonado por mim.
Graciela não acreditava nisso. Sabia que o mouro apenas usava sua mãe, mas não ousou protestar de novo. Tinha pavor do temperamento explosivo da mãe, pois Dolores Pinero parecia dominada por uma espécie de insanidade quando ficava furiosa.
Numa das ocasiões perseguira Graciela com uma faca de cozinha, porque ela se atrevera a fazer um chá para um dos "tios".
No início de uma manhã de domingo, Graciela levantou-se para ir à igreja. A mãe saíra cedo para entregar alguns vestidos. No momento em que Graciela tirou a camisola, a cortina foi puxada e o mouro apareceu. Estava nu.
- Onde está sua mãe, guapa?
- Mamãe saiu cedo. Tinha de entregar alguns vestidos.
O mouro, contemplando o corpo nu de Graciela, murmurou:
- Você é mesmo uma beleza.
Graciela sentiu-se corar. Sabia o que devia fazer: cobrir a nudez, pôr uma saia e uma blusa, sair dali. Em vez disso, ficou parada, incapaz de se mexer. Observou o membro do mouro começar a inchar e subir diante de seus olhos. Podia ouvir as vozes ressoando em seus ouvidos: "Mais depressa… Com mais força!"
Sentiu que estava prestes a desfalecer.
- Você é uma criança. Ponha logo as suas roupas e saia daqui - disse o mouro, a voz rouca.
E Graciela descobriu-se em movimento. Aproximou-se do mouro.
Passou os braços pela cintura dele, sentiu o membro duro comprimindo-se contra seu corpo.
- Não… - balbuciou. - Não sou uma criança.
A dor que se seguiu foi diferente de tudo o que Graciela já conhecera antes. Foi terrível, insuportável. Foi maravilhosa, inebriante, linda. Ela apertava o mouro com os braços. Ele a levou a um orgasmo depois de outro, e Graciela pensou: "Então todo o mistério é isso." E era maravilhoso finalmente conhecer o segredo de toda criação. Ser parte da vida, saber o que era a alegria, agora e para sempre.
- Que porra vocês estão fazendo? Era Dolores Pinero, aos gritos. Por um instante, tudo parou, ficou paralisado no tempo.
Dolores Pinero estava de pé ao lado da cama, olhando para a filha e o mouro. Graciela fitou a mãe, apavorada demais para falar. Os olhos de Dolores Pinero faiscavam com uma raiva insana.
- Sua puta! - berrou. - Sua puta nojenta!
- Mamãe… por favor…
Dolores Pinero pegou um pesado cinzeiro de ferro na mesinha-de-cabeceira e bateu com toda a força na cabeça da filha.
Foi a última coisa de que Graciela se lembraria.
Ela acordou numa enfermaria de hospital, grande e branca, com duas dúzias de camas, todas ocupadas. Enfermeiras corriam apressadas de um lado para outro, tentando atender às necessidades dos pacientes.
A cabeça de Graciela latejava com uma dor lancinante. Cada vez que se mexia, rios de fogo corriam por ela. Ficou deitada ali, escutando os gritos e gemidos das outras pacientes.
Ao final da tarde um jovem interno parou ao lado de sua cama. Tinha trinta e poucos anos, mas parecia velho e cansado.
- Finalmente acordou - disse.
- Onde estou? - Graciela descobriu que doía muito falar.
- Na enfermaria de caridade do Hospital Provincial de Ávila. Foi trazida ontem, em péssimo estado. Tivemos de dar vários pontos na sua testa. - O interno fez uma pausa. - O cirurgião-chefe decidiu cuidar de você pessoalmente. Disse que era bonita demais para ficar marcada por cicatrizes.
"Ele está enganado", pensou Graciela. "Ficarei marcada pelo resto da vida."
No segundo dia, padre Pérez foi visitar Graciela. Uma enfermeira arrastou uma cadeira para o lado da cama. O padre contemplou a moça linda e pálida deitada ali, e seu coração se estremeceu. A coisa terrível que acontecera com ela era o escândalo de Las Navas del Marqués, mas não havia nada que alguém pudesse fazer a esse respeito. Dolores Pinero contara à polícia que a filha machucara a cabeça ao cair. Padre Pérez perguntou então a Graciela:
- Está se sentindo melhor, criança?
Graciela assentiu, e o movimento fez com que sua cabeça doesse ainda mais.
- A polícia tem feito perguntas. Tem alguma coisa que gostaria que eu dissesse a eles?
Houve um silêncio prolongado, antes que ela balbuciasse:
- Foi um acidente.
O padre não pôde suportar a expressão nos olhos de Graciela.
- Entendo… - O que Graciela tinha a dizer era doloroso demais. - Conversei com sua mãe…
E Graciela soube de tudo no mesmo instante.
- Eu… não posso mais voltar para casa, não é mesmo?
- Infelizmente, não. Vamos conversar sobre isso. - Segurou-lhe a mão. - Voltarei para visitá-la amanhã.
- Obrigada, padre.
Depois que ele foi embora, Graciela rezou: "Querido Deus, deixe-me morrer, por favor. Não quero mais viver."
Não tinha onde ir e ninguém para procurar. Nunca mais veria sua casa. Nunca mais queria ir à escola ou contemplar os rostos familiares das professoras. Não lhe restava coisa alguma no mundo. Uma enfermeira parou ao pé da cama.
- Precisa de alguma coisa?
Graciela fitou-a em desespero. O que havia para dizer?
No dia seguinte, o interno tornou a aparecer.
- Tenho boas notícias - disse, constrangido. - Já está em condições de ter alta. - Era uma mentira, mas o resto do discurso foi verdadeiro. - Precisamos do leito.
Ela estava livre para sair… mas sair para onde?
Quando o padre Pérez chegou, uma hora depois, estava acompanhado por outro sacerdote.
- Este é o padre Berrendo, um velho amigo meu.
Graciela olhou para o padre de aparência frágil.
- Padre…
"Ele tinha razão", pensou o padre Berrendo. "Ela é mesmo linda."
Padre Pérez contara o que acontecera com Graciela. Berrendo esperava encontrar sinais visíveis do tipo de ambiente em que a criança vivera, uma dureza, desafio, autocompaixão. Mas não havia nada disso no rosto da moça.
- Lamento que tenha passado por momentos tão terríveis - disse-lhe padre Berrendo.
A frase insinuava um significado mais profundo. Padre Pérez acrescentou:
- Graciela, preciso voltar a Las Navas del Marqués. Vou deixá-la aos cuidados de padre Berrendo.
Graciela foi dominada por um súbito sentimento de pânico.
Sentiu que o último vínculo com sua casa estava sendo cortado.
- Não vá! - suplicou.
Padre Pérez pegou-lhe a mão e disse, gentilmente:
- Sei que se sente só, mas não está. Acredite em mim, não está só.
Uma enfermeira aproximou-se da cama, carregando um fardo. Entregou-o a Graciela.
- Aqui estão suas roupas. Lamento, mas terá que ir embora agora.
Um pânico ainda maior dominou Graciela.
- Agora?
Os dois padres trocaram um olhar.
- Por que não se veste e vem comigo? - sugeriu padre Berrendo. - Poderemos conversar.
Quinze minutos depois padre Berrendo ajudava Graciela a sair pela porta do hospital para o sol quente. Havia um jardim na frente com flores de cores fortes, mas Graciela estava atordoada demais para notá-las.
Quando estavam sentados em seu escritório, padre Berrendo disse:
- Padre Pérez me contou que você não tem para onde ir.
Graciela acenou com a cabeça.
- Não tem parentes?
- Só… - Era difícil dizer. - Só… minha mãe.
Padre Pérez disse que frequentava regularmente a igreja em sua aldeia. Uma aldeia que nunca mais tornaria a ver.
- É verdade.
Graciela pensou naquelas manhãs de domingo, a beleza dos serviços na igreja, o quanto ansiava estar com Jesus, escapando da angústia da vida que levara.
- Graciela, alguma vez pensou em entrar para um convento?
- Não. - Estava aturdida com a idéia.
- Há um convento aqui em Ávila… o convento Cisterciense. Elas a aceitariam ali.
- Eu… não sei…
A idéia era assustadora.
- Não é para todas - disse padre Berrendo. - E devo avisá-la que é a mais rigorosa de todas as ordens. Depois de passar pelos portões e tomar os votos, faz uma promessa a Deus de nunca mais sair.
Graciela ficou em silêncio, a mente povoada por pensamentos conflitantes, olhando para a janela. A perspectiva de se isolar do mundo era terrível. "Seria como ir para a prisão." Mas por outro lado, o que o mundo tinha a lhe oferecer? Dor e desespero além de sua capacidade de suportar. Pensara muitas vezes em suicídio. Aquilo podia representar uma saída para sua angústia.
Padre Berrendo acrescentou:
- Depende de você, minha criança. Se quiser, eu a levarei para conhecer a reverenda madre superiora.
- Está bem.
A reverenda madre estudou o rosto da moça à sua frente. Na noite passada, pela primeira vez em muitos e muitos anos, ela ouvira a voz. "Uma jovem virá ao seu encontro. Proteja-a."
- Quantos anos tem, minha filha?
- 14.
- Ela já tem idade suficiente.
No século quatro, o papa determinara que as jovens tinham permissão para se tornarem freiras aos 12 anos.
- Tenho medo - murmurou Graciela para a reverenda madre Betina.
"Tenho medo." As palavras ressoaram na mente de Betina.
"Tenho medo…"
Acontecera há muitos anos. Ela estava falando com o padre.
- Não sei se tenho vocação para isso, padre. Tenho medo.
- O primeiro contato com Deus, Betina, pode ser bastante desconcertante, e a decisão de consagrar sua vida a Ele é das mais difíceis.
"Como descobri minha vocação?" especulara Betina. Quando pequena, evitava a igreja e as aulas de catecismo. Na adolescência, estava mais interessada em festas, roupas e rapazes. Se perguntasse às amigas em Madrid para indicarem possíveis candidatas a freiras, Betina ficaria no final da lista.
Ou, mais acuradamente, nem entraria na lista. Mas aos 19 anos começaram a ocorrer eventos que mudaram sua vida. Estava na cama, dormindo, quando uma voz disse:
- Betina, levante-se e saia.
Abriu os olhos e sentou-se na cama, assustada. Acendeu o abajur na mesinha-de-cabeceira. Estava só. "Que sonho estranho!"
Mas a voz fora bastante real. Tornou a deitar-se, mas foi impossível voltar a dormir.
- Betina, levante-se e saia.
"É o meu subconsciente", pensou. "Por que eu haveria de querer sair no meio da noite?"
Apagou o abajur, mas tornou a acendê-lo um momento depois.
"Isso é loucura."
Mas acabou pondo um chambre e chinelas e desceu. Todos na casa dormiam.
Abriu a porta da cozinha, e nesse instante foi envolta por uma onda de medo, porque de alguma forma sabia que deveria sair para o pátio. Correu os olhos pela escuridão e divisou um brilho de luar numa geladeira abandonada, agora usada para guardar ferramentas.
Betina compreendeu subitamente por que estava ali.
Encaminhou-se para a geladeira, como se estivesse hipnotizada, e abriu-a. Seu irmão de três anos estava lá dentro, inconsciente.
Esse foi o primeiro incidente. Com o tempo, Betina racionalizou isso como uma experiência perfeitamente normal. "Devo ter ouvido meu irmão levantar e sair para o pátio, lembrei que a geladeira estava ali, fiquei preocupada com ele, e por isso saí para verificar."
A segunda experiência não foi fácil de explicar. Aconteceu um mês depois. No sono, Betina ouviu uma voz dizer:
- Você deve apagar o fogo.
Sentou-se na cama, completamente despertada, o coração disparado. Outra vez, foi impossível voltar a dormir. Pôs o chambre e chinelos, saiu para o corredor. Não havia fumaça. Não havia fogo. Abriu a porta do quarto dos pais. Tudo normal ali.
Também não havia fogo no quarto do irmão. Desceu e verificou todos os cômodos. Não havia o menor indício de fogo.
"Sou uma idiota", pensou. "Foi apenas um sonho."
Voltava para a cama no momento em que a casa foi sacudida por uma explosão. Ela e a família escaparam, os bombeiros conseguiram extinguir o incêndio.
- Começou no porão - explicou um bombeiro. - E uma caldeira explodiu.
O incidente seguinte ocorreu três semanas depois. E desta vez não foi sonho. Betina estava no pátio, lendo, quando avistou um estranho atravessando. Ele a fitou, e nesse instante ela sentiu uma malevolência irradiando-se do homem, quase palpável. Ele virou-se e foi embora.
Betina não conseguiu tirá-lo da mente.
Três dias depois, ela estava num prédio de escritório, à espera do elevador. A porta se abriu, e ela já ia entrar no elevador quando reparou no ascensorista. Era o homem que vira no pátio. Betina recuou, assustada. A porta fechou-se e o elevador subiu. Momentos depois caiu, matando todas as pessoas que estavam lá dentro.
No domingo seguinte Betina foi à igreja.
"Santo Deus, não sei o que está acontecendo, e me sinto assustada. Por favor, oriente-me e diga o que devo fazer."
A resposta veio naquela noite, enquanto Betina dormia. A voz disse uma única palavra. "Devoção."
Pensou a esse respeito durante o resto da noite, e pela manhã foi conversar com o padre.
Ele escutou atentamente o que Betina tinha a dizer.
- Ah, você é uma das afortunadas! Foi escolhida.
- Escolhida para quê?
- Está disposta a devotar toda sua vida a Deus, minha criança?
- Eu… eu não sei…
Mas, no final, ela acabou ingressando no convento.
"Escolhi o caminho certo", pensou a reverenda madre Betina, "porque jamais conheci tanta felicidade…"
E agora ali estava aquela criança maltratada a murmurar:
- Tenho medo.
A reverenda madre pegou a mão de Graciela.
- Leve o tempo que precisar para decidir, Graciela. Deus não irá embora. Pense a esse respeito, volte e poderemos conversar.
Mas o que havia para pensar? "Não tenho outro lugar para onde ir", refletiu Graciela. E o silêncio seria bem-vindo. "Já ouvi sons terríveis demais." Fitou a reverenda madre e disse:
- Terei prazer com o silêncio.
Isso acontecera 17 anos antes, e nesse período Graciela encontrara paz pela primeira vez. E toda sua vida era dedicada a Deus. O passado não mais lhe pertencia. Estava perdoada pelos horrores com que fora criada. Era a esposa de Cristo, e ao final de sua vida iria se juntar a Ele. À medida que os anos se passaram, em profundo silêncio, apesar dos pesadelos ocasionais, os sons terríveis em sua mente pouco a pouco se desvaneceram.
Irmã Graciela foi designada para trabalhar no jardim, cuidando dos pequenos arco-íris do milagre de Deus, jamais se cansava de seu esplendor. Os muros do convento erguiam-se acima dela, por todos os lados, como uma montanha de pedra, mas Graciela nunca se sentia aprisionada; em vez disso, sentia-se isolada do terrível mundo exterior, um mundo que jamais queria rever.
A vida no convento fora serena e pacífica. Agora, porém, os pesadelos assustadores convertiam-se em realidade. Seu mundo fora invadido por bárbaros. Expulsaram-na de seu santuário, para o mundo a que renunciara para sempre. E seus pecados ressurgiam, enchendo-a de horror. O mouro voltara. Podia sentir seu bafo quente no rosto. Enquanto lutava com ele, Graciela abriu os olhos, e era o frade quem estava por cima dela, tentando penetrá-la. E ele dizia:
- Pare de resistir, irmã. Vai gostar disso.
- Mamãe! - gritou Graciela. - Mamãe! Socorro!
Capítulo 7
Lucia Carmine sentia-se muito bem enquanto descia pela rua, acompanhada por Megan e Teresa. Era maravilhoso usar de novo roupas femininas, e ouvir o sussurro da seda contra sua pele. Olhou para as outras. As duas andavam nervosamente, desacostumadas às roupas novas parecendo inibidas e embaraçadas na saia e meias. "Parecem que vieram de outro planeta", pensou Lucia. "Certamente não pertencem a este. É como se estivessem usando cartazes que dizem: PEGUEM-ME."
Irmã Teresa era a mais contrafeita. Trinta anos no convento incutiram-lhe um profundo senso de recato, que estava sendo violado pelos eventos que não podiam controlar. Aquele mundo a que pertencera agora parecia irreal. O convento, era real, e ela ansiava voltar ao santuário de seus muros protetores.
Megan estava consciente de que os homens a contemplavam enquanto descia pela rua e corou. Vivera num mundo de mulheres por tanto tempo que esquecera como era ver um homem, muito menos observar um a sorrir-lhe. Era embaraçoso, indecente… excitante. Os homens despertavam sensações que Megan sepultara há muito tempo. Pela primeira vez em anos, estava consciente de sua feminidade.
Estavam passando pelo bar que haviam visto na ida, e a música saíra estrondosa para a rua. Como fora mesmo que frei Carrillo chamara? Rock and roll. "Muito popular entre os jovens." E, subitamente, Megan compreendeu o que era. Ao passarem pelo cinema, o frade dissera: "É vergonhoso o que o cinema tem permissão para mostrar hoje em dia. Esse filme é pura pornografia. Os atos mais pessoais e intimos são apresentados, para todos verem."
O coração de Megan começou a bater mais depressa. Se frei Carrillo passara os últimos vinte anos encerrado num mosteiro, como podia saber sobre a música de rock ou o que o cinema exibia? Alguma coisa estava terrivelmente errada.
Virou-se para Lucia e Teresa e disse, em tom de urgência:
- Precisamos voltar à loja.
Elas observaram enquanto Megan se virava correndo, depois a seguiram.
Graciela estava no chão, lutando desesperadamente para se desenvencilhar, arranhando e empurrando Carrillo.
- Mas que droga! Fique quieta! - Estava ficando sem fôlego. Ouviu um som e levantou os olhos. Viu um salto de um sapato avançando para sua cabeça e foi a última coisa de que se lembrou depois. Megan levantou a trêmula Graciela e abraçou-a.
- Calma, calma… Está tudo bem. Ele não vai mais incomodá-la.
Alguns minutos se passaram antes que Graciela pudesse falar, balbuciando, suplicante:
- Ele… ele… não foi minha culpa desta vez.
Lucia e Teresa entraram na loja. Lucia percebeu toda a situação com um rápido olhar.
- O filho da mãe!
Olhou para o vulto inconsciente e seminu no chão. Enquanto as outras observavam, Lucia pegou alguns cintos num balcão e amarrou as mãos de Carrillo nas costas.
- Amarre os pés - disse a Megan.
Megan pos-se a trabalhar. Lucia finalmente levantou-se satisfeita.
- Pronto. Quando abrirem a loja esta tarde, ele terá de explicar o que está fazendo aqui. - Estudou Graciela atentamente. - Você está bem?
- Eu… eu… estou. - Graciela tentou sorrir.
- É melhor sairmos daqui - disse Megan. - Vista-se. Depressa.
Quando estavam prontas para sair, Lucia disse:
- Esperem um instante.
Foi até a caixa registradora e apertou uma tecla. Havia algumas notas e cem pesetas ali. Lucia tirou-as, pegou uma bolsa no balcão e guardou as notas dentro. Viu a expressão desaprovadora no rosto da irmã Teresa.
- Pense da seguinte maneira - disse Lucia. - Se Deus não quisesse que ficássemos com este dinheiro, irmã, não o poria aqui para nós.
Elas estavam sentadas no café, reunidas. Irmã Teresa estava dizendo:
- Devemos levar a cruz ao convento em Mendavia o mais depressa possível. Haverá segurança ali para todas nós.
"Para mim não", pensou Lucia. "Minha segurança é aquele banco suíço. Mas uma coisa de cada vez. Preciso antes de me apoderar da cruz."
- O convento em Mendavia não fica ao norte daqui?
- Fica.
- Os homens estarão à nossa procura em cada cidade. Por isso, devemos dormir nas montanhas esta noite.
"Ninguém ouvirá, mesmo que ela grite."
Uma garçonete trouxe os cardápios para a mesa e distribuiu-os. As irmãs olharam, com expressões confusas.
Subitamente, Lucia compreendeu. Há muitos anos que elas não tinham opção de qualquer tipo. No convento, comiam automaticamente a comida simples que lhes era servida. Agora, defrontavam-se com uma cornucópia de iguarias desconhecidas.
Irmã Teresa foi a primeira a se manifestar:
- Eu… eu quero um café e pão, por favor.
Irmã Graciela acrescentou:
- E eu também.
Megan declarou:
- Temos uma jornada longa e árdua pela frente. Sugiro que peçamos alguma coisa mais nutritiva, com ovos.
Lucia fitou-a com uma nova atenção. "É nela que devo ficar de olho", pensou Lucia. Em voz alta, ela declarou:
- Irmã Megan tem razão. Deixem que eu peço por vocês, irmãs. - Pediu laranjas em fatias, tortilhas de batatas, bacon, pão, geléia e café. - Estamos com pressa - avisou à garçonete.
A siesta terminava às quatro e meia, e toda cidade despertaria. Ela queria estar bem longe antes que isso acontecesse, antes que descobrissem Miguel Carrillo na loja de roupas.
Quando a comida chegou, as irmãs ficaram imóveis, olhando, aturdidas.
- Sirvam-se - exortou Lucia.
Elas começaram a comer, cautelosas a princípio, depois com a maior satisfação, superando os sentimentos de culpa. Irmã Teresa era a única que estava com problemas. Levou um pouco à boca e balbuciou:
- Eu… eu… não posso… é renúncia…
Megan disse:
- Não quer chegar ao convento, irmã? Então precisa comer para manter as forças.
- Está bem, vou comer. Mas prometo que não vou gostar - declarou irmã Teresa, empertigada.
Lucia precisou fazer um grande esforço para manter a expressão compenetrada.
- Está certo, irmã. Mas coma tudo.
Depois que acabaram, Lucia pagou a conta com uma parte do dinheiro que tirara da caixa registadora. Elas saíram para o sol quente. As ruas começaram a se encher, as lojas já estavam abrindo. "A esta altura, provavelmente, já encontraram Miguel Carrillo", pensou Lucia.
Ela e Teresa estavam impacientes em deixar a cidade, mas Graciela e Megan andavam devagar, fascinadas pelas vistas, sons e cheiros do lugar.
Só quando saíram para os arredores e se encaminharam para as montanhas é que Lucia começou a relaxar. Seguiram para o norte, subindo sempre, bem devagar devido ao terreno acidentado.
Lucia sentia-se tentada a perguntar a irmã Teresa se não gostaria que ela carregasse a cruz, mas achou melhor não dizer nada que pudesse despertar suspeitas na mulher mais velha. Ao chegarem a uma pequena clareira no alto, cercada por árvores, Lucia disse:
- Podemos passar a noite aqui. Pela manhã seguiremos para o convento em Mendavia.
O sol deslocava-se devagar pelo céu azul. A claridade estava em silêncio, excepto pelos sons confortáveis de verão. A noite finalmente caiu.
Uma a uma, as mulheres deitaram na relva verde.
Lucia ficou imóvel, a respiração leve, atenta a um silêncio mais profundo, à espera de que as outras adormecessem, a fim de entrar em ação.
Irmã Teresa estava encontrando dificuldades para dormir. Era uma experiência estranha dormir sob as estrelas, cercada por outras irmãs. Elas tinham nomes agora, rostos e vozes, e Teresa receava que Deus a punisse por esse conhecimento proibido.
Sentia-se terrivelmente perdida.
Irmã Megan também não conseguia dormir. Sentia-se excitada pelos acontecimentos do dia. "Como descobrira que o frade era uma fraude?" especulou. "E onde encontrei coragem para salvar irmã Graciela?" Sorriu, incapaz de evitar alguma satisfação consigo mesma, estando ciente de que tal sentimento era um pecado.
Graciela dormia, emocionalmente esgotada pelo que passara.
Remexia-se no sono, atormentada por sonhos em que era perseguida por corredores escuros e intermináveis.
Lucia Carmine mantinha-se imóvel, à espera. Assim ficou por quase duas horas, depois se sentou e deslocou-se pela escuridão, sem fazer barulho, na direção de irmã Teresa. Pegaria o embrulho e desapareceria.
Ao se aproximar de irmã Teresa, Lucia descobriu que ela estava acordada, ajoelhada, rezando. "Merda!" Lucia recuou apressada.
Tornou a se deitar, forçando-se a ser paciente. Irmã Teresa não poderia rezar durante a noite inteira. Precisava dormir um pouco.
Lucia planejou seus movimentos. O dinheiro tirado da caixa registadora seria suficiente para que pegasse um ônibus ou trem até Madrid. Ao chegar lá, seria fácil arrumar um penhorista.
Viu-se entregando-lhe a cruz de ouro. O homem desconfiaria de que era roubada, mas isso não faria a menor diferença. Ele teria muitos clientes ansiosos em comprá-la.
"Eu lhe darei cem mil pesetas pela cruz."
Ela a pegaria no balcão.
"Prefiro vender meu corpo primeiro."
"Cento e cinquenta mil pesetas."
"Prefiro derretê-la e deixar o ouro escoar pelo bueiro."
"Duzentas mil pesetas. Esta é minha última oferta."
"Está me roubando vergonhosamente, mas vou aceitar."
O homem estenderia as mãos para a cruz, na maior ansiedade.
"Sob uma condição."
"Uma condição?"
"Isso mesmo. Perdi meu passaporte. Conhece alguém que possa me providenciar outro?" Suas mãos ainda estariam na cruz de ouro.
Ele hesitaria, mas acabaria dizendo:
"Por acaso tenho um amigo que arruma essas coisas."
E o negócio seria fechado. Ela estaria a caminho da Suíça e da liberdade. Lembrou-se das palavras do pai:
"Há muito mais dinheiro lá do que poderia gastar em dez vidas."
Seus olhos começaram a fechar. Fora um longo dia.
Em seu meio sono, Lucia ouviu o repicar de um sino na aldeia distante. Provocou-lhe lembranças, de outro lugar, de outro tempo…
Capítulo 8
TAORMINA, SICÍLIA 1968
Ela era despertada todas as manhãs pelos sinos da igreja de San Domenico, no alto das Montanhas Peloritoni, ao redor de Taormina. Gostava de acordar devagar, espreguiçando-se lânguidamente, como uma gata. Mantinha os olhos fechados, ciente que havia alguma coisa maravilhosa para lembrar. "O que era?" A questão provocava-lhe a mente, e ela reprimia, sem querer saber por enquanto, preferindo saborear a surpresa. E de repente sua mente era envolvida pela recordação, na mais intensa alegria. Era Lucia Maria Carmine, a filha de Angelo Carmine, o que era suficiente para tornar qualquer pessoa feliz no mundo.
Moravam numa villa grande, com mais criados do que Lucia, então com 15 anos, podia contar. Um guarda-costas levava-a para a escola todas as manhãs, numa limusine blindada. Cresceu com os mais lindos vestidos e os brinquedos mais caros em toda a Sicília, era a inveja das colegas da escola.
Mas era em torno de seu pai que a vida de Lucia se concentrava. A seus olhos, ele era o homem mais bonito do mundo.
Era baixo e corpulento, com rosto forte e olhos castanhos tempestuosos, que irradiavam poder. Tinha dois filhos, Arnaldo e Victor, mas era a filha que Angelo Carmine adorava.
E Lucia o idolatrava. Na igreja, quando o padre falava em Deus, Lucia sempre pensava no pai. Ele ia à cabeceira de sua cama pela manhã e dizia:
- Hora de levantar para a escola, faccia d'angelo.
Cara de anjo. Não era verdade, é claro. Lucia sabia que não era realmente bonita. "Sou atraente", ela pensava, estudando-se objetivamente no espelho. Isso mesmo. Fascinante, em vez de bela.
O reflexo mostrava uma moça com rosto oval, pele cremosa, lisa, dentes brancos, um queixo forte - forte demais? -, lábios sensuais e cheios - cheios demais? -, olhos escuros e espertos.
Mas se o rosto ficava aquém da beleza, o corpo mais do que compensava. Aos 15 anos, Lucia possuía o corpo de mulher, seios arredondados e firmes, cintura fina e quadris que se mexiam com uma promessa sensual.
- Precisamos casá-la muito cedo - costumava zombar o pai. - Muito em breve estará levando os rapazes à loucura, minha pequena virgem.
- Quero casar com alguém como você, papai, só que não há ninguém como você.
Ele riu.
- Não se preocupe. Encontraremos um príncipe para você. Nasceu sob uma estrela de sorte, e um dia saberá como é ser abraçada por um homem que lhe fará amor.
Lucia corou.
- Sim, papai.
Era verdade que ninguém lhe fizera amor… não nas últimas 12 horas. Benito Patas, um dos guarda-costas, ia sempre para sua cama quando o pai não estava na cidade. Ter Benito a lhe fazer amor dentro de casa aumentava a emoção, porque Lucia sabia que o pai mataria os dois se algum dia descobrisse.
Benito estava na casa dos trinta anos, e sentia-se lisonjeado porque a linda e jovem filha virgem do grande Angelo Carmine o escolhera para deflorá-la.
- Foi o que você esperava? - perguntou ele, na primeira vez em que se deitaram juntos.
- Foi, sim - balbuciou Lucia. - Melhor até. - Ela pensou: "Ele não é tão bom quanto Mário, Tony ou Enrico, mas é melhor do que Roberto e Leo." Ela não conseguia lembrar-se do nome dos outros.
Aos 13 anos, Lucia concluiu que já fora virgem por tempo suficiente. Olhava ao redor e decidira que o afortunado seria Paolo Costello, o filho de um médico de Angelo Carmine. Paolo tinha 17 anos, alto e corpulento, o astro do time de futebol da escola. Lucia apaixonara-se perdidamente por Paolo na primeira vez que o vira. Dava um jeito de esbarrar com ele tantas vezes quanto possível. Nunca ocorrera a Paolo que os constantes encontros eram planejados com maior cuidado. Considerava a jovem e atraente filha de Angelo Carmine como uma criança. Mas num dia quente de verão, em agosto, Lucia resolveu que não podia mais esperar.
Telefonou para Paolo.
- Paolo… aqui é Lucia Carmine. Meu pai gostaria de conversar uma coisa com você e quer saber se pode encontrá-lo esta tarde na sala de sinuca.
Paolo ficou surpreso e lisonjeado. Sentia o maior respeito por Angelo Carmine, mas sequer imaginava que o poderoso mafioso sabia de sua existência.
- Terei o maior prazer. A que horas ele gostaria que eu estivesse aí?
- Às três horas.
Hora da sesta, quando o mundo estaria dormindo. O salão de sinuca era isolado, num canto da ampla propriedade, o pai estava fora da cidade. Não havia a menor possibilidade de serem interrompidos.
Paolo chegou pontualmente na hora marcada. O portão do jardim estava aberto, e ele seguiu direto para o salão de sinuca.
Parou diante da porta fechada e bateu.
- Signore Carmine? Posso entrar?
Não houve resposta. Paolo conferiu o relógio. Cauteloso, abriu a porta e entrou. Estava escuro lá dentro.
- Signore Carmine?
Um vulto aproximou-se.
- Paolo…
Ele reconheceu a voz de Lucia.
- Estou à procura de seu pai, Lucia. Ele está aqui?
Ela estava bem perto agora, o suficiente para que Paolo descobrisse que se encontrava completamente nua.
- Santo Deus! - balbuciou Paolo. - O que…?
- Quero que você faça amor comigo.
- Está louca? É apenas uma criança. Vou embora. - Encaminhou-se para a porta.
- Pode ir. Direi a papai que você me estupou.
- Não faria isso.
- Saia daqui e descobrirá.
Ele parou. Se Lucia cumprisse a ameaça, não havia a menor dúvida na mente de Paolo sobre o destino que o aguardava. A castração seria apenas o início. Voltou para junto de Lucia, a fim de tentar argumentar.
- Lucia, querida…
- Gosto quando me chama de querida.
- Não… preste atenção, Lucia. O caso é muito sério. Seu pai me matará se disser que eu a estupei.
- Sei disso.
Ele fez outra tentativa.
- Meu pai cairia em desgraça. Toda a minha família seria desgraçada.
Era inútil.
- O que quer de mim?
- Quero que faça tudo comigo.
- Não. É impossível. Seu pai me matará se descobrir.
- E se sair daqui, ele o matará. não tem opção, não é mesmo?
Ele entrou em pânico.
- Por que eu, Lucia?
- Porque estou apaixonada por você, Paolo! - Segurou-lhe as mãos e comprimiu gentilmente entre suas pernas. - Sou uma mulher. Faça-me sentir como tal.
Na semi-escuridão, Paolo podia ver os seios arredondados, os mamilos duros, os pelos escuros entre as pernas.
"Meu Deus!", pensou Paolo. "O que um homem pode fazer?"
Ela levou-o para um sofá, ajudou-o a tirar as calças e as cuecas. Ajoelhou-se e pôs o membro duro na boca, chupando gentilmente. Paolo pensou: "Ela já fez isso antes." E quando estava por cima dela, penetrando fundo, as mãos de Lucia em suas costas, apertando, os quadris se comprimindo contra ele na maior ansiedade, Paolo pensou: "Por Deus, ela é maravilhosa!"
Lucia estava no paraíso. Era como se tivesse nascido para aquilo. Instintivamente, sabia com precisão o que fazer para agradar a ele e agradar a si mesma. Todo o seu corpo pegava fogo.
Sentiu que se aproximava do orgasmo, mais e mais; quando finalmente aconteceu, ela gritou de pura alegria. Os dois ficaram imóveis depois, exaustos, a respiração difícil. Passou-se algum tempo antes que Lucia murmurasse:
- À mesma hora amanhã.
Quando Lucia estava com 16 anos, Angelo Carmine decidiu que estava na hora da filha conhecer alguma coisa do mundo. Com a idosa tia Rosa como acompanhante, Lucia passou as férias escolares em Capri, e Ischia, Veneza e Roma e inúmeros outros lugares.
- Deve ser refinada… não uma camponesa, como seu papai. Viajar vai melhorar sua educação. Em Capri, tia Rosa a levará para conhecer o Mosteiro Cartusiamo de São Tiago, a Villa de San Michele e o Palazzo a Mare…
- Pois não, papai.
- Em Veneza tem a Basílica de São Marcos, o Palácio Ducal, a Igreja de São Jorge e o Museu Academia.
- Pois não, papai.
- Roma é o tesouro do mundo. Deve visitar a Cidade do Vaticano, a Basílica de Santa Maria Maggiore e a Galeria Borghese, é claro.
- Claro, papai.
Com um planejamento cuidadoso, Lucia conseguiu não ver nenhum desses lugares. Tia Rosa insistia em tirar uma sesta todas as tardes e dormir cedo à noite.
- Deve descansar também, criança.
- Claro, tia Rosa.
E assim, enquanto tia Rosa dormia, Lucia dançou no Quisisana em Capri, passeou numa carrozza puxada por um cavalo de chapéu e plumas, juntou-se a um grupo de estudantes na Marina Piccola, foi a piqueniques em Bagni di Tiberio, tomou o funiculare para Anacapri, onde se juntou a um grupo de universitários franceses para drinques na Piazza Umberto I.
Em Veneza, um belo gondoleiro levou-a a uma discoteca, e um pescador levou-a a uma pescaria em Chioggia. E tia Rosa dormia.
Em Roma, Lucia tomou vinho da Apúlia e descobriu todos os restaurantes agitados em voga, como o Marte, Ranieri e Giggi Fazi.
Onde quer que fosse, Lucia descobria pequenos bares e boates, homens românticos e atraentes, pensando sempre: "O querido papai estava certo. Viajar melhorou minha educação."
Na cama, ela aprendeu a falar diversas línguas diferentes e pensou: "Isso é muito mais divertido do que as aulas de línguas na escola."
Ao voltar para casa, em Taormina, Lucia confidenciou às amigas mais íntimas:
- Fiquei nua em Nápoles, drogada em Selerno, bêbeda em Florença e fodida em Lucca.
A própria Sicília era uma maravilha a explorar, uma ilha de templos gregos, anfiteatros romanos bizantinos, capelas, banhos árabes e cavalos suábios.
Lucia achava Palermo atraente e animada, gostava de vaguear pelo Kalsa, o velho distrito árabe, e visitar a Opera dei Pupi, o teatro de marionetes. Mas Taormina, onde nascera, era sua cidade predilecta. Era um lugar de cartão postal, no mar Jônio, numa montanha pairando sobre o mundo. Era uma cidade de butiques e joalherias, bares e lindas praças antigas, trattorias e hotéis pitorescos, como o Excelsior Palace e o San Domenico.
A estrada que sobe do porto de Naxos é íngreme. Estreita e perigosa. Quando Lucia ganhou um carro, ao completar 15 anos, violou todas as leis de trânsito, mas nunca foi detida pelos carabinieri. Afinal era filha de Angelo Carmine.
Para os considerados bastante corajosos ou estúpidos para perguntarem, Angelo Carmine estava no negócio imobiliário. E em parte era verdade, pois a família Carmine possuia a villa em Taormina, uma casa no lago Como, em Cernobbio, um chalé em Gstaad, um apartamento e uma imensa fazenda nos arredores de Roma. Mas Carmine também operava negócios diferentes. Possuía vários bordéis, dois cassinos, seis navios que traziam cocaína de suas plantações na Colômbia e uma variedade de outros empreendimentos lucrativos, inclusive agiotagem. Angelo Carmine era o capitão dos mafiosos sicilianos e, assim, era apropriado que vivesse bem. Sua vida era uma inspiração para os outros, a prova animadora de que um pobre camponês italiano que fosse ambicioso e trabalhasse duro poderia se tornar rico e bem-sucedido.
Carmine começara como mensageiro para os mafiosos quando tinha 12 anos. Aos 15 tornou-se cobrador de empréstimos de agiotagem, aos 16 anos matara o primeiro homem e se estabelecera sua reputação. Pouco depois disso, casara com a mãe de Lucia, Anna.
Nos anos subsequentes, Angelo Carnime subira pela traiçoeira escada corporativa até ao topo, deixando em sua esteira sucessão de inimigos mortos. Ele crescera, mas Anna permanecera a camponesa simples com quem se casara. Deu-lhe três lindos filhos, mas depois disso sua contribuição à vida de Angelo cessou. Como se soubesse que não tinha mais lugar na vida da sua família, Anna atenciosamente morreu, sendo bastante diferente para fazê-lo com um mínimo de rebuliço.
Arnaldo e Victor estavam no negócio com o pai. Desde pequena, Lucia sempre ouvira as conversas excitantes entre o pai e os irmãos, escutava histórias de como haviam enganado ou dominado seus inimigos. Para Lucia, o pai era como um cavaleiro numa armadura reluzente. Nada via de errado no que o pai e os irmãos faziam. Ao contrário, eles ajudavam as pessoas. Se as pessoas queriam jogar, por que deixar que leis estúpidas impedissem? Se os homens encontravam prazer em comprar sexo, por que não ajudá-los? E como o pai e os irmãos eram generosos ao emprestar dinheiro às pessoas que eram repelidas pelos banqueiros de coração duro. Para Lucia, o pai e os irmãos eram cidadãos exemplares. A prova disso estava nos amigos do pai. Uma vez por semana, Angelo Carmine oferecia um grande jantar na villa e… ah, as pessoas que se sentavam à sua mesa! O prefeito comparecia, assim como alguns vereadores e juízes, artistas de cinema e cantores de ópera, muitas vezes o próprio chefe de polícia e um monsenhor. Várias vezes por ano o próprio governador visitava a casa.
Lucia levava uma vida idílica, com muitas festas, roupas e jóias, carros e criados, amigos poderosos. E de repente, num mês de Fevereiro, quando tinha 23 anos, tudo terminou abruptamente.
Começou de forma bastante inócua. Dois homens foram à villa para falar com seu pai. Um deles era um amigo, o chefe de polícia, o outro seu lugar-tenente.
- Perdoe-me, padrone - disse o chefe de polícia -, mas esta é uma formalidade estúpida a que o comissário está me obrigando. Mil perdões, padrone, mas se fizer a gentileza em me acompanhar à delegacia, providenciei para que esteja em minha casa a tempo de desfrutar a festa de aniversário de sua filha.
- Não há problema. Um homem deve cumprir seu dever. - Angelo Carmine falou jovialmente e sorriu. - Esse novo comissário que foi designado pelo presidente é… para usar uma expressão típica… um "cu-de-ferro", não é mesmo?
- Infelizmente, é isso mesmo. - O chefe de polícia suspirou - Mas não se preocupe. Já vimos muitos homens assim chegarem e partirem depressa, não é mesmo, padrone?
Os dois riram e seguiram para a delegacia.
Angelo não voltou para a festa naquele dia e também não apareceu no dia seguinte. Na verdade, nunca mais tornou a ver qualquer de suas casas. O Estado apresentou um indiciamento com uma centena de acusações contra ele, incluindo homicídio, tráfico de drogas, prostituição, incêndio criminoso e dezenas de outros crimes. A fiança foi negada. A polícia lançou uma rede em que prendeu toda a organização criminosa de Carmine. Ele contava com suas ligações poderosas na Sicília para que as acusações contra ele fossem arquivadas, mas acabou sendo levado para Roma, às escondidas, e internado na Regina Coeli, a mais notória prisão italiana. Foi metido numa cela pequena, com janela gradeada, um aquecedor, uma cama e um vaso sem tampa. Era uma afronta! Uma indignidade além da imaginação!
No começo, Carmine tinha certeza que Tommasco Contorno, seu advogado, haveria de soltá-lo imediatamente. Quando Contorno encontrou-o na sala de visitas da prisão, Carmine estava furioso.
- Eles fecharam meus bordéis e a operação de tráfico de tóxicos, sabem tudo da lavagem do dinheiro. Alguém está falando. Descubra quem é e me traga sua língua.
- Não se preocupe, padrone - assegurou Contorno. - Vamos descobrir. - Seu otimismo era infundado.
A fim de proteger suas testemunhas, o Estado se recusava intransigentemente a revelar os nomes, até o início do julgamento.
Dois dias antes do julgamento, Angelo Carmine e os outros mafiosos acusados foram transferidos para a Prigione Rebibbia, a vinte quilômetros de Roma. Um tribunal próximo fora fortificado como uma casamata. Os 160 mafiosos acusados foram levados por um túnel subterrâneo, com algemas e corrente, metidos em trinta celas feitas de aço e vidro à prova de balas. Guardas armados cercaram o interior e exterior do tribunal, os espectadores foram revistados antes de poderem entrar.
Ao entrar no tribunal, Angelo Carmine sentiu o coração pular de alegria, pois o juiz que presidia o julgamento era Giovanni Buscetta, um homem que estivera na sua folha de pagamento durante 15 anos, um hóspede frequente de sua casa. Carmine sabia que finalmente haveria justiça.
O julgamento começou. Angelo Carmine contava com a omertá, código de silêncio siciliano, para protegê-lo. Para o seu espanto, no entanto, descobriu que a principal testemunha do Estado era nada menos do que Benito Patas, o guarda-costas.
Benito Patas estava com a família Carmine há tanto tempo, e merecia tanta confiança que tinha permissão para estar presente na sala de reuniões em que se discutiam questões confidenciais de negócios; e como os negócios consistiam de todas as atividades ilegais nos estatutos criminais, Patas tinha estado a par de muitas informações. Quando prendera Patas minutos depois de ele ter assassinado a sangue-frio e mutilado o novo namorado de sua amante, a polícia ameaçara-o com prisão perpétua.
Embora relutante, Patas concordara em ajudar a polícia a condenar Carmine, em troca de uma sentença mais leve. Agora, numa incredulidade horrorizada, Angelo Carmine sentou-se no tribunal e escutou Patas revelar os segredos mais íntimos da família.
Lucia também comparecia ao tribunal todos os dias, ouvindo o homem que fora seu amante destruir o pai e os irmãos.
O testemunho de Benito Patas abriu as comportas. Depois que a investigação do comissário começou, inúmeras vítimas apresentaram-se para contar histórias de Angelo Carmine e o que os seus capangas lhes havia feito. A Máfia controlara seus negócios à força, chantageara, forçara à prostituição, assassinara e mutilara pessoas amadas, vendera tóxicos a seus filhos. A lista de atrocidades era interminável.
Ainda mais perniciosos foram os testemunhos dos pentiti, os membros arrependidos da Máfia que resolveram falar.
Lucia teve permissão de visitar o pai na prisão.
Ele recebeu-a jovialmente. Abraçou-a e sussurrou:
- Não se preocupe, faccia d'angelo. O juiz Giovanni Buscetta é meu ás secreto na manga. Ele conhece todos os truques da lei. Vai usá-los para que eu e seus irmãos sejamos absolvidos.
Angelo Carmine provou ser um péssimo profeta.
O público estava indignado com os excessos da Máfia e quando o julgamento finalmente terminou, o juiz Giovanni Buscetta, um astuto animal político, condenou os mafiosos a longas sentenças de prisão. Angelo Carmine e seus dois filhos receberam a pena máxima na lei italiana, a prisão perpétua, com um mínimo obrigatório de 28 anos.
Para Angelo Carmine, era uma sentença de morte.
Toda a Itália aclamou. A justiça triunfara por fim. Para Lucia, porém, era um pesadelo além da imaginação. Os três homens que ela mais amava no mundo estavam sendo enviados para o inferno.
Mais uma vez, Lucia teve permissão para visitar o pai na cela. A mudança em Angelo Carmine, da noite para o dia, era angustiante. Em pouco tempo ele se tornara um velho. O corpo estava murcho, e a pele corada e saudável se tornara amarelada.
- Eles me traíram - lamentou-se Angelo Carmine. - Todos me traíram. O juiz Geovanni Buscetta… eu o possuía, Lucia! Tornei-o um homem rico, e ele fez esta coisa terrível comigo. E Patas! Fui com um pai para ele. O que aconteceu com o mundo? O que aconteceu com a honra? Eles são sicilianos, como eu.
Lucia pegou a mão do pai e disse em voz baixa:
- Também sou siciliana, papai. Terá sua vingança. Juro que terá, por minha vida.
- Minha vida acabou - retrucou Angelo Carmine. - Mas a sua ainda está pela frente. Tenho uma conta numerada em Zurique. O Banco Leu. Há mais dinheiro do que você poderia gastar em dez vidas. - Sussurrou um número em seu ouvido. - Deixe a maldita Itália. Pegue o dinheiro e divirta-se.
Lucia abraçou-o.
- Papai…
- Se algum dia precisar da um amigo, pode confiar em Dominic Durell. Somos como irmãos. Ele tem uma casa na França, em Béziers, perto da fronteira espanhola.
- Não esquecerei.
- Prometa que deixará a Itália.
- Prometo, papai. Mas há uma coisa que preciso fazer primeiro.
Ter um desejo ardente de vingança era uma coisa, encontrar um meio de consumá-lo era outra. Estava sozinha, e não seria fácil. Lucia pensou na expressão italiana Rubare il mestiere.
Roubar a profissão deles. "Preciso pensar na maneira como eles fazem."
Poucas semanas depois do pai e os irmãos começarem a cumprir as sentenças de prisão, Lucia Carmine apareceu na casa do juiz Giovanni Buscetta. O próprio juiz abriu a porta.
Fitou Lucia surpreso. Vira-a muitas vezes quando era hóspede na casa de Carmine, mas quase nunca haviam se falado.
- Lucia Carmine! O que está fazendo aqui? Não deveria…
- Vim agradecer-lhe, Meritíssimo.
Ele estudou-a desconfiado.
- Agradecer o quê?
Lucia fitou- nos olhos.
- Por denunciar meu pai e irmãos pelo que eles eram. Eu não passava de uma inocente, vivendo naquela casa de horrores. Não tinha a menor idéia de que monstros… - Perdeu o controle e começou a chorar.
O juiz ficou indeciso, depois afagou-lhe o ombro.
- Calma, calma… Entre e tome um chá.
- Oh, obrigada.
Quando estavam sentados na sala de estar, o juiz Buscetta disse:
- Não sabia que se sentia assim em relação a seu pai. Tinha a impressão de que eram muito ligados.
- Só porque eu ignorava como ele e meus irmãos eram. Quando descobri… - Lucia estremeceu. - Não pode imaginar como é. Eu queria sair, mas não havia escapatória para mim.
- Eu não sabia. - Ele afagou-lhe a mão. - Receio tê-la julgado mal, minha cara.
O juiz Buscetta notou, não pela primeira vez, que linda jovem Lucia era. Usava um vestido preto simples, que revelava os contornos do corpo sensual. Ele contemplou os seios arredondados e não pôde deixar de observar como ela crescera.
"Seria sensacional dormir com a filha de Angelo Carmine", pensou Buscetta. "Ele está impotente agora para me fazer qualquer coisa. O velho filho da puta pensava que me possuía, mas eu era esperto demais para ele. Lucia provavelmente é virgem. Eu poderia lhe ensinar algumas coisas na cama." Uma empregada idosa trouxe uma bandeja com chá e uma travessa de biscoitos. Pôs na mesa.
- Devo servir o chá?
- Pode deixar que eu sirvo - murmurou Lucia.
Sua voz era quente, cheia de promessa. O juiz Buscetta sorriu para Lucia.
- Pode ir - disse ele à empregada.
- Pois não, senhor.
O juiz observou Lucia encaminhar-se para a mesinha em que estava a bandeja e servir o chá com todo cuidado.
- Tenho a impressão de que você e eu podemos nos tornar bons amigos - comentou o juiz Buscetta, sondando.
Lucia ofereceu-lhe um sorriso sedutor.
- Eu gostaria muito que isso acontecesse, Meritíssimo.
- Por favor… Giovanni.
- Giovanni. - Lucia entregou-lhe o chá. Ergueu sua xícara, num brinde. - À morte dos vilões.
Sorrindo, Buscetta também levantou sua xícara. - Ele tomou um gole e fez uma careta. O chá estava com um gosto amargo.
- Está muito…?
- Não, não. Está ótimo, minha cara.
Lucia tornou a levantar sua xícara.
- À nossa amizade. - Tomou outro gole.
Buscetta acompanhou-a.
- À… - Não terminou o brinde. Foi dominado por um súbito espasmo, sentiu que um ferro em brasas lhe espetava o coração.
Levou a mão ao peito.
- Oh, Deus! Chame um médico…
Lucia continuou sentada, tomando o chá calmamente, observando-o levantar, cambalear e cair no chão. O corpo de Buscetta teve alguns estertores e depois ficou imóvel.
- Esse é o primeiro, papai - murmurou Lucia.
Benito Patas estava em sua cela, jogando paciência, quando o guarda anunciou:
- Tem uma visita conjugal.
Benito ficou radiante. Desfrutava de uma situação especial, como informante, com muitos privilégios, entre os quais as visitas conjugais. Patas tinha algumas namoradas, que alternavam as visitas. Especulou qual delas fora visitá-lo.
Contemplou-se no pequeno espelho pendurado na parede de cela, passou um pouco de creme nos cabelos, alisou-os para trás, depois seguiu o guarda pelo corredor da prisão, até a área em que ficavam as salas reservadas.
O guarda gesticulou para que ele entrasse. Patas avançou, na maior expectativa. Estacou abruptamente, espantado.
- Lucia! Santo Deus, o que está fazendo aqui? Como conseguiu entrar?
Ela respondeu suavemente:
- Informei-os que estávamos noivos, Benito. - Usava um vestido de seda vermelho que aderia às curvas do corpo, com um decote ousado.
Benito Patas recuou.
- Saia!
- Como quiser. Mas há uma coisa que deve ouvir primeiro. Quando o vi sentado no banco de testemunhas e falar contra meu pai e meus irmãos, eu o odiei. Queria matá-lo. - Ela chegou mais perto. - Mas depois compreendi que sua atitude era um ato de bravura. Ousou se levantar e dizer a verdade. Meu pai e meus irmãos não eram maus, mas fizeram coisas horríveis, e você foi o único forte o suficiente para enfrentá-los.
- Acredite em mim, Lucia, a polícia me forçou…
- Não precisa explicar. Não para mim. Lembra da primeira vez em que fizemos amor? Compreendi então que estava apaixonada por você, e sempre estaria.
- Lucia, eu nunca teria feito o que…
- Querido, acho que nós dois devemos esquecer o que aconteceu. Está feito. Agora, o que importa somos eu e você. - Lucia estava bem perto agora.
Ela estava agora bem próximo, e ele podia sentir seu perfume inebriante. Sua mente se encontrava na maior confusão.
- Você… fala sério?
- Mais sério do que qualquer outra coisa que já fiz na vida. Por isso é que vim aqui hoje, para provar a você. Para mostrar que sou sua. E não apenas com palavras. - Seus dedos subiram para as alças do vestido, que um instante depois estava no chão.
Lucia se encontrava nua por baixo.
- Acredita em mim agora?
Por Deus, ela era linda!
- Acredito. - A voz de Benito era rouca.
Lucia adiantou-se, seu corpo roçou contra ele.
- Dispa-se - sussurrou ela. - Depressa! - Observou enquanto Patas tirava as roupas. Quando ficou nu, ele pegou sua mão e levou-a para a cama no canto da sala. Não perdeu tempo com preliminares. Num instante estava em cima dela, abriu-lhe as pernas e penetrando-a, com um sorriso arrogante.
- É como nos velhos tempos - disse, presunçoso. - Não pôde me esquecer, não é mesmo?
- Não - sussurrou Lucia em seu ouvido. - E quer saber por que não pude esquecer você?
- Quero, sim, mi amore.
- Por que sou uma siciliana, como meu pai.
Estendeu a mão para trás e tirou o alfinete comprido que lhe prendia os cabelos.
Benito Patas sentiu alguma coisa espetá-lo por baixo das costelas e a dor súbita fê-lo abrir a boca para gritar; mas a boca de Lucia grudada na sua beijando-o. Enquanto o corpo de Benito estrebuchava por cima dela, Lucia teve um orgasmo.
Poucos minutos depois estava vestida, o alfinete de volta nos cabelos. Benito se encontrava sob o cobertor, os olhos fechados. Lucia bateu na porta e sorriu para o guarda que a abriu, a fim de deixá-la sair.
- Ele está dormindo - sussurrou.
O guarda contemplou a bela moça e sorriu.
- Provavelmente esgotou-o.
- Espero que sim - disse Lucia.
A pura ousadia dos dois assassinatos teve a maior repercussão na Itália. A linda filha de um mafioso vingara o pai e os irmãos, e o excitável público italiano aclamou-a, torcendo por sua fuga. A polícia, como não podia deixar de ser, assumiu uma posição diferente. Lucia Carmine assassinara um respeitável juiz e depois cometera um segundo homicídio, dentro dos muros de uma prisão. A seus olhos, igual aos crimes era o fato de Lucia tê-los feito de idiotas. Os jornais estavam se divertindo à sua custa.
- Quero a cabeça dela! - bradou o comissário de polícia para o vice-comissário. - E quero hoje!
A caçada aumentou. O alvo de toda essa atenção se escondia na casa de Salvatore Giuseppe, um dos homens de seu pai que conseguira escapar à tempestade.
No começo o único pensamento de Lucia fora o de vingança a honra do pai e irmãos. Esperava ser capturada e se preparava para o sacrifício. Quando conseguiu sair da prisão, no entanto, seus pensamentos passaram da vingança para a sobrevivência. Agora que consumara o que planejara, a vida voltara subitamente a ser preciosa.
"Não deixarei que me peguem", jurou a si mesma. "Nunca."
Salvatore Giuseppe e a sua esposa fizeram o que podiam para disfarçar Lucia. Clarearam-lhe os cabelos, mancharam-lhe os dentes, compraram óculos e algumas roupas folgadas.
Salvatore estudou o resultado com olhos críticos.
- Não está mau - disse ele. - Mas também não é o suficiente. Precisamos tirá-la da Itália. Deve ir para algum lugar em que sua fotografia não esteja na primeira página de todos os jornais. Um lugar em que possa se esconder por alguns meses.
E Lucia lembrou-se:
"Se algum dia precisar de um amigo, pode confiar em Dominic Durell. Ele tem uma casa na França, em Béziers, perto da fronteira espanhola."
- Sei de um lugar para onde ir - anunciou ela. - Precisarei de um passaporte.
- Eu providenciarei.
Vinte e quatro horas depois, ela olhava para um passaporte com o nome de Lucia Roma, com uma fotografia em sua nova aparência.
- Para onde vai?
- Meu pai tem um amigo na França que me ajudará.
- Se quiser que eu a acompanhe até à fronteira… - ofereceu-se Salvatore.
Os dois sabiam que era perigoso.
- Não Salvatore. Já fez o suficiente por mim. Devo continuar sozinha.
Na manhã seguinte, Salvatore Giuseppe alugou um Fiat em nome de Lucia Roma e entregou-lhe as chaves.
- Tome cuidado - recomendou.
- Não se preocupe. Nasci sob uma estrela de sorte.
O pai não lhe dissera isso?
Na fronteira italiana-francesa os carros à espera avançavam devagar, numa fila comprida. Ao se aproximar da barreira de imigração, Lucia começou a ficar cada vez mais nervosa.
Estariam à sua procura em todos os pontos de saída do país. Se a pegassem, sabia que seria condenada à prisão perpétua. "Eu me matarei primeiro", pensou.
Chegou ao inspetor da imigração.
- Passaporte, signorina.
Lucia entregou o passaporte preto pela janela do carro.
Enquanto o pegava, o inspetor fitou-a, e Lucia reparou que uma expressão de perplexidade surgiu em seus olhos. O homem olhou do passaporte para seu rosto, novamente para o passaporte. Lucia sentiu que o corpo se contraía.
- Você é Lucia Carmine - disse ele.
Capítulo 9
- Não! - gritou Lucia. O sangue esvaiu-lhe do rosto. Ela olhou em redor à procura de um meio de escapar. Não havia nenhum. E subitamente, para sua incredulidade, o guarda sorria. Inclinou-se para ele e sussurrou:
- Seu pai foi bom para minha família, signorina. Pode passar. Boa sorte.
Lucia sentiu-se tonta de alívio.
- Grazie. - Pisou no acelerador e percorreu os 25 metros até a fronteira francesa.
O inspetor de imigração orgulhava-se de ser um conhecedor de belas mulheres, e aquela à sua frente não era certamente uma beldade. Tinha cabelos cor de rato, óculos de lentes grossas, dentes manchados, e vestia-se com desmazelo.
"Por que as italianas não podem parecer tão bonitas quanto as francesas?", pensou, repugnado. Carimbou o passaporte de Lucia e acenou para que ela passasse.
Lucia chegou a Béziers seis horas depois.
O telefone foi atendido ao primeiro toque da campainha, e surgiu uma voz suave de homem.
- Alô?
- Dominic Durell, por favor.
- Dominic Durell sou eu. Quem está falando?
- Lucia Carmine. Meu pai disse…
- Lucia! - A voz transbordava boas-vindas. - Eu esperava por notícias suas.
- Preciso de ajuda.
- Pode contar comigo.
Lucia sentiu-se reanimada. Era a primeira boa notícia que ouvia em muito tempo, e percebeu de repente como se sentia esgotada.
- Preciso de um lugar onde possa me esconder da polícia.
- Não tem problema. Minha esposa e eu temos um lugar perfeito que poderá usar, enquanto quiser.
Era quase bom demais para ser verdade.
- Obrigada.
- Onde você está, Lucia?
- Estou…
Nesse instante o estrondo de um rádio de ondas curtas da polícia entrou na linha, e foi desligado no momento seguinte.
- Lucia…
Um alarme alto ressoou na cabeça de Lucia.
- Lucia… onde você está? Irei buscá-la.
"Por que ele teria um rádio de polícia em sua casa? E atendera ao primeiro toque da campainha. Quase como se estivesse à espera da sua ligação."
- Lucia… pode me ouvir?
Ela sabia, com absoluta certeza, que o homem no outro lado da linha era um policial. Estavam à sua procura ali também. E investigavam o ponto de origem daquele telefonema.
- Lucia…
Ela desligou e afastou-se rapidamente da cabine telefônica. "Preciso sair da França", pensou.
Voltou ao carro e pegou um mapa no porta-luvas. A fronteira espanhola ficava a poucas horas dali. Guardou o mapa e partiu na direção sudeste, rumo a San Sebastián.
Foi na fronteira espanhola que as coisas começaram a sair erradas.
- Passaporte, por favor.
Lucia entregou ao inspetor de imigração espanhola. Ele deu uma olhada rápida e começou a devolvê-lo, mas alguma coisa fez com que hesitasse. Estudou Lucia mais uma vez e sua expressão mudou.
- Espere um momento, por favor. Preciso carimbar o passaporte lá dentro.
"Ele me reconheceu", pensou Lucia, desesperada. Observou o homem entrar no pequeno escritório e mostrar o passaporte a um colega. Os dois puseram-se a falar muito excitados. Tinha de escapar. Ela abriu a porta e saiu. Um grupo de turistas alemães, que acabaram de passar pela barreira da fronteira, embarcava ruidosamente num ônibus de excursão, perto do carro de Lucia.
O cartaz na frente do ônibus dizia Madrid.
- Achtung! - o guia estava chamando. Schnell.
Sem pensar duas vezes, Lucia encaminhou-se para o grupo sorridente sem parar, entrou no ônibus, virando o rosto ao passar pelo guia. Sentou-se no fundo do ônibus, mantendo a cabeça abaixada. "Vamos logo!", ela rezou. "Depressa!"
Pela janela, Lucia viu que outro guarda se juntara aos dois primeiros e todos examinavam seu passaporte. Como que em resposta à oração de Lucia, a porta do ônibus foi fechada e o motor ligado. Um momento depois o ônibus partia de San Sebastián para Madrid. O que aconteceria quando os guardas da fronteira descobrissem que ela deixara o carro? O primeiro pensamento seria o de que fora ao banheiro. Esperariam e finalmente mandariam alguém procurá-la. A providência seguinte seria revistar a área, para verificar se ela se escondera em algum lugar. A essa altura, dezenas de carros e ônibus já teriam passado. A polícia não teria a menor idéia do rumo que ela seguira, ou em que direção viajava.
O grupo no ônibus estava obviamente desfrutando umas férias felizes. "Por que não?", pensou Lucia, amargurada. "Não têm a polícia nos seus calcanhares. Val e a pena arriscar o resto da minha vida?", pensou a esse respeito, reconstituindo mentalmente as cenas com o juiz Buscetta e Benito.
"Tenho a impressão de que você e eu podemos nos tornar bons amigos, Lucia… à morte dos vilões."
E Benito Patas: "É como nos velhos tempos. Não pôde me esquecer, não é mesmo?"
E ela fizera com que os dois traidores pagassem pelos pecados contra sua família. "Val eu a pena?" Eles estavam mortos, mas o pai e os irmãos sofreriam pelo resto de suas vidas.
"Claro que valeu a pena!" concluiu Lucia.
Alguém no ônibus pós-se a entoar uma velha canção alemã e os outros acompanharam-no:
- In Munchen ist ein Hofbrau Haus, ein, zwei, sufa…
“Estarei segura por algum tempo com este grupo", pensou Lucia. "Decidirei o que fazer em seguida, quando chegar a Madrid."
Ela nunca chegou a Madrid.
O ônibus fez uma parada prevista na cidade murada de Ávila, para refrescos, e o que o guia chamou delicadamente de um momento de conforto.
- Alle raus vom bus - gritou ele.
Lucia continuou sentada, observando os passageiros levantarem-se e atropelarem-se a caminho da porta do ônibus.
"Estarei mais segura se ficar aqui." Mas o guia notou-a. - Saia, Fraulein! - disse. - Só temos quinze minutos.
Lucia hesitou, depois levantou-se relutante e avançou para a porta.
- Warten sie bitte! Você não é desta excursão.
Lucia presenteou-o com um sorriso exuberante e disse:
- Não, não sou. Acontece que meu carro enguiçou em San Sebastián, e é muito importante que eu chegue logo a Madrid. Por isso…
- Nein! - berrou o guia. - Isso não é possível. A excursão é particular.
- Sei disso. Mas preciso…
- Deve falar primeiro com a sede da agência em Munique.
- Não posso. Estou com pressa e…
- Nein, nein. Poderia meter-me numa encrenca. Saia logo ou chamarei a polícia.
- Mas…
Nada que ela dissesse poderia demovê-lo. Vinte minutos depois Lucia observou o ônibus partir pela estrada em direção de Madrid. Estava encalhada ali, sem passaporte e quase sem dinheiro; àquela altura as polícias de alguns países a procuravam, para prendê-la por homicídio.
Virou-se para examinar o lugar. O ônibus parara na frente de um prédio circular, com uma placa na frente que dizia
ESTACIÓN DE AUTOBUSES.
"Posso pegar outro ônibus aqui", pensou.
Ela entrou na estação. Era um prédio grande, com parede de mármore, alguns guichês espalhados, com uma placa por cima de cada um: SEGÓVIA… MUNOGALINDO… VALLADOLID… SALAMANCA… MADRID. Uma escada-rolante e escada comuns levavam ao subsolo, de onde os ônibus partiam. Havia uma pastelaria onde vendiam biscoitos, bolos, balas e sanduíches envoltos de papel encerado.
Lucia descobriu subitamente que estava faminta.
"É melhor não comprar nada até descobrir quanto custa uma passagem de ônibus", pensou.
Quando se encaminhava para o guichê com a placa de Madrid, dois guardas uniformizados entraram apressados na estação. Um deles levava uma fotografia. Foram de guichê em guichê, mostrando a fotografia aos bilheteiros.
"Estão à minha procura. Aquele guia miserável me denunciou."
Uma família de passageiros recém-chegados subia pela escada-rolante. Ao se encaminharem para a porta, Lucia foi andando ao lado, misturando-se, saiu da estação.
Caminhou pelas ruas de calçamento de pedras de Ávila, fazendo um esforço para não correr, com medo de atrair a atenção.
Entrou na Calle de la Madre Soledad, com seus prédios de granito e sacadas de ferro batido preto. Chegou à Plaza de la Santa e sentou-se num banco do parque, tentando imaginar o que deveria fazer agora. A cem metros dali havia várias mulheres e alguns casais sentados no parque, desfrutando o sol da tarde.
Assim que Lucia se sentou, um carro de polícia apareceu.
Parou na outra extremidade da praça e dois guardas saltaram.
Aproximaram-se de uma das mulheres sentada sozinha e começaram a interrogá-la. O coração de Lucia disparou.
Forçou-se a levantar devagar, mesmo com o coração batendo forte, virou-se e começou a andar na direção oposta aos guardas.
A rua seguinte tinha um nome incrível: rua da Vida e Morte.
"Será um presságio?"
Havia leões de pedra reais na praça, com as línguas de fora, e, em sua imaginação febril, Lucia sentiu que tentavam abocanhá-la. À sua frente havia uma enorme catedral, tendo na fachada um medalhão esculpido de uma moça e uma caveira sorrindo.
O próprio ar parecia impregnado pela morte.
Lucia ouviu um sino da igreja e olhou através do portão aberto da cidade. À distância, no alto de uma colina, erguiam-se os muros de um convento. Ela parou, ficou olhando.
- Por que veio a nós, minha filha? - perguntou a reverenda madre Betina, suavemente.
- Preciso de um refúgio.
- E decidiu procurar o refúgio em Deus?
"Exatamente."
- Isso mesmo. - Lucia começou a improvisar. - É o que sempre quis… devotar-me à vida do Espírito.
- Em nossas almas, não é o que todos desejamos, filha?
"Meu Deus, ela está mesmo engolindo a minha história", pensou Lucia, feliz.
A reverenda madre continuou:
- Deve compreender que a Ordem Cisterciense é a mais rigorosa de todas, minha criança. Estamos completamente isolados do mundo exterior. - As palavras soavam como música aos ouvidos de Lucia. - As que passam por estes muros devem fazer votos de nunca mais ir embora.
- Nunca mais vou querer ir embora - garantiu Lucia.
"Ou pelo menos durante os próximos meses."
A madre levantou-se.
- É uma decisão importante. Sugiro que volte agora e pense a esse respeito com todo cuidado, antes da decisão final.
- Já pensei a esse respeito - apressou-se Lucia em dizer. - Acredite, reverenda madre, não tenho pensado em outra coisa. - Fitou a madre prioresa nos olhos. - Quero ficar aqui mais do que qualquer outra coisa no mundo. - A voz de Lucia ressoava com sinceridade.
A reverenda madre ficou perplexa. Havia alguma coisa inquietante e frenética naquela mulher que era perturbadora. E, no entanto, que melhor motivo havia para alguém vir para o convento, onde o seu espírito poderia ser tranquilizado pela meditação e oração?
- Você é católica?
- Sou.
A reverenda madre pegou uma antiquada pena de escrever.
- Diga-me seu nome, criança.
- Meu nome é Lucia Car… Roma.
- Seus pais são vivos?
- Só meu pai.
- O que ele faz?
- Era um homem de negócios. Está aposentado. - Lucia pensou no pai, pálido e consumido na última vez em que o vira, e sentiu uma pontada de angústia.
- Tem irmãos?
- Dois.
- E o que eles fazem?
Lucia decidiu que precisava de toda a ajuda que pudesse obter.
- São padres.
- Maravilhoso.
A catequese prolongou-se por três horas. No final, a reverenda madre disse:
- Providenciarei um leito para a noite. Pela manhã, começará a receber as instruções e, quando acabarem, se ainda tiver o desejo, poderá ingressar na Ordem. Mas devo avisar-lhe que é um caminho difícil o que escolheu.
- Pode estar certa que não tenho alternativa - declarou Lucia, solenemente.
A brisa noturna era quente e suave, sussurrando pela clareira no bosque. Lucia dormia. Estava numa festa, em uma linda villa, o pai e os irmãos também se achavam presentes. Todos se divertiam, até que um estranho entrou na sala e indagou:
- Quem são essas pessoas?
Então as luzes apagaram-se, um facho forte de uma lanterna incidiu em seu rosto, ela despertou e sentou-se, ofuscada.
Havia alguns homens na clareira, à volta das freiras. Com a luz em seus olhos, Lucia mal podia divisar seus contornos.
- Quem são vocês? - tornou o homem a perguntar, a voz rude e profunda.
Lucia encontrava-se instantaneamente desperta, a mente alerta. Estava acuada. Mas se aqueles homens fossem da polícia, saberiam quem eram as freiras. E o que faziam no bosque à noite?
Lucia resolveu correr o risco e disse:
- Somos irmãs do convento em Ávila. Alguns homens do governo apareceram e…
- Já ouvimos falar a esse respeito - interrompeu o homem.
As outras irmãs estavam todas sentadas agora, despertas e apavoradas.
- Quem… quem são vocês?
- Meu nome é Jaime Miró.
Eles eram seis, vestidos de calças grossas, blusões de couro, suéteres de gola rolê e sapatos de lona com solas de corda, e as tradicionais boinas bascas. Estavam fortemente armados e, ao luar fraco, tinham uma aurea demoníaca. Dois homens davam a impressão de terem sido brutamente espancados.
O homem que se apresentara como Jaime Miró era alto e magro, com olhos pretos penetrantes.
- Eles podem estar por perto. - Ele virou-se para um membro do bando. - Dê uma olhada.
- Sim.
Lucia identificou a voz que respondera como feminina. Observou-a afastar-se entre as árvores, em silêncio.
- O que vamos fazer com elas? - perguntou Ricardo Mellado.
- Nada - respondeu Jaime Miró. - Vamos deixá-las e seguir em frente.
Um dos homens protestou:
- Jaime… essas são as irmãzinhas de Jesus.
- Então deixe que Jesus cuide delas - retrucou Jaime Miró bruscamente. - Temos trabalho a fazer.
As freiras ficaram de pé, à espera da decisão deles. Os homens concentravam-se em torno de Jaime Miró, argumentando com ele.
- Não podemos deixar que sejam apanhadas. Acoca e seus homens estão à procura delas.
- Também estão à nossa procura, amigo.
- As irmãs jamais conseguirão escapar sem a nossa ajuda.
- Não - insistiu Jaime Miró, decidido. - Não arriscaremos nossas vidas por elas. Já temos nossos próprios problemas.
Felix Carpio, um dos seus lugar-tenentes, interveio:
- Podemos escoltá-las por parte do caminho, Jaime. Só até elas saírem daqui. - Olhou para as freiras. - Para onde estão indo, irmãs?
Teresa respondeu, com a luz de Deus em seus olhos:
- Tenho uma missão sagrada. Há um convento em Mendavia que nos abrigará.
Felix Carpio disse a Jaime Miró:
- Podemos acompanhá-las até lá. Mendavia fica em nosso caminho para San Sebastián.
Jaime Miró virou-se para ele, furioso.
- Seu idiota! Por que não põem uma placa no caminho avisando para onde estamos indo?
- Eu só queria…
- Mierda! - A voz estava cheia de raiva. - Agora não temos alternativa. Teremos de levá-las conosco. Se Acoca as descobrisse, faria com que falassem. Elas vão nos retardar e tornar muito mais fácil para Acoca e seus carniceiros encontrarem a nossa trilha.
Lucia não prestava muita atenção. A cruz de ouro encontrava-se ao seu alcance, tentadora. "Mas esses miseráveis! Você escolhe os piores momentos, Deus, e tem um estranho senso de humor."
- Está bem - dizia Jaime Miró. - Tentaremos resolver o problema da melhor forma possível. Mas não podemos viajar todos juntos, como um circo. - Virou-se para as freiras. Não era capaz de evitar a irritação na voz. - Alguma de vocês sequer sabe onde fica Mendavia?
As irmãs se entreolharam.
- Não exatamente - respondeu Graciela.
- Então, como esperam chegar lá?
- Deus nos guiará - respondeu irmã Teresa, resoluta.
Outro dos homens, Rubio Arzano, sorriu.
- Estão com sorte. - Acenou com a cabeça na direção de Jaime. - Ele desceu para guiá-las em pessoa, irmã.
Jaime silenciou-o com um olhar.
- Vamos nos separar. Seguiremos por três caminhos diferentes. - Tirou o mapa da mochila.
Os homens se agacharam ao redor, apontando os fachos das lanternas para o mapa.
- O convento de Mandavia fica aqui, a sudeste de Logrono. Seguirei para o norte, passando por Val ladolid, depois subirei para Burgos. - Jaime passou os dedos pelo mapa e virou-se para Rubbio, um homem alto, com aparência de camponês. - Você vai pelo caminho de Olmedo, Peñafiel e Aranda de Duero.
- Certo, amigo.
Jaime Miró concentrou-se outra vez no mapa. Olhou para Ricardo Mellado, um homem com o rosto machucado.
- Ricardo, siga para Segóvia, depois pegue o caminho da montanha para Cerezo de Abajo, e depois Soria. Voltaremos a nos encontrar em Logrono. - Guardou o mapa. - Logrono fica a 210 quilômetros daqui. - Jaime calculou mentalmente. - Vamos nos encontrar lá daqui a sete dias. Mantenha-se longe das estradas principais.
- Em que lugar de Logrono vamos nos encontrar? - perguntou Felix.
- O Cirque Japon estará se apresentando em Logrono na próxima semana - lembrou Ricardo.
- Ótimo. Vamos nos encontrar lá. Na matinê.
- Com quem as freiras vão viajar? - indagou Felix Carpio.
- Vamos dividi-las.
Estava na hora de acabar com aquilo, decidiu Lucia.
- Se os soldados estão à procura de vocês, señor, estaríamos mais seguras se viajássemos sozinhas.
- Mas nós não estaríamos, irmã - retrucou Jaime. - Sabem demais sobre nossos planos agora.
- Além do mais - acrescentou Rubbio -, vocês não teriam a menor chance. Conhecemos o território. Somos bascos, e os habitantes lá do norte são nossos amigos. Vão nos ajudar e nos esconder dos soldados Nacionalistas. Nunca chegariam a Mendavia sozinhas.
"Não quero ir para Mendavia, seu idiota."
- Muito bem, vamos logo embora - falou Jaime Miró, relutante. - Quero estar longe daqui antes do amanhecer.
Irmã Megan escutava em silêncio o homem que dava ordens.
Era rude e arrogante, mas parecia irradiar um tranquilizador senso de poder. Jaime Miró olhou para Teresa e apontou para Tomas e Rubbio Arzano.
- Eles serão responsáveis por você.
- Deus é responsável por mim - retrucou irmã Teresa.
- Claro - respondeu Jaime, secamente. - Deve ter sido por isso que veio parar aqui.
Rubbio aproximou-se de Teresa.
- Rubbio Arzano a seu serviço, irmã. Como se chama?
- Sou irmã Teresa.
Lucia interviu no mesmo instante:
- Viajarei com irmã Teresa.
Não permitiria de jeito nenhum que a separassem da cruz de ouro. Jaime assentiu.
- Está bem. - Ele apontou para Graciela. - Ricardo, você vai com esta.
Ricardo Mellado balançou a cabeça.
- Bueno.
A mulher que Jaime enviara para fazer um reconhecimento voltou ao grupo e anunciou:
- Está tudo em ordem.
- Ótimo. - Jaime olhou para Megan. - Você vem comigo, irmã.
Megan assentiu. Jaime Miró fascinava-a. E havia alguma coisa intrigante na mulher. Era morena, aparência ameaçadora, as feições aquilinas de um predador. A boca nela alguma coisa intensamente sexual. A mulher aproximou-se de Megan.
- Sou Amparo Jirón. Fique de boca fechada, irmã, e não haverá problemas.
- Vamos partir - avisou Jaime aos demais. - Logrono, dentro de sete dias. Não percam as irmãs de vista.
Irmã Teresa e Rubbio Arzano já começavam a descer a trilha.
Lucia seguiu apressada no encalço deles. Vira o mapa que Rubbio Arzano guardara na mochila. "Vou tirá-lo quando ele estiver dormindo", decidiu Lucia.
A fuga através da Espanha começara.
Capítulo 10
Miguel Carrillo estava nervoso. Mais do que isso, Miguel Carrillo estava muito nervoso. Não fora um dia maravilhoso para ele. O que começara tão bem pela manhã, quando encontrara as quatro freiras e as convencera de que era um frade, terminara com ele derrubado e inconsciente, mãos e pés amarrados, deixado no chão da loja de roupas.
Fora a mulher do proprietário quem o encontrara. Era uma mulher idosa e corpulenta, de bigode e estourada. Fitara-o, todo amarrado no chão, e dissera:
- Madre de Diós! Quem é você? O que está fazendo aqui?
Carrillo recorrera a todo seu charme.
- Graças aos céus que apareceu, señorita. - Jamais vira alguém que fosse mais obviamente uma señorita - Estava tentando me livrar dessas correias para poder usar seu telefone e chamar a polícia.
- Não respondeu à minha pergunta.
Ele tentara se ajeitar numa posição mais confortável.
- A explicação é simples, señorita. Sou frei Gonzales. Venho de um mosteiro perto de Madrid. Passava por sua linda loja quando vi dois homens arrombando-a. Achei que era o meu dever, como mensageiro de Deus, impedi-los. Entrei atrás, na esperança de persuadi-los a desistirem de seus pecados, mas eles me dominaram e me amarraram. Agora, se fizer a gentileza de me soltar…
- Mierda!
Carrillo fitara-a aturdido.
- O que disse?
- Quem é você?
- Já disse. Sou…
- Você é o maior mentiroso que já conheci.
Ela fora até os hábitos que as freiras haviam descartado.
- O que é isso?
- Ah… os dois jovens estavam usando esses hábitos como disfarce e…
- Há trajes aqui de quatro pessoas. Disse que eram dois homens.
- É isso mesmo. Os outros dois apareceram depois e…
Ela se encaminhou para o telefone.
- O que vai fazer?
- Chamar a polícia.
- Posso lhe garantir que isso não é necessário. Assim que me soltar, irei direto à polícia e farei um relato completo.
A mulher fitara-o com desdém.
- Seu hábito está aberto, frei.
A polícia foi ainda menos compreensiva do que a mulher.
Carrillo estava sendo interrogado por quatro homens da Guarda Civil. Os uniformes verdes e quepes de verniz preto do século dezoito eram suficientes para inspirar terror por toda a Espanha, e efetuaram sua magia em Carrillo.
- Sabia que corresponde exatamente à descrição de um homem que assassinou um padre lá no norte?
Carrillo suspirou.
- Não estou surpreso. Tenho um irmão gêmeo, que os céus possam puni-lo. Foi por sua causa que ingressei no mosteiro. Nossa pobre mãe…
- Esqueça. - Um gigante com cicatriz no rosto entrou na sala. - Boa tarde, coronel Acoca.
- É esse o homem?
- Isso mesmo, coronel. Por causa dos hábitos das freiras que encontramos com ele na loja, achamos que poderia estar interessado em interrogá-lo pessoalmente.
O coronel Acoca aproximou-se do infeliz Carrillo.
- Claro que estou interessado… e muito.
Carrillo ofereceu ao coronel seu sorriso mais insinuante.
- Fico contente que esteja aqui, coronel. Estou numa missão para minha igreja, e é importante que chegue a Barcelona o mais depressa possível. Como já tentei explicar a esses simpáticos cavalheiros, sou uma vítima das circunstâncias, apenas porque tentei ser um bom samaritano.
O coronel Acoca acenou com a cabeça amavelmente.
- Como está com pressa, tentarei não desperdiçar seu tempo.
Carrillo ficou radiante.
- Obrigado, coronel.
- Fico feliz em saber disso. Fale-me a respeito das quatro freiras.
- Não sei coisa nenhuma sobre quatro freiras…
O punho que o atingiu na boca tinha soqueira de latão, e o sangue esguichou pela sala.
- Santo Deus! - balbuciou Carrillo. - O que está fazendo?
O coronel Acoca repetiu:
- Fale-me a respeito das quatro freiras.
- Eu não…
O punho tornou a acertar na boca de Carrillo, quebrando dentes. Carrillo estava sufocando com o próprio sangue.
- Não! Eu…
- Fale-me a respeito das quatro freiras. - A voz de Acoca era suave e afável.
- Eu… - Carrillo viu o punho levantar. - Está bem! Eu… Eu… - As palavras saíram atabalhoadas. - Elas estavam em Villacastín, fugindo do convento. Por favor, não me bata de novo.
- Continue.
- Eu prometi ajudá-las. Precisavam trocar de roupas.
- Então arrombou a loja…
- Não. Eu… é verdade… elas roubaram algumas roupas, depois me derrubaram e foram embora.
- Comentaram para onde iam?
Um estranho senso de dignidade prevaleceu subitamente em Carrillo.
- Não.
O fato de não mencionar Mendavia nada tinha haver com um desejo de proteção das freiras. Carrillo não estava preocupado com elas. Era apenas porque o coronel lhe desfigurara o rosto.
Seria muito difícil ganhar a vida depois que saísse da prisão.
O coronel Acoca virou-se para os homens da Guarda Civil.
- Estão vendo o que um pouco de persuasão amigável pode fazer? Mandem-no para Madrid, sob acusação de assassinato.
Lucia, irmã Teresa, Rubbio Arzano e Tomás Sanjuro caminharam para o noroeste, seguindo na direção de Olmedo, permanecendo longe das estradas principais e atravessando plantações de cereais. Passando por rebanhos de ovelhas e cabras; a inocência da paisagem pastoral era um irónico contraste com o grande perigo em que todos estavam. Andaram durante toda a noite, e ao amanhecer se encaminharam para um ponto isolado nas colinas.
- A cidade de Olmedo fica logo adiante - avisou Rubbio Arzano. - Pararemos aqui até ao anoitecer. Vocês duas precisam de dormir um pouco. Irmã Teresa estava fisicamente exausta.
Mas alguma coisa lhe acontecia, em termos emocionais, que era muito mais desconcertante. Sentia que perdia o contato com a realidade. Começara com o desaparecimento de seu precioso rosário. Perdera-o… ou alguém o roubara? Não sabia. Fora seu conforto por mais anos que podia se lembrar. Quantas milhares de ave-marias, padres-nossos e salvé-rainhas? Tornara-se parte dela, sua segurança, e agora sumira.
Perdera-o no convento durante o ataque? E houvera mesmo um ataque? Parecia tão irreal agora… Não distinguia mais o real do imaginário. Seria o bebê de Monique? Ou Deus estava lhe pregando peças? Era tudo muito confuso. Quando jovem, tudo era mais simples. Quando era jovem…
Capítulo 11
ÉZE, FRANÇA 1924
Quando tinha apenas oito anos, a maior parte da felicidade na vida de Teresa de Fosse vinha da igreja. Era como uma chama sagrada que a atraía para seu calor. Visitava a Chapelle des Pénitents Blancs, rezava na catedral em Mônaco e em Notre Dame Bon Voyage, em Cannes, mas comparecia cada vez mais aos serviços na igreja em Éze.
Teresa vivia num château numa montanha, por cima da aldeia medieval de Éze, perto de Monte Carlo, dando para a Côte d'Azur. A aldeia ficava no alto de um penhasco, e parecia a Teresa que lá de cima podia contemplar o mundo inteiro. Havia um mosteiro no topo, com fileiras de casas descendo pela encosta da montanha, até o azul do Mediterrâneo.
Monique, um ano mais moça do que Teresa, era a beldade da família. Mesmo quando criança, já se podia perceber que cresceria para se tornar uma bela mulher. Tinha feições delicadas, olhos azuis faiscantes e uma segurança tranquila, que se ajustava à aparência.
Teresa era o patinho feio. E os De Fosses sentiam-se embaraçados com a filha mais velha. Se Teresa fosse convencionalmente feia, poderiam enviá-la a um cirurgião plástico para diminuir o nariz, aumentar o queixo ou endireitar os olhos. Mas o problema estava no fato de todas as feições de Teresa serem um pouco tortas. Tudo parecia deslocado, como se ela fosse uma comediante que maquilava o rosto para provocar risadas.
Mas se Deus a lesara na questão da aparência, compensara ao abençoá-la com um dom extraordinário, Teresa possuía uma voz de anjo. Fora notada pela primeira vez em que cantara no coro da igreja. Os paroquianos escutaram aturdidos os tons puros e preciosos que saíam da criança. À medida que Teresa crescia, a voz se tornava mais bela. Ali, sentia que encontrara o seu lugar.
Fora da igreja, no entanto, Teresa era extremamente tímida, angustiosamente consciente de sua aparência.
Na escola, era Monique quem vivia cercada de amigos, tanto meninos como meninas afluíam para o seu lado. Queriam brincar com ela, serem vistos com ela. Monique era convidada para todas as festas. Ela também era convidada, mas no seu caso era uma lembrança posterior, o cumprimento de uma obrigação social. Teresa sabia disso, e se sentia angustiada.
- Ora, Renée, não pode convidar uma das meninas De Fosse sem chamar a outra. Seria falta de educação.
Monique sentia-se envergonhada devido à feiúra da irmã. Achava que isso, de alguma forma, refletia-se sobre ela. Seus pais comportavam-se de maneira adequada em relação à filha mais velha. Cumpriam o dever parental de maneira escrupulosa, mas Monique era sem dúvida a filha que adoravam.
O único ingrediente pelo qual Teresa ansiava estava faltando: o amor.
Era uma criança obediente, sempre disposta a agradar, uma boa aluna que adorava música, história e línguas estrangeiras, esforçava-se ao máximo na escola. As professoras, as criadas e os habitantes da cidade sentiam pena dela. Como um comerciante disse um dia, quando Teresa deixou a loja:
- Deus não estava atento quando a criou.
Onde Teresa encontrara amor era na igreja. O padre a amava, e Jesus a amava. Ela ia à missa todas as manhãs e fazia as 14 estações da cruz. Ajoelhando-se na igreja fria e abobadada, sentia a presença de Deus. Quando cantava ali, Teresa experimentava um senso de esperança e de expectativa. Sentia que alguma coisa maravilhosa estava perto de lhe acontecer. Era a única coisa que tornava a vida suportável.
Teresa nunca confidenciou sua infelicidade aos pais ou à irmã, pois não queria incomodá-los, e guardava para si o segredo de quanto Deus a amava e quanto ela amava a Deus.
Teresa adorava a irmã. Brincavam juntas no terreno que cercava o château, e ela deixava Monique vencer todos os jogos. Combinavam fazer explorações juntas, desciam pelos íngremes degraus de pedra escavados na montanha até a aldeia de Éze lá embaixo, vagueavam pelas ruas estreitas em que ficavam as lojas dos artesãos, observando-os a venderem suas mercadorias.
Quando as meninas atingiram a adolescência, as predições dos aldeões se confirmavam. Monique tornou-se ainda mais bela, e os rapazes cercavam-na, enquanto Teresa tinha pouquíssimos amigos e permanecia em casa costurando ou lendo ou indo à aldeia fazer compras.
Um dia, ao passar pela sala de estar, Teresa ouviu o pai e a mãe discutindo sobre ela.
- Ela será uma velha solteirona. Ficará com a gente por toda a nossa vida.
- Teresa encontrará alguém. Tem um temperamento muito amável.
- Não é isso que os rapazes de hoje procuram. Querem alguém que possam desfrutar na cama.
Teresa fugiu.
Teresa ainda cantava na igreja aos domingos, por causa disso ocorreu um evento que quase lhe mudou a vida. Havia na congregação uma certa madame Neff, tia de um diretor de emissora de rádio em Nice. Ela foi falar com Teresa numa manhã de domingo.
- Está desperdiçando sua vida aqui, minha filha. Possui uma voz extraordinária. Deveria usá-la.
- Mas estou usando. Eu…
- Não me refiro a… - madame Neff correu os olhos pela igreja -…isso. Falo de usar sua voz de forma profissional. Orgulho-me de reconhecer o talento quando o escuto. Quero que cante para meu sobrinho. Ele pode levá-la para a rádio. Está interessada?
- Eu… eu não sei…
O simples pensamento apavorava Teresa.
- Converse com sua família.
- É uma idéia maravilhosa - comentou a mãe de Teresa.
- Pode ser uma boa coisa para você - acrescentou o pai.
Apenas Monique apresentou restrições:
- Você não é profissional. Pode se expor ao ridículo.
O que nada tinha a ver com os motivos de Monique para tentar desencorajar a irmã. Na realidade, Monique temia que Teresa obtivesse sucesso. Monique é que sempre ocupava o centro das atenções. "Não é justo", pensou. "Deus não deveria ter dado a Teresa uma excelente voz. E se ela se tornar famosa? Eu ficarei em segundo plano, ignorada."
E, assim, Monique tentou persuadir a irmã a não aceitar o convite.
Mas no domingo seguinte, madame Neff avisou Teresa:
- Falei com meu sobrinho. Ele está disposto a lhe conceder uma audição. Espera-a na próxima quarta-feira, às três horas.
Na quarta-feira seguinte, uma Teresa muito nervosa apareceu na emissora de rádio em Nice e procurou o diretor.
- Sou Louis Bennet - apresentou-se ele, bruscamente. - Posso lhe conceder cinco minutos.
A aparência física de Teresa confirmava seus piores receios.
A tia já lhe enviara alguns talentos antes.
"Eu deveria dizer a ela para não sair da cozinha." Mas não faria isso. A tia era muito rica, e ele o único herdeiro.
Teresa seguiu Louis Bennet por um corredor estreito, até um pequeno estúdio.
- Já cantou profissionalmente alguma vez?
- Não, senhor. - Teresa estava com a blusa encharcada de suor. "Por que deixei que me convencessem a vir aqui?", especulou. Estava em pânico, com vontade de fugir.