Vou matá-la", pensou Ricardo Mellado. "Poderia estrangulá-la com minhas próprias mãos, jogá-la do alto da montanha ou simplesmente fuzilá-la. Não, acho que estrangulá-la me daria mais prazer."

Irmã Graciela era o ser humano mais exasperante que já conhecera. Era insuportável. No começo, quando Jaime Miró o incumbira de escoltá-la, Ricardo Mellado ficara satisfeito. Era uma freira, é verdade, mas também era a beldade mais deslumbrante que já contemplara. Estava decidido a conhecê-la melhor, descobrir por que tomara a decisão de trancafiar toda aquela beleza excepcional por trás dos muros do convento pelo resto da sua vida. Sob a saia e blusa que ela usava, Ricardo Mellado podia discernir as curvas espetaculares de uma mulher. "Será uma viagem muito interessante", concluiu ele.

Mas as coisas haviam enveredado por um rumo totalmente inesperado. Irmã Graciela recusava-se a falar-lhe. Não dissera uma única palavra desde o início da viagem, e o que mais desconcentrava Ricardo era o fato de que ela não parecia zangada, assustada ou transtornada. De jeito nenhum. Apenas se retirara para alguma parte remota de si mesmo e dava a impressão de total desinteresse por ele e tudo o que acontecia ao seu redor. Viajaram num bom ritmo, andando por estradas secundárias, quentes e poeirentas, passando por trigais, ondulando dourados ao sol, plantações de cevada, aveia e vinhedos. Contornando as pequenas aldeias pelo caminho, Berroccule e Aldeavieja, passando por campos de girassóis, os rostos amarelos acompanhando o sol.

Ao cruzar o Rio Moro, Ricardo perguntou:

- Gostaria de descansar um pouco, irmã?

Silêncio.

Aproximaram-se de Segóvia, antes de seguirem para o norte, na direção das montanhas de picos nevados das Guadarrama. Ricardo continuava a tentar puxar conversa, polidamente, mas era completamente inútil.

- Chegaremos a Segóvia em breve, irmã.

Não houve qualquer reação.

"O que fiz para ofendê-la?"

- Está com fome, irmã?

Nada.

Era como se ele não estivesse ali. Nunca se sentira tão frustrado em toda a sua vida. "Talvez a mulher seja retardada", pensou. "Essa deve ser a resposta. Deus lhe concedeu uma beleza sublime e depois amaldiçoou-a com uma mente fraca." Mas ele não acreditava nisso.

Ao chegar aos arredores de Segóvia, Ricardo notou que a cidade estava apinhada de gente, o que significava que a Guarda Civil se manteria mais alerta do que nunca. Ao se aproximarem da Plaza del Conde de Cheste, ele viu soldados patrulhando na direção dos dois. E sussurrou:

- Segure minha mão, irmã. Devemos dar a impressão de que somos dois namorados em passeio.

Ela ignorou-o.

"Meu Deus!", pensou Ricardo. "Talvez ela seja surda-muda."

Inclinou-se e pegou-lhe a mão, ficou aturdido com a súbita e vigorosa resistência de irmã Graciela. Ela puxou a mão como se tivesse sido picada.

Os guardas estavam cada vez mais perto. Ricardo tornou a se inclinar para Graciela e disse, em voz alta:

- Não deve ficar zangada. Minha irmã pensa da mesma maneira. Ontem à noite, depois do jantar e de pôr as crianças na cama, ela disse que seria muito melhor se os homens não se sentassem separados, fumando charutos fedorosos e contando histórias, esquecidos das mulheres. Aposto…

Os guardas passaram. Ricardo virou-se para fitar Graciela, que se mantinha impassível. Mentalmente, Ricardo começou a praguejar contra Jaime, desejando que ele o tivesse incumbido de alguma das outras freiras. Aquela era feita de pedra, não havia nenhum cinzel bastante duro para penetrar naquele exterior frio.

Com toda a modéstia, Ricardo Mellado sabia que era atraente para as mulheres. Muitas já lhe haviam dito isso. Tinha a pele clara, alto e de boa compleição, nariz aristocrata, o rosto inteligente, dentes brancos e perfeitos. Vinha de uma das mais proeminentes famílias bascas. O pai era um banqueiro no país basco ao norte e providenciara para que Ricardo recebesse a melhor educação. Cursara a Universidade de Salamanca, e o pai aguardava ansioso que o filho se juntasse a ele no comando da empresa da família.

Ao sair da faculdade e voltar para casa, Ricardo foi trabalhar no banco, submisso, mas pouco tempo depois começou a envolver-se com os problemas de seu povo. Passou a comparecer a reuniões, comícios e protestos contra o governo, e não demorou muito a tornar-se um dos líderes da "ETA." O pai, ao saber das atividades do filho, convocou-o à sua vasta sala, revestida de madeira, para um sermão.

- Sou um basco também, Ricardo, mas também sou um banqueiro. Não podemos estragar tudo ao fornecer uma revolução no país em que ganhamos a vida.

- Ninguém pretende derrubar o governo, pai. Tudo o que queremos é liberdade. A opressão do governo aos bascos e catalães é intolerável.

O velho Mellado recostou-se na cadeira e estudou o filho.

- Meu bom amigo, o prefeito, enviou-me um aviso discreto ontem. Sugeriu que seria melhor para você não comparecer mais a comícios. Acho que deve concentrar suas energias nos negócios bancários.

- Pai…

- Quero que me escute, Ricardo. Quando eu era jovem, também tinha sangue quente. Você está noivo de uma moça maravilhosa. Espero que tenham muitos filhos. - Acenou com a mão pela sala. - E você tem muita coisa a esperar de seu futuro.

- Mas será que não percebe…?

- Percebo mais claramente do que você, meu filho. Seu futuro sogro também está infeliz com suas atividades. Eu não gostaria que acontecesse alguma coisa que impedisse o casamento. Estou sendo claro?

- Está sim, pai.

No sábado seguinte Ricardo Mellado foi preso ao liderar uma manifestação basca num auditório em Barcelona. Recusou-se a permitir que o pai pagasse a fiança, a menos que também pagasse as fianças dos outros manifestantes detidos. O pai não concordou.

A carreira de Ricardo foi encerrada, assim como o noivado. Isso acontecera cinco anos antes. Cinco anos de perigos e fugas por um triz. Cinco anos repletos com a emoção da luta por uma causa em que acreditava fervorosamente. Agora estava em fuga, escapando da polícia, escutando uma freira retardada e muda através da Espanha.

- Vamos por aqui - disse à irmã Graciela, para não tocar em seu braço.

Deixaram a rua principal e entraram na Calle de San Val entín. Na esquina havia uma loja que vendia artigos musicais.

- Tenho uma idéia - disse Ricardo. - Espere aqui, irmã. Voltarei num instante. - Entrou na loja e encaminhou-se para um jovem vendedor, parado atrás do balcão.

- Buenos dias. Posso ajudá-lo?

- Pode, sim. Gostaria de comprar duas guitarras.

O jovem sorriu.

- Está com sorte. Acabamos de receber algumas Ramirez. São as melhores.

- Talvez alguma coisa inferior. Minha amiga e eu somos apenas amadores.

- Como quiser, señor. O que acha dessas? - O vendedor foi para uma seção da loja em que havia uma dúzia de guitarras expostas. - Posso vender-lhe duas Konos por cinco mil pesetas cada uma.

- Acho que não. - Ricardo escolheu duas guitarras, com a remota esperança de que irmã Graciela tivesse desaparecido, mas ela continuava pacientemente parada ali, à sua espera. Ricardo abriu a correia de uma guitarra e estendeu para ela.

- Tome aqui, irmã. Pendure no ombro.

Ela fitou-o aturdida.

- Não precisa tocar - explicou Ricardo. - É apenas um disfarce. - Empurrou a guitarra e Graciela pegou-a, relutante.

Os dois caminharam pelas ruas sinuosas de Segóvia, passando sob o enorme viaduto construído pelos romanos séculos antes.

Ricardo resolveu tentar outra vez.

- Está vendo este viaduto, irmã? Não há cimento entre as pedras. Segundo contam, foi construído pelo demônio há dois mil anos, pedra sob pedra, sem nada para mantê-las juntas além da magia do demônio.

Nada.

"Ela que se dane", pensou Ricardo Mellado. "Eu desisto."

Os soldados da Guarda Civil estavam por toda a parte. Sempre que eles passavam por eles, Ricardo fingia estar empenhado numa conversa interessante com Graciela, cauteloso para evitar qualquer contato físico.

O número de polícias e soldados parecia estar aumentando, mas Ricardo sentia-se relativamente seguro. Estariam à procura de uma freira de hábito e um grupo de homens de Jaime Miró; não teriam motivos para desconfiar de um jovem casal de turistas carregando guitarras.

Ricardo estava com fome e tinha certeza que o mesmo acontecia com a irmã Graciela, embora ela nada dissesse. Passaram por um pequeno café.

- Vamos parar aqui e comer alguma coisa, irmã.

Ela parou e fitou-o. Ricardo suspirou.

- Está bem. Como preferir.

Entrou no pequeno café. Um momento depois, Graciela seguiu-o.

- O que vai querer, irmã? - perguntou Ricardo após se sentarem.

Não houve resposta. Ela era irritante.

Ricardo então pediu à garçonete.

- Dois gazpachos e duas porções de chouriços.

Quando a sopa e as linguiças foram servidas, Graciela comeu o que foi posto à sua frente. Ricardo notou que ela comia automaticamente, sem desfrutar, como se cumprisse algum dever. Os homens sentados às outras mesas observavam-na, e Ricardo não podia culpá-los. "Seria preciso um Goya para captar sua beleza", pensou ele. Apesar do comportamento taciturno de Graciela, Ricardo sentia um aperto na garganta cada vez que a contemplava e se censurava por ser um tolo romântico. Ela era um enigma, sepultada por trás de alguma muralha impenetrável. Ricardo Mellado conhecera dezenas de belas mulheres, mas nenhuma jamais o afetara daquela maneira. Havia algo quase místico em sua beleza. A ironia era que ele não tinha absolutamente a menor idéia do que havia por trás daquela fachada espectacular. Não sabia se ela era inteligente ou estúpida. Interessante ou chata? Fria ou ardente? "Espero que ela seja estúpida, chata e fria", pensou Ricardo, "ou eu não suportaria perdê-la. Como se algum dia pudesse tê-la. Ela pertence a Deus." Ele desviou os olhos, com receio que Graciela pudesse perceber seus sentimentos.

Quando chegou a hora de partirem, Ricardo pagou a conta e os dois se levantaram. Durante a viagem, ele notara que a irmã Graciela claudicava um pouco. "Terei de providenciar alguma espécie de transporte", pensou ele. "Ainda temos um longo caminho a percorrer."

Começaram a descer a rua e na outra extremidade da cidade, no Manzanares el Real, encontraram uma caravana pitorescamente decorada, puxada por cavalos. As mulheres e crianças, vestindo trajes ciganos, viajavam nas traseiras das carroças.

- Espere aqui, irmã. Vou tentar arrumar uma carona para nós - avisou Ricardo.

Aproximou-se do condutor da primeira carroça, um corpulento cigano com traje típico completo, inclusive brincos.

- Buenas tardes, señor. Eu consideraria uma grande gentileza se pudesse oferecer uma carona para mim e para minha noiva.

O cigano olhou para Graciela.

- É possível. Para onde vão?

- Para a montanha Guadarrama.

- Posso levá-los até Cerezo de Abajo.

- Seria ótimo. Fico agradecido. - Ricardo apertou a mão do cigano, passando-lhe algum dinheiro.

- Embarquem na última carroça.

- Gracias.

Ricardo voltou para o lugar em que Graciela esperava, e falou:

- Os ciganos vão nos levar até Cerezo de Abajo. Viajaremos na última carroça.

Por um instante, ele teve certeza que Graciela ia recusar.

Ela hesitou, depois encaminhou-se para a carroça.

Havia uma dúzia de ciganas dentro da carroça e elas abriram espaço para Ricardo e Graciela. Ao subirem, Ricardo começou a ajudar a irmã, mas ao tocar-lhe no braço, ela puxou-o bruscamente, com uma violência que o pegou de surpresa. "Está bem, você que se dane." Ele vislumbrou a perna nua de Graciela quando ela subiu na carroça, e não pôde deixar de pensar: "Ela tem as mais lindas pernas que já vi."

Procuraram se acomodar da melhor forma possível no chão duro de madeira, e a longa jornada começou. Graciela sentada num canto, os olhos fechados e os lábios se mexendo em oração.

Ricardo não conseguia desviar os olhos dela.

À medida que o dia avançou, o sol tornou-se uma fornalha ardente, castigando-os, implacável, crestando a terra, o céu de um azul profundo, sem qualquer nuvem. De vez em quando, com as carroças atravessando as planícies, enormes aves a sobrevoavam.

Buitre leonado, pensou Ricardo. O abutre-leão.

No final da tarde, a caravana cigana parou e o líder aproximou-se da carroça da retaguarda.

- Este é o ponto máximo a que podemos levá-los. Estamos indo para Viñuela.

"Direção errada."

- Está ótimo - disse Ricardo. - Obrigado.

Ele começou a estender a mão para ajudar a irmã Graciela a se levantar, mas mudou de idéia. Virou-se para o líder dos ciganos.

- Consideraria uma gentileza se me vendesse alguma comida para nós.

O chefe virou-se para uma das mulheres e disse alguma coisa numa língua estrangeira. Logo depois dois pacotes de comida foram entregues a Ricardo.

- Muchas gracias. - Tirou algum dinheiro.

O líder dos ciganos fitou em silêncio por um momento.

- Você e a irmã já pagaram pela comida.

"Você e a irmã." Então ele sabia. Contudo, Ricardo não experimentou o senso de perigo. Os ciganos eram tão oprimidos pelo governo quanto os bascos e catalães.

- Vayan con Díos.

Ricardo ficou parado, observando a caravana se afastar e então virou-se para Graciela. Ela observava-o, em silêncio, impassível.

- Não terá de aturar minha companhia por muito mais tempo - assegurou Ricardo. - Dentro de dois dias estaremos em Logroño. Você se encontrará com suas amigas ali e partirão para o convento em Mendavia.

Não houve reação. Era como se ele falasse com um muro de pedra. "Estou falando com um muro de pedra."


Desceram para um vale aprazível, com muitas macieiras, pereiras e figueiras. Ali perto passava o rio Duratón, cheio de gordas trutas. No passado, Ricardo pescara ali muitas vezes.

Seria um lugar ideal para ficar e descansar, mas ainda havia um longo caminho a percorrer.

Ele virou-se para estudar a montanha Guadarrama, que se estendia à sua frente. Ricardo conhecia a região muito bem.

Havia várias trilhas para atravessar a cadeia de montanhas.

"Cabras", selvagens cabritos monteses, e lobos rondavam os caminhos, e Ricardo escolheria o caminho mais curto se estivesse viajando sozinho. Mas com a Irmã Graciela ao seu lado, ele optou pelo mais seguro.

- É melhor começarmos logo - disse Ricardo. - Temos uma longa subida pela frente.

Não tinha a menor intenção de perder o encontro com os outros em Logroño. A irmã silenciosa que se tornasse problema de outra pessoa.

Irmã Graciela estava parada, à espera que Ricardo indicasse o caminho. Ele virou-se e começou a subir. Não demorou muito para que Graciela escorregasse em algumas pedras na íngreme trilha e Ricardo instintivamente estendeu a mão para ajudá-la. Ela empurrou-lhe a mão bruscamente e recuperou o equilíbrio. "Como quiser", pensou ele, furioso. "Pode quebrar o pescoço."

Continuaram a subir, encaminhando-se para o majestoso pico lá em cima. A trilha foi se tornando cada vez mais íngreme e estreita, o ar frio era mais rarefeito. Seguiram para leste, passando por uma floresta de pinheiros. À frente deles ficava uma aldeia que tinha um refúgio para esquiadores e alpinistas. Ricardo sabia que encontrariam ali comida quente, calor e descanso.

Era tentador. "Mas muito perigoso", concluiu. Seria um lugar perfeito para Acoca montar uma armadilha. Virou-se para irmã Graciela.

- Vamos contornar a aldeia. Pode andar mais um pouco, antes de pararmos para descansar?

Ela fitou-o e, como resposta, virou-se e recomeçou a andar.

A grosseria desnecessária ofendeu-o, e ele pensou: "Ainda bem que me livrarei dela em Logroño. Por que, em nome de Deus, tenho sentimentos contraditórios em relação a isso?"

Os dois contornaram a aldeia, caminhando à beira da floresta, e logo se encontravam outra vez na trilha, subindo cada vez mais. A respiração se tornava mais difícil, e o caminho, ainda mais íngreme. Ao contornarem uma curva, depararam com um ninho de águia vazio. Deram uma volta para evitar outra aldeia na montanha, silenciosa e pacífica ao sol da tarde, e descansaram nos arredores, parando num regato onde beberam água gelada.

Ao anoitecer, alcançaram uma área acidentada famosa por suas cavernas. A partir daquele ponto, a trilha começava a descer.

"Daqui por diante será mais fácil", pensou Ricardo. "O pior já passou."

Ele ouviu um zumbido distante lá em cima. Levantou os olhos, à procura. Um avião militar apareceu de repente sobre o topo da montanha, voando na direção do lugar em que se encontravam.

- Abaixe-se! - gritou. - Abaixe-se!

Graciela continuou a andar. O avião fez uma volta e começou a voar mais baixo.

- Abaixe-se! - berrou Ricardo de novo.

Pulou sobre Grraciela e derrubou-a no chão, seu corpo por cima. Sem qualquer aviso. Graciela pôs-se a gritar histericamente, lutando com ele. Chutou-o na virilha, arranhando-lhe o rosto, tentava arrancar os olhos. O mais espantoso, no entanto, era o que ela dizia. Gritava uma sucessão de obscenidades que deixaram Ricardo chocado, uma torrente de palavrões que o atordoou. Não podia acreditar que tais palavras saíam daquela boca linda e inocente.

Tentou segurar as mãos de Graciela, a fim de se proteger das unhas que o arranhavam. Graciela parecia uma gata selvagem por baixo dele.

- Pare com isso! - gritou Ricardo. - Não vou machucá-la. É um avião militar de reconhecimento. Eles podem ter nos visto. Precisamos sair daqui.

Procurou imobilizá-la, até que a resistência frenética finalmente cessou. Sons estranhos e estrangulados vinham de Graciela, e Ricardo compreendeu que ela soluçava. Apesar de toda sua experiência com as mulheres, estava completamente aturdido.

Encontrava-se por cima de uma freira histérica que tinha o vocabulário de um motorista de caminhão e não sabia o que fazer em seguida. Procurou tornar a voz o mais calma possível.

- Irmã, precisamos encontrar um lugar para nos escondermos e depressa. O avião pode ter comunicado a nossa presença aqui e dentro de poucas horas poderá haver soldados por toda a parte. Se quer chegar ao convento, deve se levantar e acompanhar-me. - Esperou um pouco, depois saiu de cima de Graciela e, com todo o cuidado, sentou-se ao lado, enquanto os soluços se desvaneciam.

Graciela acabou se sentando. O rosto estava sujo de terra, os cabelos desgrenhados, os olhos vermelhos de chorar, mas mesmo assim sua beleza deixou Ricardo angustiado.

- Desculpe tê-la assustado - murmurou. - Parece que não sei me comportar direito com você. Prometo que me esforçarei para ter mais cuidado.

Ela fitou-o, os olhos pretos luminosos marejados de lágrimas. Ricardo não tinha a menor idéia do que ela pensava naquele momento. Ele suspirou e levantou-se. Graciela acompanhou-o.

- Há dezenas de cavernas por aqui - disse Ricardo. - Vamos nos esconder em uma delas durante a noite. Continuaremos a viagem ao amanhecer. - Seu rosto estava esfolado e sangrando onde ela o arranhara. Apesar do que acontecera, Graciela parecia indefesa, com uma fragilidade que o comovia, o que fazia querer dizer alguma coisa para tranquilizá-la. Mas agora era ele que permanecia em silêncio. Não podia pensar em nada para dizer.

As cavernas haviam sido escavadas por milénios de vento, inundações e terramotos, possuíam uma variedade infinita. Algumas não passavam de simples depressões na rocha, outras eram túneis intermináveis, jamais explorado pelo homem.

A um quilômetro e meio do lugar onde avistaram o avião, Ricardo encontrou uma caverna que parecia segura. A baixa entrada estava quase oculta pelas moitas.

- Espere aqui, irmã. - Passou pela entrada e dirigiu-se para o interior da caverna. Estava escuro lá dentro, apenas uma tênue claridade penetrava pela abertura. Não havia como descobrir a extensão da caverna, mas isso não importava, pois não havia razão para explorá-la.

Voltou para junto de Graciela.

- Parece um lugar seguro - comentou Ricardo após sair da caverna. - Espere lá dentro, por favor. Vou pegar alguns galhos para cobrir a entrada. Voltarei em poucos minutos.

Observou-a entrar em silêncio na caverna e especulou se ainda a encontraria ali quando voltasse. Percebeu que queria desesperadamente que ela estivesse.

Dentro da caverna, Graciela observou-o se afastar e então sentou-se no chão frio, em desespero. "Não posso mais aguentar", pensou ela. "Onde você está, Jesus? Por favor, liberte-me deste inferno."

Era mesmo um inferno. Desde o início que Graciela lutava contra a atração que sentia por Ricardo. Pensou no mouro. "Sinto medo de mim mesma. Quero este homem, mas não devo."

Por isso, ela erguera uma barreira de silêncio entre os dois, o silêncio com que vivera no convento. Mas agora, sem a disciplina do convento, sem orações, sem a muleta da rotina rígida, Graciela descobriu-se incapaz de banir suas trevas íntimas. Passara anos combatendo os impulsos satânicos de seu corpo, tentando impedir que voltasse os sons lembrados, os gemidos e suspiros que vinham da cama da mãe.

O mouro olhava para seu corpo nu.

"Você é apenas uma criança. Vista-se e saia daqui…"

"Sou uma mulher!"

Passara muitos anos tentando esquecer a sensação do mouro dentro dela, tentando expulsar da mente o ritmo dos corpos se mexendo juntos, saciando-a, proporcionando o sentimento de estar finalmente viva.

A mãe gritando: "Sua sem-vergonha!"

O médico dizendo: "Nosso cirurgião-chefe decidiu cuidar de você pessoalmente. Disse que era bonita demais para ficar com cicatrizes."

Todos os anos de orações haviam sido para se expurgar do sentimento de culpa. E havia fracassado.

O passado ressurgira abruptamente na primeira vez em que olhava para Ricardo. Ele era bonito, bom, gentil. Quando era pequena, Graciela sonhara com alguém como Ricardo. E quando ele estava próximo, quando a tocara, seu corpo se inflamava no mesmo instante e experimentava uma profunda vergonha. "Sou a esposa de Cristo, e meus pensamentos constituem uma traição a Deus. Pertenço a Você, Jesus. Por favor, ajude-me agora. Purifique minha mente dos pensamentos impuros."

Graciela tentara desesperadamente manter o muro de silêncio entre os dois, um muro pelo qual ninguém podia penetrar, à exceção de Deus, um muro para manter o demônio afastado. Mas queria mesmo manter o demônio afastado? Quando Ricardo pulara em cima dela e a empurrara para o chão, era o mouro lhe fazendo amor, e o frade tentando estuprá-la, e, em seu pânico incontrolável, fora contra eles que ela lutara. "Não", admitiu para si mesma, "isso não é verdade." Era contra o seu desejo mais profundo que lutara. Estava dividida entre o espírito e os anseios da carne. "Não devo ceder. Preciso voltar ao convento. Ele estará aqui a qualquer momento. O que fazer?"

Graciela ouviu um miado baixo no fundo da caverna e virou-se. Havia quatro olhos verdes fitando-os no escuro, avançou em sua direção. O coração de Graciela disparou.

Dois filhotes de lobo aproximaram-se, em passos macios, almofadados. Ela sorriu e estendeu a mão na direção deles.

Houve um súbito sussurro na entrada da caverna. "Ricardo está de volta", pensou.

No momento seguinte uma enorme loba cinzenta voava em sua garganta.


Capítulo 27


Lucia Carmine parou diante da "taverna" em Aranda de Duero e respirou fundo. Através da janela, podia ver Rubio Arzano sentado lá dentro, à sua espera.

"Não devo deixar que ele desconfie", pensou Lucia. "Às oito horas terei um novo passaporte e estarei a caminho da Suíça."

Ela forçou um sorriso e entrou na "taverna." Rubio sorriu aliviado ao vê-la, e a expressão em seus olhos, ao se levantar, provocou uma pontada de angústia em Lucia.

- Eu estava muito preocupado, "querida." Passou tanto tempo fora que tive medo de que alguma coisa terrível lhe tivesse acontecido.

Lucia pôs a mão sobre a dele.

- Está tudo bem.

"Apenas comprei a minha passagem para a liberdade. Estarei fora do país amanhã."

Rubio sentou-se, fitou-a nos olhos, segurando-lhe a mão.

O sentimento de amor que irradiava era tão intenso que Lucia sentiu-se apreensiva. "Será que ele não percebe que nunca poderia dar certo? Não, ele não compreende. Por que não tenho coragem de lhe contar. Não está apaixonado por mim. Está apaixonado pela mulher que pensa que eu sou. E ficará muito melhor livre de mim."

Ela virou-se e correu os olhos pelo ambiente. Estava cheio de moradores locais. A maioria parecia observar os dois estranhos.

Um dos jovens começou a cantar e outros o acompanharam.

Um homem aproximou-se da mesa a que Lucia e Rubio se sentavam.

- Não está cantando, señor. Junte-se a nós.

Rubio sacudiu a cabeça.

- Não.

- Qual é o problema, amigo?

- É a canção. - Rubio viu a expressão de perplexidade de Lucia e explicou: - É uma antiga canção de louvor a Franco.

Outros homens começaram a agrupar-se em torno da mesa.

Era evidente que haviam bebido muito.

- Foi contra Franco, seño"?

Lucia viu os punhos de Rubio se contraírem. "Oh, Deus, não agora! Ele não pode começar qualquer coisa que atraia a atenção." Ela murmurou, em tom de advertência:

- Rubio…

E, graças a Deus, ele compreendeu. Olhou para os homens e disse, jovialmente:

- Não tenho nada contra Franco. Apenas não conheço a letra.

- Ahn… Nesse caso, vamos todos cantarolar juntos.

Eles ficaram em silêncio, à espera que Rubio recusasse.

Ele olhou para Lucia.

- Bueno.

Os homens recomeçaram a cantar, e Rubio cantarolou em voz alta. Lucia podia sentir sua tensão, enquanto fazia um esforço para manter o controle. "Ele está fazendo isso por mim."

Quando a canção terminou, um homem deu um tapinha nas costas de Rubio.

- Nada mal, velho, nada mal.

Rubio permaneceu em silêncio, ansioso para que eles se afastassem.

Um dos homens viu o embrulho no colo de Lucia.

- O que está escondendo aí, "querida?"

Seu companheiro acrescentou:

- Aposto que ela tem uma coisa melhor por baixo da saia.

Os homens riram.

- Por que não abaixa as calcinhas e nos mostra o que tem lá?

Rubio levantou-se de um pulo e agarrou um dos homens pela garganta. Empurrou-o com tanta força que o homem voou através do bar e quebrou uma mesa.

- Não! - gritou Lucia. - Não faça isso!

Mas era tarde demais. Em pouco tempo, a confusão espalhou-se pela "Taverna", com todo o mundo aderindo ansiosamente à briga e homens bêbados engalfinhando-se no chão.

Uma garrafa de vinho espatifou o espelho por trás do balcão.

Cadeiras e mesas foram derrubadas, enquanto homens voaram de um lado para o outro, aos gritos. Rubio derrubou dois homens, um terceiro avançou e acertou-o na barriga. Ele soltou um grunhido de dor.

- Rubio! - gritou Lucia. - Vamos sair daqui!

Ele acenou com a cabeça, as mãos comprimindo a barriga.

Esgueiraram-se pela confusão e saíram para a rua.

- Precisamos escapar - murmurou Lucia.

"Você terá seu passaporte esta noite. Volte depois das oito horas." Precisava encontrar um lugar para se esconder até lá.

"Ele que se dane! Por que não podia se controlar?"

Os dois desceram pela Calle Santa Maria, e os ruídos da briga na "taverna" foram diminuindo gradativamente. Dois quarteirões adiante, chegaram a uma grande igreja, a Iglesia Santa Maria. Lucia subiu os degraus, abriu a porta e espreitou lá para dentro. Estava deserta.

- Ficaremos sãos e salvos aqui - disse ela.

Entraram na semi-escuridão da igreja, Rubio ainda comprimia a barriga.

- Podemos descansar um pouco.

- Está bem.

Rubio retirou a mão da barriga e o sangue esguichou. Lucia ficou desesperada.

- Santo Deus! O que aconteceu?

- Uma faca - balbuciou Rubio. - Ele usou uma faca. - Rubio arriou para o chão.

Lucia ajoelhou-se ao seu lado, em pânico.

- Não se mexa. - Tirou a saia e comprimiu-a contra a barriga de Rubio, tentando estancar a hemorragia.

O rosto de Rubio estava branco.

- Não deveria ter brigado com eles, seu idiota - disse Lucia, furiosa.

A voz dele era um sussurro enrolado:

- Não podia permitir que falassem de você daquela maneira.

"Não podia permitir que falassem de você daquela maneira."

Lucia sentiu-se comovida como nunca sentira-se antes. Ficou imóvel, olhando para ele e pensando: "Quantas vezes esse homem já arriscou a vida por mim?"

- Não deixarei que morra - disse ela, com veemência. Levantou-se abruptamente. - Voltarei num instante. Encontrou água e toalhas onde o padre trocava de roupas, no fundo da igreja. Lavou o ferimento de Rubio. O rosto dele estava quente, o corpo encharcado de suor. Lucia pôs toalhas frias em sua testa. Os olhos de Rubio estavam fechados, parecia adormecido. Ela aninhou sua cabeça nos braços e pôs-se a lhe falar. Não importava o que dizia. Falava para mantê-lo vivo, obrigá-lo a se segurar no tênue fio da existência. Falou incessantemente, com medo de parar um segundo sequer.

- Vamos trabalhar juntos em sua fazenda, Rubio. Quero conhecer sua mãe e irmãs. Acha que elas vão gostar de mim? Quero muito que elas gostem. Eu sou muito trabalhadeira, "caro." Vai ver só. Nunca trabalhei numa fazenda, mas aprenderei. Faremos com que seja a melhor fazenda de toda a Espanha.

Lucia passou a tarde falando, banhando seu corpo febril, trocando o curativo. A hemorragia quase cessara.

- Está vendo, "caro?" Já começa a melhorar. Eu não disse? Nós dois teremos uma vida maravilhosa juntos, Rubio. Mas, por favor, não morra. Por favor!

Percebeu que estava chorando.

Lucia observou as sombras da tarde pintar as paredes da igreja através dos vitrais e se desvanecerem lentamente. O pôr-do-sol escureceu o céu e finalmente a escuridão total. Ela trocou de novo o curativo de Rubio e nesse instante, tão perto que lhe provocou um sobressalto, o sino da igreja começou a repicar. Ela prendeu a respiração e contou as badaladdas. Uma… três… cinco… sete… oito. Oito horas. Estava chamando-a, dizendo que era tempo de voltar à Casa do Empeños. Tempo de escapar daquele pesadelo e salvar-se.

Ajoelhou-se ao lado de Rubio e sentiu sua testa. Ele ardia em febre. O corpo estava encharcado de suor e a respiração era difícil e irregular. Não podia ver qualquer sinal de hemorragia, mas isso talvez significasse que ele sangrava internamente. "Mas que diabo! Trate de se salvar, Lucia!"

- Rubio… querido…

Ele abriu os olhos, apenas meio consciente.

- Preciso sair por um momento.

Rubio apertou-lhe a mão.

- Por favor…

- Está tudo bem - sussurrou Lucia. - Voltarei logo.

Levantou-se e lançou-lhe um último olhar. "Não posso ajudá-lo", pensou.

Pegou a cruz de ouro, virou-se e deixou a igreja rapidamente, os olhos cheios de lágrimas. Começou a andar depressa, encaminhando-se para a loja de penhores. O homem e seu primo estariam ali, à sua espera, com o passaporte para a liberdade. "Pela manhã, quando começarem as missas, encontrarão Rubio e o levarão a um médico. Vão tratá-lo, e ele ficará bom. Só que não sobreviverá a esta noite", pensou. "Mas isso não é problema meu."

A Casa de Empeños ficava logo à frente. Estava apenas uns poucos minutos atrasada. Podia ver as luzes acesas no interior da loja. Os homens a esperavam.

Começou a andar mais depressa, depois desatou a correr.

Atravessou a rua e passou pela porta aberta.

Dentro da delegacia, um guarda uniformizado estava sentado atrás de uma escrivaninha. Levantou os olhos quando Lucia entrou.

- Preciso de você! - gritou ela. - Um homem foi apunhalado! Pode estar morrendo!

O guarda não fez perguntas. Pegou um telefone e falou rapidamente. "Depois de desligar, comunicou a Lucia:

- Alguém virá falar-lhe.

Dois detetives apareceram quase que no mesmo instante.

- Alguém foi apunhalado, señorita?

- Isso mesmo. Acompanhe-me, por favor. Depressa!

- Vamos apanhar o médico no caminho - disse um dos detetives. - E depois poderá nos levar a seu amigo…

Pegaram o médico em sua casa, e Lucia conduziu o grupo à igreja. O médico foi até o corpo imóvel no chão e ajoelhou-se ao lado. Levantou o rosto um momento depois.

- Ainda está vivo, mas corre perigo. Chamarei uma ambulância.

Lucia ajoelhou-se e murmurou em silêncio: "Obrigada, Deus. Fiz tudo o que pude. Agora deixe-me escapar, sã e salva, e nunca mais tornarei a incomodá-lo."

Um dos detetives observava Lucia por todo o caminho até a igreja. Ela lhe parecia familiar. E de repente ele compreendeu por quê. Tinha uma semelhança extraordinária com o retrato na Vermelha, a circular de prioridade da Interpol.

O detetive sussurrou alguma coisa a seu companheiro e os dois se viraram para estudá-la. Então aproximaram-se de Lucia.

- Com licença, señorita. Poderia fazer a gentileza de nos acompanhar de volta à delegacia? Gostaríamos de lhe fazer algumas perguntas.


Capítulo 28


Ricardo Mellado encontrava-se a uma curta distância da caverna na montanha quando avistou subitamente uma enorme loba cinzenta encaminhando-se para a entrada. Ficou paralisado por um único instante, depois saiu correndo, como nunca correra em toda a sua vida. Disparou para a entrada da caverna.

- Irmã!

Na semi-escuridão, divisou a forma enorme e cinzenta saltar em cima de Graciela. Instintivamente, pegou a pistola e atirou. A loba saltou um uivo de dor e virou-se para Ricardo.

Ele sentiu as presas do animal ferido lhe rasgando as roupas, sentiu seu bafo fético. A loba era mais forte do que esperava, pesada e musculosa. Ricardo tentou se desenvencilhar, mas era impossível.

Sentiu que começava a perder os sentidos. Percebeu vagamente que Graciela se aproximava e gritou:

- Fuja!

Viu então a mão de Graciela levantar por cima de sua cabeça. No momento em que começava a descer, percebeu que segurava uma pedra enorme e pensou: "Ela vai me matar."

Um instante depois a pedra passou por ele e esmagou o crânio da loba. Houve um último e selvagem estertor, depois o animal ficou imóvel no chão. Ricardo encontrava-se todo encolhido, lutando para respirar.

Graciela ajoelhou-se ao seu lado.

- Você está bem? - Sua voz tremia de preocupação.

Ele conseguiu balançar a cabeça. Ouviu um som de lamúria por trás e virou-se para deparar com os filhotes encolhidos num canto. Continuou deitado por mais algum tempo, para recuperar as forças. Finalmente se levantou, com alguma dificuldade.

Saíram cambaleando para o ar puro da montanha, abalados.

Ricardo parou, respirou fundo, enchendo os pulmões, até a cabeça desanuviar. O choque físico e emocional do contato próximo com a morte exercera um efeito profundo sobre os dois.

- Vamos sair logo daqui. Talvez já estejam à nossa procura.

Graciela estremeceu à lembrança do perigo que ainda corriam.

Os dois seguiram a trilha íngreme na montanha durante uma hora. Chegaram a um pequeno córrego, e Ricardo disse:

- Vamos para aqui.

Sem ataduras e anti-sépticos, limparam os arranhões da melhor forma possível, lavando com a água límpida e fria. O braço de Ricardo estava tão rígido que sentia dificuldades para movê-lo. Para sua surpresa, Graciela disse:

- Deixe que eu cuido disso tudo.

Ficou ainda mais surpreso pela gentileza com que ela lavou os ferimentos. De repente, sem aviso, Graciela começou a tremer violentamente, no efeito posterior do choque.

- Está tudo bem - murmurou Ricardo. - Já passou.

Ela não conseguia parar de tremer. Ricardo abraçou-a e disse suavemente:

- Calma, calma… A loba está morta. Não há mais nada a temer.

Apertava-a e podia sentir as coxas se comprimindo contra seu corpo, os lábios macios se encontraram com os seus, Graciela abraçou-o também, sussurrando coisas que Ricardo não pôde compreender.

Era com se sempre tivesse conhecido Graciela. E, no entanto, nada sabia a seu respeito. "Mas ela é um milagre de Deus", pensou Ricardo.

Graciela também pensava em Deus. "Obrigada, Deus, por esta alegria. Obrigada por finalmente me deixar sentir o que é o amor." Experimentava emoções para as quais não tinha palavras, além de qualquer coisa que jamais imaginava.

Ricardo observava-a, e sua beleza ainda o deslumbrava. "Ela me pertence agora", pensou. "Não precisa voltar para um convento. Casaremos e teremos lindos filhos… filhos saudáveis."

- Eu amo você - murmurou ele. - Nunca a deixarei partir, Graciela.

- Ricardo…

- Quero casar com você, querida. Quer se casar comigo?

- Quero… quero, sim! - respondeu Graciela, sem pensar.

E ela se viu outra vez em seus braços e pensou: "Era isso o que eu queria e pensava que nunca teria."

- Viveremos por algum tempo na França, onde estaremos seguros. Esta luta acabará em breve, e voltaremos à Espanha - dizia Ricardo.

Graciela sabia que iria para qualquer lugar com aquele homem, e se houvesse perigo, haveria de partilhá-lo ao seu lado. Conversaram sobre muitas coisas. Ricardo contou como se envolvera com Jaime Miró, do noivado desfeito e da insatisfação do pai. Mas, depois, quando esperou que Graciela falasse de seu passado, ela se manteve em silêncio.

Graciela fitou-o e pensou: "Não posso contar. Ele vai me odiar."

- Abrace-me! - suplicou ela.

Dormiram e acordaram ao amanhecer para contemplar o sol escalar o topo da montanha, banhando as encostas com um suave clarão vermelho.

- Estaremos mais seguros escondidos por aqui hoje - comentou Ricardo. - Começaremos a viajar assim que escurecer.

Comeram os alimentos dados pelos ciganos e planejaram o futuro.

- Há oportunidades maravilhosas aqui na Espanha - falou Ricardo. - Ou haverá quando tivermos paz. Tenho muitas idéias. Abriremos nosso próprio negócio. Compraremos uma bonita casa e criaremos lindos filhos.

- E lindas filhas.

- E lindas filhas. - Ele sorriu. - Nunca pensei que pudesse me sentir tão feliz.

- Nem eu, Ricardo.

- Estaremos em Logroño dentro de dois dias e nos encontraremos com os outros. - Segurou-lhe a mão. - E contaremos que você não voltará ao convento.

- Não sei se vão compreender - riu Graciela. - Mas não me importa. Deus compreende. Eu adorava a vida no convento, mas… - Inclinou-se e beijou-o.

- Preciso compensá-la por muita coisa.

Ela ficou perplexa.

- Não estou entendendo.

- Todos os anos em que você esteve no convento, excluída do mundo. Diga-me uma coisa, querida… incomoda-a ter perdido tantos anos?

Como podia fazê-lo entender?

- Ricardo… não perdi coisa alguma. Acha mesmo que perdi tanta coisa?

Ele pensou a esse respeito, sem saber por onde começar.

Concluiu que coisas que julgava de maior importância não teriam o menor significado para as freiras em seu isolamento. Guerras, como a guerra árabe-israelita? Assassinatos de líderes políticos, como o do presidente americano Jonh Kennedy e seu irmão, Robert Kennedy? E de Martin Luther King, Jr., o grande líder do movimento da não-violência pela igualdade negra? O Muro de Berlim? Fomes? Inundações? Terremotos? Greves e manifestações de protestos contra a desumanidade do homem com seu semelhante?

Afinal, quão profundamente qualquer dessas coisas afetariam a vida pessoal de Graciela? Ou as vidas pessoais da maioria das pessoas do mundo?

- De certa forma, você não perdeu muita coisa. Mas, por outro lado, perdeu. Algo importante tem acontecido. Vida. Enquanto se manteve apartada durante todos esses anos, crianças nasceram e cresceram, namorados casaram, pessoas sofreram e foram felizes, outras morreram e todos nós aqui fora fomos uma parte do ato de viver.

- E você acha que eu nunca fui? - As palavras saíram espontâneas, antes que Graciela pudesse impedi-las. - Já fui parte dessa vida de que está falando, e era como viver no inferno. Minha mãe era uma prostituta, e todas as noites eu tinha um tio diferente. Aos 14 anos, entreguei meu corpo a um homem, porque me senti atraída por ele e senti ciúmes de minha mãe e do que ela fazia.

As palavras saíram agora numa torrente impetuosa.

- Eu também me tornaria uma prostituta se ficasse ali, para ser parte dessa vida que você considera tão preciosa. Não, não creio que eu tenha fugido de alguma coisa. Corri para alguma coisa. Encontrei um mundo seguro, que é sereno e bom.

Ricardo fitou-a horrorizado.

- Eu… eu sinto muito. Não tive a intenção…

Graciela soluçava agora, e ele abraçou-a.

- Calma… Está tudo bem. Já acabou. Você era uma criança. Eu a amo.

Foi como se Ricardo tivesse lhe concedido a absolvição. Falara sobre coisas horríveis que fizera no passado e ainda assim ele a perdoava. E… maravilha das maravilhas… ainda a amava.

Ele abraçou-a com ternura.

- Há um poema de Frederico Garcia Lorca:


A noite não deseja vir,

a fim de que você não possa vir

e eu não possa ir…


Mas você virá,

com sua língua queimada pela chuva salgada.


O dia não deseja vir,

a fim de que você não possa vir

e eu não possa ir…


Mas você virá

através dos turvos sumidouros da escuridão.

Nem a noite nem o dia desejam vir,

A fim de que eu possa morrer por você

e por mim.


Subitamente, Graciela pensou nos soldados que os perseguiam, e imaginou se ela e seu amado Ricardo sobreviveriam por tempo para terem um futuro juntos.


Capítulo 29


Faltava um elo, uma pista para o passado. Alan Tucker estava determinado a encontrá-lo. Não havia qualquer referência no jornal de uma criança abandonada, mas devia ser muito fácil descobrir a data em que fora levada para o orfanato. Se a data coincidisse com o desastre do avião, Ellen Scott teria de oferecer algumas explicações bem interessantes.

"Ela não pode ter sido tão estúpida assim", pensou Alan Tucker. "Assumir o risco de simular que a herdeira Scott morrera e deixá-la na porta de uma casa de fazenda. Perigoso. Muito perigoso. Por outro lado, a recompensa era tentadora: a Scott Industries. Isso mesmo, ela pode muito bem ter dado o golpe. Se é um segredo que enterrou, continua bem vivo e vai lhe custar caro."

Tucker sabia que precisava ser cauteloso. Não tinha ilusões sobre a pessoa com quem lidava. Estava se confrontando com o poder implacável. Sabia que precisava dispor de todas as provas antes de fazer seu movimento. Sua primeira providência foi outra visita ao padre Berrendo.

- Padre… eu gostaria de conversar com o camponês e a esposa em cuja casa Patricia… Megan foi abandonada.

O velho sacerdote sorriu.

- Espero que sua conversa com eles não ocorra por muito tempo.

Tucker ficou surpreso.

- Está querendo dizer…

- Eles morreram há muito tempo.

"Droga!" Mas devia haver outros caminhos para explorar.

- Não disse que a criança foi levada para o hospital com pneumonia?

- Isso mesmo.

"Haveria registros ali."

- Que hospital era?

- Foi destruído por incêndio em 1961. Construíram outro em seu lugar. - Ele percebeu a expressão consternada de Tucker. - Deve lembrar-se, señor, que a informação que procura já tem 28 anos. Muitas coisas mudaram.

"Não vai me deter", pensou Tucker. "Não quando estou tão perto. Deve haver um arquivo sobre ela em algum lugar."

Ainda lhe restava um lugar para investigar: o orfanato.


Tucker fazia agora relatórios diários para Ellen Scott.

- Mantenha-me informada de cada acontecimento. Quero ser avisada no momento em que a garota for encontrada.

E Alan Tucker especulava sobre a urgência em sua voz.

"Ela parece estar muito presa, por causa de uma coisa que aconteceu há tantos anos. Por quê? Mas isso pode esperar. Primeiro, preciso obter a prova que procuro."

Alan Tucker foi visitar o orfanato naquela manhã. Correu os olhos pela desolada sala comunitária, onde algumas crianças brincavam, fazendo barulho e falando sem parar, e pensou:

"Então este é o lugar em que a herdeira da dinastia Scott foi criada, enquanto aquela sacana em Nova York ficava com todo o dinheiro e poder. Pois ela agora vai partilhar um pouco comigo. Isso mesmo, formaremos uma grande dupla, Ellen Scott e eu."

Uma moça aproximou-se e perguntou:

- Em que posso ajudá-lo, señor?

Ele sorriu. "Pode me ajudar a ganhar um bilhão de dólares."

- Eu gostaria de falar com a pessoa encarregada.

- É a senhora Angeles.

- Ela está?

- Sí, señor. Eu o levarei à sua sala.

Ele seguiu a mulher pelo corredor principal até uma pequena sala nos fundos do prédio.

- Entre, por favor.

Ele entrou no escritório. A mulher sentada à mesa estava na casa dos oitenta. Outrora fora grande, mas o corpo encolhera, e por isso dava a impressão de que a armação pertencia a outra pessoa. Os cabelos eram grisalhos e ralos, mas os olhos se mantinham brilhantes e claros.

- Bom dia, señor. Em que posso ajudá-lo? Veio adotar uma de nossas lindas crianças? Temos muitas para escolher.

- Não, señora. Vim perguntar sobre uma criança que foi deixada aqui há muitos anos.

Mercedes Angeles franziu o cenho.

- Não estou entendendo.

- Uma menina foi trazida para cá… - fingiu consultar um pedaço de papel. -…em outubro de 1948.

- Isso foi a muito tempo. Ela não estaria mais aqui. Temos um regulamento, señor, que aos 15 anos…

- Sei que ela não está mais aqui, señora. O que desejo saber é a data exata em que foi trazida para cá.

- Lamento, señor, mas não poderei ajudá-lo.

Tucker sentiu um aperto no coração.

- Muitas crianças são trazidas para cá. A menos que saiba seu nome…

"Patricia Scott", ele pensou. Mas disse em voz alta:

- Megan… o nome dela é Megan.

O rosto de Mercedes Angeles iluminou-se.

- Ninguém poderia esquecer aquela criança. Era um diabrete, e todos a adoravam. Sabia que um dia…

Alan Tucker não tinha tempo para histórias. O instinto dizia-lhe que se encontrava agora na iminência de obter uma parte da fortuna Scott. E aquela velha tagarela era a chave para isso.

"Devo ser paciente com ela."

- Señora Angeles… não tenho muito tempo. Tem essa data em seus arquivos?

- Claro, señor. O Estado exige que mantenhamos registros muito apurados.

Tucker animou-se. "Eu deveria ter trazido uma máquina para fotografar o arquivo. Mas não importa. Tirarei uma fotocópia."

- Posso ver esse arquivo, señora?

- Acho que não. Nossos arquivos são confidenciais e…

- Claro que compreendo e respeito sua hesitação - disse Tucker, suavemente. - Falou que gostava da pequena Megan e tenho certeza que haveria de fazer tudo o que pudesse para ajudá-la. Pois é por isso que estou aqui. Tenho boas notícias para ela.

- E para isso precisa da data em que foi trazida para cá?

- Preciso ter a prova de que se trata da mesma pessoa que penso que é. O pai morreu e deixou-lhe uma pequena herança, quero fazer com que ela a receba.

A mulher acenou com a cabeça, sabiamente.

- Entendo.

Tucker tirou um maço de notas do bolso.

- E para mostrar meu agradecimento pelo incômodo que estou causando, gostaria de contribuir com cem dólares para o orfanato.

Ela olhou para o maço de notas, com uma expressão indecisa.

Tucker tirou outra nota.

- Duzentos.

A velha franziu o cenho.

- Está bem. Quinhentos.

Mercedes Angeles ficou radiante.

- É muita generosidade sua, señor. Vou buscar o arquivo.

"Consegui!", pensou ele, exultante. "Santo Deus, consegui! Ela roubou a Scott Industrie. E se não fosse por mim, teria escapado impune."

Quando a confrontasse com aquela prova, Ellen Scott não teria como negar. O desastre de avião ocorrera a 1 de outubro.

Megan passara dez dias no hospital. Portanto, chegara ao orfanato por volta de 11 de outubro. Mercedes Angeles voltou à sala, trazendo uma pasta de arquivo.

- Encontrei! - anunciou orgulhosa.

Alan Tucker teve de fazer um esforço para não arrancar a pasta de suas mãos.

- Posso dar uma olhada? - perguntou, polidamente.

- Claro. Foi muito generoso. - A velha tornou a franzir o cenho. - Espero que não mencione o fato a ninguém. Eu não deveria fazer isso.

- Será nosso segredo, señora.

Ela lhe entregou a pasta.

Tucker respirou fundo e abriu-a. Em cima estava escrito:

"Megan. Menina. Pais desconhecidos." E depois a data. Mas havia um equívoco.

- Diz aqui que Megan foi trazida para o orfanato a 14 de junho de 1948.

- Sí, señor.

- Mas é impossível! - Ele estava quase gritando. O desastre de avião aconteceu a 1 de outubro, quatro meses depois.

Havia uma expressão aturdida no rosto de Mercedes.

- Impossível, señor? Não estou entendendo.

- Quem… quem cuida desses registros?

- Eu mesma. Quando uma criança é deixada aqui, anoto a data e todas as informações que posso obter…

O sonho de Tucker desmoronava-se.

- Não poderia ter cometido algum erro? Sobre a data… não poderia ser 10 ou 11 de outubro?

Mercedes Angeles protestou indignada:

- Señor, sei muito bem a diferença entre 14 de junho e 11 de outubro.

Estava acabado. Ele construíra um sonho sobre uma base muito frágil. Então Patrícia Scott morrera de fato no desastre. Era uma coincidência que Ellen Scott estivesse à procura de uma menina que nascera mais ou menos na mesma ocasião. Alan Tucker levantou-se pesadamente e murmurou:

- Obrigado, señora.

- De nada, señor. - Observou-o se retirar. Era um homem muito simpático. E generoso. Os quinhentos dólares comprariam coisas para o orfanato. E também o cheque de cem mil dólares enviado pela gentil dama que telefonara de Nova York. "Onze de outubro foi sem dúvida um dia de sorte para nosso orfanato. Obrigada, Senhor."


Alan Tucker estava apresentando seu relatório diário.

- Ainda não há notícias concretas, Srª Scott. Há rumores de que eles estão indo para o norte. Até onde pude descobrir, a garota continua viva.

"O tom de voz mudou por completo", pensou Ellen Scott. "A ameaça desapareceu. O que significa que ele esteve no orfanato. Voltou a ser um empregado. Depois que ele encontrar Patrícia, isso também vai mudar."

- Volte a comunicar amanhã.

- Pois não, Srª Scott.


Capítulo 30


- Preserva-me, ó Deus, pois em Vós encontro refúgio. Sois meu Senhor; não há o bem apartado de Vós. Eu Vos amo, ó Senhor, minha força. O Senhor é minha rocha e minha fortaleza e meu libertador…

Irmã Megan levantou os olhos para deparar com Felix Carpio a observá-la, com uma expressão preocupada.

"Ela está mesmo assustada", pensou Felix.

Desde que haviam iniciado a jornada que ele percebera a profunda ansiedade de irmã Megan. "Nada mais natural. Ela passou só Deus sabe quantos anos trancafiada num convento, e agora é lançada subitamente num mundo estranho e aterrador. Teremos de ser muito gentis com a pobre coitada."

Irmã Megan estava realmente assustada. Rezava com afinco desde que deixara o convento.

"Perdoai-me, Senhor, pois adoro a emoção do que está acontecendo e sei que é uma iniquidade da minha parte."

Por mais que irmã Megan rezasse, no entanto, não podia deixar de pensar que era a aventura mais espantosa que já tivera. No orfanato planejara muitas vezes fugas ousadas, mas era apenas brincadeira de criança. Aquilo era real. Estava nas mãos de terroristas que eram perseguidos pela polícia e exército. Em vez de estar apavorada por isso, irmã Megan sentia-se estranhamente exultada.

Depois de viajarem a noite inteira, pararam ao amanhecer.

Megan e Amparo Jiró ficaram de vigia, enquanto Jaime Miró e Felix Carpio debruçavam-se sobre um mapa.

- São seis quilômetros e meio para Medina del Campo - disse Jaime. - Vamos evitá-la. Há uma guarnição permanente do exército ali, seguiremos para nordeste, na direção de Val ladolid. Devemos chegar lá no início da tarde.

"Muito fácil", pensou irmã Megan.

Fora uma noite longa e extenuante, sem descanso, mas Megan sentia-se muito bem. Jaime estava deliberadamente exigindo o máximo do grupo, mas Megan compreendia por que ele fazia isso. Estava testando-a, à espera que sofresse um colapso. "Pois ele terá uma surpresa", pensou ela.

Na verdade, Jaime Miró estava intrigado com irmã Megan.

Seu comportamento não era exatamente o que ele esperava de uma freira. Encontrava-se a muitos quilômetros do convento, viajando por um território estranho, perseguida, mas mesmo assim parecia gostar da situação. "Que tipo de freira é ela?", especulou Jaime Miró.

Amparo Miró estava menos impressionada. "Terei o maior prazer de me livrar dela", pensava. Ficava sempre junto de Jaime, e deixava a freira caminhar ao lado de Felix.

Os campos eram desertos e belos, acariciados pela suave fragância da brisa de verão. Passaram por aldeias antigas, avistaram um castelo antigo, deserto, no topo da colina.

Amparo parecia a Megan como um animal selvagem… deslizando sem esforço pelas colinas e vales, dando a impressão de que jamais se cansava.

Quando, horas depois, Val ladolid finalmente surgiu ao longe, Jaime parou e virou-se para Felix.

- Está tudo acertado?

- Está.

Megan especulou sobre o que teria sido acertado, e não demorou a descobrir.

- Tomás tem instruções para fazer contato conosco na praça de touros.

- A que horas o banco fecha?

- Cinco. Haverá tempo suficiente. - Jaime acenou com a cabeça. - E hoje deve haver muito dinheiro da folha de pagamento.

Santo Deus, eles vão assaltar um banco!, pensou Megan.

- E o carro? - perguntou Amparo.

- Isso não é problema - garantiu Jaime.

Eles vão também roubar um carro, pensou Megan. Era mais aventura que ela desejava. Deus não vai gostar disso.

Quando o grupo chegou nos arredores de Val ladolid, Jaime advertiu:

- Fiquem no meio da multidão. Hoje é dia de tourada, e haverá milhares de pessoas nas ruas. Não vamos nos separar.

Jaime Miró estava certo sobre a multidão. Megan nunca vira tanta gente. As ruas estavam apinhadas de pedestres, automóveis e motocicletes, pois a tourada atraía não apenas turistas, mas também moradores das cidades próximas. Até as crianças nas ruas brincavam à tourada.

Megan sentia-se fascinada pela multidão, o barulho e confusão ao seu redor. Observava os rostos das pessoas que passavam e especulava como seriam suas vidas. Muito em breve voltarei ao convento, onde nunca mais terei permissão de olhar para o rosto de ninguém. Devo aproveitar ao máximo, enquanto posso.

As calçadas achavam-se repletas de vendedores ambulantes, oferecendo bijuterias, crucifixos e medalhas religiosas, por toda a parte havia o cheiro penetrante a fritos. Megan percebeu de repente que sentia muita fome.

- Jaime, estamos todos com fome. Vamos experimentar alguns desses bolinhos fritos - sugeriu Felix.

Felix comprou quatro bolinhos e deu um a Megan.

- Experimente, irmã. Vai gostar.

Estava delicioso. Por tantos anos, a comida não devia ser desfrutada, mas apenas sustentar o corpo para a glória do Senhor.

Isto é para mim, pensou Megan, irreverente.

- É por aqui - indicou Jaime.

Eles seguiram a multidão, passando pelo parque no centro da cidade, até a Plaza Poinente, que levava à plaza de toros. O interior era uma enorme estrutura de adobe, da altura de três andares. Havia quatro bilheteiras na entrada. As placas na esquerda diziam SOL e na direita SOMBRA. Havia centenas de pessoas paradas nas filas, à espera para comprar os ingressos.

- Esperem aqui - ordenou Jaime.

Encaminhou-se para o lugar em que alguns cambistas vendiam ingressos. Megan virou-se para Felix.

- Vamos assistir a uma tourada?

- Isso mesmo, irmã, mas não se preocupe. Vai descobrir que é emocionante.

Preocupar-me?, Megan estava excitada com a perspectiva. Uma das suas fantasias no orfanato fora a de que o pai havia sido um grande toureiro. Megan lera todos os livros sobre tourada que conseguira encontrar.

- As melhores touradas são realizadas em Madrid ou Barcelona - explicou Felix. - A tourada aqui será com novilleros, em vez de profissionais. São amadores. Ainda não receberam alternativa. Megan sabia que alternativa era o prêmio conferido apenas aos grandes matadores. - Os que veremos hoje lutam em trajes alugados, contra touros com perigosos chifres limados, que os profissionais se recusam a enfrentar.

- Por que fazem eles isso?

Felix encolheu os ombros.

- Hambre hace más daño que las cuernas. A fome é mais dolorosa que as chifradas.

Jaime voltou com quatro ingressos.

- Tudo acertado. Vamos entrar.

Megan sentia um excitamento crescente.

Ao aproximarem-se da entrada, passaram por um cartaz colocado na parede. Megan parou e olhou.

- Vejam!

Havia um retrato de Jaime Miró e, embaixo:


PROCURADO POR HOMICÍDIO


JAIME MIRÓ


500.000 PESETAS DE RECOMPENSA


POR SUA CAPTURA, VIVO OU MORTO.


E, subitamente, isso fez com que Megan se lembrasse com quem viajava, o terrorista que tinha sua vida nas mãos. Jaime estudava a fotografia. Atrevidamente, tirou o chapéu e os óculos escuros e encarou seu retrato.

- Até que é parecido. - Arrancou o cartaz da parede, dobrou-o e guardou-o no bolso.

- De que adianta? - falou Amparo. - Eles devem ter espalhado centenas de cartazes.

Jaime sorriu.

- Este em particular vai nos proporcionar uma fortuna, querida.

Ele colocou de novo o chapéu e os óculos.

Um estranho comentário, pensou Megan. Não podia deixar de admirar a tranquilidade de Jaime. Havia um ar de sólida competência em Jaime Miró que ela achava tranquilizador. Os soldados nunca o apanharão, pensou.

- Vamos entrar.

Haviam 12 espaçosas entradas para o estádio. As portas vermelhas de ferro estavam abertas, todas numeradas. Lá dentro, puestos vendiam Coca-Cola e cerveja, ao lado de pequenos banheiros. Cada seção e cada assento nas arquibancadas eram numerados. As fileiras de bancos de pedra efetuavam um círculo completo, e no meio ficava a enorme arena, coberta de areia. Havia cartazes comerciais por toda parte: BANCO CENTRAL… BOUTIQUE CALZADOS… SCHWEPPES… RADIO POPULAR…

Jaime comprara ingressos para o lado da sombra e, ao sentarem-se nos bancos de pedra, Megan olhou ao redor, admirada. Não era absolutamente como ela imaginara. Quando pequena, vira românticas fotografias coloridas da praça de touros em Madrid, imensa e ornamentada. Aquela arena era improvisada. Os espectadores lotavam rapidamente as arquibancadas.

Soou um clarim. A tourada começou.

Megan inclinou-se para a frente, os olhos arregalados. Um enorme touro entrou na arena e um matador saiu de trás de uma pequena barreira de madeira ao lado, e começou a provocar o animal.

- Os picadores virão em seguida - comentou Megan.

Jaime Miró fitou-a, surpreso. Estava preocupado com a possibilidade da tourada deixá-la angustiada, o que atrairia as atenções para o grupo. Em vez disso, porém, ela parecia estar se divertindo. Estranho.

Um picador aproximou-se do touro, montado num cavalo coberto por uma grossa manta. O touro baixou a cabeça e atacou o cavalo.

No momento em que cravou os chifres na manta, o picador enfiou uma bandarilha de dois metros e meio no dorso do touro. Megan observava, fascinada.

- Ele está fazendo isso para enfraquecer os músculos no pescoço do touro - explicou, recordando os livros tão amados que lera há tantos anos.

Felix Carpio piscou, surpreso.

- É isso mesmo, irmã.

Megan continuava a observar, enquanto as bandarilhas coloridas eram cravadas nas espáduas do touro. Agora era a vez do matador. Ele avançou pela arena, segurando no lado uma capa vermelha, com uma espada oculta. O touro virou-se e desfechou o ataque.

Megan estava mais excitada do que nunca.

- Ele fará os pases agora - comentou ela. - Primeiro o pase verónica, depois o meia-verónica e por último o rebolera.

Jaime não podia conter a curiosidade por mais tempo.

- Irmã… onde aprendeu tudo isso?

Sem pensar, Megan respondeu:

- Meu pai era um toureiro… Olhem!

A ação era tão rápida, Megan mal conseguia acompanhá-la.

O touro enfurecido continuava a atacar o matador. A cada vez que se aproximava, o matador desviava a capa vermelha para o lado e o touro a seguia.

Megan ficou preocupada.

- O que acontece se o toureiro for ferido?

Jaime encolheu os ombros.

- Numa cidade como esta, o barbeiro o levará para o estábulo e o costurará ali mesmo.

O touro tornou a atacar, e dessa vez o matador pulou da sua frente. O público vaiou.

Felix Carpio desculpou-se:

- Lamento que não seja uma luta melhor, irmã. Deveria assistir às grandes. Já vi Manolete, El Cordobés e Ordóñez. Eles transformam a tourada num espetáculo inesquecível.

- Li sobre eles - comentou Megan.

- Ouviu alguma vez a história maravilhosa sobre Manolete?

- Que história?

- Houve um tempo, segundo a história, em que Manolete era apenas um toureiro, nem melhor nem pior do que uma centena de outros. Estava noivo de uma linda moça, mas um dia um touro chifrou-o na virilha, e o médico que cuidou de Manolete explicou que ele ficaria estéril. Claro que Manolete amava tanto a noiva que não lhe contou nada, com medo de que ela não quisesse mais casar. Poucos meses depois do casamento, ela anunciou orgulhosa que estava grávida. Claro que Manolete sabia que não era seu filho e abandonou-a. A moça desolada cometeu suicídio. Manolete reagiu como um louco. Não tinha mais vontade de continuar a viver, por isso entrava na arena e fazia coisas que nenhum matador jamais fizera antes. Arriscava a vida constantemente à espera de ser morto; tornou-se assim o maior matador do mundo. Dois anos depois tornou a apaixonar-se e casou com a moça. Poucos meses depois do casamento, ela anunciou orgulhosa que estava grávida. E foi então que Manolete descobriu que o médico errara.

- Que coisa horrível… - murmurou Megan.

Jaime soltou uma risada.

- É uma história interessante, só não sei se tem algum fundo de verdade.

- Eu gostaria de pensar que sim - disse Felix.

Amparo escutava em silêncio, o rosto impassível. Observara o crescente interesse de Jaime pela freira com ressentimento. Era melhor a irmã tomar muito cuidado.

Vendedores ambulantes de avental subiam e desciam pelas passagens, anunciando suas mercadorias. Um deles aproximou-se da fileira em que Jaime e os outros se sentavam.

- Empanadas! - gritou. - Empanadas calientes!

Jaime levantou a mão.

- Aquí!

O vendedor jogou habilmente um pacote embrulhado nas mãos de Jaime. Ele entregou dez pesetas ao homem ao seu lado, para serem passadas adiante, até o vendedor. Megan observou Jaime colocar a empanada no colo e abriu com todo cuidado. Havia um pedaço de papel lá dentro. Ele leu-o e releu-o, Megan observou-o cerrar os dentes. Jaime guardou o papel no bolso e disse bruscamente:

- Vamos embora. Um de cada vez. - Virou-se para Amparo. - Você primeiro. O encontro será no portão.

Sem dizer nada, Amparo levantou-se e seguiu para o corredor.

Jaime acenou a cabeça para Felix, também se levantou e seguiu Amparo.

- O que está acontecendo? - perguntou Megan. - Algum problema?

- Estamos de partida para Logroño. - Ele levantou-se. - Fique olhando para mim, irmã. Se eu não for detido, siga para o portão.

Megan observou, tensa, enquanto Jaime saía para a passagem e se encaminhava para o portão. Ninguém parecia lhe prestar atenção. Assim que Jaime desapareceu, Megan levantou-se e começou a se retirar. Houve um clamor da multidão, e ela virou a cabeça para olhar a arena. Um jovem matador estava caído no chão, sendo escornado pelo touro selvagem. O sangue espalhou-se pela areia.

Megan fechou os olhos e ofereceu uma prece silenciosa: Oh, abençoado Jesus, tenha misericórdia desse homem. Ele não morrerá, haverá de viver. O Senhor puniu-o severamente, mas não o entregou à morte. Amém. Ela abriu os olhos, virou-se e afastou-se apressada.

Jaime, Amparo e Felix esperavam-na na entrada.

- Vamos logo - disse Jaime.

Começaram a andar.

- Qual é o problema? - perguntou Felix a Jaime.

- Os soldados fuzilaram Tomás - respondeu Jaime, muito tenso. - Ele está morto. E a polícia está com Rubio. Ele foi esfaqueado numa briga de bar.

Megan fez o sinal-da-cruz.

- O que aconteceu com irmã Teresa e irmã Lucia? - perguntou, ansiosa.

- Não sei sobre a irmã Teresa. Irmã Lucia também foi detida pela polícia. - Jaime virou-se para os outros. - Temos de nos apressar. - Consultou o relógio. - O banco deve estar cheio.

- Jaime, talvez seja melhor esperar - sugeriu Felix. - Será perigoso apenas nós dois assaltarmos o banco.

Megan escutou o que ele estava dizendo e pensou: Isso não vai detê-lo. E acertou.

Os três se encaminharam para o vasto estacionamento por trás da praça de touros. Quando Megan alcançou-os, Felix examinava um sedã azul.

- Este deve servir - comentou ele. Felix mexeu na fechadura por um momento, abriu a porta e enfiou a cabeça dentro. Um momento depois o motor pegou. - Entrem.

Megan ficou parada, indecisa.

- Estão roubando um carro?

- Pelo amor de Deus! - sibilou Amparo. - Pare de se comportar como uma freira e entre logo!

Os dois homens sentaram-se no banco da frente, com Jaime ao volante. Amparo entrou atrás.

- Você vem ou não? - indagou Jaime.

Megan respirou fundo e entrou no carro, ao lado de Amparo.

Partiram. Ela fechou os olhos. Querido Senhor, para onde estás me levando?

- Se isso a faz sentir-se melhor, irmã - disse Jaime -, não estamos roubando este carro. Apenas o confiscamos, em nome do exército basco.

Megan começou a dizer algumas palavras, mas se conteve. Nada que argumentasse iria fazê-lo mudar de idéia. Ficou em silêncio, enquanto Jaime guiava para o centro da cidade.

Ele vai assaltar um banco, e aos olhos de Deus sou igualmente culpada, pensou Megan. Fez o sinal-da-cruz e em silêncio começou a rezar.


O Banco de Bilbao fica no andar térreo de um prédio de apartamentos de nove andares, na Calle de Cervantes, junto da Plaza de Circular.

Quando o carro parou na frente do prédio, Jaime disse a Felix:

- Mantenha o motor ligado. Se surgir algum problema, saia daqui e vá se encontrar com os outros em Logroño.

Felix ficou aturdido.

- Mas do que está falando? Não pretende entrar aí sozinho, não é mesmo? Não pode. O risco é grande demais, Jaime. Seria muito perigoso.

Jaime deu um tapinha em seu ombro.

- Se saem machucados, então saem machucados - disse ele com um sorriso estampado.

Jaime saiu do carro e os outros observavam-no encaminhar-se para uma loja de artigos de couro várias portas além do banco.

Poucos minutos depois ele reapareceu com uma pasta de executivo.

Acenou com a cabeça para o grupo no carro e entrou no banco.

Megan mal conseguia respirar. Começou a rezar.

Oração é um chamado.

Oração é uma escuta

Oração é uma morada

Oração é uma presença

Oração é uma lamparina acesa com Jesus.

Estou calma e cheia de paz.


Ela não estava calma nem cheia de paz.


Jaime Miró cruzou as duas portas que levavam ao saguão de mármore do banco. Logo depois da entrada, ele notou uma câmara de segurança, no alto da parede. Lançou-lhe um olhar casual e depois examinou o local. Por trás dos balcões, uma escada levava ao segundo andar, onde funcionários trabalhavam em escrivaninhas.

Estava quase na hora de fechar, e o banco encontrava-se repleto de clientes ansiosos em sair logo dali. Havia filas na frente dos três caixas, e Jaime constatou que diversos clientes carregavam pacotes. Entrou numa fila e esperou pacientemente que chegasse sua vez. Ao se postar diante do guichê, sorriu para o caixa e disse:

- Buenas tardes.

- Buenas tardes, senhor. O que deseja?

Jaime inclinou-se para o guichê, tirou do bolso o cartaz dobrado. Entregou ao caixa.

- Quer dar uma olhada nisso, por favor?

O caixa sorriu.

- Pois não, senhor.

Ele desdobrou o cartaz, viu o que era, seus olhos se arregalaram. Fitou Jaime, o pânico estampado nos olhos.

- Não acha que está bem parecido? - murmurou Jaime. - Como está dito aí, já matei muitas pessoas. Portanto, mais uma não fará a menor diferença para mim. Estou sendo claro?

- Es… está sim, senhor. Tenho família. Eu lhe suplico…

- Respeito famílias, e por isso vou lhe dizer o que quero que faça para poupar o pai de seus filhos. - Jaime empurrou a pasta de executivo para o caixa. - Quero que encha isso para mim. E depressa, discretamente. Se acredita sinceramente que o dinheiro é mais importante do que sua vida, então vá em frente, acione o alarme.

O caixa sacudiu a cabeça.

- Não, não, não… - Ele começou a tirar dinheiro da gaveta e meteu na pasta. As mãos tremiam. Quando a pasta ficou cheia, o caixa balbuciou:

- Aí está, senhor. Prometo não acionar o alarme.

- É uma atitude muito sensata - disse Jaime. - E vou lhe explicar por quê, amigo. - Virou-se e apontou para uma mulher de meia-idade, quase no final da fila, segurando um embrulho de papel pardo. - Está vendo aquela mulher? É do nosso grupo. Há uma bomba naquele pacote. Se o alarme soar, ela acionará a bomba no mesmo instante.

O caixa ficou ainda mais pálido.

- Não, por favor!

- É melhor esperar dez minutos, depois que ela for embora, antes de fazer qualquer coisa - advertiu Jaime.

- Pela vida dos meus filhos - sussurrou o caixa.

- Buenas tardes.

Jaime pegou a pasta de executivo e encaminhou-se para a porta. Sentiu que os olhos do caixa o acompanhavam. Parou ao lado da mulher com o pacote e disse:

- Devo cumprimentá-la. Está usando um vestido muito bonito.

A mulher corou.

- Oh… obrigada, senhor… graças.

- De nada.

Jaime virou-se e acenou com a cabeça para o caixa, depois saiu do banco. Levaria 15 minutos até a mulher terminar o que tinha de fazer e ir embora. A essa altura, ele e os outros já estariam longe.

No momento em que Jaime saiu do banco e aproximou-se do carro, Megan quase desfaleceu de alívio.

Felix Carpio sorriu.

- O filho da puta conseguiu escapar. - Ele olhou para Megan. - Desculpe, irmã.

Megan nunca se sentira tão contente por ver alguém em toda a sua vida. Ele conseguiu, pensou. E sozinho. Espere só até eu contar às irmãs o que aconteceu. E depois se lembrou. Nunca poderia contar a ninguém. Quando voltasse ao convento, haveria apenas o silêncio, pelo resto da sua vida. E experimentou um estranho sentimento.

- Vamos embora, amigo - disse Jaime a Felix. - Pode deixar que eu dirijo. - Jogou a pasta no banco traseiro.

- Correu tudo bem? - perguntou Amparo.

Jaime riu.

- Não poderia ter corrido melhor. Devo lembrar-me de agradecer ao coronel Acoca por seu cartão de visitas.

O carro desceu a rua. Na primeira esquina, Cale de Tudela, Jaime virou à esquerda. Um guarda prostrou-se na frente do carro e levantou a mão, fazendo sinal para que parasse. Jaime pisou no freio. O coração de Megan começou a bater forte.

O guarda aproximou-se do carro. Jaime perguntou calmamente:

- Qual é o problema, senhor guarda?

- O problema, senhor, é que está guiando na contramão, numa rua de mão única. A menos que possa provar que é legalmente cego, está numa situação difícil. - Ele apontou para uma placa na esquina. - A placa está bem visível. Espera-se que os motoristas respeitem a sinalização. É para isso que são colocadas.

- Mil perdões - disse Jaime. - Meus amigos e eu estávamos numa discussão tão séria que nem percebi a placa.

O guarda apoiou-se na janela do motorista. Estudava Jaime, com uma expressão de perplexidade.

- Gostaria que me mostrasse seus documentos, por favor.

- Pois não. - Jaime estendeu a mão para o revólver que estava em baixo do paletó. Felix estava pronto para entrar em ação. Megan prendeu a respiração. Jaime fingiu vasculhar os bolsos. - Sei que estão em algum lugar.

Neste momento, do outro lado da praça, soou um grito alto.

O guarda virou-se. Um homem na esquina batia numa mulher, acertando-lhe com os punhos na cabeça e nos ombros.

- Socorro! - gritou a mulher. - Socorro! Ele está me matando!

O guarda hesitou apenas por um instante.

- Esperem aqui - ordenou.

O guarda correu na direção do homem e da mulher. Jaime engrenou o carro e pisou no acelerador. O carro disparou pela rua de mão única, dispersando os carros que vinham em sentido contrário, sob o barulho de buzinas furiosas. Chegaram à esquina, e Jaime fez a curva, seguindo para a ponte de saída da cidade, pela Avenida Sanchez de Arjona.

Megan olhou para Jaime e fez o sinal-da-cruz. Tinha dificuldade em respirar.

- Você… você mataria o guarda, se aquele homem não agredisse a mulher?

Jaime não se deu ao trabalho de responder.

- A mulher não estava sendo agredida, irmã - explicou Felix. - Os dois eram nossos. Não estamos sozinhos. Temos muitos amigos.

A expressão de Jaime era sombria.

- Teremos de nos livrar deste carro.

Estava deixando os arredores de Val ladolid. Jaime entrou na N620, a estrada para Burgos, no caminho para Logroño. Tomou cuidado para não ultrapassar o limite de velocidade.

- Deixaremos o carro logo após passarmos por Burgos - avisou.

Não posso acreditar que isso esteja acontecendo comigo, pensou Megan. Escapei do convento, estou fugindo do exército, viajando num carro roubado, com terroristas que acabam de assaltar um banco. Senhor, o que mais me reserva?


Capítulo 31


O coronel Ramón Acoca e meia dúzia de membros do GOE encontravam-se no meio de uma reunião de estratégia. Estudavam um grande mapa da região. O coronel disse:

- É evidente que Miró segue para o norte, a caminho do país basco.

- O que pode ser Burgos, Vitoria, Logroño, Pamplona ou San Sebastián.

San Sebastián, pensou Acoca. Mas preciso pegá-lo antes que chegue lá.

Podia ouvir a voz ao telefone: Seu tempo está se esgotando. Não podia se permitir ao fracasso.


Eles atravessavam as colinas ondulantes que anunciavam o acesso a Burgos. Jaime, ao volante, mantinha-se em silêncio.

Só depois de um longo tempo é que falou:

- Felix, quando chegarmos a San Sebastián quero tomar providências para tirar Rubio das mãos da polícia.

Felix balançou a cabeça.

- Será um prazer. Isso os levará à loucura.

- E o que me diz de irmã Lucia? - indagou Megan.

- O que tem ela?

- Não disse que havia sido capturada também?

- Acontece que sua irmã Lucia é uma criminosa procurada pela polícia por homicídio - respondeu Jaime, irónico.

A notícia abalou Megan. Lembrou como Lucia assumira o comando e persuadira-as a se esconderem nas colinas. Gostava de irmã Lucia. Ela disse, obstinada:

- Já que vai salvar Rubio, deveria salvar os dois.

Mas que diabo de freira é essa?, especulou Jaime.

Mas ela estava certa. Tirar Rubio e Lucia debaixo do nariz da polícia seria uma propaganda sensacional e daria manchetes.

Amparo mergulhara num silêncio mal-humorado.

Subitamente, ao longe, na estrada, surgiram três caminhões do exército repletos de soldados.

- É melhor sairmos desta estrada - decidiu Jaime.

No cruzamento seguinte ele pegou a rodovia e seguiu para o leste.

- Santo Dominga de La Calzada fica logo à frente. Há ali um velho castelo abandonado, onde poderemos passar a noite.

Já ao longe podiam avistar os contornos no alto da colina. Jaime pegou uma estrada secundária, evitando a cidade.

O castelo foi se tornando cada vez maior, à medida que se aproximavam. Havia um lago não muito longe dali.

Jaime parou o carro.

- Saiam todos, por favor.

Depois que todos saltaram. Jaime apontou o carro para o lago, pela encosta abaixo, pisou no acelerador, soltou o freio de mão e pulou pela porta. Ficaram observando o carro desaparecer na água.

Megan já ia perguntar como chegariam a Logroño, mas se conteve. Uma pergunta tola. Ele roubará outro carro, é claro.

O grupo virou-se para examinar o castelo abandonado. Um enorme muro de pedra cercava-o, e havia torres em ruínas em cada canto.

- Nos tempos antigos - disse Felix a Megan - os príncipes usavam esses castelos como prisões para seus inimigos.

“E Jaime é um inimigo do Estado, se for apanhado, não haverá prisão para ele, apenas a morte", pensou Megan. "E ele não teve medo." Recordou as palavras de Jaime:

- Tenho fé naquilo por que estou lutando. Tenho fé em meus homens e em minhas armas.

Subiram os degraus de pedra que levavam ao portão da frente, que era de ferro. Estava tão enferrujado que não conseguiram empurrá-lo e se espremeram pela abertura para um pátio calçado com pedra.

O interior do castelo pareceu enorme a Megan. Havia passagens estreitas e cômodos por toda a parte, e aberturas viradas para fora, pelas quais os defensores do castelo podiam repelir os atacantes.

Degraus de pedra levavam ao segundo andar, onde havia outro claustro, um pátio interno. Os degraus estreitavam-se ao subirem para o terceiro andar. O castelo estava deserto.

- Bem, pelo menos há muitos cômodos para se dormir aqui - comentou Jaime. - Felix e eu vamos procurar comida. Escolham seus quartos.

Os homens começaram a descer. Amparo virou-se para Megan.

- Vamos, irmã.

Elas desceram pelo corredor, e todos os cômodos pareciam iguais para Megan. Eram cubículos de pedra vazios, frios e austeros, alguns maiores do que outros. Amparo escolheu o maior.

- Jaime e eu dormiremos aqui. - Olhou para Megan e acrescentou, insiinuante: - Não gostaria de dormir com Felix?

Megan não comentou nada.

- Ou talvez prefira dormir com Jaime. - Amparo deu um passo na direção de Megan. - Não fique com idéias, irmã. Ele é um homem demais para você.

- Não precisa se preocupar. Não estou interessada. - Mesmo enquanto falava, Megan especulou se Jaime Miró seria mesmo homem demais para ela.

Quando Jaime e Felix voltaram ao castelo, uma hora depois, Jaime trazia dois coelhos, Felix carregava lenha e trancou a porta da frente. Megan observou os homens acenderem uma fogueira na enorme lareira.

Jaime limpou e assou os coelhos num espeto.

- Lamentamos não poder oferecer um autêntico banquete às damas - disse Felix -, mas comeremos bem em Logroño. Até lá… divirtam-se.

Depois que terminaram a frugal refeição, Jaime disse:

- Vamos dormir. Quero partir cedo pela manhã.

Amparo disse a Jaime:

- Venha, querido. Já escolhi nosso quarto.

- Bueno, Vamos.

Megan observou-os subirem, de mãos dadas.

Felix fitou-a.

- Já escolheu seu quarto, irmã?

- Já, sim, obrigada.

- Então vamos nos deitar.

Megan e Felix subiram a escada juntos.

- Boa noite - disse Megan.

Felix entregou-lhe um saco de dormir.

- Boa noite, irmã.


Megan queria interrogar Felix sobre Jaime, mas hesitou. Jaime podia pensar que ela queria bisbilhotar e por algum motivo inexplicável Megan queria que ele tivesse a melhor opinião a seu respeito. "Isso é mesmo muito estranho", pensou Megan. "Ele é um terrorista, um assassino, um assaltante de bancos e não sei o que mais, e me preocupo se ele pensa bem a meu respeito." Mesmo enquanto pensava nisso, Megan sabia que havia um outro aspecto.

"Ele é um combatente da liberdade. Assalta bancos para financiar sua causa. Arrisca a vida pelo que acredita. É um homem corajoso."

Ao passar pelos quartos deles, ela ouviu risos de Jaime e Amparo. Entrou no quarto pequeno em que dormiria, ajoelhou-se no chão frio de pedra.

- Santo Deus, perdoai-me por…

Perdoai-me pelo quê? O que fiz? Pela primeira vez na vida, Megan foi incapaz de rezar. Deus estaria escutando?

Entrou no saco de dormir que Felix lhe entregara, mas o sono estava tão distante quanto as estrelas frias que podia avistar pelas estreita janelas.

"O que estou fazendo aqui?", perguntou-se Megan. Os pensamentos voltaram ao convento… ao orfanato. "E antes do orfanato? Por que fui deixada lá? Não acredito realmente que meu pai tenha sido um grande guerreiro ou um toureiro. Mas não seria maravilhoso saber quem ele foi?"

Já estava quase amanhecendo quando Megan resvalou para o sono.


Na prisão, em Aranda de Duero, Lucia Carmine era uma celebridade.

- Você é peixe graúdo em nosso aquário - disse-lhe um guarda. - O governo italiano está enviando alguém para escoltá-la na viagem de volta. Eu gostaria de escoltá-la para minha casa, puta bonita. Qual foi a coisa terrível que você fez?

- Cortei os colhões de um homem por me chamar de puta bonita. Como está meu amigo?

- Vai sobreviver.

Lucia fez uma prece silenciosa de agradecimento. Correu os olhos pelas paredes de pedra de sua cinzenta cela lúgubre e pensou: "Como vou sair daqui?"


Capítulo 31


A notícia do assalto ao banco passou pelos canais competentes da polícia e apenas duas horas depois do acontecimento é que o tenente de polícia fez contato com o coronel Acoca.

Uma hora depois, Acoca chegava a Val ladolid, furioso com a demora.

- Por que não fui informado imediatamente?

- Lamento muito, coronel, mas pensamos que…

- Vocês o tinham nas mãos e deixaram que escapasse!

- Não foi nossa…

- Mande o caixa do banco entrar.

O caixa estava se sentindo muito importante.

- Foi em meu guichê que ele apareceu. Percebi logo que era um assassino, pela expressão em seus olhos. Ele…

- Não tem a menor dúvida de que o homem que o assaltou era Jaime Miró?

- Absolutamente nenhuma. Até me mostrou um cartaz com a cabeça dele a prêmio. Era…

- Ele entrou no banco sozinho?

- Entrou. Apontou para uma mulher na fila e disse que pertencia à quadrilha, mas reconheci-a logo que Miró saiu. É uma secretária cliente nossa…

O coronel Acoca interrompeu-o, impaciente:

- Quando Miró partiu, viu a direção que ele seguiu?

- Saiu pela porta da frente.

A entrevista com o guarda de trânsito não foi mais proveitosa.

- Havia quatro pessoas no carro, coronel. Jaime Miró e outro homem, e duas mulheres no banco traseiro.

- Em que direção eles seguiram?

O guarda hesitou.

- Eles podem ter seguido por qualquer direção, senhor, depois que saíram daquela rua de mão única. - Seu rosto se iluminou. - Mas posso descrever o carro.

O coronel Acoca sacudiu a cabeça, irritado.

- Não precisa se incomodar.


Ela sonhava e podia ouvir as vozes de uma multidão, as pessoas chegavam para queimá-la na fogueira por assaltar um banco. Não foi por mim. Foi pela causa. As vozes se tornaram mais altas.

Megan abriu os olhos, olhando para as estranhas paredes do castelo. O som era real. Vinha de fora.

Megan levantou-se e correu para espreitar pela janela. Lá embaixo, na frente do castelo, havia um acampamento de soldados. Megan foi dominada por um pânico súbito. Eles nos apanharam. Preciso encontrar Jaime.

Correu para o quarto onde Jaime e Amparo dormiam e olhou.

Estava vazio. Desceu a escada correndo para o salão no andar principal. Jaime e Amparo encontravam-se parados perto da porta da frente, que estava trancada, aos sussurros. Felix correu para os dois.

- Verifiquei os fundos. Não há outra saída.

- E as janelas dos fundos?

- Muito pequenas. A única saída é pela porta da frente.

"Onde estão os soldados", pensou Megan. "Estamos encurralados."

- É muito azar nosso que eles tenham escolhido este lugar para acampar - disse Jaime.

- O que vamos fazer? - sussurrou Amparo. - Não há nada que possamos fazer. Temos de ficar aqui até eles partirem. Se…

E nesse instante soou uma batida forte na porta da frente. Uma voz autoritária gritou:

- Abram essa porta!

Jaime e Felix trocaram um olhar rápido e sem dizerem nada sacaram as armas. A voz tornou a gritar:

- Sabemos que há alguém aí dentro! Abram logo!

Jaime disse para Amparo e Megan:

- Saiam da frente.

"É inútil", pensou Megan. "Deve haver uma dúzia de soldados armados lá fora. Não temos a menor chance."

Antes que os outros pudessem detê-la, Megan encaminhou-se rapidamente para a porta da frente e abriu-a.

- Graças a Deus que vocês apareceram! - exclamou ela. - Preciso que me ajudem!


Capítulo 33


O oficial do exército olhou aturdido para Megan.

- Quem é você? O que está fazendo aqui? Sou o capitão Rodrigues e estou à procura…

- Chegou bem a tempo, capitão - Megan segurou-o pelo braço. - Meus dois filhos pequenos estão com tifo e preciso levá-los a um médico. Preciso que entre e me ajude.

- Tifo?

- Isso mesmo. - Megan puxava-o pelo braço. - É terrível. Estão ardendo em febre. Cobertos por pústulas, muito doentes. Chame seus homens e me ajude a levá-los para…

- Deve estar louca, señora! É uma doença altamente contagiosa!

- Não importa. Eles precisam de sua ajuda. Podem estar morrendo. - Ela continuava a puxá-lo.

- Largue-me!

- Não pode me deixar! O que vou fazer?

- Torne a entrar e fique aí até podermos avisar a polícia para mandarem uma ambulância ou um médico.

- Mas…

- É uma ordem, señora. Entre logo. - O capitão gritou: - Sargento, vamos sair daqui!

Megan fechou a porta, encostou-se nela, esgotada. Jaime fitou-a num espanto total.

- Por Deus, foi sensacional! Onde aprendeu a mentir assim?

Megan virou-se para ele e suspirou.

- Quando eu estava no orfanato, tínhamos de aprender a nos defender. Só espero que Deus me perdoe.

- Eu gostaria de ter visto a cara daquele capitão. - Jaime soltou uma risada. - Tifo! Santo Deus! - Ele viu a expressão de Megan. - Peço que me desculpe, irmã.

Lá fora, os soldados levantavam acampamento e partiam apressados. Depois que foram embora, Jaime disse:

- A polícia estará aqui em breve - disse Jaime ao perceber que tinham ido embora. - De qualquer forma, temos um encontro em Logroño.

Quinze minutos depois da partida dos soldados, Jaime anunciou:

- Acho que podemos ir embora agora. - Virou-se para Felix. - Veja o que consegue arrumar na cidade. De preferência um sedã.

Felix sorriu.

- Não há problema.

Meia hora depois eles estavam num velho sedã cinza, seguindo para o leste. Para surpresa de Megan, ela estava sentada ao lado de Jaime.

Felix e Amparo viajavam no banco traseiro. Jaime olhou para Megan, sorrindo.

- Tifo! - exclamou, soltando uma risada.

Megan sorriu.

- Ele parecia ansioso em escapar, não é mesmo?

- Esteve num orfanato, irmã?

- Estive.

- Onde?

- Em Ávila.

- Não parece espanhola.

- Já me disseram.

- Deve ter sido um inferno para você ficar no orfanato.

Megan ficou surpresa com a súbita preocupação.

- Poderia ter sido, mas não foi.

"Eu não deixaria que fosse", pensou ela.

- Tem alguma idéia de quem foram seus pais?

Megan recordou suas fantasias.

- Claro. Meu pai era um bravo inglês que guiava uma ambulância para os Legalistas na Guerra Civil espanhola. Minha mãe foi morta na luta, e me deixaram na porta de uma casa de fazenda. - Ela deu de ombros. - Ou meu pai foi um príncipe estrangeiro que teve um romance com uma camponesa e me abandonou para evitar um escândalo.

Jaime lançou-lhe um olhar, sem dizer nada.

- Eu… - Megan parou abruptamente. - Não sei quem foram meus pais.

Seguiram em silêncio por algum tempo.

- Por quantos anos esteve atrás dos muros do convento?

- Cerca de 15 anos.

Jaime ficou atônito.

- Meu Deus! - Ele apressou-se a acrescentar: - Perdoe, irmã. Mas é como falar com alguém de outro planeta. Não tem a menor idéia do que aconteceu no mundo durante os últimos 15 anos.

- Tenho certeza de que qualquer coisa que mudou foi apenas temporário. Tornará a mudar.

- Ainda quer voltar para um convento?

A pergunta apanhou Megan de surpresa.

- Claro.

- Por quê? - Jaime fez um amplo gesto. - Afinal… Há muita coisa que deve perder por trás dos muros. Aqui temos música e poesia. A Espanha deu ao mundo Cervantes e Picasso, Lorca, Pizarro, de Soto, Cortés. Este é um país mágico.

Havia uma surpreendente brandura naquele homem, um fogo suave. Inesperadamente, Jaime acrescentou:

- Desculpe ter querido abandoná-la antes, irmã. Não era pessoal. Tive as piores experiências com a sua Igreja.

- É difícil acreditar.

- Mas pode acreditar. - A voz de Jaime era amargurada. Em sua imaginação, podia ver os prédios, estátuas e ruas de Guernica explodindo numa chuva de morte. Ainda podia ouvir os estrondos das bombas, misturando-se aos gritos das vítimas desamparadas. O único santuário era a igreja. Os padres trancaram a igreja. Não os deixaram entrar. E a saraivada de balas que assassinara seu pai, mãe e irmãs. Não, não foram as balas, pensou Jaime. Foi a Igreja. - Sua Igreja apoiou Franco e permitiu que coisas indescritíveis fossem feitas com inocentes civis.

- Tenho certeza que a Igreja protestou - disse Megan.

- Isso não ocorreu. Só após as freiras estarem sendo estrupadas pelos falangistas, os padres assassinados e as igrejas incendiadas é que o papa finalmente rompeu com Franco. Mas isso não ressuscitou meu pai, mãe e irmãs.

A veemência em sua voz era assustadora.

- Lamento, mas isso aconteceu há muito tempo. A guerra já acabou.

- Não. Para nós, ainda não acabou. O governo não nos permite hastear a bandeira basca, celebrar nossos feriados nacionais ou falar a nossa própria língua. Não, irmã. Continuaremos a luta até conquistar a independência. Ainda sofremos opressão. Há meio milhão de bascos na Espanha e mais 150 mil na França. Queremos a independência… mas seu Deus está ocupado demais para nos ajudar.

Megan respondeu muito séria:

- Deus não pode tomar partido, pois Ele está em todos nós. Somos todos uma parte de Deus e quando tentamos destruí-Lo, estamos destruindo a nós mesmos.

Para surpresa de Megan, Jaime sorriu.

- Somos muito parecidos, você e eu, irmã.

- É mesmo?

- Podemos acreditar em coisas diferentes, mas acreditamos com fervor. A maioria das pessoas passam pela vida sem se importar profundamente com qualquer coisa. Você devota sua vida a Deus; eu devoto a vida à minha causa. Nós nos importamos.

Megan pensou: "Eu me importo bastante? E se me importo, por que estou gostando da companhia desse homem? Eu deveria estar pensando apenas em voltar para o convento." Havia uma força em Jaime Miró que era como ímã. Ele é como Manolete? Arriscando a vida, desafiando os maiores perigos, porque não tem nada a perder?

- O que eles farão se os soldados o capturarem? - perguntou Megan.

- Vão me executar. - Falou com tanta indiferença que por um momento Megan pensou ter entendido mal.

- Não tem medo?

- Claro que tenho. Todos temos medo. Nenhum de nós quer morrer, irmã. Encontraremos seu Deus muito em breve. Não queremos apressar o momento.

- Fez coisas horríveis?

- Isso depende do seu ponto de vista. A diferença entre um patriota e um rebelde depende de quem está no poder no momento. O governo nos chama de terroristas. Nós nos chamamos de guerreiros da liberdade. De acordo com Jean-Jacques Rousseau, liberdade é a capacidade de escolher os próprios grilhões. Eu quero essa liberdade. - Estudou-a por um instante. - Mas você não precisa se preocupar com essas coisas, não é mesmo? Depois de voltar ao convento, não estará mais interessada no mundo exterior.

Seria verdade? Tornar a sair para o mundo virara-lhe a vida do avesso. Renunciara à sua liberdade? Havia muita coisa que queria saber, tanto que precisava aprender. Sentia-se como um pintor com uma tela branca, pronta para começar a desenhar uma vida nova. Se eu voltar para um convento, pensou, estarei outra vez excluída da vida. E mesmo enquanto pensava, Megan ficou consternada pela palavra se. Quando eu voltar, ela se apressou em corrigir. Claro que voltarei. Não tenho nenhum outro lugar para ir.

Acamparam no bosque aquela noite.

- Estamos a cerca de cinco quilômetros de Logroño, mas só podemos nos encontrar com os outros daqui a dois dias. Será mais seguro para nós mantermo-nos em movimento até lá. Assim, amanhã iremos em direção a Vitoria. No dia seguinte iremos a Logroño, e apenas algumas horas depois, irmã, você estará no convento de Mendavia.

- Você ficará bem? - perguntou Megan.

- Está preocupada com minha alma, irmã, ou com meu corpo?

Megan ficou corada.

- Nada me acontecerá. Cruzarei a fronteira e passarei algum tempo na França.

- Rezarei por você - murmurou Megan.

- Obrigado - respondeu, solenemente. - Pensarei em você rezando por mim e isso me fará sentir mais seguro. E agora trate de dormir um pouco.

Ao virar-se para se deitar, Megan percebeu Amparo observando-a do outro lado da clareira. Havia uma expressão de ódio intenso no seu rosto.

"Ninguém vai tirar-me meu homem. Ninguém."


Capítulo 34


Na manhã seguinte, ainda cedo, eles chegaram aos arredores de Nanclares, uma pequena aldeia a oeste de Vitoria. Pararam num posto de gasolina com uma oficina ao lado, onde um mecânico trabalhava num carro.

- Buenos dias - disse o mecânico. - Qual é o problema?

- Se eu soubesse, consertaria pessoalmente e cobraria por isso - respondeu Jaime. - Este carro é tão inútil quanto uma mula. Gagueja como uma velha e não tem nenhuma força.

- Parece até minha mulher - sorriu o mecânico. - Pode ser o carburador, senhor.

Jaime encolheu os ombros.

- Não entendo nada de carros. Tudo o que sei é que tenho um encontro marcado muito importante em Madrid amanhã. Pode consertar até esta tarde?

- Tenho dois serviços na frente do seu, senhor, mas… - Deixou a frase inacabada pairando no ar.

- Terei o maior prazer em pagar o dobro.

O rosto do mecânico iluminou-se.

- Duas horas está bom?

- Está ótimo. Vamos comer alguma coisa e estaremos aqui às duas. - Jaime virou-se para os outros, que escutavam a conversa aturdidos. - Estaremos com sorte. Este homem vai consertar o carro. Vamos comer.

Eles saíram do carro e seguiram Jaime pela rua.

- Duas horas - lembrou o mecânico.

- Duas horas.

Quando estavam longe, Felix disse:

- O que vai fazer? Não há nada de errado com o carro.

Exceto que a essa altura a polícia está procurando-o, pensou Megan. Mas procurarão na estrada, não numa oficina. É uma maneira esperta de se livrar do carro.

- Às duas horas já estaremos longe daqui, não é mesmo? - disse ela.

Jaime fitou-a e sorriu.

- Preciso fazer um telefonema. Esperem por mim.

Amparo pegou o braço de Jaime.

- Irei com você.

Megan e Felix observaram os dois afastarem-se. Felix olhou para Megan e disse:

- Você e Jaime estão se dando muito bem, hein?

- Estamos.

- Ele não é um homem fácil de se conhecer. Mas é muito honrado e corajoso. E preocupa-se com os outros. Não há ninguém como ele. Já lhe contei que Jaime salvou minha vida, irmã?

- Não. Eu gostaria de ouvir a história.

- Há poucos meses o governo executou seis combatentes da liberdade. Em vingança, Jaime resolveu explodir a represa em Puente la Reina, ao sul de Pamplona. A cidade por baixo era o quartel-general do exército. Avançamos à noite, mas alguém avisou ao GOE, e os homens de Acoca pegaram três dos nossos. Fomos condenados à morte. Seria preciso um exército para invadir a prisão, mas Jaime encontrou um jeito. Soltou os touros em Pamplona e na confusão conseguiu libertar dois. O terceiro havia sido espancado até a morte pelos homens de Acoca. É verdade, irmã, Jaime Miró é muito especial.

Quando Jaime e Amparo voltaram, Felix perguntou:

- O que está acontecendo?

- Alguns virão nos buscar. Teremos uma carona até Vitoria.

Meia hora depois um caminhão apareceu, a traseira coberta por lona.

- Sejam bem-vindos - disse o motorista, jovialmente. - Podem subir.

- Obrigado, amigo.

- É um prazer ajudá-lo, senhor. Ainda bem que telefonou. Os malditos soldados estão por toda a parte como pulgas. Não é seguro ficarem expostos.

Eles embarcaram na traseira do caminhão, que seguiu para o nordeste.

- Onde ficaram? - indagou o motorista.

- Com amigos - respondeu Jaime.

E Megan pensou: Ele não confia em ninguém. Nem mesmo em alguém que está ajudando. Mas como poderia? Sua vida corre perigo. Refletiu como deveria ser terrível para Jaime viver sob aquela sombra, fugindo da polícia e do exército. E tudo porque acreditava tanto num ideal que estava disposto a morrer por ele.

O que ele dissera? A diferença entre um patriota e um rebelde depende de quem está no poder no momento.


A viajem foi bastante agradável. A tênue cobertura de lona parecia oferecer segurança, e Megan percebeu quanta tensão sentira nos campos abertos, sabendo que todos estavam sendo caçados.

E Jaime vive sob essa tensão constantemente. Como ele é forte!

Ela e Jaime conversaram com tanto entrosamento que até pareciam velhos amigos. Amparo Jiró escutava sem dizer nada, o rosto impassível.

- Quando eu era pequeno - disse Jaime a Megan -, queria ser um astrônomo.

Megan ficou curiosa.

- O que fez…?

- Vi meu pai, mãe e irmãs serem fuzilados, amigos assassinados, não podia suportar o que acontecia aqui, neste mundo sangrento. As estrelas eram uma fuga. Estavam a milhões de anos-luz de distância, e eu sonhava em visitá-las um dia, escapar deste horrível planeta.

Megan não disse nada.

- Mas não há escapatória, não é mesmo? No final, eu voltei à terra. Pensava que uma única pessoa não poderia fazer qualquer diferença. Mas sei agora que isso não é verdade. Jesus fez uma diferença, assim como Maomé e Gandhi e Einstein e Churchill. - Ele sorriu, irônico. - Não me entenda mal, irmã. Não estou me comparando a nenhum deles. Mas, à minha pequena maneira, faço o que posso. Acho que devemos todos fazer o que podemos.

Megan especulou se aquelas palavras não visavam ter um significado especial para ela.

- Quando apaguei as estrelas dos olhos, passei a estudar para ser engenheiro. Aprendi a construir prédios. Agora eu os destruo. E a ironia é que alguns dos prédios que explodi são os que construí.

Chegaram a Vitoria ao anoitecer.

- Para onde devo levá-los? - perguntou o motorista.

- Pode nos deixar aqui, amigo.

O motorista assentiu.

- Claro. Continuem a boa luta.

Jaime ajudou Megan a descer. Amparo observou, os olhos em chama. Não admitia que seu homem tocasse outra mulher.

"Ela é uma puta", pensou Amparo. "E Jaime está com tesão pela sacana da freira. Mas isso não vai durar. Ele descobrirá em breve que o leite dela é muito ralo. Precisa de uma mulher de verdade."

O grupo seguiu por ruas secundárias, atento a qualquer sinal de perigo. Vinte minutos depois chegaram a uma casa de pedra de um andar, numa rua estreita, cercada por uma alta cerca.

- É aqui - disse Jaime. - Passaremos a noite e partiremos amanhã, assim que escurecer.

Abriram o portão na cerca e se encaminharam para a porta.

Jaime levou apenas um momento para abrir a fechadura e todos entraram na casa.

- De quem é esta casa? - perguntou Megan.

- Faz perguntas demais - disse-lhe Amparo.- Devia apenas sentir-se feliz porque a mantemos viva.

Jaime fitou Amparo por um momento.

- Ela já provou seu direito a fazer perguntas. - Virou-se para Megan. - Pertence a um amigo. Você está agora no país basco. Daqui por diante a viagem será mais fácil. Haverá camaradas por toda a parte, observando e protegendo-nos. Estará no convento depois de amanhã.

Megan sentiu um pequeno calafrio que era quase de pensar.

"O que há comigo? Claro que quero voltar. Perdoe-me, Senhor. Pedi que me levasse para sua segurança, e atendeu-me."

- Estou faminto - anunciou Felix. - Vamos dar uma olhada na cozinha.

Estava bem abastecida. Jaime disse:

- Ele nos deixou bastante comida. Farei um jantar maravilhoso. - Ele sorriu para Megan. - Não acha que merecemos?

- Não sabia que os homens cozinhavam - comentou Megan.

Felix riu.

- Os homens bascos orgulham-se de seu talento na cozinha. Prepare-se para um banquete. Vai ver só.

Jaime recebeu os ingredientes solicitados, e os outros ficaram observando-o preparar um piperade de pimentões verdes assados, fatias de cebola branca, tomates, ovos e presunto, tudo misturado.

Quando começou a cozinhar, Megan perguntou:

- Tem um cheiro delicioso.

- E isso é apenas para abrir o apetite. Vou fazer um prato basco famoso para você - pollo al chilindrón.

Ele não disse "para nós", notou Amparo. Disse "para você".

Para a sacana.

Jaime cortou pedaços de galinha, salpicou sal e pimenta-do-reino por cima, tostou em óleo quente, enquanto cozinhava cebolas, alho e tomates numa panela separada.

- Vamos deixar em fogo brando por meia hora.

Felix encontrara uma garrafa de vinho tinto. Distribuiu os copos.

- O vinho tinto de La Rioja. Vai gostar. - Estendeu um copo para Megan. - Irmã?

A última vez que Megan provara vinho fora na comunhão.

- Obrigada. - Lentamente, ela levou o copo aos lábios e tomou um gole. Era delicioso. Tomou outro gole e pôde sentir um calor espalhar-se pelo corpo. A sensação era maravilhosa. "Devo desfrutar tudo isso enquanto posso", pensou. "Acabará em breve."

Durante o jantar, Jaime parecia bastante preocupado.

- O que o deixa perturbado assim, amigo? - indagou Felix.

Jaime hesitou.

- Temos um traidor no movimento.

Houve um silêncio chocado.

- O que… o que o leva a pensar assim? - perguntou Felix.

- Acoca. Ele está sempre muito perto de nós.

Felix encolheu os ombros.

- Ele é uma raposa, e nós somos os coelhos.

- É algo assim.

- Como assim? - perguntou Amparo.

- Quando íamos explodir a represa em Puente la Reina, Acoca foi avisado. - Ele olhou para Felix. - Preparou um armadilha, pegou você, Ricardo e Zamora. Se eu não me atrasasse, teria me capturado também. E pense também no que aconteceu no parador.

- Você ouviu o recepcionista telefonando para a polícia - lembrou Amparo.

Jaime balançou a cabeça.

- É verdade… porque tive o pressentimento de que havia alguma coisa errada.

A expressão de Amparo era sombria.

- Quem você acha que é?

Jaime sacudiu a cabeça.

- Não tenho certeza. Alguém que sabe de todos os nossos planos.

- Então vamos mudar de planos - sugeriu Amparo. - Encontraremos os outros em Logroño e não iremos a Mendavia.

Jaime olhou para Megan.

- Não podemos fazer isso. Precisamos levar as irmãs ao convento.

Megan fitou-o e pensou: "Ele já fez demais por mim. Não devo submetê-lo a um perigo maior do que já enfrentou."

- Jaime, eu posso…

Mas ele sabia o que ela pretendia dizer.

- Não se preocupe, Megan. Todos chegaremos lá sãos e salvos.

"Ele mudou", pensou Amparo. "No começo, não queria nada com nenhuma delas. Agora, está disposto a arriscar a vida por ela. E chama-a de Megan. Não é mais irmã."

- Há pelo menos 15 pessoas que estão a par dos nossos planos - acrescentou Jaime.

- Temos que descobrir quem é o traidor - insistiu Amparo.

- Como faríamos isso? - indagou Felix, dobrando nervosamente as pontas da toalha de mesa.

- Paco está em Madrid, verificando algumas coisas para mim - informou Jaime. - Combinei que ele telefonaria para cá. - Fitou Felix por um momento, depois desviou os olhos. Não dissera que apenas meia dúzia de pessoas conhecia os percursos exatos que os três grupos seguiriam. Era verdade que Felix Carpio fora aprisionado por Acoca. Era também verdade que isso proporcionava um álibi perfeito para Felix. No momento propício, podia-se planejar sua fuga. "Só que eu o tirei de lá antes", pensou Jaime. "Paco está investigando-o. Espero que ligue logo."

Amparo levantou-se e olhou para Megan.

- Ajude-me com a louça.

As duas começaram a levantar a mesa, e os homens foram para a sala de estar.

- A freira… ela está aguentando muito bem - comentou Felix.

- Tem razão.

- Gosta dela, não é mesmo?

Jaime descobriu que tinha dificuldade para fitar Felix.

- Gosto, sim. - "E você a trairia, junto com todos nós."

- E você e Amparo?

- Somos iguais. Ela acredita na causa tanto quanto eu. Toda a sua família foi exterminada pelos Falangistas de Franco. - Jaime levantou-se e espreguiçou-se. - Está na hora de deitar.

- Acho que não conseguirei dormir esta noite. Tem certeza de que há um espião entre nós?

Jaime fitou-o.

- Tenho.


Quando Jaime desceu para o desjejum, pela manhã, Megan não o reconheceu. O rosto fora escurecido, ele usava uma peruca e bigode postiço e vestia roupas andrajosas. Parecia dez anos mais velho.

- Bom dia - disse ele.

E a voz que saía daquele corpo deixou Megan aturdida.

- Onde você…?

- Uso esta casa de vez em quando. Mantenho aqui um estoque de coisas que preciso.

Apenas o tom despreocupado de sua voz, isso forneceu a Megan uma percepção do tipo de vida que levava. De quantas outras casas e disfarces ele precisava para se manter vivo? Quantas fugas por um triz de que ela nada sabia? Megan recordou os homens brutais que haviam atacado o convento e pensou: "Se pegarem Jaime, não terão misericórdia. Eu gostaria de saber como protegê-lo."

A mente de Megan foi povoada de pensamentos que ela não tinha o direito de acalentar.

Amparo preparou o desjejum: bacalhau, leite de cabra, queijo, chocolate quente e grosso e churros.

- Quanto tempo ficaremos aqui? - perguntou Felix enquanto comiam.

Jaime respondeu calmamente:

- Partiremos assim que escurecer. - Mas não tinha a menor intenção de permitir que Felix usasse essa informação. - Tenho algumas coisas para fazer - acrescentou Jaime. - Precisarei de sua ajuda.

- Certo.

Jaime chamou Amparo lá fora.

- Quando Paco ligar, avise-o que voltarei em breve. Anote o recado.

Ela assentiu.

- Tome cuidado.

- Não se preocupe. - Ele virou-se para Megan. - Seu último dia. Amanhã estará no convento. Deve estar ansiosa por chegar.

Ela fitou-o em silêncio por um longo tempo.

- É verdade. - "Não ansiosa", pensou Megan. "Aflita. E gostaria de não me sentir assim. Vou me afastar de tudo isso, mas pelo resto da vida ficarei especulando sobre o que aconteceu com Jaime, Felix e os outros".

Ela observou Jaime e Felix partirem. Sentiu uma tensão entre os dois que não podia compreender.

Amparo a estudava, e Megan lembrou-se de suas palavras: "Jaime é homem demais para você". Amparo disse brutalmente:

- Arrume as camas. Eu faço o almoço.

- Está bem.

Megan foi para os quartos. Amparo ficou parada ali por um momento, observando-a, depois entrou na cozinha.

Durante a hora seguinte, Megan trabalhou, concentrando-se ativamente em varrer, tirar o pó e polir, tentando não pensar, tentando manter a mente afastada do que a incomodava.

"Preciso tirá-lo da cabeça", pensou.

Era impossível. Ele era como uma força da natureza, arrastando tudo em seu caminho. Megan poliu com mais vigor.

Quando Jaime e Felix voltaram, Amparo esperava-os na porta.

Felix estava pálido.

- Não estou me sentindo muito bem. Acho que vou me deitar um pouco.

Ele desapareceu num quarto.

- Paco ligou - anunciou Amparo, muito excitada.

- O que ele disse?

- Tem informações para você, mas não quis falar pelo telefone. Está enviando alguém para encontrá-lo. A pessoa estará na praça ao meio-dia.

Jaime franziu o cenho, pensativo.

- Ele não disse quem é?

- Não. Falou apenas que era urgente.

- Droga. Eu… Ora, não importa. Muito bem, irei ao encontro. Quero que fique de olho em Felix.

Amparo ficou perplexa.

- Não com…

- Não quero que ele use o telefone.

Um brilho de compreensão surgiu no rosto de Amparo.

- Acha que Felix é…?

- Por favor. Faça apenas o que estou pedindo. - Jaime olhou no relógio. - Quase meio-dia. Partirei agora. Estarei de volta dentro de uma hora. Tome cuidado, querida.

- Não se preocupe.

Megan ouviu as vozes.

"Não quero que ele use o telefone."

"Acha que Felix é…?"

"Por favor. Faça apenas o que estou pedindo."

"Então Felix é o traidor", pensou Megan. Ela o vira entrar no quarto e fechar a porta. Ouviu Jaime sair.

Megan entrou na sala de estar. Amparo virou-se.

- Já acabou?

- Ainda não, mas… - Queria perguntar para onde Jaime fora, o que faria a Felix, o que aconteceria em seguida, mas não sentiu a menor vontade de discutir o assunto com aquela mulher.

"Esperarei até a volta de Jaime".

- Pois então acabe - disse Amparo.

Megan voltou para o quarto. Pensou em Felix. Ele parecera muito amigo e afetuoso. Fizera-lhe muitas perguntas, mas agora esse ato de aparente cordialidade assumira um significado diferente. O barbudo procurava informações para transmitir ao coronel Acoca. As vidas de todos corriam perigo.

"Amparo pode precisar de ajuda", pensou Megan. Encaminhou-se para a sala de estar, mas parou abruptamente. Uma voz estava dizendo:

- Jaime acaba de sair. Estará sozinho num banco, na praça principal. Seus homens não devem ter dificuldades para pegá-lo.

Megan ficou imóvel, congelada.

- Ele foi a pé, por isso deve levar uns quinze minutos para chegar lá.

Megan escutava com crescente horror.

- Lembre-se do nosso acordo, coronel - disse Amparo ao telefone. - Prometeu não matá-lo.

Megan recuou para o corredor. Sua mente estava em turbilhão.

Então Amparo era a traidora. E enviara Jaime para uma armadilha.

Recuando sem fazer barulho, a fim de que Amparo não a ouvisse, Megan virou-se e saiu correndo pela porta dos fundos. Não tinha a menor idéia como ajudaria Jaime. Sabia apenas que precisava fazer alguma coisa. Passou pelo portão e começou a descer a rua, andando tão depressa quanto podia sem atrair a atenção, seguindo para o centro da cidade.

"Por favor, Deus, permita-me chegar a tempo", rezou Megan.

O percurso para a praça central era aprazível, as ruas secundárias ensombradas por enormes árvores, mas Jaime se mantinha alheio ao cenário. Pensava em Felix. Fora como um irmão para ele, dera-lhe sua total confiança. O que o transformava num traidor, disposto a pôr em risco as vidas de todos? Talvez o mensageiro de Paco tivesse a resposta. Por que Paco não podia falar pelo telefone? Ele aproximou-se da praça. No meio havia um chafariz e árvores frondosas, com bancos espalhados ao redor. Crianças brincavam. Dois velhos jogavam boule. Alguns homens estavam sentados no banco, aproveitando o sol, lendo, cochilando ou alimentando os pombos. Jaime atravessou a rua, caminhou devagar e sentou-se num banco. Olhou para seu relógio no momento em que a torre começava a bater o meio-dia. O emissário de Paco deve estar chegando.

Pelo canto dos olhos, Jaime avistou um carro de polícia parar no outro canto da praça. Olhou na outra direção. Um segundo carro de polícia chegou. Seu coração começou a bater mais depressa. Era uma armadilha. Mas quem a promovera? Teria sido Paco, que enviara o recado, ou Amparo, que o transmitira? Ela o mandara para o parque. Mas por quê? Por quê?

Não havia tempo para se preocupar com isso agora. Tinha de escapar. Mas Jaime sabia que os guardas atirariam no momento que tentasse correr. Podia tentar um blefe, mas os guardas sabiam que ele estava ali.

Pense em alguma coisa! Depressa!


A um quarteirão dali, Megan seguia apressada para o parque.

Ao vê-lo, avaliou a situação num olhar. Avistou Jaime sentado num banco e os guardas se aproximando pelos dois lados.

A mente de Megan disparou. Não havia como Jaime escapar.

Ela estava passando por uma mercearia à sua frente, bloqueando a passagem, uma mãe empurrava um carrinho de bebê. A mulher parou, encostou o carrinho na parede da mercearia e entrou para fazer uma compra. Megan pegou o carrinho de bebê e atravessou a rua, entrando no parque.

Os polícias passavam agora pelos bancos, interrogando os homens ali sentados. Megan passou por um guarda. E gritou:

- Madre de Dios! Aí está você, Manuel! Estive à sua procura por toda a parte! Já não aguento mais! Prometeu pintar a casa esta manhã e vem sentar-se no parque como um milionário! Mamãe tinha razão! Você é um vagabundo que não presta para nada! Eu nunca devia ter casado com você!

Jaime levou menos de uma fração de segundo para reagir.

Levantou-se.

- Sua mãe é mesmo uma especialista em vagabundice. Casou com um. Se ela…

- Quem é você para falar? Se não fosse por mamãe, nosso filho passaria fome. Você nunca leva pão para casa…

Os guardas pararam, acompanhando a discussão.

- Se fosse minha mulher - murmurou um deles -, eu a mandaria de volta para a mãe.

- Estou cansado das suas reclamações, mulher! - berrou Jaime. - Já avisei antes! Quando chegarmos em casa vai aprender uma lição!

- Bom para ele - comentou um dos guardas.

Jaime e Megan começaram a deixar o parque, discutindo furiosamente, empurrando o carrinho de bebê. Os guardas tornaram a concentrar sua atenção nos homens sentados. - Seus documentos, por favor?

- Qual é o problema, senhor guarda?

- Não é da sua conta. Apenas mostre os documentos.

Por todo o parque, homens pegavam as carteiras e tiravam os documentos para provar quem eram. No meio da confusão, um bebê começou a chorar. Um dos guardas olhou. O carrinho de bebê fora abandonado na esquina. O casal que brigava desaparecera. Meia hora depois, Megan entrou pela porta da frente da casa. Amparo andava nervosamente de um lado para outro.

- Onde você esteve, Megan? Não deveria ter deixado a casa sem me avisar.

- Precisei sair para cuidar de um problema.

- Que problema? - indagou Amparo, desconfiada. - Não conhece ninguém aqui. Se você…

Jaime entrou, e o sangue esvaiou-se do rosto de Amparo. Mas ela rapidamente recuperou o controle.

- O que… o que aconteceu? Não foi ao parque?

- Por quê, Amparo? - murmurou Jaime.

Ela fitou-o nos olhos e compreendeu que estava tudo acabado.

- O que a fez mudar?

Ela sacudiu a cabeça.

- Eu não mudei. Você é que mudou. Perdi todas as pessoas que eu amava nessa guerra estúpida em que você luta. Estou cansada de tanto derramamento de sangue. É capaz de suportar a verdade a seu respeito, Jaime? É tão ruim quanto ao governo que combate. Pior, porque eles estão dispostos a fazer a paz, e você não. Pensa que está ajudando nosso País? Pois está destruindo-o. Assalta brancos, explode carros e assassina pessoas inocentes, acha que é um herói. Eu o amava e acreditava em você, mas… - A voz tremeu. - O derramamento de sangue precisa acabar.

Jaime adiantou-se, os olhos como gelo.

- Eu deveria matá-la.

- Não! - balbuciou Megan. - Por favor! Não pode fazer isso!

Felix entrara na sala e escutara a conversa.

- Meu Deus! Então é ela! O que vamos fazer com essa miserável!

- Teremos de levá-la e ficar de olho nela - respondeu Jaime. Ele pegou Amparo pelos ombros e disse suavemente: - Se tentar mais alguma coisa, juro que morrerá. - Empurrou-a para longe, virou-se para Megan e Felix. - Vamos sair daqui antes que os amigos dela apareçam.


Capítulo 35


- Teve Miró em suas mãos e deixou-o escapar?

- Coronel… com todo respeito… meus homens…

- Seus homens são uns idiotas. E se intitulam de polícias? São uma vergonha para seus uniformes!

O chefe de polícia ficou imóvel, encolhendo-se sob o desdém implacável do coronel Acoca. Não havia nada que ele pudesse fazer, pois o coronel era bastante poderoso para obter sua cabeça. Acoca ainda não acabara com ele.

- Eu o considero pessoalmente responsável. Providenciarei para que seja afastado do cargo.

- Coronel…

- Saia! Você me deixa enjoado.

O coronel Acoca fervilhava de frustração. Não houvera tempo suficiente para ele chegar a Vitoria e pegar Jaime Miró. Tivera de confiar a missão à polícia local, e eles haviam estragado tudo. Só Deus sabia para onde Miró seguira agora. O coronel aproximou-se do mapa aberto sobre uma mesa.

Eles estão indo para o país basco, é claro. O que pode ser Burgos, ou Logroño ou Bilbao ou San Sebastián. Vou me concentrar no nordeste. Terão de aparecer em algum lugar.

O coronel recordou a conversa com o primeiro-ministro naquela manhã.

- Seu tempo está se esgotando, coronel. Leu os jornais desta manhã? A imprensa mundial está fazendo com que pareçamos palhaços… Miró e as freiras nos converteram em alvo de riso.

- Primeiro-ministro, tem a minha garantia…

- O rei Juan Carlos ordenou-me que criasse uma comissão de inquérito oficial para investigar toda a questão. Não posso protelar por mais tempo.

- Adie o inquérito só por uns poucos dias. Pegaremos Miró e as freiras.

Houve uma pausa.

- Quarenta e oito horas.

Não era o primeiro-ministro que o coronel Acoca tinha medo de desapontar. Nem o rei. Era a OPUS DEI. Quando fora convocado à sala de um dos mais eminentes industriais da Espanha, as ordens que recebera eram expressas: "Jaime Miró está criando um clima prejudicial à nossa organização. Detenham-o. Será bem recompensado."

E o coronel Acoca conhecia a parte da conversa que não ocorrera: Fracasse e será punido. Agora, sua carreira estava em perigo. E tudo porque alguns polícias idiotas haviam deixado Miró escapar debaixo de seus narizes. Jaime Miró podia se esconder em qualquer parte. Mas as freiras… Uma onda de excitamento invadiu o coronel Acoca. As freiras! Elas eram a chave de tudo. Jaime Miró podia se esconder em qualquer lugar, mas as irmãs só podiam encontrar um santuário em outro convento. E quase certamente seria um convento da mesma ordem.

O coronel virou-se para estudar o mapa outra vez. E lá estava: Mendavia. Havia um convento da Ordem Cisterciense em Mendavia. "É para lá que estão indo", pensou Acoca, triunfante. "E eu também. Só que chegarei lá primeiro, e ficarei à espera deles."


A jornada chegava ao fim para Ricardo e Graciela.

Os últimos dias haviam sido dos mais felizes que Ricardo já conhecera. Estava sendo caçado pelo exército e polícia, a captura significava a morte certa, mas nada disso parecia importar. Era como se ele e Graciela tivessem construído uma ilha no tempo, um paraíso em que nada podia alcançá-los. Transformaram a viagem desesperada numa aventura maravilhosa que partilhavam.

Conversavam sem parar, explorando e explicando, as palavras eram tentáculos que os uniam ainda mais. Falavam do passado, presente e futuro. Particularmente do futuro.

- Casaremos na igreja - disse Ricardo. - Você será a mais linda noiva do mundo.

E Graciela podia visualizar a cena, ficava emocionada.

- E viveremos na casa mais bonita…

E ela pensou: "Nunca tive uma casa minha, um quarto meu…"

Tivera apenas a casa pequena que partilhava com a mãe e todos os tios, depois a cela do convento, vivendo com as irmãs.

- E teremos filhos encantadores. E eu lhe darei todas as coisas que nunca tive. Eles serão muito amados.

E o coração de Graciela exultava. Mas havia uma coisa que a perturbava. Ricardo era um soldado, lutando por uma causa em que acreditava fervorosamente. Podia se contentar em viver na França, retirando-se da batalha? Ela sabia que precisava discutir o assunto com ele.

- Ricardo… quanto tempo mais você acha que esta revolução vai durar?

"Já durou tempo demais", pensou Ricardo. O governo apresentara propostas de paz, mas a ETA fizera pior do que rejeitar.

Respondera às propostas com uma sucessão de ataques terroristas.

Ricardo tentara discutir o problema com Jaime.

- Eles estão dispostos a fazer um acordo, Jaime. Não deveríamos conversar?

- As propostas não passam de um truque… eles querem destruir-nos. Estão nos forçando a lutar.

E porque Ricardo amava Jaime e acreditava nele, continuava a apoiá-lo. Mas as dúvidas não desapareceram. Enquanto aumentava o derramamento de sangue, o mesmo acontecia com sua incerteza.

E agora Graciela queria saber: Quanto tempo mais você acha que esta revolução vai durar?

- Não sei - respondeu Ricardo. - Eu gostaria que já tivesse acabado. Mas posso lhe dizer uma coisa, minha querida: nada jamais poderá se interpor entre nós… nem mesmo uma guerra. Nunca haverá palavras suficientes para lhe dizer o quanto a amo.

E os dois continuaram a sonhar.

Viajavam durante a noite, atravessando verdes campos férteis, passando por El Burgo e Soria. Ao amanhecer, avistaram Logroño ao longe. À esquerda da estrada havia um bosque de pinheiros, e mais além uma floresta de cabos de electricidade.

Graciela e Ricardo desceram a estrada sinuosa até os arredores da cidade fervilhante.

- Onde vamos nos encontrar com os outros? - perguntou Graciela.

Ricardo apontou para um cartaz num prédio por que passavam. Dizia:


CIRQUE JAPON!


O MAIS SENSACIONAL CIRCO DO MUNDO!


RECÉM CHEGADO DO JAPÃO


24 DE JULHO POR UMA SEMANA


AVENIDA CLUB DEPORTIVO


- Aí. Vamos nos encontrar no circo esta tarde.


Em outra parte da cidade, Megan, Jaime, Amparo e Felix também olhavam para um cartaz do circo. Havia um sentimento de enorme tensão no grupo. Amparo nunca ficava longe das vistas dos outros. Desde do incidente em Vitoria que os homens a tratavam como um pária, ignorando-a na maior parte do tempo e falando-lhe apenas o necessário. Jaime consultou seu relógio.

- O espetáculo do circo deve estar começando. Vamos embora.


No quartel-general da polícia em Logroño, o coronel Ramón Acoca estava dando os retoques finais em seu plano.

- Os homens estão postados em volta do convento.

- Estão, sim, coronel. Está tudo pronto.

- Ótimo.

O coronel Acoca estava expansivo. A armadilha era infalível, e dessa vez não haveria polícias desastrados para estragar-lhe os planos. Comandaria pessoalmente a operação. A OPUS DEI se orgulharia dele. Repassou os detalhes com seus oficiais.

- As freiras estão viajando com Miró e seus homens. É importante que peguemos todos antes de entrarem no convento. Ficaremos à espera no bosque ao redor. Não façam qualquer movimento até eu dar o sinal para atacar.

- Quais são as nossas ordens se Jaime Miró resistir?

- Torço para que ele resista - disse suavemente o gigante de cicatriz.

Um ordenança entrou na sala.

- Com licença, coronel. Há um americano aqui que deseja lhe falar.

- Não tenho tempo agora.

- Está bem, senhor. - O ordenança hesitou. - Ele diz que é sobre uma das freiras.

- É mesmo? Falou que ele é americano?

- Isso mesmo, coronel.

- Mande-o entrar.

Um momento depois Alan Tucker entrou na sala.

- Desculpe incomodá-lo, coronel. Sou Alan Tucker. Espero que possa ajudar-me.

- De que maneira, Sr. Tucker?

- Fui informado que está à procura de uma das freiras do convento Cisterciense… uma certa irmã Megan.

O coronel recostou-se na cadeira, estudando o americano.

- E por que isso o interessa?

- Também estou à procura dela. E é muito importante que eu a encontre.

"Interessante", pensou o coronel. "Por que é tão importante que esse americano encontre uma freira?"

- Não tem idéia de onde ela se encontra?

- Não. Os jornais…

A maldita imprensa outra vez.

- Talvez pudesse me explicar por que está à procura da freira.

- Lamento, mas não posso discutir esse assunto.

- Então também lamento, mas não poderei ajudá-lo.

- Coronel… poderia ajudar-me se a encontrasse?

Acoca sorriu.

- Você saberá.


O país inteiro acompanhava a hégira das freiras. A imprensa noticiara a fuga por um triz de Jaime Miró e uma delas em Vitoria.

Então eles estão seguindo para o norte, pensou Alan Tucker.

A melhor possibilidade que eles têm de sair do país é provavelmente San Sebastián. Preciso encontrá-la. Podia sentir que sua situação com Ellen Scott era difícil. "Cuidei muito mal do problema", pensou ele. "Mas poderei compensar se levar Megan."

Ele telefonou para Ellen Scott.


O Cirque Japon estava instalado numa enorme tenda no bairro nos arredores de Logroño. Dez minutos antes do início do espetáculo, as arquibancadas já estavam lotadas. Megan, Jaime, Amparo e Felix desceram pelo corredor apinhado até os lugares reservados. Haviam dois lugares vazios ao lado de Jaime. Ele deu uma olhada e disse:

- Alguma coisa está errada. Ricardo e irmã Graciela já deveriam ter chegado. - Ele virou-se para Amparo. - Você…?

- Não. Juro que não. Nada sei sobre isso.

As luzes diminuiram, e o espetáculo começou. A multidão gritava e eles olharam para o picadeiro. Um ciclista circulava pelo picadeiro e, enquanto ele pedalava, um acrobata pulou em seus ombros. Depois, um a um, um enxame de outros acrobatas também pulou, segurando-se na frente, atrás e nos lados da bicicleta até que ela ficou completamente invisível. A platéia aplaudiu.

Um urso treinado foi o número seguinte, depois um equilibrista na corda bamba. Todos estavam adorando o espetáculo, mas Jaime e os outros sentiam-se muito tensos para prestarem atenção. O tempo se esgotava.

- Esperaremos mais 15 minutos - decidiu Jaime. - Se não tiverem aparecido até lá…

Uma voz disse:

- Com licença… estes lugares estão ocupados?

Jaime levantou os olhos, viu Ricardo e Graciela e sorriu.

- Não. Sentem-se, por favor. - Num sussurro aliviado, ele acrescentou. - Estou muito contente por vê-los.

Ricardo acenou a cabeça para Megan, Amparo e Felix. Olhou em redor.

- Onde estão os outros?

- Não tem lido jornais?

- Jornais? Não. Estivemos nas montanhas.

- Tenho más notícias - disse Jaime. - Rubio está num hospital penitenciário.

- Como…? - Ricardo ficou aturdido.

- Foi esfaqueado numa briga de bar. A polícia prendeu-o.

- Mierda! - Ricardo ficou em silêncio por um momento, depois suspirou. - Teremos de tirá-lo de lá, não é mesmo?

- É esse o meu plano - concordou Jaime.

- Onde está irmã Lucia? - perguntou Graciela. - E irmã Teresa?

- Irmã Lucia foi presa - respondeu Megan. - Ela era… era procurada por homicídio. Irmã Teresa morreu.

Graciela fez o sinal-da-cruz.

- Oh, meu Deus!

No picadeiro, um palhaço andava na corda bamba, com um poodle debaixo de cada braço e dois gatos siameses nos enormes bolsos. Os cães tentavam morder os gatos, e as cordas balançavam violentamente, o palhaço fingiu fazer o maior esforço para manter o equilíbrio. Todos vibraram. Era difícil ouvir alguma coisa com tanto barulho. Megan e Graciela tinham muitas coisas para contar uma à outra. Quase que simultaneamente, elas começaram a falar na linguagem de sinais do convento. Os dois homens olharam, espantados.

- Ricardo e eu vamos nos casar…

- Isso é maravilhoso…

- O que aconteceu com você?

Megan começou a responder, mas logo compreendeu que não havia sinais para transmitir as coisas que queria dizer. Teria de esperar.

- Vamos embora - disse Jaime. - Há um furgão à espera lá fora para nos levar a Mendavia. Deixaremos as irmãs no convento e seguiremos viajem.

Eles começaram a subir pela passagem, Jaime segurando o braço de Amparo. Quando chegaram ao estacionamento, Ricardo anunciou:

- Jaime, Graciela e eu vamos casar.

Um sorriso iluminou o rosto de Jaime.

- Isso é maravilhoso! Parabéns! - Ele virou-se para Graciela. - Não poderia escolher homem melhor.

Megan abraçou Graciela.

- Fico muito feliz por vocês dois. - E ela pensou: "Foi fácil para ela tomar a decisão de deixar o convento? Estou pensando em Graciela? Ou em mim mesmo?"


O coronel Acoca acabava de receber uma informação excitada de um ajudante.

- Eles foram vistos no circo há menos de uma hora. Quando chegamos com os reforços, já haviam ido embora. Partiram num furgão azul e branco. O senhor estava certo, coronel. Eles estão indo na direção de Mendavia.

Então finalmente está acabado, pensou Acoca. A caçada fora emocionante, e devia admitir que Jaime Miró fora um inimigo à altura. A OPUS DEI terá agora planos ainda maiores para mim.

Através de um potente binóculos Zeiss, Acoca observou o furgão azul e branco aparecer no alto de uma colina e se encaminhar para o convento lá embaixo. Soldados fortemente armados escondiam-se entre as árvores, nos dois lados da estrada e em volta do convento. Não havia a menor possibilidade de alguém escapar.

Enquanto o furgão se aproximava da estrada do convento e parava, o coronel Acoca gritou pelo walkie-talkie:

- Agora! Fechem o cerco!

A manobra foi executada com perfeição. Dois pelotões de soldados empunhavam armas automáticas, assumiram as posições, bloqueando a estrada e cercando o furgão. Acoca permaneceu imóvel por um momento, observando a cena, saboreando esse momento de glória. Depois, lentamente, aproximou-se do furgão, com a pistola na mão.

- Vocês estão cercados! - gritou. - Não têm a menor chance! Saiam com as mãos levantadas! Um de cada vez! Se tentarem resistir, todos morrerão!

Houve um longo momento de silêncio, e depois a porta do furgão foi aberta, bem devagar, três homens e três mulheres saíram, trêmulos, as mãos levantadas acima da cabeça.

Eram estranhos.


Capítulo 36


No alto de uma colina, por cima do convento, Jaime e os outros observavam Acoca e seus homens aproximarem-se do furgão. Viram os passageiros apavorados saltarem, as mãos levantadas, assistiram à cena desempenhada em pantomima.

Jaime quase podia ouvir o diálogo:

- Quem são vocês?

- Trabalhamos num hotel perto de Logroño.

- O que estão fazendo aqui?

- Um homem nos deu cem mil pesetas para entregar este furgão no convento.

- Quem é o homem?

- Não sei. Nunca o tinha visto antes.

- É este aqui no retrato?

- É, sim. É ele.

- Vamos sair daqui - disse Jaime.

Eles estavam numa camionete branca, de volta para Logroño. Megan olhava admirada para Jaime.

- Como soube?

- Que o coronel Acoca estaria à nossa espera no convento? Ele me disse.

- Como assim?

- A raposa precisa pensar como o caçador, Megan. Coloquei-me no lugar de Acoca. Onde ele aprontaria uma armadilha para mim? Ele fez exatamente o que eu faria.

- E se ele não aparecesse?

- Então seria seguro você entrar no convento.

- O que faremos agora? - perguntou Felix.

Era o que todos queriam saber.

- A Espanha não é segura para qualquer um de nós por algum tempo - disse Jaime. - Seguiremos para San Sebastián, e de lá iremos para a França. - Ele olhou para Megan. - Há conventos Cistercienses na França.

Era mais do que Amparo podia suportar.

- Por que não se entrega? Se continuar assim, haverá mais sangue derramado, mais vidas perdidas…

- Você perdeu o direito de falar - interrompeu-a Jaime, bruscamente. - Deve apenas se sentir grata por continuar viva.

- Ele virou-se para Megan. - Há dez passagens nos Pireneus que levam de San Sebastián à França. Será nosso caminho.

- É muito perigoso - protestou Felix. - Acoca estará à nossa procura em San Sebastián. Esperará que cruzemos a fronteira para a França.

- Se é tão perigoso assim… - começou Graciela.

- Não precisa se preocupar - garantiu Jaime. - San Sebastián é território basco.

A camioneta aproximava-se outra vez dos arredores de Logroño.

- Todas as estradas para San Sebastián estarão vigiadas - advertiu Felix. - Como planeja nos levar até lá?

Jaime já decidira a questão.

- Iremos de trem.

- Os soldados revistarão os trens - objetou Ricardo.

Jaime lançou um olhar pensativo para Amparo.

- Acho que não. Nossa amiga aqui vai nos ajudar. Sabe como entrar em contato com o coronel Acoca?

Ela hesitou.

- Sei.

- Ótimo. Vai ligar para ele.

Pararam numa cabine telefônica na estrada. Jaime entrou com Amparo na cabine e fechou a porta. Empunhava uma pistola.

- Sabe o que dizer?

- Sei.

Observou-a discar um número. Quando atenderam, ela disse:

- Aqui é Amparo Jirón. O coronel Acoca está à espera da minha ligação… Obrigada. - Ela olhou para Jaime. - Estão transferindo a ligação. - A arma se comprimiu contras suas costelas.

- Precisa mesmo…?

- Limite-se a fazer o que estou mandando.

A voz de Jaime era fria. Um momento depois ele ouviu a voz de Acoca ao telefone.

- Onde você está?

A arma se comprimiu com mais força ainda.

- Eu… eu… estamos deixando Logroño.

- Sabe para onde nossos amigos vão?

- Sei.

O rosto de Jaime estava bem próximo do dela, os olhos duros.

- Eles decidiram inverter o rumo para despistá-lo. Estão a caminho de Barcelona. Ele está guiando um Seat branco. Seguirá pela estrada principal.

Jaime acenou com a cabeça para ela.

- Eu… eu tenho de desligar. O carro está aqui.

Jaime desligou.

- Muito bem. Vamos embora. Nós lhe daremos meia hora para tirar seus homens daqui.

Meia hora depois eles estavam na estação ferroviária.

Havia três tipos de trens de Logroño para San Sebastián: o TALGO era o comboio de luxo; o comboio de segunda classe era o TER; e o pior e mais barato, desconfortável e sujo, era ironicamente chamado de expresso - parava em cada estação, por menor que fosse, de Logroño a San Sebastián.

- Pegaremos o expresso - anunciou Jaime. - A esta altura, os homens de Acoca estão empenhados em parar cada Seat branco na estrada para Barcelona. Compraremos as passagens separadamente e nos encontramos no último vagão. - Virou-se para Amparo. - Você vai primeiro. Estarei logo atrás.

Ela sabia o motivo, odiou-o por isso. Se o coronel Acoca tivesse montado uma armadilha, ela seria a isca. Muito bem, era Amparo Jirón. Não vacilaria. Ela entrou na estação, enquanto Jaime e os outros observavam. Não havia soldados.

Todos estão na estrada para Barcelona, pensou Jaime, ironicamente. Aquilo vai virar um hospício. Um em cada dois carros é um Seat branco.

Um a um, eles compraram as passagens e se encaminharam para o trem. Embarcaram sem incidentes. Jaime sentou-se ao lado de Megan. Amparo sentou-se na frente, ao lado de Felix. Ricardo e Graciela sentaram-se no outro lado do corredor.

Jaime disse a Megan:

- Chegaremos a San Sebastián em três horas. Passaremos a noite ali, e no início da manhã cruzaremos a fronteira para a França.

- E depois de chegarmos à França? - Ela pensava no que acontecia a Jaime.

- Não se preocupe - respondeu ele. - Há um convento Cisterciense a poucas horas da fronteira. - Jaime hesitou. - Se ainda é isso o que você quer.

Portanto, ele compreendia suas dúvidas. "É isso o que eu quero?" Encaminhava-se para algo mais do que uma fronteira a dividir dois países. Aquela fronteira dividiria sua vida antiga da vida futura… que seria… o quê? Sentira-se ansiosa por voltar a um convento, mas agora se descobria dominada pelas dúvidas. Esquecera como o mundo além dos muros podia ser emocionante. Nunca me senti tão viva. Olhou para Jaime e admitiu para si mesma: E Jaime Miró é uma parte disso.

Jaime percebeu seu olhar e fitou-a. Megan pensou: "Ele sabe disso."

O expresso parava em cada povoado e aldeia ao longo dos trilhos. O comboio estava apinhado de camponeses e suas esposas, mercadores e vendedores, em cada paragem havia embarque e desembarque ruidosos de passageiros. O expresso avançou bem devagar, lutando com os íngremes declives. Quando o trem finalmente parou na estação em San Sebastián, Jaime disse a Megan:

- O perigo acabou. Esta é a nossa cidade. Providenciei para que um carro nos esperasse.

Um grande sedã aguardava na frente da estação. O motorista, usando uma chapella, a boina enorme, de abas largas, dos bascos, saudou Jaime com um abraço apertado. O grupo entrou no carro.

Megan notou que Jaime permaneceu perto de Amparo, pronto para agarrá-la, se ela tentasse alguma coisa. O que ele fará com Amparo?, especulou Megan.

- Estávamos preocupados com você, Jaime - disse o motorista. - Segundo a imprensa, o coronel Acoca está comandando uma grande caçada à sua procura.

Jaime sorriu.

- Que ele continue a caçar, Gil. Estou fora da temporada.

Desceram pela avenida Sancho el Savio, na direção da praia.

Era um dia de verão, sem nuvens, as ruas estavam cheias de casais, passeando, interessados apenas no prazer. A enseada estava repleta de iates e embarcações menores. As montanhas distantes formavam um pitoresco pano de fundo para a cidade. Tudo parecia muito pacífico.

- Onde ficaremos? - perguntou Jaime ao motorista.

- O Hotel Niza. Largo Cortez está à espera.

- Será bom rever o velho pirata.

O Niza era um hotel de classe média, na Plaza Juan de Olezabal, sempre movimentada, perto da Calle de San Martín. Era um prédio branco, com janelas castanhas e um enorme letreiro azul no alto. Os fundos do hotel davam para a praia.

O carro parou na frente do hotel, o grupo saltou e seguiu Jaime para o saguão.

Largo Cortez, o proprietário do hotel, correu para cumprimentá-los. Era um homem grandalhão. Tinha apenas um braço, em decorrência de uma façanha ousada, e movia-se meio desajeitado, como se lhe faltasse equilíbrio.

- Sejam bem-vindos! - exclamou, radiante. - Estou esperando há uma semana.

Jaime encolheu os ombros.

- Houve alguns imprevistos, amigo.

Largo Cortez sorriu.

- Li a esse respeito. Os jornais não falam de outra coisa. - Virou-se para fitar Megan e Graciela. - Todos estão torcendo por vocês, irmãs. Os quartos já estão reservados.

- Passaremos a noite aqui - disse Jaime. - Partiremos pela manhã bem cedo e cruzaremos para a França. Quero um bom guia, que conheça todas as passagens… Cabrera Infante ou José Cebrián.

- Darei um jeito - assegurou o dono do hotel. - Vocês serão seis?

Jaime olhou para Amparo.

- Cinco.

Amparo desviou os olhos.

- Sugiro que nenhum de vocês se registre - acrescentou Cortez, sorrindo. - O que a polícia não sabe não fará mal. Por que não me deixam agora levá-los a seus quartos, onde poderão descansar um pouco? E, depois, teremos um magnífico jantar.

- Amparo e eu vamos ao bar tomar um drinque - disse Jaime. - Subiremos depois.

Largo Cortez balançou a cabeça.

- Como quiser, Jaime.

Megan observava Jaime, aturdida. Imaginava o que ele planejava fazer com Amparo. Será que tencionava matá-la a sangue-frio…? não podia suportar pensar a esse respeito.

Amparo especulava também, mas era orgulhosa demais para perguntar.

Jaime levou-a para o bar, na outra extremidade do saguão, e sentaram-se a uma mesa no canto. Quando o garçon se aproximou, Jaime disse:

- Um copo de vinho, por favor.

- Um só?

- Isso mesmo.

Amparo observou Jaime tirar um pequeno pacote do bolso e abri-lo. Continha um pó fino.

- Jaime… - Havia desespero na voz de Amparo. - Por favor, escute-me! Tente compreender por que agi assim. Você está destruindo o país. Precisa parar com essa insanidade.

O garçon voltou e pôs o copo de vinho na mesa. Depois que ele se afastou, Jaime despejou o pó no copo e mexeu. Empurrou-o para a frente de Amparo.

- Beba.

- Não!

- Não são muitas pessoas que têm o privilégio de escolher a maneira como morrem - comentou Jaime, suavemente. - Assim, será rápido e sem dor. Se eu entregá-la ao meu pessoal, não posso fazer tal promessa.

- Jaime… houve um tempo em que o amei. Tem de acreditar em mim. Por favor…

- Beba.

A voz era implacável. Amparo fitou-o em silêncio por um longo momento, depois pegou o copo.

- Beberei à sua morte.

Observou-a levar o copo aos lábios e beber o vinho de um gole só. Amparo estremeceu.

- O que acontece agora?

- Eu a ajudarei a subir. E a porei na cama. Você dormirá.

Os olhos de Amparo se encheram de lágrimas.

- Você é um tolo - sussurrou ela. - Jaime… estou morrendo e lhe digo que o amava tanto…

As palavras começaram a sair enroladas. Jaime levantou-se e ajudou-a a ficar de pé. Estava trôpega. O bar parecia balançar.

- Jaime…

Levou-a para o saguão, amparando-a. Largo Cortez esperava com a chave.

- Eu a levarei para seu quarto - disse Jaime. - Cuide para que ela não seja incomodada.

- Certo.

Megan observava enquanto Jaime quase que carregava Amparo pela escada.


Em seu quarto, Megan pensava como era estranho se encontrar num hotel, num hotel de veraneio. San Sebastián estava repleta de pessoas em férias, casais em lua-de-mel, amantes se divertindo em uma centena de outros quartos de hotel. E, subitamente, Megan desejou que Jaime estivesse ali, em seu quarto, especulou como seria se fizesse amor. Todos os sentimentos que reprimira por tanto tempo afloraram em sua mente, como uma torrente impetuosa de emoções.

Mas o que Jaime fizera com Amparo? Seria possível… não, ele nunca poderia fazer isso. Ou poderia? "Eu o quero", pensou. "Oh, Deus, o que está acontecendo comigo? O que posso fazer?"


Ricardo assobiava enquanto se vestia. Sentia-se maravilhoso.

"Sou o homem mais afortunado do mundo", pensou. "Casaremos na França. Há uma linda igreja logo depois da fronteira, em Bayonne. Amanhã. "


Em seu quarto, Graciela tomava um banho, deleitando-se com a água quente e pensando em Ricardo. Sorriu para si mesma e refletiu: "Vou fazê-lo muito feliz. Obrigada, Deus."


Felix Carpio pensava em Jaime e Megan. "Um cego pode ver a eletricidade entre os dois", pensou. "Vai trazer azar. As freiras pertencem a Deus. Já é bastante ruim que Ricardo tenha afastado irmã Graciela de sua vocação." Mas Jaime sempre fora afoito. O que faria com aquela?


Os cinco reuniram-se para jantar no restaurante do hotel.

Ninguém mencionou Amparo. Olhando para Jaime, Megan sentiu-se subitamente embaraçada, como se ele pudesse ler seus pensamentos.

"É melhor não fazer perguntas", decidiu ela. "Sei que ele nunca faria qualquer coisa brutal."

Descobriram que Largo Cortez não exagerara sobre o jantar.

A refeição começou com gazpacho - a sopa fria e grossa, feita com tomates, pepinos e pão encharcado na água -, seguida por uma salada de folhas e um enorme prato de paella - arroz, camarão, galinha e legumes - e encerrava com um saboroso pudim. Era a primeira refeição quente que Ricardo e Graciela faziam em muito tempo.

Megan levantou-se ao terminar de comer.

- Preciso me deitar.

- Espere um pouco - disse Jaime. - Quero falar com você. - Levou-a para um canto deserto do saguão. - Sobre amanhã…

- O que tem? - Sabia o que Jaime ia perguntar. O que não sabia era o que ela responderia. "Eu mudei", refletiu Megan. "Tinha certeza absoluta da minha vida antes. Acreditava ter tudo o que queria."

- Não quer realmente voltar ao convento, não é mesmo? - indagou Jaime.

"Será que eu quero? Preciso ser sincera com ele", pensou Megan. Fitou-o nos olhos e disse:

- Não sei o que quero, Jaime. Estou muito confusa.

Ele sorriu. Hesitou por um instante, escolheu as palavras com todo cuidado:

- Megan… esta luta acabará em breve. Conseguiremos o nosso objetivo, porque o povo está do nosso lado. Não posso lhe pedir para partilhar o perigo comigo agora, mas eu gostaria que esperasse por mim. Tenho uma tia que mora na França. Estará segura com ela.

Megan fitou-o em silêncio por um longo tempo, antes de dizer:

- Jaime… dê-me algum tempo para pensar a esse respeito.

- Então não está dizendo não?

- Não estou dizendo não - respondeu ela suavemente.


Ninguém do grupo dormiu naquela noite. Tinham muito em que pensar, vários conflitos a resolver.

Megan permaneceu acordada, reconstruindo o passado. Os anos passados no orfanato e o santuário no convento… Então a súbita expulsão para o mundo a que renunciara para sempre. Jaime Miró arriscava a vida lutando por aquilo em que acreditava. "E em que eu posso acreditar?", perguntou-se Megan. "Como quero passar o resto da minha vida?"

Uma vez fizera uma opção. Agora, era obrigada a optar de novo. Precisaria decidir-se até à manhã seguinte.


Graciela também pensava no convento.

"Foram anos muito felizes e tranquilos. Sentirei falta?"


Jaime pensava em Megan.

"Ela não deve voltar. Quero-a ao meu lado. Qual será sua resposta?"


Ricardo estava excitado demais para dormir, absorto nos planos para o futuro.

"A igreja em Bayonne…"


Felix especulava sobre como se livrar do corpo de Amparo.

"É melhor deixar que Largo Cortez cuide disso."


Na manhã seguinte, bem cedo, o grupo reuniu-se no saguão.

Jaime aproximou-se de Megan.

- Bom dia.

- Bom dia.

- Pensou em nossa conversa?

Ela não pensara noutra coisa durante a noite inteira.

- Pensei sim, Jaime.

Ele fitou-a nos olhos, tentando encontrar a resposta.

- Vai esperar por mim?

- Jaime…

Nesse momento Largo Cortez encaminhou-se para eles, apressado. Estava acompanhado por um homem de aparência curtida, na casa dos cinquenta anos.

- Lamento, mas não haverá tempo para o desjejum - disse Cortez. - Devem partir logo. Este é José Cebrián, o guia. Ele os levarà através das montanhas para a França. É o melhor guia de San Sebastián.

- Prazer em conhecê-lo, José - disse Jaime. - Qual é seu plano?

- Faremos a primeira parte do percurso a pé - respondeu José Cebrián. - Já providenciei para que carros nos esperem no outro lado da fronteira. Devemos nos apressar. Vamos embora agora, por favor.

O grupo saiu para a rua, invadida pelos raios do sol da manhã.

- Boa viagem - desejou Largo Cortez na entrada do hotel.

- Obrigado por tudo - respondeu Jaime. - E voltaremos, amigo. Mais cedo do que imagina.

- Seguiremos por aqui - ordenou José Cebrián.

O grupo começou a virar-se na direção da praça. E nesse momento soldados e agentes do GOE surgiram de repente nos dois lados da rua, fechando-a. Havia pelo menos uma dúzia, todos fortemente armados. Os coronéis Acoca e Sostelo comandavam o grupo.

Jaime olhou rapidamente para a praia, à procura de um caminho de fuga. Mas uma dúzia de soldados aproximava-se vindo daquela direção. Não havia escapatória. Teriam de lutar. Instintivamente, Jaime estendeu a mão para a arma.

O coronel Acoca gritou:

- Nem pense nisso, Miró, ou fuzilaremos todos vocês aqui mesmo.

A mente de Jaime estava em turbilhão, à procura de uma saída. Como Acoca soubera onde encontrá-lo? Jaime virou-se e avistou Amparo parada na porta, com uma expressão de profundo pesar.

- Mas que merda! - exclamou Felix. - Pensei que você…

- Pensei que lhe tivesse dado um pó sonífero forte, suficiente para mantê-la desacordada até cruzarmos a fronteira.

- Sacana!

O coronel Acoca aproximou-se de Jaime.

- Está acabado. - Ele virou-se para um dos seus homens. - Pode desarmá-los.

Felix e Ricardo olharam para Jaime, à espera de uma orientação. Relutante, ele entregou a arma. Felix e Ricardo seguiram o exemplo.

- O que vai fazer conosco? - perguntou Jaime.

Várias pessoas haviam parado para assistir à cena.

O coronel Acoca respondeu ríspido:

- Levarei você e sua quadrilha de assassinos para Madrid. Concederemos a todos um julgamento militar justo e depois os enforcaremos. Se dependesse de mim, eu o enforcaria aqui mesmo.

- Deixe as irmãs partirem - pediu Jaime. - Elas não têm nada a ver com isso.

- Elas são cúmplices; tão culpadas quanto vocês.

O coronel Acoca voltou-se e fez um sinal. Os soldados gesticularam para que a crescente multidão de pedestres se afastasse, para dar passagem aos três caminhões militares.

- Vocês e seus assassinos irão no caminhão do meio - informou o coronel a Jaime. - Meus homens estarão na frente e retaguarda. Se algum de vocês fizer um movimento em falso, eles têm ordens para matar todos. Está me entendendo?

Jaime assentiu. O coronel Acoca cuspiu-lhe no rosto.

- Ótimo. E agora entrem no camião.

Amparo observava impassível da porta do hotel, enquanto Jaime, Megan, Graciela, Ricardo e Felix subiam no caminhão, cercados de soldados empunhando armas automáticas. O coronel Sostelo foi até ao motorista do primeiro caminhão.

- Seguiremos direto para Madrid. Nada de paradas pelo caminho.

- Está bem, coronel.

Àquela altura, muitas pessoas agrupavam-se nas duas extremidades da rua assistindo ao que estava acontecendo. O coronel Acoca começou a subir no primeiro caminhão. Gritou para os que estavam no caminho:

- Saiam da frente! - gritou de novo Acoca. - Saiam da passagem!

E as pessoas continuavam a chegar, os homens usando as enormes chapellas bascas. Era como se respondessem a algum sinal invisível. "Jaime Miró está em perigo." As pessoas vinham de lojas e casas. Donas-de-casa largaram seus serviços e saíam para a rua. Comerciantes prestes a abrirem suas lojas eram informados do acontecido e corriam para a rua do hotel. E mais pessoas chegavam. Artistas, encanadores e doutores, mecânicos, vendedores e estudantes, muitos carregando espingardas e rifles, machados e foices. Eram bascos, e aquela era sua pátria. Começou com poucos, logo havia uma centena e em poucos minutos cresceu para mais de mil, lotando calçadas e ruas, cercando os camiões militares. Mantinham um silêncio ameaçador.

O coronel Acoca observava a enorme multidão em desespero.

Gritou:

- Saiam todos da frente ou começaremos a atirar!

Jaime advertiu, do caminhão do meio:

- Eu não o aconselharia a fazer isso. Essas pessoas o odeiam pelo que está tentando fazer. Uma palavra minha e o liquidarão junto com seus homens. Há uma coisa que se esqueceu, coronel. São Sebastián é uma cidade basca. É a minha cidade. - Ele virou-se para seu grupo. - Vamos sair daqui. - Jaime ajudou Megan a descer, os outros os seguiram.

O coronel ficou olhando, impotente, o rosto contraído em fúria. A multidão aguardava, hostil e silenciosa.

Jaime encaminhou-se para o coronel.

- Pegue seus caminhões e volte para Madrid.

Acoca olhou em redor, contemplando a multidão, que continuava a aumentar.

- Eu… não vai escapar impune, Miró.

- Já escapei. E agora saia daqui. - Ele cuspiu no rosto de Acoca.

O coronel fitou-o em silêncio por um longo momento, com uma expressão de ódio assassino. "Não pode acabar assim", pensou, desesperado. "Eu estava tão perto… Era o xeque-mate." Mas Acoca sabia que para ele, era pior do que a derrota. Era uma sentença de morte. A OPUS DEI estaria à sua procura em Madrid. Olhou para a multidão em redor. Não tinha opção. Virou-se para o motorista e disse, a voz sufocada de fúria:

- Vamos embora.

A multidão recuou, observando os soldados embarcarem nos caminhões. Um momento depois os veículos começaram a afastar-se descendo a rua, e a multidão aclamou delirante. Começou com uma aclamação por Jaime Miró e foi se tornando mais e mais alta, e logo estavam aclamando por sua liberdade e a luta contra a tirania, a vitória iminente, as ruas ressoando com o barulho da celebração.

Dois adolescentes gritaram até ficarem roucos. Um virou-se para o outro.

- Vamos nos juntar à ETA.

Um casal idoso abraçou-se, e a mulher murmurou:

- Talvez agora nos devolvam nossa fazenda.

Um velho estava parado sozinho no meio da multidão, observando em silêncio, enquanto os caminhões partiam. E comentou:

- Eles voltarão um dia.

Jaime pegou a mão de Megan e disse:

- Já acabou. Estamos livres. Atravessaremos a fronteira dentro de uma hora. Eu a levarei para casa da minha tia.

Ela fitou-o nos olhos.

- Jaime…

Um homem abriu caminho pela multidão e aproximou-se de Megan.

- Com licença - disse, ofegante. - Você é a irmã Megan?

Ela virou-se para ele.

- Sou, sim.

Ele soltou um suspiro de alívio.

- Levei muito tempo para encontrá-la. Meu nome é Alan Tucker. Posso lhe falar por um momento?

- Claro.

- A sós.

- Desculpe, mas estou de partida para…

- Por favor. É muito importante. Vim de Nova York para encontrá-la.

Megan ficou ainda mais perplexa.

- Para me encontrar? Não compreendo. Por quê…?

- Explicarei tudo, se me conceder um momento.

O estranho pegou-a pelo braço e conduziu-a pela rua, falando depressa. Megan olhou para trás uma vez, para o lugar em que Jaime Miró continuava parado, à sua espera.


A conversa de Megan com Alan Tucker virou seu mundo pelo avesso.

- A mulher que represento gostaria de conhecê-la.

- Não estou entendendo. Que mulher? O que ela quer comigo?

"Eu gostaria de saber a resposta para isso", pensou Alan Tucker.

- Não estou autorizado a falar sobre isso. Ela a espera em Nova York.

Não fazia sentido. Deve haver algum equívoco.

- Tem certeza que encontrou a pessoa certa… irmã Megan?

- Tenho, sim. Só que seu nome não é Megan… é Patricia.

E, num relance súbito e vertiginoso, Megan soube de tudo.

Depois de tantos anos, sua fantasia estava prestes a se consumar. Finalmente descobriria quem era. A mera perspectiva era emocionante… e aterradora.

- Quando… quando terei de partir? - Sua garganta estava de repente tão seca que ela mal conseguia falar.

"Quero que descubra onde ela está e traga para mim o mais depressa possível."

- Imediatamente. Providenciarei seu passaporte.

Ela virou-se e avistou Jaime parado na frente do hotel, à sua espera.

- Dê-me um minuto, por favor. - Megan voltou para Jaime atordoada, com a sensação de que vivia um sonho.

- Você está bem? - perguntou Jaime. - Aquele homem a está incomodando?

- Não. Ele é… não.

Ele pegou-lhe a mão.

- Quero que venha comigo. Pertencemos um ao outro, Megan.

"Seu nome não é Megan… é Patricia."

Ela fitou o rosto bonito de Jaime e pensou: "Também quero ficar junto de você. Mas teremos de esperar. Primeiro, preciso de descobrir quem sou."

- Jaime… quero ir com você. Mas há uma coisa que tenho de fazer primeiro.

Ele estudou-a, com uma expressão transtornada.

- Vai embora?

- Por algum tempo. Mas voltarei.

Jaime permaneceu em silêncio, a contemplá-la, por um longo momento, depois balançou a cabeça lentamente.

- Está certo. Pode fazer contato comigo por intermédio de Largo Cortez.

- Voltarei para você. Prometo.

Megan tinha toda a intenção de voltar. Mas isso foi antes de se encontrar com Ellen Scott.


Capítulo 37


- Deus Israel conjugat vos; et ipse sit vobiiscum, qui, misertus est duobus unicis… plenius benedicere te… O Deus de Israel vos une e está convosco… e agora, Senhor, faça com que eles Vos abençoem ainda mais. Abençoado sejam todos os que amam o Senhor, que andem por Seus caminhos. Glória…

Ricardo desviou os olhos do padre e contemplou Graciela, de pé ao seu lado. "Eu tinha razão. Ela é a noiva mais linda do mundo."

Graciela mantinha-se imóvel, escutando as palavras do padre ecoarem pela vasta igreja abobadada. Havia uma profunda sensação de paz naquele lugar. Parecia que Graciela estava lotada com todos os fantasmas do passado, todos os milhares de pessoas que por ali haviam passado, geração após geração, em busca de perdão, realização e alegrias. Lembrando-a muito do convento. "Sinto como se tivesse voltado para casa", pensou Graciela. "Ao lugar a que pertenço."

- Exaudi nos, omnipotens et misericors Deus; ut, quod nostro ministratur officio, tua benedictione potius impleatur. Per Dominum… Escutai-nos, Todo-Poderoso e misericordioso Deus, para que tudo o que seja feito por nosso ministério possa se realizar abundante com Vossa bênção…

"Ele me abençoou, mais do que mereço. Que eu seja digna d'Ele."

- In te speravi, Domine: dixi: Tu es Deus meus: in manibus tuis tempora mea… Em Vós, ó Senhor, tenho esperado; eu disse: Vós sois meu Deus; meus tempos estão em Vossas mãos… Meus tempos estão em Vossas mãos. Prestei um juramento solene de devotar o resto da minha vida a Ele.

- Suscipe, quasumus, Domine, pro sacra connubii lege munus… Recebei, nós Vos suplicamos, ó Senhor, a oferenda que Vos fazemos, em nome de santa união do matrimônio…

As palavras pareciam reverberar na cabeça de Graciela. Tinha a sensação de que o tempo parara.

- Deus qui potestate virtutis tuae de nihilo cunceta fecisti… Ó Deus que com Seu poder e força fez todas as coisas do nada…

- Ó Deus, que saudaste o matrimônio para prenunciar a união de Cristo com a Igreja… olhai em vossa misericórdia para esta donzela que se une em matrimônio e Vos suplica proteção e força…

"Mas como Ele pode ter misericórdia comigo quando O estou traindo?"

Graciela descobriu-se de repente com dificuldade de respirar. As paredes pareciam comprimi-la.

- Nihil in ea ex atibus suis ille aucto praevaricationis usurpet… Concedei que o autor do pecado não lance sobre ela seu mal…

Foi nesse instante que Graciela soube. E sentiu como se um pesado fardo fosse removido. Foi inundada por uma alegria intensa.

O padre continuava:

- Que ela possa ganhar a paz do reino dos céus. Vos pedimos para abençoar este casamento e…

- Já sou casada - declarou Graciela, em voz alta.

Houve um momento de silêncio chocado, Ricardo e o padre fitavam-na, aturdidos. O rosto de Ricardo estava pálido.

- Graciela, o quê…?

Ela pegou-lhe o braço e murmurou gentilmente:

- Sinto muito, Ricardo.

- Eu… eu não entendo. Deixou de me amar?

Ela sacudiu a cabeça.

- Eu o amo mais do que minha própria vida. Mas minha vida não me pertence mais. Entreguei-a a Deus há muito tempo.

- Não! Não posso permitir que sacrifique sua…

- Ricardo, querido… Não é um sacrifício. É uma bênção. Encontrei no convento a primeira paz que conheci. Você é uma parte do mundo a que renunciei… a melhor parte. Mas renunciei. Devo voltar ao meu mundo.

O padre ouvia imóvel, em silêncio.

- Por favor, perdoe-me pelo sofrimento que estou lhe causando, mas não posso voltar atrás em meus votos. Estaria traindo tudo que acredito. Sei disso agora. Nunca poderia fazê-lo feliz. Compreenda, por favor.

Ricardo fitava-a aturdido, abalado, não foi capaz de dizer coisa alguma. Era como se algo nele tivesse morrido. Graciela contemplou seu rosto abatido, e o coração se angustiou por ele. Beijou-o no rosto e murmurou:

- Eu amo você. - Seus olhos se encheram de lágrimas. - Rezarei por você. Rezarei por nós dois.


Capítulo 38


Ao final da tarde de sexta-feira, uma ambulância militar parou na entrada de emergência do hospital de Aranda de Duero. Um atendente, acompanhado por dois guardas uniformizados, passou pelas portas de vaivém e aproximou-se do supervisor, por trás de uma mesa.

- Temos uma ordem aqui para buscar um tal de Rubio Arzano - disse um dos guardas, estendendo o documento.

O supervisor examinou o documento e franziu o rosto.

- Acho que não tenho autorização para liberar o paciente. O administrador é que deve resolver.

- Está certo. Vá chamá-lo.

O supervisor hesitou.

- Há um problema. Ele está ausente pelo fim de semana.

- Não é problema nosso. Tenho uma ordem de entrega, assinada pelo coronel Acoca. Quer ligar para ele e comunicar que não vai cumpri-la?

- Claro que não - apressou-se o supervisor em dizer. - Isso não será necessário. Mandarei aprontarem o prisioneiro.


A menos de um quilômetro de distância, na frente da cadeia da cidade, dois detetives saíram de um carro de polícia e entraram no prédio. Aproximaram-se do sargento de plantão.

Um dos detetives mostrou sua identificação.

- Vim buscar Lucia Carmine.

O sargento fitou os dois detetives.

- Ninguém me disse nada.

Um dos detetives suspirou.

- A droga da burocracia. A mão esquerda nunca diz o que a direita está fazendo.

- Deixe-me ver a ordem de transferência.

O detetive entregou-a.

- Assinada pelo coronel Acoca, hein?

- Isso mesmo.

- Para onde vão levá-la?

- Madrid. O coronel quer interrogá-la pessoalmente.

- É mesmo? Bom, acho melhor eu confirmar com ele.

- Não há necessidade - protestou um dos detetives.

- Temos ordens para manter uma vigilância rigorosa sobre essa mulher. O governo italiano está fazendo tudo para conseguir sua estradição. Se o coronel a quer, terá de me dizer pessoalmente.

- Está perdendo seu tempo, e…

- Tenho muito tempo, amigo. O que não tenho é outro rabo se perder o meu. - Pegou o telefone e disse: - Ligue-me com o coronel Acoca, em Madrid.

- Meu Deus! - exclamou um dos detetives. - Minha mulher vai me matar se eu chegar atrasado para o jantar outra vez. Além do mais, o coronel provavelmente não está e…

O telefone tocou.

- O gabinete do coronel está na linha.

O sargento lançou um olhar triunfante para os detetives.

- Aqui é o sargento da delegacia em Aranda de Duero. É importante que eu fale com o coronel Acoca.

Um dos detetives olhou para seu relógio, impaciente.

- Mierda! Tenho coisas melhores a fazer do que ficar por aqui e…

- Alô? Coronel Acoca?

A voz trovejou pelo telefone:

- Sou eu mesmo. O que é?

- Tenho dois detetives aqui, coronel, querendo que eu entregue uma prisioneira sob a sua custódia.

- Lucia Carmine?

- Isso mesmo, senhor.

- Eles apresentam uma ordem assinada por mim?

- Apresentam, senhor. Eles…

- Então por que está me incomodando? Entregue-a!

- Mas pensei…

- Não pense! Cumpra as ordens!

A ligação foi cortada. O sargento engoliu em seco.

- Ele… ahn…

- Ele tem um pavio curto, não é mesmo? - comentou um dos detetives, sorrindo.

O sargento levantou-se, tentando conservar a dignidade.

- Vou mandar trazerem a prisioneira.

Na viela por trás da delegacia, um menino observava um homem num poste telefônico desligar um grampo e descer.

- O que está fazendo? - perguntou o menino.

O homem passou a mão pelos cabelos do menino, desmanchando-os.

- Ajudando um amigo, muchacho, ajudando um amigo…


Três horas depois, numa isolada casa de fazenda, ao norte, Lucia Carmine e Rubio Arzano se reencontraram.


Acoca foi despertado às três horas da madrugada pelo telefone. A voz familiar disse:

- O comitê gostaria de encontrá-lo.

- Pois não, senhor. Quando?

- Agora. Uma limusene irá buscá-lo dentro de uma hora. Esteja pronto, por favor.

Ele desligou e ficou sentado na beira da cama. Acendeu um cigarro e deixou que a fumaça lhe penetrasse pelos pulmões.

"Uma limusine irá buscá-lo dentro de uma hora. Esteja pronto, por favor."

Ele estaria pronto.

Foi para o banheiro e examinou sua imagem no espelho. Contemplava os olhos de um homem derrotado.

"Eu estava tão perto", pensou, amargurado. "Tão perto…"

O coronel Acoca começou a fazer a barba, com todo cuidado. Depois de terminar, tomou um demorado banho de chuveiro, escolheu as roupas que usaria.

Exatamente uma hora depois, ele saiu pela porta da frente e deu uma olhada na casa que sabia que nunca mais tornaria a ver. Não haveria nenhuma reunião, é claro. Os homens não tinham mais nada a discutir com ele.

Uma limusine preta e comprida esperava na frente da casa.

Uma porta foi aberta quando ele se aproximou. Havia dois homens na frente e dois atrás.

- Entre, coronel.

Ele respirou fundo e entrou no carro, que no mesmo instante partiu pela noite escura.


"É como um sonho", pensou Lucia. "Estou olhando pela janela para os Alpes suíços. Cheguei realmente."

Jaime Miró providenciara um guia para que ela chegasse sã e salva a Zurique. E lá chegara ao entardecer.

Pela manhã irei ao Banco Leu.

O pensamento deixou-a nervosa. E se alguma coisa saísse errada? E se o dinheiro não tivesse mais lá? E se…?

Enquanto a primeira claridade do novo dia avançava pelas montanhas, Lucia ainda estava acordada. No início da manhã, ela deixou o Baur au Lac Hotel e aguardou na frente do banco pelo início do expediente. Um homem de meia-idade, de aparência gentil, abriu-lhe a porta.

- Entre, por favor. Está esperando há muito?

"Apenas uns poucos de meses", pensou Lucia.

- Não.

Os dois entraram.

- Em que podemos servi-la?

Podem me tornar rica.

- Meu pai tem uma conta aqui. Pediu-me que viesse e… assumisse a conta.

- É uma conta numerada?

- É, sim.

- Pode me fornecer o número, por favor?

- 2A149207.

Ele balançou a cabeça.

- Um momento, por favor.

Lucia observou-o desaparecer num cofre nos fundos do banco.

Os clientes começaram a entrar. "Tem de estar lá", pensou Lucia.

Nada deve sair…

O homem retornou. Ela nada podia perceber por sua expressão.

- Esta conta… disse que estava em nome de seu pai?

Lucia sentiu um aperto no coração.

- Isso mesmo. Angelo Carmine.

Ele estudou-a por um instante.

- A conta tem dois nomes.

Isso significa que ela não poderia movimentá-la?

- O quê… - Ela mal conseguia falar. -…qual é o outro nome?

- Lucia Carmine.

E nesse instante ela possuiu o mundo.

Na conta estavam depositados poucos mais de 13 milhões de dólares.

- O que deseja que façamos? - perguntou o homem.

- Pode transferir para uma das suas filiais no Brasil? No Rio?

- Claro. Mandaremos a documentação para a senhorita esta tarde.

Era simples assim.

A parada seguinte de Lucia, foi numa agência de viagens, perto do hotel. Havia um cartaz grande na vitrine, anunciando o Brasil.

É um presságio, pensou Lucia, feliz. Ela entrou.

- Em que posso servi-la?

- Gostaria de comprar duas passagens para o Brasil.

"Não há leis de extradição lá."

Mal podia esperar para contar tudo a Rubio. Ele estava em Biarritz, aguardando seu telefonema. Viajariam juntos para o Brasil.

- Podemos viver em paz lá pelo resto de nossas vidas - dissera-lhe Lucia.

Agora, tudo estava finalmente acertado. Depois de tantas aventuras e perigos… a prisão de seu pai e irmãos, a vingança contra Benito Patas e o juiz Buscetta… a polícia à sua procura, e a fuga para o convento… os homens de Acoca e o falso frade… Jaime Miró, Teresa e a cruz de ouro… E Rubio Arzano. Acima de tudo, o querido Rubio. Quantas vezes Rubio arriscara a vida por ela? Salvara-a dos soldados no bosque… das águas impetuosas nas corredeiras… dos homens no bar em Aranda de Duero. O simples ato de pensar em Rubio deixava-a enternecida.

Voltou a seu quarto no hotel, pegou o telefone e aguardou que a telefonista atendesse.

"Haverá alguma coisa para ele fazer no Rio. Mas o quê? O que ele pode fazer? Provavelmente vai querer comprar uma fazenda em algum lugar do Brasil. E o que eu faria então?"

- Número, por favor - falou a telefonista.

Lucia ficou olhando em silêncio para os picos nevados dos Alpes.

"Temos duas vidas diferentes, Rubio e eu. Sou a filha de Angelo Carmine."

- Número, por favor?

"Ele é um camponês. Adorava a vida numa fazenda. Como eu poderia separá-lo disso?"

A telefonista começava a ficar impaciente.

- Em que posso ajudá-la? O que deseja?

- Nada. Nada, obrigada - respondeu Lucia lentamente. Ela desligou.

No início da manhã seguinte, embarcou num voo da Suíça para o Rio.

Sozinha.


Capítulo 39


A reunião teria lugar na luxuosa sala de estar da casa de Ellen Scott. Ela andava de um lado para outro, ansiosa pela chegada de Alan Tucker com a garota. Não. Não uma garota. Uma mulher. Uma freira. Como seria ela? O que a vida lhe fizera? O que eu fiz com ela?

O mordomo entrou.

- Seus visitantes chegaram, madame.

Ela respirou fundo.

- Mande-os entrar.

Um momento depois, Megan e Alan Tucker estavam na sala.

Ela é linda, pensou Ellen.

Tucker sorriu.

- Srª Scott, esta é Megan.

Ellen fitou-o e disse suavemente:

- Não vou mais precisar de você.

Suas palavras tinham uma finalidade inequívoca. O sorriso de Tucker desapareceu.

- Adeus, Tucker.

Ele continuou parado ali por um momento, indeciso, depois balançou a cabeça e se retirou. Não podia reprimir a impressão de que perdera alguma coisa. E importante. "Muito tarde", pensou. "Tarde demais."

Ellen Scott estudava Megan.

- Sente-se, por favor.

Megan sentou-se, e Ellen Scott também, as duas ficaram se examinando.

Ela é parecida com a mãe, pensou Ellen. Cresceu para se tornar uma linda mulher. E Ellen Scott recordou a noite terrível do acidente, a tempestade e o avião em chamas…

"Você disse que ela estava morta…"

"Podemos dar um jeito… O piloto disse que estávamos perto de Ávila. Deve haver muitos turistas por lá. Não há motivo para alguém relacionar a criança com o desastre de avião… Vamos deixá-la numa linda casa de fazenda nos arredores da cidade. Alguém a adotará e ela crescerá para levar uma vida maravilhosa aqui… Você tem de optar, Milo. Pode ter a mim ou pode passar o resto de sua vida trabalhando para a filha do seu irmão."

E agora o passado estava ali, confrontando-a. Por onde começar?

- Sou Ellen Scott, presidente da Scott Industries. Já ouviu falar?

- Não.

Claro que ela não poderia conhecer, Ellen censurou-se.

Seria mais difícil do que ela previra. Inventara uma história sobre a velha amiga da família que morrera, e uma promessa de tomar conta de sua filha - mas no momento em que olhava pela primeira vez para Megan, Ellen compreendera que não daria certo. Não tinha escolha. Devia torcer para que Patricia… Megan… não destruísse tudo. Refletiu sobre o que fizera com a mulher sentada à sua frente, e seus olhos se encheram de lágrimas. "Mas é tarde demais para lágrimas. É hora de corrigir tudo. É hora de contar a verdade." Inclinou-se e pegou a mão de Megan.

- Tenho uma história para lhe contar - disse, calma.


Isso acontecera três anos antes. Durante o primeiro ano, até ficar doente demais para continuar, Ellen Scott mantivera Megan sob sua proteção. Megan fora trabalhar na Scott Industries, e sua aptidão e inteligência encantara a velha senhora, dando-lhe uma aparência mais nova e reforçando-lhe a vontade de viver.

- Terá de trabalhar com afinco - avisara Ellen. - Aprenderá, como eu tive de aprender. No começo será difícil, mas no final se tornará sua vida.

E fora o que ocorrera. Megan trabalhava em horas que nenhum de seus empregados podia conceber.

- Você tem de chegar ao escritório às quatro horas da madrugada e trabalhar o dia inteiro. Será capaz?

Megan sorriu e pensou: "Se eu dormisse até às quatro horas da madrugada no convento, irmã Betina me repreenderia."


Ellen Scott morrera, mas Megan continuara a aprender, observando a companhia crescer. Sua companhia. Ellen Scott a adotara.

- Assim não teremos de explicar por que você é uma Scott - dissera ela.

Mas havia um tom de orgulho em sua voz.

É irônico, pensara Megan. Todos aqueles anos no orfanato, e ninguém quis me adotar. Agora, sou adotada por minha própria família. Deus tem um maravilhoso senso de humor.


Capítulo 40


Um novo homem estava no volante do carro de fuga, e isso deixava Jaime Miró nervoso.

- Não confio nele - explicou Jaime a Felix. - E se ele for embora e nos deixar?

- Relaxe. Ele é cunhado do meu primo. Fará tudo certo. Há muito que suplica por uma oportunidade de sair conosco.

- Tenho um terrível pressentimento - insistiu Jaime.

Eles haviam chegado a Sevilha no início daquela tarde e examinado meia dúzia de bancos, antes de escolherem o alvo.

Era um banco numa rua transversal, pequeno, não havia muito movimento, perto de uma fábrica que efetuava seus depósitos ali. Tudo parecia perfeito. Exceto pelo homem no carro de fuga.

- Ele é tudo o que o preocupa? - perguntou Felix.

- Não.

- O que mais?

Era difícil responder.

- Digamos que é uma premonição.

Jaime falou jovialmente, escarnecendo de si mesmo. Felix levou a sério.

- Quer que eu suspenda a operação?

- Porque estou hoje com os nervos de uma velha lavadeira? Nada disso, amigo. Tudo correrá tão macio quanto seda.

E, no começo, fora o que acontecera.

Havia poucos clientes no banco, e Felix mantivera-os imobilizados com uma arma automática, enquanto Jaime esvaziava as gavetas dos caixas. Suave como seda. Quando os dois saíam, encaminhando-se para o carro de fuga, Jaime gritou:

- Lembrem-se, amigos, que o dinheiro é para uma boa causa.

Foi na rua que tudo começou a desmoronar. Havia guardas por toda a parte. O motorista do carro estava ajoelhado na calçada, a pistola de um guarda encostada em sua cabeça.

No momento em que Jaime e Felix apareceram, um detetive ordenou:

- Larguem as armas!

Jaime hesitou por uma fração de segundo. E depois levantou a arma.


Capítulo 41


O 727 adaptado voava a 35 mil pés de altitude, sobre o Grand Canyon. Fora um dia longo e árduo. "E ainda não acabou", pensou Megan.

Ela seguia para a Califórnia, para assinar os contratos que dariam à Scott Industries quatrocentos mil hectares de terras florestais, ao norte de San Francisco. Megan discutira muito o negócio e saíra levando vantagem.

"A culpa é delas", pensou Megan. "Não deveriam me enganar. Aposto que sou a primeira guarda-livros de um convento Cisterciense que eles já enfrentaram."

Soltou uma risada.

A aeromoça aproximou-se.

- Deseja alguma coisa, Srª Scott?

Ela viu uma pilha de jornais e revistas numa prateleira.

Andara tão ocupada com a transação que não tivera tempo de ler coisa alguma.

- Deixe-me ver o New York Times, por favor.

A notícia estava na primeira página, e saltou a seus olhos. Havia uma fotografia de Jaime Miró. E abaixo a notícia: "Jaime Miró, líder da ETA, o radical movimento separatista basco na Espanha, foi ferido e preso pela polícia durante um assalto a um banco, ontem à tarde, em Sevilha.

Felix Carpio, outro acusado de terrorismo, foi morto no assalto. As autoridades procuravam Miró…"

Megan leu o resto da matéria e ficou imóvel por um longo tempo, recordando o passado. Era como um sonho distante, fotografado através de uma cortina de gás, enevoado e irreal.

"Esta guerra acabará em breve. Conseguiremos o que queremos porque o povo está do nosso lado… Gostaria que você esperasse por mim…"

Há muito tempo ela lera sobre uma civilização em que se acreditava que, quando se salvava a vida de uma pessoa, passava-se a ser responsável por ela. Pois ela salvara Jaime duas vezes…, uma no castelo e outra no parque. "Não posso deixar que o matem agora." Estendeu a mão para o telefone ao lado da poltrona e disse ao piloto:

- Mude a rota. Retornaremos a Nova York.

Uma limusine esperava por ela no aeroporto La Guardia.

Quando ela chegou ao escritório, às duas horas da madrugada, Lawrence Gray já estava à sua espera. O pai fora o melhor advogado da companhia por muitos anos, e se aposentara. O filho era inteligente e ambicioso. Sem qualquer preâmbulo, Megan disse:

- Jaime Miró. O que sabe sobre ele?

A resposta foi imediata:

- É um terrorista basco, líder da ETA. Creio que acabei de ler a notícia de que foi capturado há um ou dois dias.

- Certo. O governo terá de submetê-lo a julgamento. Quero alguém lá. Quem é o melhor advogado criminal do país?

- Eu diria Curtis Hayman.

- Não. Ele é fino demais. Precisamos de alguém implacável. - Megan pensou por um instante. - Chame Mike Rosen.

- Ele já está ocupado pelos próximos cem anos, Megan.

- Desocupe-o. Quero-o em Madrid para o julgamento.

Cray franziu o cenho.

- Não podemos nos envolver num julgamento público na Espanha.

- Claro que podemos. Amicus curiae. Somos amigos do réu.

Ele estudou-a por um momento.

- Importa-se se eu lhe fizer uma pergunta pessoal?

- Claro que me importo. Faça o que estou dizendo.

- Farei o melhor que puder.

- Larry…

- O que é?

- Quero o melhor e mais alguma coisa. - A voz de Megan era dura como aço.

Vinte minutos depois, Lawrence Gray Jr. voltou à sala de Megan.

- Mike Rosen está no telefone. Acho que o acordamos. Ele quer falar com você.

Megan pegou o telefone.

- Sr. Rosen? É um prazer falar-lhe. Nunca nos encontramos pessoalmente, mas tenho a impressão de que vamos nos tornar grandes amigos. Muitas pessoas processam a Scott Industries para tentar nos arrancar alguma coisa, e tenho procurado por alguém para assumir nosso departamento jurídico. Seu nome sempre aflora. Claro que estou disposta a lhe pagar muito bem…

- Senhorita Scott…

- Pois não?

- Não me importo de pegar um trabalho que é uma fria, mas você está me jogando uma gelada.

- Não entendi.

- Pois então permita-me usar o jargão legal. Sem rodeios. São duas horas da madrugada. Ninguém contrata ninguém às duas da madrugada.

- Sr. Rosen…

- Mike. Vamos ser grandes amigos, está lembrada? Mas amigos devem confiar um no outro. Larry me disse que você quer que eu vá à Espanha e tente salvar um terrorista basco que está no poder da polícia.

Ela já ia dizer: "Ele não é terrorista", mas se conteve.

- É isso mesmo.

- Qual é o seu problema? Ele está processando a Scott Industries porque sua arma emperrou?

- Ele…

- Sinto muito, amiga. Não posso ajudá-la. Estou com a agenda tão cheia que desisti de ir ao banheiro há seis meses. Posso recomendar alguns advogados…

"Não", pensou Megan. "Jaime Miró precisa de você." E ela foi subitamente dominada por um senso de desespero. A Espanha era outro mundo, outro tempo. Quando falou, a voz cansada:

- Não importa. É um assunto pessoal. Desculpe tê-lo incomodado.

- Ei, é para isso que servem os amigos! Uma questão pessoal é diferente, Megan. Para dizer a verdade, estou ansioso em saber por que a presidente da Scott Industries se interessa em salvar um terrorista espanhol. Está livre para o almoço amanhã?

Megan não permitiria que nada a atrapalhasse.

- Estou.

- Le Cirque, à uma hora?

Megan sentiu-se mais animada.

- Combinado.

- Faça a reserva. Mas devo alertá-la para uma coisa.

- O que é?

- Tenho uma mulher muito bisbilhoteira.


Os dois se encontraram no Le Cirque. Depois que Sirio deixou-os à mesa, Mike Rosen disse:

- Você é mais bonita do que nas fotografias. Aposto que todo mundo lhe diz isso. - Ele era bem baixo e vestia-se de maneira descuidada. Mas não havia nada mais descuidado em sua mente. - Despertou minha curiosidade - declarou Mike Rosen. - Qual seu interesse por Jaime Miró?

Havia muito para dizer. Coisas demais para contar. Megan limitou-se a responder:

- Ele é um amigo. Não quero que morra.

Rosen inclinou-se para a frente.

- Examinei os arquivos de jornal sobre ele esta manhã. Se o governo de Don Juan Carlos executar Miró apenas uma vez, ele estará levando vantagem. Eles ficarão roucos só de ler acusações contra seu amigo. - Ele percebeu a expressão de Megan. - Desculpe, mas preciso ser franco. Miró tem andado muito ocupado. Assaltando bancos, explode carros, assassina pessoas…

- Ele não é um assassino, mas um patriota. Está lutando por seus direitos.

- Está bem, está bem. Ele é meu herói também. O que deseja que eu faça?

- Salve-o.

- Megan, somos tão bons amigos que vou lhe dizer a verdade absoluta. O próprio Jesus Cristo não poderia salvá-lo. Está à procura de um milagre que…

- Acredito em milagres. Vai me ajudar?

Ele estudou-a por um momento.

- Para que servem os amigos? Já experimentou o paté? Ouvi dizer que eles o fazem koser.


O Fax de Madrid dizia: "Falei com alguns dos maiores advogados europeus. Todos se recusam a defender Miró. Tentei ser admitido no julgamento, como amicus curiae. O tribunal não me aceitou. Gostaria de poder realizar o milagre para você, amiga, mas Deus ainda não se levantou. Estou voltando. Você me deve um almoço. Mike.


O julgamento estava marcado para começar a 17 de setembro.

- Cancele todos os meus compromissos - ordenou Megan a um assistente. - Tenho alguns negócios em Madrid.

- Quanto tempo vai demorar?

- Não sei.

Ela planejou sua estratégia no avião, enquanto sobrevoava o Atlântico. Deve haver uma maneira, pensou Megan. Tenho dinheiro e puder. O primeiro-ministro é a chave. Preciso entrar em contato com ele antes do início do julgamento. Depois disso, será tarde demais.

Megan teve uma reunião com o primeiro-ministro Leopoldo Martínez 24 horas depois de chegar a Madrid. Ele convidou-a para almoçar no Palácio Moncloa.

- Agradeço por me receber tão prontamente - disse Megan. - Sei que é um homem ocupado.

Ele levantou a mão num gesto de protesto.

- Minha cara Senhorita Scott, quando a presidente de uma organização tão importante quanto a Scott Industries voa para meu país querendo me falar, só posso me sentir honrado. Por favor, diga-me em que posso ajudá-la.

- Para ser franca, vim até aqui para ajudá-lo. Ocorreu-me que temos algumas fábricas na Espanha, mas não estamos aproveitando todo o potencial que seu país tem a oferecer.

Martínez escutava agora com toda atenção, os olhos brilhando.

- É mesmo.

- A Scott Industries está pensando em instalar uma enorme fábrica de material eletrônico. Deve empregar entre mil e mil e quinhentas pessoas. Se for bem-sucedida, como esperamos, abriremos fábricas subsidiárias.

- E ainda não decidiu em que país deseja instalar essa fábrica?

- Isso mesmo. Pessoalmente, sou a favor da Espanha. Mas para ser franca, Excelência, alguns dos meus executivos não estão satisfeitos com a situação dos direitos civis aqui.

- É mesmo?

- É, sim. Acham que as pessoas que protestam contra as políticas do Estado são tratadas com muito rigor.

- Está pensando em alguém em particular?

- Para dizer a verdade, estou, sim. Jaime Miró.

Ele fitou-a em silêncio por um momento.

- Entendo. E se formos clementes com Jaime Miró, teríamos a fábrica de material eletrônicos e…

- E muito mais - assegurou Megan. - Nossas fábricas elevarão o padrão de vida em todas as comunidades em que se instalarem.

O primeiro-ministro franziu o rosto.

- Receio que haja um pequeno problema.

- Qual? Podemos negociar tudo.

- Trata-se de algo que não pode ser negociado, Senhorita Scott. A honra da Espanha não está à venda. Não pode nos subornar, comprar ou ameaçar.

- Pode ter certeza de que não estou…

- Chega aqui com suas esmolas e espera que ignoremos nossos tribunais para agradá-la? Pense bem, Senhorita Scott. Não precisamos de suas fábricas.

Piorei a situação, pensou Megan.


O julgamento durou seis semanas, num tribunal sobre forte guarda, fechado ao público.

Megan permaneceu em Madrid, acompanhando todos os dias as notícias do julgamento. Mike Rosen telefonava-lhe de vez em quando.

- Sei pelo que está passando, amiga. Acho que deveria voltar para casa.

- Não posso, Mike.

Ela tentou se encontrar com Jaime.

As visitas estavam terminantemente proibidas.


No último dia do julgamento, Megan prostrou-se diante do tribunal, perdida na multidão. Repórteres saíram correndo do prédio, e Megan deteve um deles.

- O que aconteceu?

- Ele foi considerado culpado de todas as acusações. E condenado à morte pelo garrote.


Capítulo 42


Às cinco horas da manhã marcada para a execução de Jaime Miró, uma multidão começou a concentrar-se diante da prisão central de Madrid. A Guarda Civil ergueu barricadas para manter a multidão crescente no outro lado da ampla rua, longe da entrada principal da prisão. Soldados e tanques bloqueavam os portões da prisão.

Lá dentro, no gabinete do diretor Gomez de la Fuente, ocorria uma reunião extraordinária. Ali estavam o primeiro-ministro Leopoldo Martínez, Alonzo Sebastián, o novo comandante do GOE, e os dois assistentes do diretor, Juanito Molinas e Pedro Arrango.

O diretor La Fuente era um homem corpulento, de meia-idade, expressão taciturna, que devotara sua vida a disciplinar criminosos que o governo entregara a seus cuidados. Molina e Arrango, seus inflexíveis assistentes, trabalhavam com ele há vinte anos.

O primeiro-ministro Martínez estava falando:

- Eu gostaria de saber que providências foram adotadas para evitar que haja problemas na execução de Miró.

O diretor de la Fuente respondeu:

- Estamos preparados para todas as emergências possíveis, Excelência. Como constatou ao chegar, foi colocada uma companhia inteira de soldados armados em volta da prisão. Seria preciso um exército para entrar aqui.

- E dentro da prisão?

- As precauções são ainda mais rigorosas. Jaime Miró encontra-se numa cela de segurança máxima no segundo andar. Os outros prisioneiros do andar foram temporariamente transferidos. Dois guardas estão na frente da cela de Miró, e há mais dois em cada extremidade do corredor. Ordenei que todos os presos permaneçam em suas celas até o término da execução.

- A que horas será?

- Ao meio-dia, Excelência. Adiei o almoço para a uma hora. Isso nos dará tempo suficiente para tirar o corpo de Miró daqui.

- Que planos fez para a disposição do corpo?

- Estou seguindo sua sugestão, Excelência. O sepultamento na Espanha poderia causar dificuldades ao governo, se os bascos convertessem a sepultura numa espécie de santuário. Entramos em contato com a tia dele na França. Ela vive numa pequena aldeia, nos arredores de Bayonne. Concordou em enterrá-lo lá.

O primeiro-ministro levantou-se.

- Excelente. - Ele suspirou. - Ainda acho que um enforcamento em praça pública seria mais apropriado.

- É possível, Excelência. Mas, nesse caso, eu não poderia mais ser responsável pelo controle da multidão lá fora.

- Acho que você tem razão. Não há sentido em atiçar a multidão mais do que necessário. O garrote é mais doloroso e mais lento. E se algum homem merece o garrote, é Jaime Miró.

- Com licença, Excelência - disse o diretor de la Fuente -, mas fui informado de que uma comissão de juízes está reunida para considerar o último apelo dos advogados de Miró. Se for aceito, o que devo…

O primeiro-ministro interrompeu-o:

- Não será aceito. A execução será realizada de acordo com o previsto.

A reunião estava encerrada.


Às sete e meia da manhã, o caminhão da padaria parou na frente dos portões da prisão.

- Entrega.

Um dos guardas da prisão examinou o motorista.

- Você não é novo?

- Sou, sim.

- Onde está Julio?

- Está doente, de cama.

- Por que não vai para junto dele, amigo?

- Como?

- Não há entregas esta manhã. Volte à tarde.

- Mas todas as manhãs…

- Nada entra, e apenas uma coisa vai sair. E agora dê marcha à ré, faça a volta e saia depressa daqui, antes que meus companheiros fiquem nervosos.

O motorista olhou para os soldados que o fitavam fixamente.

- Claro.

Ele observou o caminhão fazer a volta e desaparecer pela rua.

O comandante de guarda comunicou o incidente ao diretor. A história foi investigada e descobriu-se que o entregador regular estava no hospital, vítima de um atropelamento, tendo o responsável fugido.

Às oito horas da manhã, um carro-bomba explodiu no outro lado da rua, em frente à prisão, ferindo meia dúzia de pessoas. Em circunstâncias normais, os guardas deixariam seus postos para investigar e ajudar os feridos. Mas tinham ordens rigorosas. Permaneceram em seus postos, e a Guarda Civil foi chamada para cuidar da situação.

O incidente foi imediatamente comunicado ao diretor de la Fuente, que comentou:

- Eles estão ficando desesperados. Dispostos a qualquer coisa.


Às nove e quinze da manhã, um helicóptero sobrevoou a área da prisão. Pintada nos lados estavam as palavras La Prensa, o maior jornal da Espanha.

Dois canhões anti-aéreos haviam sido instalados no telhado da prisão. O tenente no comando acenou uma bandeira de sinalização, avisando para o aparelho se afastar. O helicóptero continuou a sobrevoar o local. O tenente pegou um telefone de campanha.

- Diretor, temos um helicóptero sobrevoando a prisão.

- Alguma identificação?

- Diz La Prensa, mas parece ser recém-pintado.

- Dê um tiro de advertência. Se o helicóptero não se afastar, pode derrubá-lo.

- Está certo, senhor. - O tenente acenou com a cabeça para seu artilheiro. - Dispare um tiro próximo.

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