Bennet colocou-a na frente de um microfone.

- Não tenho um pianista disponível hoje, e por isso terá de cantar uma capela. Sabe o que significa a capela?

- Sei, sim senhor.

- Maravilhoso.

Ele questionou, não pela primeira vez, se a tia seria rica o suficiente para fazer com que todas aquelas audições valessem a pena.

- Ficarei na cabine de controle. Terá tempo para uma canção.

- Senhor… o que devo…?

Ele se fora. Teresa ficou sozinha no estúdio, diante do microfone. Não tinha a menor idéia do que iria cantar.

- Basta procurá-lo - dissera a tia. - A emissora tem um programa musical todas as noites de sábado e…

"Preciso sair daqui."

- Não tenho o dia todo - soou a voz de Louis de repente.

- Desculpe, mas não posso…

O diretor, no entanto, estava determinado a puni-la por desperdiçar seu tempo.

- Só algumas notas - insistiu.

O suficiente para que pudesse dizer à tia como a garota fora uma tola. Talvez isso a persuadisse a parar de enviar seus protégés.

- Estou esperando - acrescentou.

Bennet recostou-se na cadeira e acendeu um Gitane. Mais quatro horas de trabalho. Yvette estaria à sua espera. Teria tempo de passar no seu apartamento, antes de ir para casa e a esposa.

Talvez até houvesse tempo para…

Foi neste instante que ele ouviu e não pôde acreditar. Era uma voz tão pura e tão suave que provocou calafrios por sua espinha. Uma voz impregnada de anseios e desejo, que cantava a solidão e o desespero, amores perdidos e sonhos mortos, uma voz que lhe trouxe lágrimas aos olhos. Avivou nele emoções que julgava há muito mortas. "Meu Deus! Onde estava ela?"

Um técnico de som passava pela cabine de controle e parou, ao ouvir aquela voz, fascinado. A porta estava aberta, e outros começaram a chegar, atraídos pela voz. Ficaram parados em silêncio, ouvindo o som pungente de um coração clamando desesperadamente por amor. Não havia qualquer outro som na cabine.

Quando a canção terminou, houve silêncio prolongado, até que uma mulher murmurou:

- Quem quer que ela seja, não a deixe escapar.

Louis Bennet passou apressado para o estúdio. Teresa preparava-se para sair.

- Desculpe por ter demorado tanto. É que eu nunca…

- Sente-se, Maria.

- Teresa.

- Desculpe. - Ele respirou fundo. - Temos um programa musical nas noites de sábado.

- Eu sei. Sempre o escuto.

- Gostaria de participar?

Teresa fitou aturdida, incapaz de acreditar no que ouvia.

- Está querendo dizer… quer me contratar?

- A partir desta semana. No início, pagaremos o mínimo, mas será uma excelente promoção para você.

Era quase bom demais para ser verdade. "Eles vão me pagar para cantar."


- Pagar? - exclamou Monique. - Quanto?

- Não sei. E também não me importa.

"O importante é que alguém me quer", quase acrescentou, mas se conteve a tempo.

- É uma notícia maravilhosa. Então você vai apresentar-se no rádio! - comentou o pai.

A mãe já começava a fazer planos.

- Pediremos a todos os nossos amigos para escutarem e mandarem cartas com elogios à sua voz.

Teresa olhou para Monique, à espera de que a irmã dissesse:

"Não precisam de fazer isso. Teresa é muito boa."

Mas Monique não disse nada. "Isso passará depressa", era o que ela estava pensando.

Estava enganada.


Na noite de sábado, na emissora de rádio, Teresa estava em pânico.

- Fique tranquila, pois isso é perfeitamente natural - garantiu Louis Bennet. - Todos os artistas passam por tal momento.

Estavam sentados na pequena sala usada pelos artistas.

- Você será uma sensação.

- Acho que vou vomitar.

- Não há tempo. Entrará no ar dentro de dois minutos.

Teresa ensaiara naquela tarde com uma pequena orquestra que a acompanharia. O ensaio fora extraordinário. O estúdio em que fora realizado estava lotado pelo pessoal da emissora, que ouvira falar da moça com a voz incrível. Todos escutaram em silêncio enquanto Teresa ensaiava as canções que iria cantar no ar.

Ninguém duvidava de que estavam testemunhando o nascimento de uma estrela importante.

- É uma pena que ela não seja bonita - comentou um contra-regra. - Mas, pelo rádio, quem pode saber a diferença.


O desempenho de Teresa naquela noite foi magnífico. Ela sabia que nunca cantara melhor. E quem sabia até aonde aquilo poderia levá-la? Talvez, se se tornasse famosa, tivesse homens a seus pés, suplicando para que casasse com eles. Como acontecia com Monique.

Monique comentou, como se lesse seus pensamentos:

- Estou muito feliz por você, mana, mas não fique muito entusiasmada. Essas coisas nunca duram para sempre.

"Isso vai durar", pensou Teresa, na maior felicidade. "Sou finalmente uma pessoa. Sou alguém."

Na manhã de segunda-feira houve um telefonema interurbano para Teresa.

- Provavelmente é uma brincadeira - advertiu o pai. - A pessoa se apresentou como Jacques Raimu.

"O mais importante diretor artístico da França." Teresa atendeu, cautelosa.

- Alô?

- Señorita De Fosse?

- Teresa De Fosse?

- Isso mesmo.

- Sou Jacques Raimu. Ouvi seu programa de rádio na noite de sábado. É exatamente do que estava à procura.

- Eu… eu não compreendo…

- Estou encenando uma peça na Comédie Française, um musical. Começo os ensaios na próxima semana, e estava à procura de alguém com uma voz como a sua. Para ser franco, não há ninguém com uma voz como a sua. Quem é seu agente?

- Agente? Eu… eu não tenho agente.

- Pois então irei até aí pessoalmente e faremos um contrato.

- Monsieur Raimu… eu… não sou bonita.

Era angustiante dizer as palavras, mas Teresa sabia que era necessário. "Ele não deve criar falsas expectativas." Raimu riu.

- Espere até depois de eu a produzir. O teatro é faz-de-conta. A maquilagem pode fazer as mágicas mais incríveis.

- Mas…

- Estarei aí amanhã.


Era um sonho por cima de uma fantasia. Estrelar numa peça de Raimu!

- Acertarei o contrato com ele - declarou o pai de Teresa. - É preciso tomar muito cuidado quando se lida com essa gente de teatro.

- Precisamos comprar um vestido novo para você - sugeriu a mãe. - E eu o convidarei para jantar.

Monique não comentou nada. Considerava aquela situação insuportável. Não podia aceitar que a irmã se tornasse uma estrela. Talvez houvesse uma maneira…

Monique deu um jeito para ser a primeira a descer quando Jacques Raimu chegou à residência dos De Fosse naquela tarde.

Ele foi recebido por uma jovem tão bonita que seu coração exultou.

Ela vestia um traje branco simples que ressaltava seu corpo à perfeição.

"Por Deus!", pensou ele. "Esta aparência e a voz! Ela é perfeita. Será uma estrela de sucesso."

- Não tenho palavras para expressar como me sinto feliz por conhecê-la - disse Raimu.

Monique sorriu efusivamente.

- Também me sinto muito feliz por conhecê-lo. Sou uma grande admiradora sua, Monsieur Raimu.

- Ótimo. Já vi que trabalharemos juntos muito bem. Trouxe um roteiro comigo. É uma linda história de amor e eu acho…

Nesse momento Teresa entrou na sala. Usava um vestido novo, mas mesmo assim parecia desajeitada. Parou ao deparar com Jacques Raimu.

- Ahn… como vai? Não sabia que estava aqui… chegou mais cedo.

Ele olhou para Monique, inquisitivo.

- Esta é minha irmã - disse Monique. - Teresa.

As duas notaram a mudança de expressão de Raimu. Passou do choque ao desapontamento e repulsa.

- Você é a cantora?

- Isso mesmo.

Ele virou-se para Monique.

- E você…

Monique sorriu, com um ar de inocência.

- Sou a irmã de Teresa.

Raimu virou-se para examinar Teresa outra vez, depois sacudiu a cabeça.

- Sinto muito. Você é… - Ele hesitou, à procura da palavra apropriada. -… jovem demais. E agora, se me dão licença, preciso voltar a Paris.

As irmãs ficaram paradas ali, observando Raimu encaminhar-se para a porta.

"Deu certo", pensou Monique, exultante. "Deu certo."


Foi o último programa de rádio de Teresa. Louis Bennet suplicou que voltasse, mas ela sentia-se muito magoada.

"Depois de olhar para minha irmã", pensou, "como alguém pode me querer? Sou muito feia."

Enquanto vivesse, jamais esqueceria a expressão de Jacques Raimu.

"A culpa é minha, por ter acalentado sonhos absurdos. Essa é a maneira de Deus me punir."

Depois disso, Teresa cantaria apenas na igreja e se tornaria ainda mais reclusa.

Durante os dez anos seguintes, a bela Monique recusou mais de uma dúzia de pedidos de casamento. Foi cortejada pelos filhos do prefeito, banqueiros, médicos e comerciantes da aldeia. Os pretendentes variavam de jovens recém-saídos da escola a homens maduros, bem-sucedidos, na casa dos quarenta e cinquenta anos.

E a todos Monique dizia "Non."

- O que está procurando? - perguntou-lhe o pai, desconcertado.

- Todos aqui são muito chatos, papai. Éze é um lugar sem a menor sofisticação. Meu príncipe encantado está em Paris.

E, assim, submisso, o pai mandou-a para Paris. Como um pensamento posterior, também enviou Teresa. As duas moças ficaram num pequeno hotel no Bois de Boulogne.

Cada irmã viu uma Paris diferente. Monique frequentava bailes de caridade e jantares elegantes, tomava chá com rapazes da nobreza. Teresa visitava Les Invalides e o Louvre. Monique ia às corridas em Longchamp e às festas de gala em Malmaison. Teresa ia à Catedral de Notre Dame para rezar, passeava pelo caminho arborizado do canal São Martin. Monique ia ao Maxim's e ao Moulin Rouge, enquanto Teresa andava pelos Quais, parando nas livrarias e florista, entrando na Basílica de São Denis. Teresa gostou de Paris, mas para Monique a viagem foi um fracasso.

Ao voltarem para casa, Monique disse:

- Não encontrei qualquer homem com quem quisesse casar.

- Não conheceu ninguém que a interessasse? - perguntou o pai.

- Não. Houve um rapaz que me levou para jantar no Maxim's. O pai é dono de minas de carvão.

- Como ele era? - indagou a mãe, ansiosa.

- Era rico, bonito, polido e me adorava.

- Ele pediu-a em casamento?

- A cada dez minutos. Finalmente me recusei a vê-lo de novo.

A mãe ficou espantada.

- Por quê?

- Porque ele só sabia falar sobre carvão: carvão betuminoso, carvão de pedra, carvão preto, carvão cinzento. Muito chato.


No ano seguinte, Monique decidiu que queria voltar a Paris.

- Vou arrumar minhas malas - disse Teresa.

Monique sacudiu a cabeça.

- Não. Desta vez acho que irei sozinha.

Assim, enquanto Monique ia a Paris, Teresa ficava em casa e frequentava a igreja todas as manhãs, rezando para que a irmã encontrasse um belo príncipe.


E um dia o milagre aconteceu. Um milagre porque foi com Teresa que aconteceu. Seu nome era Raul Giradot.

Ele foi à igreja de Teresa num domingo e ouviu-a cantar.

Nunca antes escutara nada parecido.

"Preciso conhecê-la", pensou.

No início da manhã de segunda-feira, Teresa foi ao armazém-geral da aldeia, para comprar tecido para um vestido que queria fazer. Raul Giradot trabalhava por trás do balcão.

Levantou os olhos quando Teresa entrou e seu rosto se iluminou.

- A voz!

Ela ficou embaraçada.

- Como… o que disse?

- Ouvi você cantar na igreja ontem. É magnífica.

Ele era alto e bonito, olhos escuros inteligentes e faiscantes, lábios atraentes e sensuais. Tinha trinta e poucos anos, um ou dois a mais do que Teresa.

Ela ficou tão atordoada por sua aparência que pôde apenas balbuciar. Fitou-o fixamente, o coração disparado.

- O-obrigada… eu… eu queria três metros de musselina, por favor.

Raul sorriu.

- Terei o maior prazer em atendê-la. Por aqui.

Subitamente, era difícil para Teresa concentrar-se na compra. Estava consciente demais da presença do rapaz, quase sufocando, consciente de sua beleza e charme, da aura viril que o cercava.

Depois que Teresa escolheu, enquanto Raul embrulhava o tecido, ela tomou coragem para perguntar:

- Você… é novo aqui, não é mesmo?

Ele olhou para ela e sorriu, e calafrios a percorreram.

- Oui. Cheguei em Éze há poucos dias. Minha tia é dona desta loja e precisava de ajuda, por isso resolvi passar algum tempo aqui.

"Quanto será algum tempo?", Teresa descobriu-se a especular.

- Deveria cantar profissionalmente - comentou Raul.

Ela lembrou a expressão de Raimu ao vê-la. Não, não se arriscaria a se expor publicamente outra vez.

- Obrigada - murmurou Teresa.

Ele ficou enternecido com o embaraço e timidez de Teresa e tentou puxar conversa.

- Nunca estive em Éze antes. É uma linda cidadezinha.

- É, sim.

- Nasceu aqui?

- Nasci.

- Gosta do lugar?

- Gosto.

Teresa pegou o embrulho e fugiu.

No dia seguinte ela arrumou um pretexto para voltar à loja. Passara metade da noite acordada, pensando no que diria a Raul.

"Estou contente que goste de Éze… Sabia que o mosteiro foi construído no século catorze… Já visitou Saint-Paul-de-Vence? Há uma capela ali… Gosto de Monte Carlo… e você? É maravilhoso saber que está perto daqui. Às vezes minha irmã e eu vamos de carro ao Grand Corniche e ao Teatro Fort Antoine. Por acaso você conhece? É um teatro grande, ao ar livre… Sabia que Nice já se chamou Nikaia? Oh, não sabia? Pois é verdade. Os gregos estiveram lá há muito tempo. Há um museu em Nice com as relíquias de homens das cavernas que lá viveram há milhares de anos. Não é interessante?"

Teresa estava preparada, com tudo que ia dizer guardado na cabeça. Infelizmente, no momento em que entrou na loja e avistou Raul, tudo fugiu-lhe da mente. Limitou-se a fitá-lo fixamente, incapaz de falar.

- Bonjour - disse Raul, jovialmente. - É um prazer tornar a vê-la, Mademoiselle De Fosse.

- Merci. - Teresa sentiu-se uma idiota. "Estou com trinta anos. E me comporto como uma colegial. Pare com isso."

Mas ela não podia parar.

- Em que posso servi-la?

- Eu… preciso de mais musselina.

O que era a última coisa de que ela precisava.

Ela observou Raul pegar a peça de tecido. Ele colocou-a no balcão e começou a medir.

- Quantos metros vai querer?

Teresa começou a responder dois metros, mas o que saiu foi outra coisa:

- Você é casado?

Ele fitou-a com um sorriso afetuoso.

- Não. Ainda não tive essa sorte.

"Pois vai ter", pensou Teresa. "Assim que Monique voltar de Paris."

Monique adoraria aquele homem. Eram perfeitos um para o outro. O pensamento da reação de Monique ao conhecer Raul encheu Teresa de felicidade. Seria maravilhoso ter Raul Giradot como cunhado.

No dia seguinte, quando Teresa passava pela loja, Raul avistou-a e saiu apressado.

- Boa tarde, mademoiselle. Eu ia tirar uma folga. Se está livre, não gostaria de tomar chá comigo?

- Eu… eu… está bem, obrigada.

Sentiu-se com a língua presa em sua presença, embora Raul não pudesse ser mais simpático. Fez tudo que podia para deixá-la à vontade, e logo Teresa se descobriu a contar àquele estranho coisas que nunca dissera a ninguém antes. Falaram de solidão.

- As multidões me deixam solitária - comentou Teresa. - Sempre me sinto como uma ilha num mar de pessoas.

Ele sorriu.

- Eu compreendo.

- Mas deve ter muitos amigos…

- Conhecidos. Afinal, será que alguém tem realmente amigos?

Era como se ela estivesse falando para uma imagem no espelho. O tempo passou depressa, e logo estava na hora de Raul voltar ao trabalho. Quando se levantaram, ele perguntou:

- Não quer almoçar comigo amanhã?

Ele estava apenas sendo gentil, é claro. Teresa sabia que nenhum homem poderia se sentir atraído por ela. Especialmente alguém tão maravilhoso como Raul Giradot. Tinha certeza que ele era gentil com todo mundo.

- Eu gostaria muito - respondeu Teresa.

Ao se encontrarem no dia seguinte, Raul disse, com um entusiasmo infantil:

- Consegui ficar de folga a tarde toda. Se não estiver muito ocupada, por que não vamos até Nice?

Seguiram pela Moyenne Corniche no carro de Raul, com a capota arriada, a cidade estendeu-se abaixo deles como um tapete mágico. Teresa recostou-se no assento e pensou: "Nunca me senti tão feliz." E depois, com um sentimento de culpa: "Estou feliz por Monique."

A irmã estava para voltar de Paris no dia seguinte. Raul seria o presente de Teresa para ela. Era bastante realista para saber que os Rauls do mundo não eram para ela. Já sofrera demais na vida, e há muito aprendera a distinguir o que era real ou não. O homem bonito ao seu lado, guiando o carro, era um sonho impossível que ela sequer podia se permitir.

Almoçaram no Le Chantecler, no Hotel Negresco, em Nice. Foi uma refeição magnífica, mas depois Teresa não se lembrou do que comeu. Tinham muitas coisas a dizer um para o outro. Ele era espirituoso e encantador, parecia achar Teresa interessante… realmente interessante. Perguntou sua opinião sobre muitas coisas e escutou com atenção as respostas. Concordaram sobre quase tudo.

Era como se fossem almas gêmeas. Se Teresa tinha algum pesar pelo que estava prestes a acontecer, tratou de expulsá-lo da mente, determinada.

- Gostaria de jantar no château amanhã? Minha irmã está voltando de Paris. Gostaria que a conhecesse.

- Eu teria o maior prazer, Teresa.


Quando Monique chegou em casa no dia seguinte, Teresa apressou-se em recebê-la na porta. Apesar de sua determinação, não pôde deixar de perguntar:

- Conheceu alguém interessante em Paris? - Prendeu a respiração, à espera da resposta da irmã.

- Os mesmos homens chatos de sempre - anunciou Monique.

Então Deus tomara a decisão final.

- Convidei alguém para jantar esta noite - anunciou Teresa. - Acho que vai gostar dele.

"Não devo nunca deixar que alguém saiba o quanto gosto dele", pensou Teresa.

Naquela noite, às sete e meia em ponto, o mordono levou Raul Giradot até a sala de estar, onde Teresa, Monique e os pais esperavam.

- Minha mãe e meu pai. Monsieur Raul Giradot.

- Muito prazer.

Teresa respirou fundo.

- E minha irmã, Monique.

- Como vai?

A expressão de Monique era polida, nada mais. Teresa olhou para Raul, esperando vê-lo atordoado pela beleza de Monique.

- Muito prazer.

Apenas cortês.

Teresa continuou imóvel, a respiração presa, à espera das faíscas que surgiriam entre os dois. Mas Raul fitou-a e disse:

- Você está muito bonita esta noite, Teresa.

Ela corou e balbuciou:

- Oh, obrigada…

Tudo naquela noite foi confuso. O plano de Teresa de aproximar Monique e Raul, vê-los casar, ter Raul como cunhado… nada disso sequer começou a acontecer. Por mais incrível que pudesse parecer, a atenção de Raul concentrou-se toda em Teresa.

Era como um sonho impossível que se tornara realidade.

Sentia-se como Cinderela, só que era a irmã feia, e o príncipe a escolhera. Era irreal, mas estava acontecendo. Teresa descobriu-se a fazer um esforço para resistir a Raul e seu charme, porque sabia que era bom demais para ser verdade, e temia ser magoada outra vez.

Durante todos aqueles anos escondera suas emoções, protegendo-se contra o sofrimento que acompanhava a rejeição. Agora, instintivamente, tentou mais uma vez fazer a mesma coisa. Mas Raul era irresistível.

- Ouvi sua filha cantar - disse Raul. - Ela é um milagre.

Teresa corou.

- Todo mundo adora a voz de Teresa - comentou Monique, suavemente.

Foi uma noite inebriante. Mas a melhor coisa ainda estava para acontecer. Ao terminar o jantar, Raul disse aos pais de Teresa:

- Seus jardins parecem adoráveis. - Então olhou para Teresa - Você me levaria para vê-los?

Teresa olhou para Monique, tentando decifrar as emoções da irmã. Mas Monique parecia completamente indiferente.

"Ela deve estar cega, surda e muda", pensou Teresa.

E depois recordou todas as ocasiões em que Monique fora a Paris, Cannes e São Tropez, à procura de seu príncipe encantado, sem jamais encontrá-lo.

"Então a culpa não é dos homens. É da minha irmã. Monique não tem a menor idéia do que quer."

Teresa virou-se para Raul.

- Terei o maior prazer.

Lá fora, ela não pode abandonar o assunto.

- Gostou de Monique?

- Parece muito simpática - respondeu Raul. - Pergunte o quanto gosto da irmã dela.

E ele abraçou-a e beijou-a.

Foi diferente de tudo o que Teresa já experimentara antes. Ela tremeu nos braços de Raul e pensou: "Obrigada, Deus. Oh, muito obrigada!"

- Quer jantar comigo amanhã? - perguntou Raul.

- Quero, sim - balbuciou Teresa.

Quando as duas irmãs ficaram sós, Monique comentou:

- Ele parece gostar mesmo de você.

- Acho que sim - murmurou Teresa, timidamente.

- Gosta dele?

- Gosto.

- Tome cuidado, mana. - Monique soltou uma risada. - Não deixe que lhe suba à cabeça.

"Tarde demais", pensou Teresa, desamparada. "Tarde demais."


Teresa e Raul então passaram a encontrar-se todos os dias.

Em geral, Monique os acompanhava. Os três passeavam juntos pelas praias de Nice, riam diante de hotéis com aparência de bolos de casamento. Almoçaram no Hotel du Cap, em Cap d'Antibes, visitaram a Capela Matisse, em Vence. Jantaram no Château de la Chévre d'Or e na fabulosa La Ferme São Michel. Uma manhã, às cinco horas, os três foram ao mercado do produto, que se espalhava pelas ruas de Monte Carlo, compraram pão fresco, legumes e frutas.

Aos domingos, quando Teresa cantava na igreja, Raul e Monique ali estavam para ouvir. Depois, Raul abraçava Teresa e murmurava:

- Você é mesmo um milagre. Eu poderia ouvi-la cantar pelo resto da minha vida.

Quatro semanas depois de se conhecerem, Raul pediu-a em casamento.

- Tenho certeza que poderia conquistar qualquer homem que quisesse, Teresa, mas eu ficaria honrado se me escolhesse.

Por um momento terrível, Teresa pensou que ele estava escarnecendo, mas Raul acrescentou, antes que ela pudesse dizer qualquer coisa:

- Minha querida, devo-lhe dizer que já conheci muitas mulheres, mas você é a mais sensível, a mais talentosa, a mais afetuosa… Cada palavra soava como música aos ouvidos de Teresa. Queria rir; queria chorar. "Como sou abençoada por amar e ser amada", pensou.

- Quer casar comigo?

Depois que Raul foi embora, Teresa correu para a biblioteca, onde a irmã, o pai e a mãe tomavam café.

- Raul me pediu em casamento! - Seu rosto estava radiante e quase tinha beleza.

Os pais ficaram aturdidos.

Foi Monique quem falou.

- Tem certeza que ele não está atrás do dinheiro da família, Teresa?

Aquilo soava como um tapa na cara.

- Não quis ser grosseira - acrescentou Monique -, mas tudo parece acontecer depressa demais.

Teresa estava determinada a não permitir que coisa alguma destruísse sua felicidade.

- Sei que quer me proteger, mas Raul tem dinheiro. O pai deixou-lhe uma pequena herança, e ele não tem medo de trabalhar para ganhar a vida. - Teresa pegou a mão da irmã e suplicou: - Por favor, Monique, fique contente por mim. Nunca pensei em conhecer este sentimento. Sinto-me tão feliz, eu poderia morrer.

Os três abraçaram-na e disseram como estavam felizes por ela, começaram a discorrer excitados sobre os planos para o casamento.

Na manhã seguinte, bem cedo, Teresa foi à igreja e ajoelhou-se para rezar.

- Obrigada, Pai. Obrigada por me conceder tanta felicidade. Farei tudo para me mostrar à altura do Seu amor e do amor de Raul. Amém.

Teresa entrou no armazém-geral, nas nuvens e disse:

- Se não se incomoda, meu caro senhor, eu gostaria de encomendar um tecido para um vestido de noiva.

Raul riu e abraçou-a.

- Você será uma noiva maravilhosa.

E Teresa sabia que ele falava sério. Era esse o milagre.

O casamento foi marcado para o mês seguinte, na igreja da aldeia. Monique, é claro, seria a madrinha.

Às cinco horas da tarde de sexta-feira, Teresa falou com Raul pela última vez. Ao meio-dia e meia de sábado, à espera de Raul na sacristia da igreja, já com um atraso de meia hora, Teresa foi procurada pelo padre. Ele pegou-a pelo braço e levou-a para um canto. Teresa ficou espantada com sua agitação. O coração começou a bater forte.

- Qual é o problema? Aconteceu alguma coisa com Raul?

- Oh, minha cara… - murmurou o padre. - Minha pobre e querida Teresa…

Ela começava a entrar em pânico.

- O que houve, padre? Conte logo!

- Eu… eu acabei de receber uma notícia, Raul…

- Foi um acidente? Ele está ferido?

- Giradot deixou a cidade no início desta manhã.

- Ele o quê? Deve ter acontecido alguma emergência que o fez…

- Ele partiu com sua irmã. Foram vistos quando embarcavam para Paris.

A sala começou a girar. "Não", pensou Teresa. "Não devo desmaiar. Não devo fraquejar perante Deus." Anos mais tarde, ela só tinha uma lembrança nebulosa dos acontecimentos. À distância, ouviu o padre fazer um comunicado aos convidados, mal percebeu o tumulto na igreja. A mãe abraçou-a e murmurou:

- Minha pobre Teresa… É demais que sua própria irmã fosse tão cruel. Sinto muito.

Mas Teresa mostrava-se subitamente calma. Sabia como endireitar tudo.

- Não se preocupe, mamãe. Não culpo Raul por se apaixonar por Monique. Aconteceria com qualquer homem. Eu já deveria saber que nenhum homem poderia jamais me amar.

- Está enganada - protestou o pai. - Você vale dez Moniques.

Mas sua compaixão estava anos atrasada.

- Eu gostaria de ir para casa agora, por favor.

Eles atravessaram a multidão. Os convidados recuaram para deixá-los passar, observando-os em silêncio.

Ao chegarem ao château, Teresa disse calmamente:

- Por favor, não se preocupem comigo. Prometo que tudo vai acabar bem.

Subiu para o quarto do pai, pegou sua navalha e cortou os pulsos.


Capítulo 12


Quando Teresa abriu os olhos, o médico da família e o padre da aldeia estavam de pé ao lado da cama.

- Não! - gritou ela. - Não quero voltar! Deixem-me morrer! Deixem-me morrer!

- O suicídio é um pecado mortal - avisou o padre. - Deus deu-lhe a vida, Teresa. Só Ele pode decidir quando deve acabar. Você é jovem. Tem toda uma vida pela frente.

- Para fazer o quê? - soluçou Teresa. - Sofrer mais? Não suporto a angústia em que estou vivendo! Não aguento mais!

- Jesus suportou a dor e morreu por todos nós - disse o padre, gentilmente. - Não vire as costas a Ele.

- Precisa repousar - disse o médico, após examinar Teresa. - Já falei com sua mãe para lhe fazer uma dieta leve. - Ele sacudiu um dedo para Teresa. - Isso não inclui navalhas.

Na manhã seguinte, Teresa saiu da cama. Quando entrou na sala de estar, a mãe disse, alarmada:

- O que está fazendo de pé? O médico mandou…

- Preciso ir à igreja. Preciso falar com Deus - falou Teresa com voz rouca.

A mãe hesitou.

- Irei com você.

- Não. Devo ir sozinha.

- Mas…

- Deixe-a ir - interveio o pai.

Eles observaram a filha desolada sair de casa.

- O que acontecerá com ela? - murmurou a mãe de Teresa.

- Só Deus sabe.

Ela entrou na igreja tão familiar, foi até o altar e ajoelhou-se.

- Vim à Sua casa para lhe dizer uma coisa, Deus. Eu O desprezo. Desprezo-O por me deixar nascer tão feia. Desprezo-O por deixar minha irmã nascer tão bonita. Desprezo-O por deixá-la tomar o único homem que já amei. Cuspo em Você.

As últimas palavras soaram tão altas que as outras pessoas se viraram para fitá-la, enquanto ela se levantara e saía cambaleando.


Teresa nunca imaginara que pudesse haver tanta dor. Era insuportável. Era-lhe impossível pensar em qualquer coisa. Descobriu-se incapaz de comer ou dormir. O mundo parecia abafado e distante. As lembranças explodiam-lhe na mente, incessantemente, como cena de um filme. Recordou o dia em que ela, Raul e Monique passeavam pela praia em Nice.

- Está um lindo dia para um mergulho - sugeriu Raul.

- Eu adoraria, mas não podemos, Teresa não sabe nadar.

- Não me importo se vocês dois forem nadar. Ficarei à espera no hotel.

E sentia-se muito satisfeita porque Raul e Monique estavam se dando tão bem. Almoçaram numa pequena estalagem, perto de Cannes.

- A lagosta está ótima hoje. - Sugeriu o maitre.

- Eu vou querer - disse Monique. - A pobre da Teresa não pode. Os crustáceos a deixam cheia de urticárias.

- Sinto saudade de andar a cavalo - comentou Raul quando estavam em São Tropez. - Costumava montar todas as manhãs quando estava em casa. Quer ir comigo, Teresa?

- Eu… eu não sei montar, Raul.

- Eu não me importaria de ir com você, Raul - interveio Monique. - Adoro montar.

E os dois passaram a manhã inteira passeando a cavalo.

Houve centenas de pistas, e ela não percebera nenhuma. Fora cega porque quis ser cega. Os olhares que Raul e Monique trocavam, os inocentes contatos das mãos, os sussurros e risos.

"Como pude ser tão estúpida?"

À noite, quando Teresa conseguia finalmente cochilar, havia sonhos. Era sempre um sonho diferente mas era sempre o mesmo sonho.

Raul e Monique encontravam-se no trem, nus, fazendo amor, o trem passava por uma ponte sobre um desfiladeiro, que ruia, e todos no trem mergulhavam para a morte.

Raul e Monique encontravam-se num quarto de hotel, nus, na cama. Raul largava um cigarro, e o quarto explodia em chamas, os dois eram queimados até a morte, seus gritos despertavam Teresa.

Raul e Monique caíam de uma montanha, afogavam-se num rio, morriam num desastre de avião.

Era sempre um sonho diferente.

Era sempre o mesmo sonho.


A mãe e o pai de Teresa estavam desesperados. Viam a filha definhar, e não havia nada que pudessem fazer para ajudá-la.

De repente, Teresa começou a comer. E comia sem parar. Parecia que a comida nunca era suficiente. Recuperou o peso e continuou a engordar, ficou imensa. Quando o pai e a mãe tentavam-lhe falar de seu sofrimento, ela declarava:

- Sinto-me tão bem agora. Não se preocupem comigo.

Teresa levava a vida como se nada houvesse de errado. Continuava a ir à aldeia e fazia compras, como sempre. Jantava com a mãe e o pai todas as noites, lia ou costurava. Construía uma fortaleza emocional ao seu redor, e estava determinada a não permitir que ninguém a rompesse. "Nenhum homem jamais vai querer olhar para mim. Nunca mais." Exteriormente, Teresa parecia bem. Por dentro, afundara-se num abismo de desesperada solidão.

Mesmo quando se encontrava cercada de pessoas, sentava-se numa cadeira solitária, numa sala solitária, numa casa solitária, num mundo solitário.

Pouco depois de um ano depois de Raul abandonar Teresa, o pai fez as malas para uma viagem a Ávila.

- Tenho alguns negócios para tratar lá - disse a Teresa. - Depois disso, porém, estarei livre. Por que

Claro que antes mesmo de abri-la, Teresa foi dominada pela premonição de algo terrível assomando à sua frente.

A carta dizia:


"Minha querida Teresa:


Deus sabe que não tenho o direito de chamá-la de querida, depois da coisa terrível que lhe fiz, mas prometo recompensá-la, nem que leve a vida inteira para isso. Não sei por onde começar.

Monique fugiu e deixou-me com nossa filhinha de dois meses. Para ser sincero, sinto-me aliviado. Devo confessar que tenho vivido num inferno desde o dia em que a deixei.

Jamais compreenderei por que procedi daquela maneira.

Parece que fui apanhado por algum encantamento mágico de Monique, mas sabia desde o início que meu casamento com ela era um erro lamentável. Você sempre foi o amor da minha vida. Sei agora que o único lugar onde posso encontrar a felicidade é ao seu lado. Quando receber esta carta, já estarei de volta para você.

Amo você, e sempre amei, Teresa. Pelo bem do resto de nossas vidas juntos, eu lhe peço perdão. Querida…"


Ela não pôde terminar de ler a carta. O pensamento de tornar a ver Raul e a filha dele e Monique era inconcebível, obsceno. Teresa jogou a carta no chão, histérica.

- Preciso sair daqui! Esta noite! Agora! Por favor… por favor!

Foi impossível acalmá-la.

- Se Raul está vindo para cá - disse o pai -, você deve pelo menos falar com ele.

- Não! Se me encontrar com ele, vou matá-lo! - Teresa segurou os braços do pai, as lágrimas escorriam-lhe pelo o rosto. - Leve-me com você! - implorou.

Estava disposta a ir para qualquer parte, contanto que fugisse dali.

E, assim, naquela noite, Teresa e o pai partiram para Ávila.

O pai de Teresa estava angustiado com a infelicidade da filha. Não era por natureza um homem compassivo, mas no ano que passara Teressa conquistara sua admiração com seu comportamento corajoso. Enfrentara os moradores da cidade de cabeça erguida, e nunca se queixara. Ele sentia-se impotente, incapaz de confortá-la.

Lembrou-se de quanto consolo ela encontrara outrora na igreja e disse a Teresa, quando chegaram a Ávila:

- Padre Berrendo, o sacerdote daqui, é um velho amigo meu. Talvez possa ajudá-la. Gostaria de falar com ele?

- Não.

Teresa não queria mais nada com Deus. Permaneceu sozinha no quarto de hotel, enquanto o pai cuidava dos negócios. Quando ele voltou, Teresa continuava sentada na mesma cadeira, olhando para a parede.

- Por favor, Teresa, fale com o padre Berrendo.

- Não.

O pai ficou desorientado. Ela recusava-se a deixar o quarto do hotel e não queria voltar a Éze. Como último recurso, o padre foi procurá-la.

- Seu pai me disse que houve um tempo em que você ia à igreja regularmente.

Teresa fitou o padre de aparência frágil nos olhos e disse friamente:

- Não estou mais interessada. A Igreja não tem nada para me oferecer.

Padre Berrendo sorriu.

- A Igreja tem alguma coisa a oferecer a todas as pessoas, minha criança. A Igreja nos dá esperança e sonhos…

- Já tive minha quota de sonhos. Agora, nunca mais. Ele pegou as mãos e viu as cicatrizes brancas nos pulsos, tão tênues quanto uma memória antiga.

- Deus não acredita nisso. Fale com Ele e Ele lhe dirá.

Teresa continuou sentada, o olhar fixo na parede e quando o padre finalmente saiu, ela nem sequer percebeu.

Na manhã seguinte, Teresa entrou na igreja fria e abobadada, e quase no mesmo instante foi envolvida pelo antigo e familiar sentimento de paz. A última vez em que entrara numa igreja fora para insultar Deus. Sentiu-se muito envergonhada. Fora a sua própria fraqueza que a traíra, não Deus.

- Perdoe-me - murmurou -, pois eu pequei. Tenho vivido no ódio. Ajude-me. Por favor, ajude-me. - Teresa levantou os olhos, e padre Berrendo estava sentado ali.

Quando ela terminou, o padre levou-a para seu escritório, além da sacristia.

- Não sei o que fazer, padre. Não acredito mais em coisa alguma. Perdi a fé. - Sua voz estava impregnada de desespero.

- Tinha fé quando era jovem?

- Tinha, sim. E muita.

- Então ainda a tem, minha criança. Apenas a fé real e permanente. Tudo o mais é transitório.

Conversaram por horas naquele dia.

Quando Teresa voltou ao hotel, ao final da tarde, o pai disse:

- Preciso retornar a Éze. Está pronta para partir?

- Não, papai. Deixe-me ficar aqui mais algum tempo.

Ele hesitou.

- Ficará bem?

- Ficarei, papai. Prometo.


Teresa e padre Berrendo passaram a se encontrar todos os dias. O coração do padre confrangeu-se por Teresa. Via nela não uma mulher gorda e desgraciosa, mas um espírito belo e infeliz.

Conversavam sobre Deus, a criação e o sentido da vida. Pouco a pouco, quase contra a vontade, Teresa recomeçou a encontrar conforto. Padre Berrendo um dia desencadeou nela uma reação profunda.

- Se não acredita neste mundo, minha criança, então acredite no próximo. Acredite no mundo em que Jesus espera para recebê-la.

E pela primeira vez desde o dia que deveria ser seu casamento, Teresa começou a sentir paz outra vez. A igreja tornara-se seu refúgio, como antes. Mas precisava pensar em seu futuro.

- Não tenho para onde ir.

- Pode voltar para casa.

- Não. Jamais poderia voltar para lá. Nunca poderia encarar Raul outra vez. Não sei o que fazer. Quero me esconder, mas não tenho onde me esconder.

Padre Berrendo ficou em silêncio um longo tempo, até finalmente murmurar:

- Poderia ficar aqui.

Ela correu os olhos pela sala, aturdida.

- Aqui?

- O convento Cisterciense fica próximo. - Ele inclinou-se para a frente. - Deixe-me falar um pouco a respeito dele. É um mundo dentro do mundo, onde todas as pessoas dedicam-se a Deus. É um lugar de paz e serenidade.

O coração de Teresa começou a animar-se.

- Parece maravilhoso.

- Devo adverti-la. É uma das ordens mais rigorosas do mundo. Quem entra ali faz um voto de castidade, silêncio e obediência. E quem entra nunca mais sai.

As palavras provocaram uma emoção em Teresa.

- Não vou querer sair nunca mais. É o que tenho procurado, padre. Desprezo o mundo em que vivo.

Mas padre Berrendo ainda estava preocupado. Sabia que Teresa enfrentaria uma vida totalmente diferente de tudo o que já experimentara até aquele momento.

- Não pode haver retorno.

- Não mudarei de idéia.


No dia seguinte, bem cedo, padre Berrendo levou Teresa ao convento para conhecer a reverenda madre Betina. Deixou-as conversarem.

Assim que entrou no convento, Teresa teve certeza. "Finalmente", pensou, exultante. "Finalmente."

Depois do encontro ela, ansiosa, telefonou para os pais.

- Eu estava muito preocupada. Quando voltará para casa? - indagou a mãe.

- Estou em casa.


O bispo de Ávila cumpriu o rito:

- Criador, "Senhor, envie sua bênção a esta serva, a fim de que ela seja fortalecida com a virtude celestial e possa manter uma fé total e fidelidade ininterrupta."

- Renunciei ao reino deste mundo e a todos os adornos seculares, pelo amor de Nosso Senhor, Jesus Cristo - respondeu Teresa.

O bispo fez o sinal da cruz por cima dela.

- De largitatis tuae fonte defluxit ut cum honorem nuptiarum nulla interdicta minuissent ac super sanctum conjugium nuptialis benedictio permaneret existerent conubium, concupiscerent sacramentum, nec imitarentur quod nuptiis agitur, sed diligerent quod nuptiis praenotatur. Amém.

- Amém.

- Eu te esposo com Jesus Cristo, o filho do Pai Supremo. Assim, recebe o selo do Espírito Santo, a fim de que possas ser chamada de esposa de Deus, e serás coroada para eternidade se o servires fielmente. - O bispo levantou-se. - Deus, o Pai Todo-Poderoso, Criador do céu e da terra, que concedeu te receber em núpcias, como a abençoada Maria, mãe de Nosso Senhor, Jesus Cristo… ad beatae Mariae, matris Domini nostri, Jesu Cristi, consortium… te recebe, que na presença de Deus e Seus anjos possas preseverar, pura e imaculada, mantendo teu propósito de amor e castidade, com a paciência que possas merecer para receber a coroa de sua bênção, através do mesmo Cristo, Nosso Senhor.

Deus te torna forte quando frágil, fortalece quando fraca, alivia e governa tua mente com compaixão, e orienta teus caminhos. Amém.


Agora, trinta anos depois, deitada no bosque, observando o sol se elevar por cima do horizonte, irmã Teresa pensou: "Fui para o convento por todos os motivos errados. Não estava correndo para Deus, mas fugindo do mundo. Mas Deus leu meu coração."

Estava com sessenta anos, e os últimos trinta de sua vida haviam sido os mais felizes que conhecera. E agora, abruptamente, fora lançada de volta ao mundo do qual fugira. E sua mente lhe pregava estranhas peças.

"O que Deus planejou para mim?"


Capítulo 13


Para a irmã Megan, a viagem era uma aventura. Acostumara-se às novas vistas e sons que a cercavam e sentia-se surpresa com a rapidez da adaptação.

Considerava os companheiros de jornada fascinantes. Amparo Jiró era uma mulher vigorosa, capaz de acompanhar o ritmo dos dois homens com a maior facilidade, ao mesmo tempo em que era bem feminina.

Felix Carpio, o homem corpulento de barba avermelhada e cicatriz, parecia amável e simpático.

Para Megan, no entanto, o mais irresistível do grupo era Jaime Miró. Havia nele uma força implacável, uma fé inabalável em suas convições que fazia Megan lembrar-se das freiras no convento.

Ao iniciarem a jornada, Jaime, Amparo e Felix carregavam sacos de dormir e rifles nos ombros.

- Deixem-me carregar um dos sacos de dormir - sugeriu Megan.

Jaime Miró fitou-a surpreso e depois deu de ombros.

- Está bem, irmã. - Entregou-lhe o saco.

Era mais pesado do que Megan esperava, mas não se queixou. "Enquanto estiver com eles, farei minha parte."

Megan tinha a impressão de que estavam andando por toda a eternidade, tropeçando pela escuridão, atingidos por galhos, arranhados pela vegetação baixa, atacados por insetos, guiados apenas pela luz do luar.

"Quem são essas pessoas? E por que estão sendo caçadas?"

Como Megan e as outras freiras também estavam sendo perseguidas, ela começou a sentir uma forte ligação com os novos companheiros.

Quase não conversavam, mas de vez em quando trocaram frases enigmáticas.

- Está tudo acertado em Val ladolid?

- Tudo, Jaime. Rubbio e Tomás se encontrarão conosco no banco durante a tourada.

- Ótimo. Mande um aviso para Largo Cortez nos esperar. Mas não marque data.

- Certo.

"Quem são Largo Cortez, Rubbio e Tomás?", especulou Megan. "E o que aconteceria na tourada e no banco?" Quase chegou a perguntar, mas achou melhor não fazê-lo. "Tenho a impressão de que não gostariam de muitas perguntas."

Perto do amanhecer, eles sentiram cheiro de fumaça no vale lá embaixo.

- Esperem aqui - sussurrou Jaime. - E fiquem quietos.

Os outros ficaram observando enquanto ele se encaminhava para a beira da floresta e desaparecia.

Megan disse:

- O que foi?

- Cale-se! - sibilou Amparo Jiró.

Jaime Miró voltou 15 minutos depois.

- Soldados. Vamos contorná-los.

Voltaram por quase um quilômetro, depois avançaram cautelosos pelo bosque, até alcançarem uma pequena estrada secundária. Os campos espalhavam-se pela frente, rescendendo a feno moído e frutas maduras.

A curiosidade de Megan prevaleceu, levando-a a perguntar:

- Por que os soldados estão atrás de vocês?

- Digamos que não pensamos da mesma maneira - respondeu Jaime. Megan tinha de se satisfazer com isso. "Por enquanto", pensou. Estava determinada a saber mais sobre aquele homem.

Meia hora depois, quando chegaram a uma clareira resguardada, Jaime disse:

- O sol está subindo. Ficaremos aqui até o anoitecer. - Olhou para Megan. - Esta noite teremos de andar mais depressa.

Ela acenou com a cabeça.

- Tudo bem.

Jaime pegou os sacos de dormir e desenrolou-os. Felix Carpio disse a Megan:

- Fique com o meu, irmã. Estou acostumado a dormir no chão.

- É seu - protestou Megan. - Eu não poderia…

- Pelo amor de Deus! - interveio Amparo, bruscamente. - Entre logo no saco. Não queremos que comece a gritar por causa das malditas aranhas.

Havia uma hostilidade em seu tom que Megan não podia entender. "O que a está incomodando?", especulou Megan.

Ela observou Jaime ajeitar o saco de dormir perto do lugar em que ela se encontrava e depois se acomodar. Amparo Jiró deitou-se ao seu lado. "Já entendi", pensou Megan.

Jaime olhou para a freira e disse:

- É melhor dormir um pouco. Temos um longo caminho pela frente.


Megan foi despertada no meio da noite por um gemido. Alguém parecia sentir uma dor terrível. Sentou-se. Os sons vinham do saco de Jaime. "Ele deve estar passando mal", foi o primeiro pensamento.

O gemido foi se tornando cada vez mais alto, e depois Megan ouviu a voz de Amparo Jiró balbuciando:

- Oh, mais, mais! Dê tudo para mim, querido! Com mais força! Sim! Agora! Agora!

Megan corou. Tentou fechar os ouvidos aos sons, mas era impossível. Pensou como seria Jaime Miró a fazer-lhe amor.

Fez o sinal-da-cruz no mesmo instante e começou a rezar:

"Perdoe-me, Pai. Faça com que meus pensamentos se ocupem apenas de Você. Faça com que meu espírito O procure, a fim de encontrar a fonte e o bem em Você."

E os sons continuaram. Finalmente, quando Megan já começava a pensar que não seria capaz de aguentar mais um instante sequer, eles pararam. Mas havia outros ruídos que a mantinham acordada.

Os sons da floresta reverberavam ao seu redor. Havia uma cacofonia de acasalamento de aves, grilos, a conversa dos pequenos animais e os grunhidos dos animais maiores. Megan esquecera-se de como o mundo exterior podia ser barulhento.

Sentia falta do silêncio maravilhoso do convento. Para seu espanto, sentia saudades até do orfanato. O terrível, maravilhoso orfanato…


Capítulo 14


ÁVILA 1957


Eles a chamavam de "Megan o Terror".

Eles a chamavam de "Megan o Demônio de Olhos Azuis".

Eles a chamavam de "Megan a Impossível".

Ela estava com dez anos de idade.

Fora levada ao orfanato ainda quando bebê, deixada na porta de um camponês e sua mulher que não tinham condições de criá-lá.

O orfanato era um prédio austero, dois andares, caiado em branco, nos arredores de Ávila, na parte mais pobre da cidade, perto do Plaza de Santo Vicente, dirigido por Mercedes Angeles, uma autêntica amazona, com um comportamento arrebatado, que não condizia com a ternura que nutria por seus pupilos.

Megan era diferente das outras crianças, uma estranha com cabelos louros e olhos azuis brilhantes, sobressaindo no contraste com as morenas, de olhos e cabelos escuros. Desde o início, porém, Megan fora diferente nos outros aspetos. Era uma criança independente, líder, promotora de travessuras. Sempre que havia problemas no orfanato, Mercedes Angeles podia estar certa de que Megan se encontrava por trás.

Ao longo dos anos, Megan comandou protestos contra comida, tentou organizar as crianças num sindicato, encontrava maneiras inventivas de atormentar as supervisoras, inclusive algumas tentativas de fuga. É desnecessário dizer que Megan era extremamente popular entre as outras crianças. Era mais jovem do que muitas, mas todas recorriam à sua orientação. Era uma líder nata.

E as crianças menores adoravam quando Megan lhes contava histórias. Possuia uma imaginação delirante.

- Quem foram meus pais, Megan?

- Seu pai era um esperto ladrão de jóias. Subiu no telhado de um hotel no meio da noite para roubar um diamante que pertencia a uma atriz famosa. No momento em que metia o diamante no bolso, a atriz acordou. Ela acendeu a luz e viu-o.

- E não mandou prendê-lo?

- Não. Ele era muito bonito.

- O que aconteceu então?

- Eles se apaixonaram e se casaram. Depois, você nasceu.

- Mas por que me mandaram para um orfanato? Eles não me amavam?

Era essa sempre a parte difícil.

- Claro que amavam. Mas… morreram numa terrível avalanche quando esquiavam na Suíça.

- O que é uma terrível avalanche?

- É quando uma porção de neve desce ao mesmo tempo e enterra a pessoa.

- E papai e mamãe morreram ao mesmo tempo?

- Isso mesmo. E as últimas palavras foram para dizer que amavam você. Mas não havia ninguém para cuidar de você, por isso veio para cá.

Megan sentia-se tão ansiosa quanto as outras crianças em saber quem eram seus pais. À noite, acalentava-se até o sono, inventando histórias para si mesma: "Meu pai foi um soldado na Guerra Civil. Era um capitão, e muito corajoso. Foi ferido em um combate, e minha mãe foi a enfermeira que cuidou dele. Casaram, ele voltou à frente e foi morto. Mamãe era pobre demais para me sustentar, e por isso precisou me deixar na fazenda, o que lhe partiu o coração." E ela chorava de compaixão pelo pai bravo e morto e pela mãe desconsolada. Ou: "Meu pai era um toureiro. Foi um dos maiores matadores. Era o favorito da Espanha. Todos o adoravam. Mamãe era uma linda dançarina de flamenco. Casaram, mas um dia ele foi morto por um enorme e perigoso touro. Mamãe foi obrigada a renunciar-me." Ou: "Papai era um esperto espião do outro país…"

As fantasias eram intermináveis.


Havia trinta crianças no orfanato, variavam de recém-nascidos abandonados, até os de 14 anos. Quase todas eram espanholas, mas havia também crianças de outros países. Megan tornou-se fluente em várias línguas. Dormia junto com uma dúzia de outras garotas. Havia conversa sussurradas até noite tarde sobre bonecas e roupas, depois sobre sexo, à medida que as garotas se tornavam mais velhas. Isso logo virou o principal tema das conversas.

- Ouvi dizer que dói muito.

- Não me importo. Mal posso esperar para saber como é.

- Vou casar, mas nunca deixarei que meu marido faça isso comigo. Acho que é obsceno.

Uma noite, quando todos dormiam, Primo Condé, um dos meninos do orfanato, entrou no dormitório das garotas. Foi até a cama de Megan.

- Megan… - Sua voz era um sussurro.

Ela despertou no mesmo instante.

- Primo? O que aconteceu?

Ele soluçava, assustado.

- Posso ficar na sua cama?

- Pode, mas fique quieto.

Primo tinha 13 anos, a mesma idade de Megan, mas pouco desenvolvido, e fora uma criança maltratada. Sofria pesadelos terríveis e acordava aos gritos no meio da noite. As outras crianças atormentavam-no, mas Megan sempre o protegia.

Primo deitou na cama ao seu lado.

Megan sentiu as lágrimas escorrerem pelas faces do menino.

Abraçou-o e murmurou:

- Está tudo bem, está tudo bem… - mimou-o gentilmente, e os soluços cessaram.

O corpo de Primo comprimiu-se contra o de Megan, e ela pôde sentir o crescente excitamento dele.

- Primo…

- Desculpe. Eu… eu não pude evitar.

Sua ereção se comprimia contra ela.

- Eu amo você, Megan. É a única pessoa de quem eu gosto no mundo inteiro.

- Ainda não esteve no mundo lá fora.

- Não ria de mim, por favor.

- Não estou rindo.

- Não tenho mais ninguém, só você.

- Sei disso.

- Eu amo você.

- Também amo você, Primo.

- Megan… você… me deixaria fazer amor com você?

- Não.

Houve silêncio.

- Desculpe ter incomodado você. Voltarei para minha cama. - A voz de Primo estava impregnada de angústia. Ele começou a afastar-se.

- Espere. - Megan deteve-o, querendo atenuar seu sofrimento, sentindo-se também excitada. - Primo, eu… eu não posso deixar que faça amor comigo, mas posso fazer uma coisa que o levará a se sentir melhor. Está bom assim?

- Está. - A voz de Primo era um murmúrio. Ele estava de pijama.

Megan puxou o cordão que prendia a calça e enfiou a mão e começou a acariciá-lo.

Primo gemeu e sussurrou:

- Ai, isso é maravilhoso - e, um momento depois: - Meu Deus, eu amo você, Megan.

Ela estava com o corpo em chamas, e se naquele momento Primo dissesse: "Quero fazer amor com você", teria respondido sim.

Mas ele permaneceu imóvel, em silêncio; minutos depois voltou à sua cama. Não houve sono para Megan naquela noite. E nunca mais permitiu que Primo voltasse à sua cama.

A tentação era muito grande.


De vez em quando, uma criança era chamada à sala da supervisora para conhecer os pais que pretendiam adotá-la. Era sempre um momento de grande emoção para as crianças, pois representava uma oportunidade de escapar da terrível rotina do orfanato, e ter um lar de verdade, pertencer a alguém.

Ao longo dos anos, Megan observou outros órfãos serem escolhidos. Iam para casas de comerciantes, fazendeiros, banqueiros. Mas eram quase sempre as outras crianças, nunca ela.

A reputação de Megan a precedia. Ouvia seus pais em potencial conversarem.

- É uma criança muito bonita, mas ouvi dizer que tem um temperamento difícil.

- Não é a menina que levou 12 cachorros para o orfanato no mês passado?

- Dizem que é uma líder. Acho que não se daria bem com nossos filhos.

Eles não tinham a menor idéia do quanto as outras crianças adoravam Megan.

Padre Berrendo visitava o orfanato uma vez por semana. Megan aguardava ansiosa essas visitas. Era uma leitora voraz, e o padre e Mercedes Angeles providenciavam para que tivesse sempre um livro à sua disposição. Podia discutir coisas com o padre que não ousava falar com qualquer outra pessoa. Fora ao padre Berrendo que o casal de camponeses entregara Megan quando bebê.

- Por que eles não quiseram ficar comigo?

O velho sacerdote respondeu gentilmente.

- Desejavam muito, mas eram velhos e doentes.

- Por que acha que meus pais verdadeiros me abandonaram naquela fazenda?

- Tenho certeza que foi porque eram pobres e não tinham condições de sustentá-la.

À medida que crescia, Megan tornava-se cada vez mais devota.

Sentia-se atraída pelos aspetos culturais da Igreja Católica.

Leu as Confissões de Santo Agostinho, as obras de São Francisco de Assis, Thomas Merton e vários outros. Ia à Igreja regularmente e gostava dos ritos solenes, missa, receber comunhão, a Bênção.

Talvez, acima de tudo, adorasse o sentimento maravilhoso de serenidade que sempre a envolvia na igreja.

- Quero ser uma católica - disse ela um dia ao padre Berrendo.

Ele pegou-lhe a mão e disse, com um piscar de olho:

- Talvez você já seja, Megan, mas vamos nos certificar se é isso que realmente deseja. Crê em Deus, o Pai Todo-Poderoso, criador do céu e da Terra?

- Sim, creio!

- Crê em Jesus Cristo, Seu único filho, que nasceu e sofreu?

- Sim, creio!

- Crê no Espírito Santo, na Santa Igreja Católica, na comunhão dos santos, na remissão dos pecados, na ressurreição do corpo e da vida eterna?

- Sim, creio!

O padre soprou gentilmente em seu rosto.

- Exi ab ea spiritus immunde. Afasta-te dela, espírito impuro, e dá lugar ao Espírito Santo, o Paráclito. - Ele tornou a soprar em seu rosto. - Megan, receba o bom Espírito através deste sopro e receba a bênção de Deus. A Paz esteja contigo.


Aos 15 anos, Megan tornou-se uma linda mulher, com cabelos louros compridos e uma pele leitosa, que a destacava ainda mais da maioria das companheiras.

Um dia ela foi chamada ao gabinete de Mercedes Angeles.

Padre Berrendo aguardava-a.

- Olá, padre.

- Olá, cara Megan.

- Infelizmente, Megan, estamos com um problema - comentou Mercedes Angeles.

- É mesmo? - Ela vasculhou o cérebro, na tentativa de lembrar-se de sua última travessura.

A diretora continuou:

- Há um limite de idade para permanecer aqui, de 15 anos… e você já fez 15 anos.

Megan há muito que conhecia o regulamento, é claro. Mas relegara-o para o fundo da mente, porque não queria enfrentar o fato de que não tinha nenhum lugar no mundo para onde ir, que ninguém a queria, e seria abandonada outra vez.

- Eu… eu tenho de ir embora?

A generosa amazona estava transtornada. mas não tinha alternativa.

- Lamento profundamente, mas devemos respeitar os regulamentos. Podemos encontrar uma posição para você como criada.

Megan não sabia o que dizer.

Padre Berrendo interveio:

- Para onde gostaria de ir?

Enquanto pensava a esse respeito, Megan teve uma idéia.

Havia um lugar para onde ir.

Desde os 12 anos de idade que Megan ajudava na manutenção no orfanato fazendo entregas na cidade, muitas delas ao convento Cisterciense. As entregas eram sempre feitas à reverenda madre Betina. Megan lançara olhares furtivos para as freiras rezando ou andando pelos corredores e percebera nelas um sentimento quase irresistível de serenidade. Invejava a alegria que as freiras pareciam irradiar. Para Megan, o convento era como uma casa de amor.

A reverenda madre gostava da garota exuberante, e ao longo dos anos tiveram várias conversas demoradas.

- Por que as pessoas entram para os conventos? - perguntou Megan uma vez.

- As pessoas recorrem a nós por muitos motivos. A maioria vem para se dedicar a Deus. Mas algumas porque não têm esperança. Nós lhe damos esperanças. Outras porque se sentem desiludidas com a vida. Nós lhe mostramos que Deus é a razão. Algumas vêm porque estão fugindo. Outras porque se sentem alienadas e querem pertencer a alguma coisa.

Foi isso que lhe provocou uma reação. "Nunca pertenci realmente a ninguém", pensou Megan. "Esta é a minha oportunidade."

- Acho que eu gostaria de entrar para o convento.

Seis semanas depois ela tomou os votos.

E, finalmente, Megan encontrou o que procurava há tanto tempo. Não se sentia mais só. Aquelas eram suas irmãs, a família que nunca tivera, eram todas uma só sob o domínio do Pai.

Megan trabalhava no convento como guarda-livros. Sentia-se fascinada pela antiga linguagem de sinais que as irmãs usavam quando precisavam se comunicar com a reverenda madre. Havia sinais, o suficiente para transmitirem tudo que precisavam expressar.

Quando era a vez de uma irmã varrer os corredores compridos, a reverenda madre Betina levantava a mão direita com a palma para a frente e soprava no dorso. Se uma freira estava com febre, procurava a reverenda madre e comprimia as pontas do indicador direito e do dedo médio contra o lado exterior do pulso esquerdo. Se um pedido devia ser protelado, a reverenda madre suspendia o punho direito na frente do ombro direito e depois estendia um pouco para a frente e para baixo. "Amanhã."

Numa manhã de novembro, Megan foi introduzida nos ritos da morte. Uma freira estava à beira da morte, e um chocalho de madeira ressoou pelo claustro, o sinal para o início de um ritual inalterado desde 1030. Todas aquelas que podiam atender ao chamado foram no mesmo instante ajoelhar-se na enfermaria, para a extrema-unção e os salmos. Rezaram em silêncio para que intercedessem pela alma da irmã de partida. Para indicar que estava na hora dos últimos sacramentos, a reverenda madre estendeu a mão esquerda, com a palma para cima, desenhou uma cruz com a ponta do polegar direito.

E, finalmente, houve um sinal da própria morte, uma irmã pondo a ponta do polegar direito sob o queixo e levantando-o ligeiramente.

Depois que as últimas orações foram ditas, o corpo ficou sozinho por cerca de uma hora, para que a alma pudesse partir em paz. Ao pé da cama estava o grande círio pascal, o símbolo cristão da luz eterna, ardendo em seu castiçal de madeira.

A enfermeira lavou o corpo e vestiu a freira com o hábito, escapulário preto sobre a touca branca, meias grossas e sandálias feitas à mão. Uma freira trouxe flores frescas do jardim, e fez uma coroa. Após vestirem a morta, seis freiras levaram-na em procissão para a igreja e colocaram-na no catafalco, coberto de um lençol branco, diante do altar. Não seria deixada sozinha na presença de Deus; duas freiras permaneciam ali o resto do dia e da noite, rezando, enquanto o círio pascal bruxuleava ao lado.

Na tarde seguinte, depois da missa Réquiem, as freiras levaram-na através do claustro até o cemitério particular, murado, onde mantinham seu isolamento mesmo depois de mortas.

As irmãs, três de cada lado, baixaram o corpo para a sepultura, sustentando-o por tiras de linho branco. Era um costume cisterciense que suas mortas ficassem descobertas na terra, sepultadas sem um caixão. Como último serviço prestado à irmã, duas freiras jogavam terra sobre o corpo imóvel, antes que todas voltassem à igreja para os salmos da penitência. Por três vezes, elas suplicaram que Deus tivesse misericórdia de sua alma:

Domine miserere super peccatrice.

Domine miserere super peccatrice.

Domine miserere super peccatrice.

Houve muitas ocasiões em que a jovem Megan foi dominada pela melancolia. O convento proporcionava-lhe serenidade, mas ela não tinha totalmente paz. Era como se uma parte sua estivesse faltando. Sentia anseios que há muito deveria ter esquecido.

Descobriu-se a pensar nos amigos que deixara no orfanato, especulando sobre o que lhes acontecera. E se perguntando o que estaria acontecendo no mundo exterior, o mundo a que renunciara, um mundo em que havia música, dança e riso.

Megan procurou a irmã Betina.

- Acontece com todas nós de vez em quando - garantiu a reverenda madre a Megan. - A Igreja lhe chama acedia. É uma doença espiritual, um instrumento de Satã. Não se preocupe com isso, criança. Vai passar.

E passou.

Mas não passou foi o anseio profundo de saber quem eram seus pais. "Nunca saberei", pensava Megan, desesperada. "Não enquanto eu viver."


Capítulo 15


NOVA YORK 1976


Os repórteres reunidos, diante da fechada cinzenta do Waldorf-Astoria Hotel, em Nova York, observavam o desfile de celebridades em trajes a rigor que desembarcavam das limusines, passavam pelas portas giratórias e seguiam para o Grande Salão de Baile, no terceiro andar. Os convidados vinham de todas as partes do mundo.

Câmaras espocavam, enquanto os fotógrafos gritavam:

- Senhor vice-presidente, quer olhar para cá, por favor?

- Governador Adams, posso tirar uma foto, por favor?

Havia senadores e representantes de vários países, magnatas do mundo dos negócios e dos artistas famosos. E todos estavam ali para celebrar o sexagésimo aniversário de Ellen Scott. Na verdade, não era tanto ela que homenageavam, mas sim a filantropia da Scott Industries, um dos mais poderosos conglomerados do mundo. O vasto império incluía empresas petrolíferas e usinas siderúgicas, sistema de comunicações e bancos. Todo o dinheiro arrecadado naquela noite iria para obras de caridade internacionais.

A Scott Industries tinha interesse em todas as partes do mundo. Há vinte e sete anos, seu presidente, Milo Scott, morrera inesperadamente de um ataque cardíaco, e sua esposa, Ellen, assumira o comando do gigantesco conglomerado. Nos anos subsequentes, ela demonstrara ser uma brilhante executiva, pois mais do que triplicara o patrimônio da empresa.

O Grande Salão de Baile do Waldorf-Astoria era um enorme salão decorado em bege e dourado, com um palco acarpetado em vermelho num lado. Um balcão com 33 camarotes, com um candelabro sobre cada um, estendia-se em curva em todo o ambiente.

No centro do balcão sentava-se a convidada de honra. Havia pelo menos seiscentos homens e mulheres presentes, jantando em mesas reluzentes pela prataria. Terminando o jantar, o governador de Nova York subiu ao palco.

- Senhor vice-presidente, senhoras e senhores, honrosos convidados, estamos todos aqui esta noite com um único propósito: prestar um tributo a uma mulher extraordinária e à sua generosidade altruísta ao longo dos anos. Ellen Scott é o tipo de pessoa que poderia ter alcançado o sucesso em qualquer área.

- Poderia ter sido uma grande cientista ou médica. Também seria uma grande política e devo dizer que se Ellen Scott decidir se candidatar à presidência dos Estados Unidos, serei o primeiro a votar nela. Não na próxima eleição, é claro, mas na seguinte.

Houve risos e aplausos.

- Mas Ellen Scott é muito mais do que apenas uma mulher brilhante. É um ser humano caridoso e compassivo que nunca hesitará em se envolver nos problemas com que se defronta o mundo atual…

O discurso prolongou-se por mais dez minutos, mas Ellen Scott não prestava mais atenção. "Como ele está enganado", pensou, amargurada. "Como todos estão enganados. A Scott Industries nem mesmo é minha. Milo e eu a roubamos. Eu sou culpada de um crime ainda maior do que esse. Não importa mais. Não agora. Porque em breve estarei morta."

Ela recordou as palavras exatas do médico ao ler os resultados dos exames que representavam a sua sentença de morte:

- Lamento profundamente, Srª Scott, mas receio que não haja maneira de lhe dar a notícia gentilmente. O cancro espalhou-se por todo o sistema linfático. É inoperável.

Ela sentira um súbito peso no estômago.

- Quanto tempo ainda me resta?

O médico hesitara.

- Um ano… talvez.

"Não é tempo suficiente. Não com tanta coisa ainda por fazer."

- Não dirá coisa alguma a ninguém, é claro. - Sua voz era firme.

- Claro que não.

- Obrigada, doutor.

Não tinha lembrança da saída do Centro Médico Presbiterano Colúmbia ou da viagem para o centro da cidade. Tinha apenas um pensamento: "Devo encontrá-la antes de morrer."

O discurso do governador terminara.

- Senhoras e senhores, é minha honra e privilégio apresentar a Srª Ellen Scott.

Ela levantou-se, ovacionada de pé, e encaminhou-se para o palco, uma mulher magra, cabelos grisalhos, empertigada, vestida com uma elegância e irradiando uma falsa vitalidade. "Olhar para mim é como ver a luz distante de uma estela há muito morta", pensou, amargurada. "Na verdade, não estou mais aqui."

No palco, ela esperou os aplausos cessarem.

"Estão aplaudindo um monstro. O que fariam se soubessem?" Quando começou a falar, a voz estava firme:

- Senhor vice-presidente, senadores, governador Adams…

"Um ano", pensava ela. "Eu me pergunto onde ela está, se continua viva. Preciso encontrá-la."

Ela continuou a falar, dizendo automaticamente todas as coisas que a audiência esperava ouvir.

- Aceito com satisfação esse tributo, não para mim, mas para todos que tanto têm trabalhado a fim de aliviar o fardo dos menos afortunados do que nós…

Sua mente retrocedeu no tempo, por 42 anos, até Gary, Indiana…


Aos 18 anos, Ellen Dudash era empregada na fábrica de peças automotrizes da Scott Industries, em Gary, Indiana. Era uma jovem atraente e expansiva, muito popular entre os colegas de trabalho.

No dia em que Milo Scott foi inspecionar a fábrica, Ellen foi escolhida para escoltá-lo.

- Já pensou nisso, Ellie? Talvez acabe se casando com o irmão do patrão, e todos nós estaremos trabalhando para você.

Ellen Dudash riu.

- É bem possível… e vai acontecer quando as galinhas criarem dentes.

Milo Scott não era absolutamente o que Ellen esperava. Tinha trinta e poucos anos, era alto e esbelto. "Não é nada feio", pensou Ellen. Ele era tímido, quase deferente.

- É muita gentileza de sua parte tomar seu tempo para me mostrar as instalações. Espero não estar afastando-a do seu trabalho.

Ela sorriu.

- Espero que esteja.

Era um homem fácil de se conversar.

"Não posso acreditar que estou gaguejando com o irmão do patrão. Espere só até contar tudo a mamãe e papai."

Milo Scott parecia verdadeiramente interessado pelos operários e seus problemas. Ellen conduziu-o pelo departamento em que eram fabricadas as peças de transmissão. Mostrou a sala de têmpera, onde as engrenagens eram submetidas a um processo de endurecimento, a seção de acondicionamento e o departamento de expedição. Ele parecia devidamente impressionado.

- Sem dúvida é uma grande operação, não é mesmo, Senhorita Dudash?

"Ele possui tudo isso e se comporta como um garoto embasbacado. Há gente de todos os tipos."

Foi na seção de montagem que o acidente ocorreu. O cabo de um carro suspenso, levando ferro despencou. Milo Scott encontrava-se diretamente embaixo. Ellen viu o que estava para acontecer uma fração de segundo antes e, sem pensar, empurrou-o para o lado. Duas barras de ferro atingiram-na antes que pudesse escapar. Ela caiu, inconsciente.

Despertou numa suíte particular de um hospital. O quarto estava literalmente repleto de flores. Quando abriu os olhos e viu tudo, Ellen pensou: "Morri e fui para o céu."

Havia orquídeas, rosas, lírios, crisântemos e flores raras que não podia identificar. O braço direito estava engessado, as costelas enfaixadas.

Uma enfermeira entrou.

- Ah, já acordou, Senhorita Dudash. Vou chamar o médico.

- Onde… onde estou?

- Blake Center… é um hospital particular.

Ellen correu os olhos pela ampla suíte. "Nunca poderei pagar tudo isso."

- Estamos interceptando as ligações para você.

- Que ligações?

- A imprensa vem tentando entrevistá-la. Seus amigos têm telefonado. O Sr. Scott ligou várias vezes…

"Milo Scott!"

- Ele está bem?

- Como?

- Ele ficou machucado no acidente?

- Não. Esteve aqui no início da manhã, mas você ainda dormia.

- Ele veio me visitar?

- Isso mesmo. - A enfermeira correu os olhos à sua volta. - A maioria destas flores foi enviada por ele.

"Incrível!"

- Seus pais estão na sala de espera. Sente-se em condições para recebê-los agora?

- Claro.

- Vou chamá-los.

"Puxa, nunca fui tratada assim num hospital", pensou Ellen.

Seus pais entraram e se aproximaram da cama. Eles haviam nascido na Polônia, e tinham apenas uma noção de inglês. O pai era mecânico, corpulento e rude, na casa dos cinquenta anos, a mãe era uma camponesa simples do norte da Europa.

- Trouxe-lhe uma sopa, Ellen.

- Mamãe… eles dão comida às pessoas nos hospitais.

- Não da minha sopa. Não vão alimentar você direito no hospital. Coma tudo e ficará boa mais depressa.

- Já viu o jornal? Eu trouxe para você - comentou o pai.

Entregou o jornal a Ellen. A manchete dizia: OPERÁRIA ARRISCA A VIDA PARA SALVAR PATRÃO.

Ellen leu a matéria duas vezes.

- Foi muita coragem sua salvá-lo.

"Coragem! Foi uma estupidez. Se eu tivesse tempo para pensar, teria me salvado. Foi a coisa mais imbecil que já fiz. Ora, eu poderia ter morrido!"


Milo Scott foi visitar Ellen mais tarde, ainda naquela manhã. Trazia outro buquê de flores.

- São para você - disse, contrafeito. - O médico garantiu que ficará boa. Eu… eu não tenho palavras para expressar como me sinto grato.

- Não foi nada.

- Foi o ato mais corajoso que já vi. Salvou minha vida.

Ellen tentou se mexer, mas o movimento provocou-lhe uma aguda dor no braço.

- Você está bem?

- Claro. - Ela sentiu o lado começar a latejar. - O que o médico disse que estava errado comigo?

- Quebrou o braço e está com três costelas fraturadas.

Ele não podia dar uma notícia pior. Os olhos de Ellen encheram-se de lágrimas.

- Qual é o problema?

Como ela podia lhe contar? Riria dela. Vinha economizando para umas férias há muito sonhadas em Nova York com algumas colegas da fábrica. Era seu sonho. "Agora, ficarei sem trabalhar um mês ou mais. Lá se vai Manhattan."

Ellen trabalhava desde os 15 anos. Sempre fora independente e auto-suficiente, mas agora pensou: "Se ele está mesmo tão grato, talvez concorde em pagar parte das contas do hospital. Mas não posso pedir-lhe." Começava a sentir-se sonolenta. "Deve ser a medicação." E disse, com a voz meia engrolada:

- Obrigada por todas as flores, Sr. Scott. E foi um prazer conhecê-lo.

"Eu me preocuparei com as contas do hospital mais tarde."

Ellen Dudash adormeceu.


Na manhã seguinte, um homem alto e de aparência distinta entrou na suíte de Ellen.

- Bom dia, Senhorita Dudash. Como está se sentindo esta manhã?

- Muito melhor, obrigada.

- Sou Sam Norton, diretor de relações públicas da Scott Industries.

- Ah… - Ela nunca o vira antes. - Mora aqui?

- Não. Vim de avião de Washington.

- Para me ver?

- Para ajudá-la.

- Ajudar-me em quê?

- A imprensa está lá fora, Senhorita Dudash. Como não creio que já tenha dado uma entrevista coletiva alguma vez, pensei que talvez pudesse querer alguma ajuda.

- O que eles querem?

- Basicamente, vão perguntar como e por que salvou o Sr. Scott.

- Isso é fácil. Se eu parasse para pensar, teria fugido de lá como se fosse do inferno.

Norton fitou-a aturdido.

- Senhorita Dudash… acho que eu não diria isso, se estivesse no seu lugar.

- Porquê? É a verdade.

Não era absolutamente o que ele esperava. A garota parecia não ter a menor idéia de sua situação. Alguma coisa a preocupava, e resolveu falar.

- Vai se encontrar com o Sr. Scott?

- Vou, sim.

- Poderia me fazer um favor?

- Se eu puder, claro.

- Sei que o acidente não foi culpa dele, e não me pediu para empurrá-lo para o lado, mas… - O mas veio forte e independente em Ellen levou-a a hesitar. - Ora, não importa.

"É agora", pensou Norton. "Quanto ela tentará extorquir? Será dinheiro? Um cargo melhor? O quê?"

- Continue, por favor, Senhorita Dudash.

Ela falou impulsivamente:

- A verdade é que não tenho muito dinheiro, vou perder algum pagamento por causa disso e acho que não tenho condições de pagar todas as contas do hospital. Não quero incomodar o Sr. Scott, mas se ele pudesse me arrumar um empréstimo, juro que eu pagaria tudo. - Ellen percebeu a expressão de Norton e interpretou-a errada. - Desculpe. Talvez esteja parecendo mercenária. Acontece que eu estava economizando para uma viajem e… isso arruinou meus planos. - Respirou fundo. - Mas não é problema dele. Darei um jeito.

Sam Norton quase beijou-a. "Há quanto tempo que não deparo com a inocência autêntica? É suficiente para restaurar minha fé no sexo feminino."

Sentou-se no lado da cama e sua atitude profissional desapareceu. Pegou-lhe a mão.

- Ellen, tenho o pressentimento de que você e eu vamos ser grandes amigos. Prometo que não precisará se preocupar com dinheiro. Nossa primeira providência será levá-la para essa entrevista coletiva. Queremos que saia disso tudo com uma boa imagem e… - Ele parou. - Serei franco. Minha função é cuidar para que a Scott Industries saia disso tudo com a melhor imagem. Está entendendo?

- Acho que sim. Está querendo dizer que não parecia certo se eu dissesse que não estava realmente interessada em salvar Milo Scott? Ficaria muito melhor se eu dissesse algo como "Gosto tanto de trabalhar para a Scott Industries que quando vi o Sr. Milo Scott em perigo compreendi que devia tentar salvá-lo, mesmo com o risco da minha própria vida"?

- Isso mesmo.

Ellen riu.

- Muito bem, se isso vai ajudá-lo. Mas não quero enganá-lo, Sr. Norton. Não sei o que me levou a proceder daquela forma.

Ele riu.

- Esse será nosso segredo. É, agora, vou deixar as feras entrarem.

Havia um grande número de repórteres e fotógrafos, de emissoras de rádio, jornais e revistas. A imprensa tencionava tirar o máximo proveito. Não era todos os dias que uma linda empregada arriscava a vida para salvar o irmão do patrão. E o fato de o patrão ser Milo Scott não prejudicava a história em nada.

- Senhorita Dudash… quando viu aquele ferro caindo, qual foi o seu primeiro pensamento?

Ellen olhou para Sam Norton com uma expressão de inocência e respondeu:

- Pensei: "Preciso salvar o Sr. Scott. Eu nunca me perdoaria se o deixasse morrer."

A entrevista coletiva prosseguiu sem maiores dificuldades. Quando percebeu que Ellen começava a se cansar, San Norton apressou-se em encerrá-la:

- Já chega, senhoras e senhores. Muito obrigado a todos.

Depois que os jornalistas se retiraram, Ellen perguntou:

- Eu me saí bem?

- Foi maravilhosa. E agora durma um pouco.

Ela teve um sono irrequieto. Sonhou que se encontrava no saguão do Empire States mas os guardas não a deixavam subir no alto porque não tinha dinheiro suficiente para comprar um ingresso.


Milo Scott foi visitar Ellen naquela tarde. Ela ficou surpresa ao vê-lo. Fora informada que ele morava em Nova York.

- Contaram-me que você se saiu muito bem na entrevista coletiva. Você é uma heroína.

- Sr. Scott… preciso lhe contar uma coisa. Não sou uma heroína. Não parei para pensar em salvá-lo. Eu… eu apenas o fiz.

- Sei disso. Sam Norton me contou.

- Então…

- Há vários tipos de heroísmo, Ellen. Não pensou em me salvar, mas agiu instintivamente, em vez de se salvar.

- Eu… eu apenas queria que soubesse.

- Sam também me contou que estava preocupada com as contas do hospital.

- Bem…

- Já cuidei de tudo. E quanto à possibilidade de perder uma parte do salário… - ele sorriu: - Senhorita Dudash… acho que não sabe o quanto lhe devo.

- Não me deve nada.

- O médico me informou que você receberá alta amanhã. Poderei levá-la para jantar?

"Ele não compreende", pensou Ellen. "Não quero sua caridade. Nem sua compaixão."

- Falei sério quando disse que não me deve nada. Obrigada por se encarregar das contas do hospital. Estamos quites.

- Ótimo. E agora posso convidá-la para jantar?


Foi assim que começou. Milo Scott permaneceu em Gary por uma semana, e viu Ellen todas as noites.

Os pais advertiram-na:

- Tome cuidado. Os patrões não saem com operárias a menos que queiram alguma coisa.

Essa foi a atitude de Ellen Dudash no início, mas Milo a fez mudar de idéia. Foi um perfeito cavalheiro em todos os momentos, e a verdade finalmente aflorou em Ellen: Ele gosta mesmo da minha companhia.

Enquanto Milo se mostrava tímido e reservado, Ellen era franca e expansiva. Durante toda sua vida, Milo estivera cercado de mulheres com a ambição ardente de entrarem para a poderosa dinastia Scott. E se empenhavam em jogos calculistas. Ellen Dudash era a primeira mulher totalmente honesta que Miro já conhecera. Dizia exatamente o que pensava. Era inteligente, atraente e, acima de tudo, uma companhia divertida. No final da semana, os dois estavam apaixonados.

- Quero casar com você - disse Milo. - Não consigo pensar em qualquer outra coisa. Vai casar comigo?

- Não.

Ellen também não fora capaz de pensar em outra coisa. A verdade era que estava apavorada. Os Scott encontravam-se tão próximos da realeza quanto era possível nos Estados Unidos.

Eram famosos, ricos e poderosos. "Não pertenço ao círculo deles. Só poderia bancar a tola. E o mesmo aconteceria a Milo." Mas ela sabia que travava uma batalha perdida.

Foram casados por um juiz de paz em Greenwich, Connecticut, e viajara até Manhattan para que Ellen Scott Dudash fosse apresentada à família do marido.


Byron Scott recebeu o irmão bruscamente:

- Mas que loucura foi essa… casar com uma vigarista polonesa? Ficou maluco?

Susan Scott foi igualmente implacável.

- Claro que ela se casou com Milo pelo dinheiro. Quando descobrir que ele não tem nada, arrumaremos uma anulação. Esse casamento não vai durar muito.

Mas eles subestimaram Ellen Scott.

- Seu irmão e sua cunhada me odeiam, mas não me casei com eles. Casei com você. Não quero me interpor entre você e Byron. Se isso o deixa muito infeliz, Milo, basta dizer, e irei embora.

Ele abraçou a esposa e sussurrou:

- Adoro você… e quando Byron e Susan a conhecerem direito, também vão adorá-la.

Ellen apertou-o e pensou: "Como ele é ingênuo. E como eu o amo."


Byron e Susan não eram grosseiros com a nova cunhada. Mostravam-se condescendentes. Para eles, Ellen seria sempre a garota polonesa que trabalhara numa das fábricas da Scott Industries.

Ellen observava e lia sobre como as esposas dos amigos de Milo se vestiam, e tratava de imitá-las. Estava determinada a se tornar a esposa apropriada para Milo Scott, e conseguiu. Mas não aos olhos de Byron e Susan. E, pouco a pouco, sua ingenuidade transformou-se em cinismo. "Os ricos e poderosos não são tão maravilhosos assim", pensou. "Tudo o que querem é se tornar mais ricos e mais poderosos."

Ellen era muito protetora em relação a Milo, mas havia pouco que pudesse fazer para ajudá-lo. A Scott Industries era um dos poucos conglomerados de capital fechado do mundo, e todas as ações pertenciam a Byron. O irmão caçula era um empregado assalariado, e Byron nunca o deixava esquecer isso. Tratava-o de maneira vergonhosa. Milo era encarregado de todos os trabalhos sujos, e nunca recebia qualquer crédito pelo que fazia.

- Por que atura isso, Milo? Não precisa dele. Podemos ir embora. E você pode montar seu próprio negócio.

- Eu não poderia deixar a Scott Industries. Byron precisa de mim.

Com o passar do tempo, porém, Ellen veio a compreender o verdadeiro motivo. Milo era um fraco. Precisava de alguém forte para se apoiar. Ela sabia que ele nunca teria coragem suficiente para largar a companhia. "Muito bem", pensou, irritada. "Um dia a companhia lhe pertencerá. Byron não pode viver para sempre. E Milo é o único herdeiro."

Foi um golpe para Ellen quando Susan Scott anunciou que estava grávida. "O bebê vai herdar tudo."

Quando a criança nasceu, Byron declarou:

- É uma menina, mas eu lhe ensinarei como administrar a companhia.

"O miserável", pensou Ellen, o coração doído por Milo.

O único comentário de Milo foi:

- Não é uma criança linda?


CAPÍTULO 16


O piloto do Lockheed Lodestar estava preocupado.

- Uma frente de tempestade aproxima-se. A situação não me agrada. - Acenou com a cabeça para o co-piloto. - Assuma o comando. - Então deixou a carlinga e foi para a cabine de passageiros.

Havia cinco passageiros a bordo, além do piloto e co-piloto: Byron Scott, o brilhante e dinâmico fundador, e principal executivo da Scott Industries; sua atraente esposa, Susan; a filha de um ano, Patricia; Milo Scott, o irmão caçula de Byron; e a esposa de Milo, Ellen. Voavam num dos aviões da companhia, de Paris rumo a Madrid. Levar a criança fora um impulso de último minuto de Susan.

- Detesto ficar longe de minha filha por tanto tempo - ela disera a Byron.

- Tem medo que ela nos esqueça? - zombou ele. - Está bem, vamos levá-la conosco.

Com o término da Segunda Guerra Mundial, a Scott Industries expandia-se rapidamente no mercado europeu. Em Madrid, Byron Scott analisaria as possibilidades de construir uma nova usina siderúgica.

O piloto aproximou-se de Byron.

- Com licença, senhor. Estamos nos aproximando de nuvens tempestuosas. A situação pela frente não parece boa. Devemos voltar?

Byron Scott olhou pela pequena janela. Voavam por uma massa de nuvens cinzentas, riscadas, a intervalos de poucos segundos, por relâmpagos.

- Tenho uma reunião em Madrid esta noite. Pode contornar a tempestade?

- Vou tentar. Se não for possível, então teremos de voltar.

Byron assentiu.

- Está certo.

- Podem apertar os cintos, por favor?

O piloto voltou apressado para a carlinga.

Susan não ouviu a conversa. Pegou a criança no colo, arrependida, subitamente, por tê-la trazido. "Preciso dizer a Byron para mandar o piloto voltar", pensou.

- Byron…

Foram apanhados de repente pela tempestade, e o avião começou a se sacudir, à mercê das rajadas de vento. Os movimentos tornaram-se mais violentos. A chuva batia nas janelas. A tempestade acabara com toda a visibilidade. Os passageiros tinham a sensação de que viajavam num mar de algodão revolto.

Byron acionou o sistema de intercomunicação.

- Onde estamos, Blake?

- Oitenta quilômetros a noroeste de Madrid, sobre a cidade de Ávila.

Byron tornou a olhar pela janela.

- Esqueceremos Madrid por esta noite. Vamos voltar e sair logo daqui.

- Entendido.


A decisão veio uma fração de segundo tardia. Enquanto o piloto começava a fazer a volta, o pico de uma montanha surgiu abruptamente à sua frente. Não houve tempo para evitar a colisão.

Houve um estrondo e o céu explodiu, enquanto o avião deslizava pela encosta da montanha, espatifando-se, fragmentos da fuselagem e asas espalhando-se por um elevado platô.

Depois da colisão houve um silêncio anormal, que durou pelo que parecia uma eternidade. Foi rompido pelo crepitar das chamas, que começaram a envolver o trem de aterragem do avião.

- Ellen…

Ellen Scott abriu os olhos. Estava deitada sob uma árvore.

O marido inclinava-se por cima dela, batendo de leve em seu rosto. Ao ver que estava viva, Milo Scott exclamou:

- Graças a Deus!

Ellen sentou-se, tonta, a cabeça latejando, cada músculo no corpo dolorido. Olhou em redor, contemplando os destroços do que fora outrora um avião, repleto de corpos humanos. Estremeceu.

- E os outros? - balbuciou Ellen, a voz rouca.

- Estão mortos.

Fitou o marido, aturdida.

- Oh, Deus, não!

Ele assentiu, o rosto contraído em dor.

- Byron, Susan, a criança, os tripulantes… todos.

Ellen Scott tornou a fechar os olhos e disse uma oração silenciosa. "Por que Milo e eu fomos poupados?" Era difícil pensar com nitidez. "Precisamos descer à procura de socorro. Mas é tarde demais. Estão todos mortos." Era impossível acreditar.

Estavam cheios de vida apenas poucos minutos antes.

- Pode se levantar?

- Eu… eu creio que sim.

Milo ajudou a esposa a ficar de pé. Houve uma vertigem terrível, e ela ficou parada, à espera que passasse. Milo virou-se e olhou para o avião. As chamas se tornaram mais intensas.

- Vamos sair daqui, Ellen. O avião vai explodir a qualquer momento.

Afastaram-se depressa e ficaram observando os destroços arderem. Um instante depois houve uma explosão dos tanques de combustível, as chamas envolveram o avião por completo.

- É um milagre estarmos vivos - murmurou Milo.

Ellen olhou para o avião em chamas. Alguma coisa pressionava-lhe a mente, mas não conseguia pensar com nitidez.

Algo sobre a Scott Industries. E de repente ela soube.

- Milo?

- O que é? - perguntou ele, com o pensamento distante.

- É o destino. - O fervor em sua voz fez com que ele se virasse.

- Como?

- A Scott Industries… pertence a você agora.

- Eu não…

- Milo, Deus a deixou para você - falava Ellen com veemência. - Você viveu a vida toda à sombra de seu irmão mais velho. - Ela conseguia coordenar as idéias agora, sem se preocupar com a dor de cabeça.

As palavras saíam numa enxurrada que lhe sacudia todo o corpo.

- Você trabalhou para Byron durante vinte anos, na construção da companhia. É tão responsável pelo sucesso quanto ele, mas Byron… alguma vez lhe deu crédito por isso? Não. Foi sempre a sua companhia, seu sucesso, seus lucros. Pois agora você… você finalmente tem a oportunidade de fazer as coisas sozinho.

Milo ficou horrorizado.

- Ellen… os corpos estão… como pode pensar a esse respeito…?

- Sei de tudo. Mas não os matamos. É a nossa vez, Milo. Podemos finalmente agir. Não há ninguém vivo para reivindicar a companhia, só nós. A companhia é nossa! Sua!

De repente os dois ouviram o choro de uma criança. Ellen e Milo Scott se entreolharam, incrédulos.

- É Patrícia! Ela está viva! oh, Deus!

Encontraram a criança perto de alguns arbustos. Por algum milagre, nada sofrera.

Milo pegou-a, aninhou-a no colo, com carinho.

- Calma, está tudo bem, querida - sussurrou. - Vai acabar tudo bem.

Ellen estava a seu lado, com uma expressão chocada.

- Você… você disse que ela havia morrido.

- Deve ter sido lançada para fora do avião e ficou inconsciente.

Ellen olhou em silêncio para a criança por um longo tempo, e depois disse, numa voz abafada:

- Ela devia ter morrido com os outros.

Foi a vez de Milo ficar chocado.

- O que está dizendo?

- O testamento de Byron deixa tudo para Patricia. Você passará os próximos vinte anos como seu tutor, a fim de que ela possa, quando crescer, humilhá-lo tanto quanto o pai. É isso o que você quer?

Milo ficou quieto.

- Jamais teremos outra oportunidade como essa. - Ela olhava fixamente para a criança e havia uma expressão desvairada em seus olhos que Milo nunca vira antes. Ela parecia… "Ela está fora de si. Sofrendo de uma concussão."

- Pelo amor de Deus, Ellen, o que se está passando?

Ela fitou-o em silêncio por um momento, o brilho desvairado desapareceu-lhe dos olhos.

- Não sei - respondeu Ellen, calmamente. Após uma pausa, ela acrescentou: - Há uma coisa que podemos fazer: deixá-la em algum lugar, Milo. Segundo o piloto, estamos perto da Ávila. Deve haver muitos turistas lá. Não há motivo que alguém associe a criança com o desastre de avião.

Ele sacudiu a cabeça.

- Os amigos sabem que Byron e Susan trouxeram Patricia.

Ellen olhou para o avião em chamas.

- Isso não é problema. Todos morreram queimados no avião. Faremos um serviço in memoriam particular aqui.

- Não podemos fazer isso, Ellen. Jamais poderíamos escapar impunes.

- Deus fez por nós. Conseguiremos escapar.

Milo contemplou a criança.

- Mas ela é tão…

- Ela ficará bem. Vamos largá-la numa bela casa de fazenda, nos arredores da cidade. Alguém irá adotá-la, e ela crescerá para levar uma vida feliz aqui.

Milo sacudiu a cabeça.

- Não posso fazer isso. De jeito nenhum.

- Se me ama, fará isso por nós. Precisamos escolher, Milo. Pode ter-me a mim ou passar o resto da vida trabalhando para a filha de seu irmão.

- Por favor, eu…

- Você me ama?

- Mais do que minha própria vida.

- Pois então prove.


Os dois desceram pela encosta da montanha, no escuro, com todo cuidado, fustigados pelo vento. Como o avião caíra numa área de muitas árvores, o estrondo fora abafado, e por isso os habitantes locais ainda não sabiam do acidente.

Três horas depois, nos arredores de Ávila, encontraram uma pequena casa de fazenda. Ainda não amanhecera.

- Vamos deixá-la aqui - sussurrou Ellen.

Milo fez a última tentativa.

- Ellen, não poderíamos…?

- Faça o que estou mandando!

Sem dizer nada, ele levou a criança para a porta da casa. A menina usava apenas uma camisola rosa rasgada, enrolada numa manta.

Milo contemplou Patricia por um longo momento, os olhos marejados de lágrimas, depois ajeitou-a no chão, com delicadeza.

E sussurrou:

- Seja feliz, querida.


O choro despertou Asunción Moras. Por um momento sonolenta, ela pensou que fosse o balido de uma cabra ou de uma ovelha.

"Como escapara do cercado?"

Resmungando, Asunción levantou-se da cama quente, pôs um velho chambre desbotado e encaminhou-se para a porta. Ao ver a criança aos gritos e esperneando, ela exclamou:

- Madre de Dios! - e ela chamou o marido.

Recolheram a criança, que não parava de chorar, e parecia estar ficando azul.

- Temos de levá-la para o hospital.

Envolveram a criança com outra manta, pegaram a camioneta e foram para o hospital. Sentaram-se num banco no corredor comprido, à espera de atendimento. Meia hora depois apareceu um médico, que levou a criança para exame.

- Ela está com pneumonia - avisou ele.

- Vai sobreviver?

O médico encolheu os ombros.


Milo e Ellen Scott entraram cambaleando na delegacia da polícia em Ávila.

O sargento de plantão fitou os dois turistas enlameados.

- Buenos dias. Em que posso ajudá-los?

- Houve um terrível acidente - avisou Milo. - Nosso avião caiu numa montanha e…

Uma hora depois, uma expedição de socorro estava a caminho da montanha. Quando lá chegou, não havia nada a fazer, a não ser ver os restos carbonizados e fumegantes de um avião e seus passageiros.

O inquérito sobre o acidente foi conduzido de maneira superficial pelas autoridades espanholas.

- O piloto não deveria tentar voar numa tempestade tão intensa. Devemos atribuir o acidente a erro do piloto.

Não havia motivo para que alguém de Ávila associasse o desastre de avião com uma criança pequena deixada na porta de uma casa de fazenda.

Estava acabado.

Estava apenas começando.


Milo e Ellen realizaram um serviço in memoriam particular por Byron, a esposa Susan e a filha Patricia. Ao voltarem a Nova York, realizaram outro in memoriam, com a presença dos chocados amigos dos Scotts.

- Que tragédia terrível! E a pobre Patricia…

- É verdade - murmurou Ellen, tristemente. - A única bênção é que aconteceu tão depressa que nenhum deles sofreu.

A comunidade financeira ficou abalada com a morte de Byron Scott. A cotação da ação da Scott Industries caiu. Mas Ellen Scott não se preocupou. Tranquilizou o marido:

- Não há problema. Tornará a subir. Você é melhor do que Byron jamais foi. Ele conteve a companhia, Milo. Agora, vamos fazê-la avançar.

Milo abraçou-a.

- Não sei o que faria sem você.

Ellen sorriu.

- Não haverá necessidade. Daqui por diante, teremos tudo no mundo que sempre sonhamos.

Ela apertou-o firme e pensou: "Quem poderia acreditar que Ellen Dudash, de uma pobre família polonesa de Gary, Indiana, diria um dia "Daqui por diante teremos tudo no mundo com que sempre sonhamos"?"

E ela falava sério.


A criança permaneceu no hospital por dez dias, lutando por sua vida. Depois que a crise passou, o padre Berrendo procurou o camponês e a esposa.

- Tenho boas notícias para vocês - disse ele. - A criança vai ficar boa.

Os Moras trocaram um olhar contrafeito.

- Fico contente por ela - murmurou o camponês, evasivo.

Padre Berrendo estava radiante.

- É uma dádiva de Deus.

- Claro, padre. Mas minha esposa e eu conversamos e chegamos à conclusão de que Deus é generoso demais conosco. Sua dádiva exige alimentação, e não temos condições de sustentá-la.

- Mas ela é uma criança muito bonita - ressaltou padre Berrendo. - Além disso…

- Concordo. Mas minha esposa e eu somos velhos e doentes, não podemos assumir a responsabilidade de criar uma criança. Deus terá de aceitar sua dádiva de volta.

E assim, sem ter para onde ir, a criança foi enviada para o orfanato em Ávila.


Milo e Ellen estavam sentados no escritório do advogado de Byron Scott para a leitura do testamento. Os três eram as únicas pessoas presentes. Ellen sentiu um excitamento quase insuportável. Umas poucas palavras num pedaço de papel fariam com que ela e Milo se tornassem ricos para sempre.

"Compraremos obras dos velhos mestres, uma propriedade em Southampton, um castelo na França. E isso é apenas o começo."

O advogado começou a falar, e Ellen concentrou-se nele.

Meses antes, ela vira uma cópia do testamento de Byron, e sabia exatamente o que dizia:

"No caso de minha esposa e eu falecermos, deixo todas as minhas ações na Scott Industries para minha única filha, Patricia, e designo meu irmão Milo como executor testamentário, até que ela alcance a idade legal e possa assumir…"

"Pois tudo isso está mudado agora", pensou Ellen, na maior emoção.

O advogado, Lawrence Gray, disse solenemente:

- Foi um terrível choque para todos nós. Sei o quanto você amava seu irmão, Milo, e aquela linda criança… - Ele sacudiu a cabeça. - Mas a vida precisa de continuar. Talvez não saiba que seu irmão havia alterado o testamento. Não vou incomodá-lo com aspetos jurídicos. Lerei apenas a parte essencial. - Folheou o testamento e encontrou o parágrafo que procurava. - Corrijo este testamento para que minha filha, Patricia, receba a quantia de cinco milhões de dólares e mais a distribuição de um milhão de dólares por ano, pelo resto de sua vida. Todas as ações na Scott Industries em meu nome ficarão para meu irmão, Milo, como uma recompensa pelos longos, fiéis e valiosos serviços que prestou à companhia ao longo dos anos.

Milo Scott sentiu que a sala começava a balançar. O advogado levantou os olhos.

- Está se sentindo bem?

Milo tinha dificuldade para respirar. "Santo Deus, o que fizemos? Nós a privamos de sua herança e não era absolutamente necessário. Mas agora podemos devolver-lhe tudo."

Virou-se para dizer alguma coisa a Ellen, mas a expressão nos olhos da esposa deteve-o.

- Deve haver alguma coisa que possamos fazer, Ellen. Não podemos simplesmente deixar Patricia lá. Não agora.

Estavam no apartamento na Quinta Avenida, vestindo-se para um jantar de caridade.

- É exatamente o que vamos fazer - declarou Ellen. - A menos que você prefira trazê-la de volta e tentar explicar por que falamos que morreu queimada no desastre de avião.

Milo não tinha resposta para isso. Depois de pensar por um momento, ele disse:

- Muito bem, mas vamos enviar dinheiro todos os meses, a fim de…

- Não seja tolo, Milo - falou Ellen, bruscamente. - Mandar dinheiro? E fazer com que a polícia comece a investigar por que alguém está enviando dinheiro para a criança, até nos descobrir? Não é possível. Se a consciência o incomoda, teremos o dinheiro da companhia para dar a obras de caridade. Esqueça a criança, Milo. Ela está morta, lembra?

"Lembra… lembra… lembra…"

As palavras ecoaram na mente de Ellen Scott, enquanto contemplava a audiência no salão de baile do Waldorf-Astoria e concluía seu discurso. Mais uma vez foi ovacionada de pé.

"Vocês estão aclamando uma morta", pensou.


Os fantasmas voltaram naquela noite. Ellen julgava tê-los exorcizado há muito tempo. No começo, depois dos serviços in memoriam para Byron, Susan e Patricia, os visitantes noturnos apareciam com frequência. Neblinas tênues pairavam por cima de sua cama, e vozes sussurravam-lhe no ouvido. Despertava, o coração disparava, mas não via nada. Não contou a Milo. Ele era um fraco, poderia ficar apavorado e cometer uma loucura, algo que arriscaria a companhia. Se a verdade fosse revelada, o escândalo arruinaria a Scott Industries, e Ellen estava determinada a impedir que isso jamais acontecesse. E por isso ela sofria os fantasmas em silêncio, até que finalmente desapareceram, deixando-a em paz.

Agora, na noite do banquete, eles voltaram. Ellen acordou e sentou-se na cama, olhando em redor. O quarto estava vazio e quieto, mas ela sabia que os fantasmas se encontravam ali. O que tentavam lhe dizer? Sabiam que ela os encontraria em breve?

Ellen levantou-se e foi para a ampla sala de estar, decorada com antiguidades, da bela casa na cidade que comprara depois da morte de Milo. Correu os olhos pela aprazível sala e pensou:

"Pobre Milo." Não tivera muito tempo para desfrutar os benefícios da morte do irmão. Morrera de um ataque cardíaco um ano depois do desastre de avião, e Ellen Scott assumira a companhia, dirigindo-a com tanta eficiência e habilidade que projetara a Scott Industries no âmbito internacional.

"A companhia pertence à família Scott", pensou. "Não vou entregá-la a estranhos anônimos."

E isso levou seus pensamentos à filha de Byron e Susan. A legítima herdeira do trono que lhe fora roubado. Habia medo em seus pensamentos? Havia um desejo de fazer uma expiação antes de sua própria morte?

Ellen Scott passou a noite inteira sentada na sala de estar, os olhos voltados para o nada, pensando e planejando. Há quanto tempo fora? Vinte e oito anos. Patricia seria agora uma mulher adulta, presumindo que ainda vivia. O que se tornara sua vida? Casara com um camponês ou um comerciante da aldeia? Tinha filhos? Ainda vivia em Ávila ou fora para algum outro lugar?

"Devo encontrá-la", pensou Ellen. "E depressa. Se Patricia continua viva, preciso vê-la, conversar com ela. Devo finalmente acertar as contas. O dinheiro pode converter mentiras em verdades. Encontrarei um meio de resolver o problema sem que ela descubra o que realmente aconteceu."

Na manhã seguinte, Ellen chamou Alan Tucker, chefe da segurança da Scott Industries. Era um ex-detetive, com cerca de quarenta anos, magro, calvo, pálido, trabalhador e inteligente.

- Quero que faça um investigação para mim.

- Pois não, Srª Scott.

Ellen estudou-o um momento, especulando sobre o que poderia contar-lhe "Não posso dizer nada", concluiu. "Enquanto estiver viva, recuso-me a pôr a companhia em risco. Deixarei que ele descubra Patricia primeiro e depois decidirei como cuidar da situação."

Inclinou-se para a frente:

- Há 28 anos uma órfã foi deixada na porta de uma casa de fazenda, nos arredores de Ávila, Espanha. Quero que descubra onde ela está hoje e a traga para mim o mais depressa possível.

O rosto de Alan Tucker permaneceu impassível. A Srª Scott não gostava que seus empregados demonstrassem emoção.

- Está bem, madame. Partirei amanhã.


Capítulo 17


O coronel Ramón Acoca encontrava-se num ânimo expansivo. Todas as peças finalmente começavam a se encaixar. Uma ordenança entrou na sala.

- O coronel Sostelo chegou.

- Mande-o entrar.

"Não precisarei mais dele", pensou Acoca." "Pode voltar para seus soldadinhos de chumbo."

O coronel Fal Sostelo entrou na sala.

- Coronel.

- Coronel.

"É irónico", pensou Sostelo. "Temos o mesmo posto, mas o gigante de cicatriz possui o poder para me liquidar. Ele deve estar ligado à maldita "OPUS DEI".

Sostelo ficava indignado por ser obrigado a responder ao chamado de Acoca, como se fosse algum inexpressivo subordinado. Mas fez um esforço para não deixar transparecer seus sentimentos.

- Queria falar comigo?

- Queria sim. - Acoca apontou para uma cadeira. - Sente-se. Tenho algumas notícias para você. Jaime Miró está com as freiras.

- "O quê?"

- Isso mesmo. Elas estão viajando com Miró e seus homens. Ele dividiu o bando em três grupos.

- Como…, como sabe disso?

Ramón Acoca recostou-se na cadeira.

- Joga xadrez?

- Não.

- É uma pena. Trata-se de um jogo muito instrutivo. Para ser um bom jogador, é necessário penetrar na mente do adversário. Jaime Miró e eu jogamos xadrez um com o outro.

Fal Sostelo ficou surpreso.

- Não compreendo.

- Não literalmente, coronel. Não usamos tabuleiro de xadrez. Usamos nossas mentes. Provavelmente compreendo Jaime Miró melhor do que qualquer outra pessoa no mundo. Sei como sua mente funciona. Tinha certeza que ele tentaria explodir a represa em Puenta la Reina. Capturamos dois dos seus homens ali e foi apenas por sorte que o próprio Miró escapou. Eu sabia que ele tentaria salvá-los, e Miró sabia que eu estava a par. - Acoca encolheu os ombros. - Não previ que ele usaria os touros para promover a fuga. - Havia um tom de admiração em sua voz.

- Dá impressão de que…

- De que o admiro? Admiro sua mente. Desprezo o homem.

- Sabe para onde Miró está indo?

- Viaja para o norte. Eu o pegarei nos próximos três dias.

O coronel Sostelo estava mais aturdido do que nunca.

- Finalmente será dado o xeque-mate.

Era verdade que o coronel Acoca compreendia Jaime Miró e a maneira como sua mente funcionava, mas não era suficiente para ele. O coronel queria uma vantagem, para garantir a vitória, e a encontrara.

- Como…?

- Um dos terroristas de Miró é um informante - explicou o coronel Acoca.


Rubbio, Tomás e as duas freiras evitaram as cidades maiores e seguiram por estradas secundárias, passando por velhas aldeias, com ovelhas e cabras pastando, os pastores escutavam música e partidas de futebol pelos rádios transistorizados.

Era uma pitoresca justaposição do passado e presente, mas Lucia tinha outras coisas na mente. Permanecia perto de irmã Teresa, esperando pela primeira oportunidade de se apoderar da cruz e fugir. Os dois homens estavam sempre ao lado delas. Rubbio Arzano era o mais cortês, um homem alto, simpático, jovial. "Um camponês de mentalidade simples", concluiu Lucia. Tomás Sanjuro era franzido e calvo.

"Parece-se mais com um vendedor de sapatos do que com um terrorista. Será fácil de enganar os dois."

Atravessaram as planícies ao norte de Ávila à noite, esfriada pelos ventos que sopravam das montanhas Guadarrama. Havia um vazio assustador nas planícies ao luar. Passavam por "granjas" de trigo, olivais, vinhedos e milharais e pegavam batatas e alface, frutas das árvores, e ovos de galinhas nos galinheiros.

- Toda a região rural da Espanha é um vasto mercado - comentou Rubbio Arzano.

Tomás Sanjuro sorriu.

- É tudo de graça.

Irmã Teresa mantinha-se totalmente indiferente à conversa.

Seu único pensamento era alcançar o convento em Mendavia. A cruz parecia cada vez mais pesada, mas estava determinava a não permitir que lhe saísse das mãos. "Muito em breve", pensou. "Daqui a pouco estaremos lá. Fugimos de Getsêmane e de nossos inimigos para a nova mansão que Ele preparou para nós."

- O que disse? - indagou Lucia.

Irmã Teresa não percebera que falava em voz alta.

- Eu… nada.

Lucia examinou-a mais atentamente. A mulher mais velha parecia transtornada, e um pouco desorientada, sem saber o que acontecia ao seu redor. Acenou a cabeça para o saco de viagem que irmã Teresa carregava.

- Deve estar pesado - disse num tom de simpatia. - Não gostaria de que eu carregasse um pouco?

Irmã Teresa comprimiu a cruz contra o corpo.

- Jesus carregou um fardo mais pesado. Posso carregar este por Ele. "Se algum homem for atrás de mim, que negue a si mesmo, assuma a sua cruz diária e me acompanhe." Eu a levarei - acrescentou ela, obstinada.

Havia algo estranho em seu tom de voz.

- Está se sentindo bem, irmã?

- Claro.

Irmã Teresa achava-se longe de estar bem. Não conseguira dormir. Sentia-se tonta e febril. A mente escapava-lhe ao controle outra vez. "Não posso ficar doente", pensou. "Irmã Betina me repreenderia." Mas irmã Betina não estava ali. Era tudo muito confuso. E quem eram aqueles homens? Não confio neles.

"O que querem comigo?"

Rubbio Arzano tentara puxar conversa com irmã Teresa, procurando deixá-la à vontade.

- Deve lhe parecer estranho, irmã, estar de volta ao mundo. Quanto tempo passou no convento?

"Por que queria ele saber?"

- Trinta anos.

- Puxa, é um bocado de tempo. De onde veio?

Era angustiante para ela até mesmo pronunciar a palavra.

- Éze.

O rosto de Arzano se iluminou.

- Éze? Passei um verão lá, em férias. É uma cidadezinha maravilhosa. Conheço bem. Lembro-me…

Conheço bem. Até que ponto? "Será que ele conhece Raul? Fora Raul que o mandara?" E a verdade atingiu-a como um relâmpago.

Aqueles estranhos haviam sido enviados para levá-la de volta a Éze, para Raul Giradot. Estavam sequestrando-a. Deus a puniu por abandonar o bebê de Monique. Ela tinha certeza agora que a criança que vira na praça de Villacastín era de sua irmã. "Mas não podia ser, não é mesmo? Isso acontecera há trinta anos", Teresa murmurou para si mesmo. "Estão mentindo para mim."

Rubbio Arzano observava-a, escutando seus murmúrios.

- Algum problema, irmã?

Ela entendera tudo agora. Não permitiria que a levassem de volta para Raul e o bebê. Precisava chegar ao convento em Mendavia e entregar a cruz de ouro, Deus então a perdoaria pelo terrível pecado que cometera. "Devo ser esperta. Não posso deixar que percebam que sei de seu segredo." Olhou para Rubbio e acrescentou:

- Estou bem.

Seguindo em frente, através de planícies secas, crestadas pelo sol, chegaram a uma pequena aldeia em que camponesas vestidas de preto lavavam roupa numa fonte, sob um telhado, apoiado em quatro vigas antigas. A água passava por uma comprida calha de madeira, de forma que estava sempre fresca. As mulheres esfregavam as roupas em blocos de pedra e enxaguavam na água corrente.

"Uma cena muito pacífica", pensou Rubbio. Lembrava-o da fazenda que deixara para trás. "É assim que a Espanha era. Sem bombas, sem matanças. Algum dia voltaremos a ter paz?"

- Buenos dias.

- Buenos dias.

- Poderíamos beber um pouco? Viajar deixa as pessoas com muita sede.

- Claro. Sirvam-se, por favor.

A água estava fresca e revigorante.

- Gracias, Adiós.

- Adiós.

Rubio detestava partir.


As duas mulheres e os dois acompanhantes seguiram em frente, passando por oliveiras e sobreiros, o ar do verão impregnado com a fragância de uvas e laranjas maduras. Passaram por pomares de macieiras, cerejeiras e ameixeiras, fazendas ruidosas, com o barulho de galinhas, porcos e cabras.

Rubio e Tomás na frente, conversando em voz baixa.

"Estão falando de mim. Pensam que não conheço seu plano."

Irmã Teresa chegou mais perto, a fim de poder escutar o que diziam.

- …uma recompensa de quinhentas mil pesetas por nossas cabeças. Claro que o capitão Acoca pagaria mais por Jaime, mas não quer sua cabeça. Quer seus cojones.

Os homens riram.

Enquanto escutava a conversa, a convição de irmã Teresa foi se tornando cada vez mais forte. "Esses homens são assassinos executando o trabalho de Satã, mensageiros do mal enviados para me condenarem ao inferno eterno. Mas Deus é mais forte do que eles. Ele não permitirá que me levem de volta para casa."

Raul Giradot estava ao seu lado, exibindo o sorriso que ela conhecia tão bem.

"A voz!"

"Como?"

"Ouvi você cantar ontem. É magnífica."

"Em que posso servi-la?" "Preciso de três metros de musseline, por favor."

"Pois não. Por aqui… Minha tia é dona desta loja e precisava de ajuda, por isso resolvi trabalhar para ela por algum tempo."

"Tenho certeza que poderia conquistar qualquer homem que quisesse, Teresa, mas espero que me escolha."

Ele era tão bonito…

"Nunca conheci ninguém como você, minha querida."

Raul abraçava-a e beijava-a.

"Vai ser uma linda noiva."

"Mas agora sou esposa de Cristo. Não posso voltar para Raul."

Lucia observava irmã Teresa atentamente. Ela falava sozinha, mas Lucia não conseguia distinguir as palavras.

"Ela está desabando", pensou Lucia. "Não vai aguentar muito tempo. Preciso me apoderar daquela cruz o mais depressa possível."

O crepúsculo já caíra quando avistaram a cidade de Olmega ao longe.

Rubio parou.

- Haverá soldados por lá. Vamos subir pelas colinas e contornar a cidade.

Saíram da estrada e deixaram as planícies, rumo às colinas, por cima de Olmega. O sol deslizava pelos picos da serra, e o céu começava a escurecer.

- Precisamos percorrer apenas mais alguns quilômetros - garantiu Rubio Arzano, tranquilizador. - E depois poderemos descansar.

Alcançaram o topo de uma alta colina. Tomás Sanjuro levantou a mão subitamente e sussurrou:

- Esperem!

Rubio adiantou-se para seu lado, foram juntos até a beira da colina e olharam para o vale lá embaixo. Havia um acampamento de soldados.

- Mierda! - murmurou Rubio. - Deve haver um pelotão inteiro. Ficaremos aqui em cima pelo resto da noite. Provavelmente eles levantarão o acampamento ao amanhecer, e então podemos seguir em frente. - Virou-se para Lucia e irmã Teresa, tentando não deixar transparecer sua preocupação. - Passaremos a noite aqui, irmãs. Não podemos fazer barulho. Há soldados lá embaixo, e não queremos que nos descubram.

Era a melhor notícia que Lucia poderia ouvir. "É perfeito", pensou. "Desaparecerei com a cruz durante a noite. Não ousarão tentar seguir-me, por causa dos soldados."

Para irmã Teresa, a notícia teve um significado diferente.

Ouvira os homens comentarem que alguém chamado coronel Acoca estava à procura deles. "Chamaram o coronel Acoca de inimigo. Mas esses homens são o inimigo; portanto, o coronel Acoca deve ser meu amigo. Obrigada, Deus, por enviar-me o coronel Acoca."

"O homem chamado Rubio estava lhe falando:

- Entendeu, irmã? Todos devemos ficar muito quietos.

- Entendi. - "E entendi mais do que você imagina. Eles não sabiam que Deus lhe permitia ver em seus corações malignos."

Tomás Sanjuro disse, gentilmente:

- Sei como deve ser difícil para as duas, mas não se preocupem. Daremos um jeito para que cheguem sãs e salvas ao convento.

"Para Éze, é o que ele está querendo dizer. Ah, mas como ele é astuto. Fala as palavras de mel do diabo. Mas Deus está em mim, e Ele me guia." Ela sabia o que devia fazer. Mas precisava ser muito cautelosa.

Os dois homens arrumaram os sacos de dormir das freiras, um ao lado do outro.

- Vocês duas devem dormir um pouco.

As mulheres enfiaram-se nos sacos de dormir, nada familiares. A noite estava excepcionalmente clara, e o céu salpicado de estrelas cintilantes. Lucia contemplou-as e pensou, feliz: "Dentro de mais algumas horas estarei a caminho da liberdade. Assim que os outros adormecerem." Ela bocejou. Não percebera como estava cansada. A viagem longa e árdua e a tensão emocional deixaram-na exausta. Sentiu os olhos pesados. "Vou descansar só um pouco", pensou Lucia.

Ela dormiu.

Irmã Teresa, deitada ao seu lado, permaneceu acordada, em sua luta contra os demônios que tentavam possuí-la, para mandar sua alma para o inferno. "Devo ser forte. O Senhor está me testando. Fui exilada a fim de poder encontrar o caminho de volta para Ele. E esses homens fazem de tudo para me deter. Não posso permitir."


Às quatro horas da madrugada, irmã Teresa sentou-se sem fazer barulho e olhou à sua volta. Tomás Sanjuro dormia a poucos passos dela. O homem alto e moreno chamado Rubio estava de vigia na beira da clareira, de costas para ela. Podia ver sua silhueta contra as árvores.

Em silêncio, irmã Teresa levantou-se. Hesitou, pensando na cruz. "Devo levá-la? Mas estarei voltando para cá muito em breve. Preciso encontrar um lugar em que fique segura até eu voltar."

Olhou para o lugar em que irmã Lucia dormia. "Isso mesmo. Está segura com minha irmã em Deus", decidiu irmã Teresa.

Aproximou-se do outro saco de dormir, sem fazer barulho, e enfiou a cruz lá dentro. Lucia não se mexeu. Irmã Teresa virou-se e afastou-se pelo bosque, fora da vista de Rubio Arzano. Começou a descer a encosta, com todo cuidado, na direção do acampamento dos soldados. A encosta era íngreme e escorregadia com o orvalho, mas Deus lhe deu asas, e ela desceu depressa, sem tropeçar ou cair, ao encontro da salvação.

O vulto de um homem surgiu de repente na escuridão à sua frente. Uma voz indagou:

- Quem está aí?

- Irmã Teresa.

Ela aproximou-se da sentinela, que usava um uniforme militar e apontava um rifle para ela.

- De onde veio, velha?

Irmã Teresa fitou-o com olhos brilhantes.

- Deus me enviou.

O sentinela arregalou os olhos.

- É mesmo?

- É, sim. Ele me mandou para falar com o coronel Acoca.

O soldado sacudiu a cabeça.

- É melhor dizer a Ele que você não é do tipo do coronel.

"Adiós, señora."

- Não compreende. Sou a irmã Teresa, do convento Cisterciense. Fui capturada por Jaime Miró e seus homens. - Observou uma expressão de espanto estampar-se no rosto do homem.

- Você… é do convento?

- Isso mesmo.

- O de Ávila?

- Exatamente. - Teresa estava impaciente. O que havia com o soldado? Será que não compreendia como era importante que fosse salva daqueles homens maus?

- O coronel não se encontra aqui no momento, irmã… - Era um golpe inesperado. -…mas o coronel Sostelo está no comando. Posso levá-la a ele.

- E ele poderá me ajudar?

- Claro. Acompanhe-me, por favor.

A sentinela mal podia acreditar na sua sorte. O coronel Fal Sostelo despachara pelotões para vascolhar toda a região à procura das quatro freiras, sem o menor sucesso. Agora, uma das irmãs aparecia no acampamento e se entregava. O coronel ficaria muito satisfeito.

Chegaram à barraca em que o coronel Fal Sostelo e seu subcomandante examinavam um mapa. Os homens levantaram os olhos quando a sentinela e uma mulher entraram.

- Com licença, coronel. Esta é a irmã Teresa, do convento Cisterciense.

O coronel Sostelo ficou incrédulo. Nos últimos três dias, todas as suas energias haviam-se concentrado na descoberta de Jaime Miró e as freiras, e agora, ali na sua frente, estava uma delas. "Havia" mesmo um Deus.

- Sente-se, irmã.

"Não há tempo para isso", pensou irmã Teresa. Precisava de fazê-lo compreender como a situação era urgente.

- Devemos nos apressar. Eles estão tentando me levar de volta para Éze.

O coronel ficou perplexo.

- Quem está tentando levá-la de volta para Éze?

- Os homens de Jaime Miró.

Ele se levantou.

- Irmã… por acaso sabe onde esses homens se encontram?

Irmã Teresa respondeu impaciente.

- Claro. - Ela virou-se e apontou. - Estão lá em cima, nas colinas, se escondendo de vocês.


Capítulo 18


Alan Tucker chegou a Ávila no dia seguinte à conversa com Ellen Scott. Fora um longo vôo, e Tucker devia estar exausto, mas sentia-se estimulado. Ellen Scott não era uma mulher propensa a caprichos. "Há alguma coisa estranha por trás de tudo isso, e se eu jogar minhas cartas direito, tenho a impressão de que poderá ser bastante proveitoso para mim", pensou Alan Tucker. Registou-se no quarto Postes Hotel e perguntou ao recepcionista:

- Há algum jornal por aqui?

- Nesta mesma rua, señor. No lado esquerdo, a dois quarteirões. Não pode errar.

- Obrigado.

- De nada.

Enquanto descia pela rua principal, observando a cidade ressuscitar depois da "siesta" da tarde, Tucker pensava na garota misteriosa que viera buscar. Só podia ser uma coisa importante. Mas importante por quê? Podia ouvir a voz de Ellen Scott.

"Se ela estiver viva, traga-a para mim. Não deve falar sobre isso com ninguém."

"Está certo, madame. O que devo dizer a ela?"

"Diga apenas que uma amiga de seu pai deseja conhecê-la. Ela virá."

Tucker encontrou a redação do jornal. Entrou e aproximou-se de algumas pessoas que trabalhavam por trás de mesas.

- Perdone, eu gostaria de falar com o editor.

O homem apontou para uma sala.

- Ali, señor.

- Gracias. - Tucker caminhou até a porta aberta e olhou para dentro. Um homem de trinta e poucos anos estava sentado por trás de uma mesa, ocupado com seus textos. - Com licença - disse Tucker. - Posso lhe falar por um momento?

O homem fitou-o.

- Em que posso ajudá-lo?

- Estou à procura de uma señorita.

O editor sorriu.

- Não estamos todos, señor?

- Foi deixada numa casa de fazenda por aqui quando era bebê.

O sorriso se desvaneceu.

- Ah… Ela foi abandonada?

- Isso mesmo.

- E está tentando descobri-la?

- Estou.

- Há quantos anos isso aconteceu, señor?

- Há 28 anos.

O homem encolheu os ombros.

- Foi antes do meu tempo.

"Talvez não seja tão fácil assim."

- O senhor poderia sugerir alguém que seja capaz de me ajudar?

O editor recostou-se na cadeira, pensativo.

- Acho que sim. Sugiro que converse com o padre Berrendo.


Padre Berrendo estava sentado à sua escrivaninha, uma manta cobria-lhe as pernas finas, escutando o estranho. Quando Alan Tucker terminou de explicar sua presença ali, padre Berrendo disse:

- Por que deseja saber isso, señor? Aconteceu há muito tempo. Qual é o seu interesse nisso?

Tucker hesitou, escolhendo as palavras com todo cuidado.

- Não estou autorizado a revelar. Só posso lhe garantir que não tenciono fazer qualquer mal à mulher. Se pudesse informar-me onde fica a casa de fazenda em que foi deixada…

A casa da fazenda. Afloraram-lhe as lembranças do dia em que os Moras o procuraram, após levarem a criança ao hospital.

"Acho que ela está morrendo, padre. O que vamos fazer?"

Padre Berrendo telefonara para seu amigo, Don Morago, o chefe de polícia.

- Acho que a criança foi abandonada por turistas em visita a Ávila. Poderia verificar nos hotéis e pousadas, descobrir se alguém chegou com um bebê e partiu só?

A polícia examinara as fichas de registros que todos os hotéis eram obrigados a preencher, mas nada encontraram.

- É como se a criança tivesse caído do céu - comentara Don Morago.

Não tinha a menor idéia de quanto estava próximo da solução do mistério.

Quando padre Berrendo levara a criança para o orfanato, Mercedes Angeles perguntara:

- Ela tem nome?

- Não sei.

- Não havia uma manta ou qualquer coisa com o nome?

- Não.

Mercedes Angeles olhara para a criança nos braços do padre.

- Então teremos de lhe dar um nome, não é mesmo?

Ela acabara de ler um romance fascinante e gostara muito do nome da heroína.

- Megan… vamos chamá-la de Megan.

E 14 anos depois, padre Berrendo levara Megan para o convento Cisterciense.

Agora após tantos anos, aquele estrangeiro estava à procura de Megan. "A vida sempre dá voltas completas", pensou padre Berrendo. "De alguma forma misteriosa, deu um círculo completo para Megan." Não, não para Megan. Esse era o nome que lhe fora dado pelo orfanato.

- Sente-se, señor. Há muitas coisas para contar.

E ele contou.

Quando o padre terminou, Alan Tucker ficou ele em silêncio, a mente em disparada. Devia haver um motivo muito forte para o interesse de Ellen Scott por uma criança abandonada numa casa de fazenda na Espanha há 28 anos. Uma mulher agora chamada Megan, segundo o padre.

"Diga a ela que uma amiga de seu pai deseja conhecê-la."

Se sua memória não falhava, Byron Scott, a esposa e a filha haviam morrido num desastre de avião, há muitos anos, em algum lugar da Espanha. Poderia haver ligação? Alan Tucker sentiu um crescente excitamento.

- Padre… eu gostaria de ir ao convento para falar com ela. É muito importante.

O padre sacudiu a cabeça.

- Infelizmente, chegou tarde demais. O convento foi atacado há dois dias por agentes do governo.

Alan Tucker ficou aturdido.

- Atacado? O que aconteceu às freiras?

- Foram presas e transferidas para Madrid.

Alan Tucker levantou-se.

- Obrigado, padre. - Pegaria o primeiro avião para Madrid.

Padre Berrendo acrescentou.

- Quatro freiras escaparam. A irmã Megan foi uma delas.

As coisas estavam se complicando.

- Onde ela está?

- Ninguém sabe. A polícia e o exército estão à sua procura e das outras irmãs.

- Ahn…

Em circunstâncias normais, Alan Tucker telefonaria para Ellen Scott e informaria que chegava a um beco sem saída. Mas todos os seus instintos de detetive lhe diziam que havia alguma coisa naquele caso que justificava a continuação da investigação.

Ele fez uma ligação para Ellen Scott.

- Surgiu um problema, Srª Scott. - Alan Tucker relatou a conversa com o padre. Houve um silêncio prolongado.

- Ninguém sabe onde ela está?

- Ela e as outras freiras fugiram, mas não podem se esconder por muito tempo. A polícia e metade do exército espanhol estão à sua procura. Quando forem encontradas, estarei lá.

Outro silêncio.

- Isso é muito importante para mim, Tucker.

- Sei disso, Srª Scott.

Alan Tucker voltou ao jornal. Estava com sorte. O escritório ainda não fechara. Ele disse ao editor:

- Gostaria de dar uma olhada nos arquivos, se for possível.

- Está à procura de alguma coisa em particular?

- Estou, sim. Houve um acidente de avião aqui.

- Há quanto tempo, señor?

- Se estou certo… há 28 anos. Foi em 1948.

Alan Tucker levou quinze minutos para encontrar a notícia que procurava. A manchete saltou-lhe diante dos olhos.


ACIDENTE DE AVIÃO MATA EXECUTIVO E FAMÍLIA


Primeiro de Outubro de 1948. "Byron Scott, presidente da Scott Industries, sua esposa Susan e a filha de um ano, Patricia, morreram carbonizados num desastre de avião…"


"Acertei na sorte grande!" Alan Tucker sentiu o pulso disparar. "Se isso é o que penso, então serei um homem rico… um homem muito rico."


Capítulo 19


Ela estava nua na cama e podia sentir o membro duro de Benito Patas se comprimindo contra sua virilha. O corpo dele era maravilhoso, e ela apertou mais, sentindo o calor aumentar em seu corpo, excitá-lo. Mas alguma coisa estava errada. "Eu matei Patas", pensou. "Ele está morto."

Lucia abriu os olhos e sentou-se, tremendo, olhando ansiosa ao redor. Benito não se encontrava ali. Ela estava na floresta, num saco de dormir. Alguma coisa se comprimia contra sua coxa. Estendeu a mão por dentro do saco de dormir e tirou a cruz envolta pela lona. Fitou-a, incrédula. "Deus acaba de efetuar um milagre para mim", pensou.

Não tinha a menor idéia de como a cruz fora parar ali, e também não se importava. Finalmente conseguira-a. Tudo que precisava fazer agora era fugir dali.

Saiu do saco de dormir e olhou para onde irmã Teresa devia estar dormindo. Ela se fora. Lucia olhou à sua volta, pela escuridão, mal pôde divisar o vulto de Tomás Sanjuro na beira da clareira. Não sabia onde Rubio estava. "E não tem importância. É hora de sair daqui", pensou Lucia.

Lucia encaminhou-se para a beira da clareira oposta àquela em que se encontrava Sanjuro, abaixando-se para não ser vista.

E foi nesse instante que o pandemônio se desencadeou.

O coronel Fal Sostelo tinha uma decisão de comando a tomar. Recebera ordens do primeiro-ministro em pessoa para trabalhar em estrita ligação com o coronel Ramon Acoca, ajudando-o a capturar Jaime Miró e as freiras. Mas o destino o abençoava, entregando uma freira em suas mãos. Podia pegar os terroristas e ficar com todas as glórias. "Foda-se o coronel Acoca", pensou Fal Sostelo. "Este caso é meu. Talvez a "OPUS DEI" passe a me usar, em vez de Acoca, com todas as suas besteiras sobre partida de xadrez e se meter na mente dos outros. Está na hora de dar uma lição ao gigante da cicatriz."

O coronel Sostelo deu ordens expressas a seus homens.

- Não façam prisioneiros. Estão enfrentando terroristas. Atirem para matar.

O major Ponte hesitou.

- Coronel, há freiras com os homens de Miró. Não deveríamos…?

- Estarems prestando um favor a elas, ajudando-as a se encontrarem com seu Deus.

Sostelo seleccionou uma dúzia de homens para acompanhá-lo na operação e determinou que fossem fortemente armados.

Subiram pela encosta sem fazer barulho, no escuro. Quase não havia visibilidade. "Ótimo. Eles não poderão perceber a nossa aproximação." Depois que seus homens assumiram as posições, o coronel Sostelo gritou, apenas como uma formalidade:

- Larguem as armas! Vocês estão cercados! - E no mesmo instante, ele acrescentou: - Fogo! Não parem de atirar!

Uma dúzia de armas automáticas começou a disparar uma saraivada de balas pela clareira.

Tomás Sanjuro não teve a menor chance. Uma rajada de metralhadora acertou-o no peito, e ele morreu antes mesmo do corpo bater no chão. Rubio Arzano encontrava-se no outro lado da clareira quando o tiroteio começou. Viu Sanjuro cair, virou-se e começou a levantar a arma para responder ao fogo, mas conteve-se. A escuridão na clareira era total, e os soldados disparavam a esmo. Se respondesse ao fogo, revelaria sua posição.

Para seu espanto, divisou Lucia agachada a menos de um metro.

- Onde está irmã Teresa?

- Ela… ela sumiu.

- Fique abaixada.

Rubio pegou a mão de Lucia e ziguezagueou para a floresta, afastando-se do fogo inimigo. Os tiros zumbiam perigosameente próximos enquanto corriam, mas momentos depois Lucia e Rubio já se encontravam entre as árvores. Continuaram a correr.

- Segure minha mão, irmã.

Podia ouvir os soldados atrás, mas aos poucos o barulho foi diminuindo. Era impossível perseguir alguém na escuridão total da floresta.

Rubio parou para deixar Lucia recuperar o fôlego.

- Nós os despistamos por enquanto - disse-lhe ele. - Mas precisamos continuar fugindo.

Lucia respirava com dificuldade.

- Se quiser descansar um pouco, irmã…

- Não. - Ela estava exausta, mas não tinha a menor intenção de deixar que a apanhassem. Logo agora, que estava com a cruz.

- Estou bem. Vamos sair daqui.


Fal Sostelo defrontava-se com o desastre. Um terrorista estava morto, mas só Deus sabia quantos haviam escapado. Não tinha Jaime Miró, e só pegara uma das freiras. Sabia que teria de comunicar ao coronel Acoca o acontecido, e não se sentia ansioso pelo encontro.


A segunda ligação de Alan Tucker para Ellen Scott foi ainda mais perturbadora do que a primeira.

- Descobri uma informação muito interessante, Srª Scott - disse, cauteloso.

- O que é?

- Verifiquei os arquivos de um jornal daqui, para obter mais informações sobre a garota.

- E o que encontrou? - Ellen preparou-se para o que sabia ser inevitável.

Alan Tucker manteve a voz casual.

- Parece que a garota foi abandonada por volta da ocasião do seu desastre de avião.

Silêncio.

Ele continuou:

- O que matou seu cunhado, a esposa e a filha Patricia.

"Chantagem. Não havia outra explicação. Portanto, ele descobrira tudo."

- É isso mesmo - disse Ellen Scott, calmamente. - Eu devia ter falado tudo. Explicarei quando voltar. Tem mais alguma notícia da garota?

- Não, mas ela não pode se esconder por muito mais tempo. O país inteiro está a sua procura.

- Avise-me assim que for encontrada.

A ligação foi cortada.

Alan Tucker continuou sentado, os olhos voltados para o telefone mudo em sua mão. "Ela é uma mulher fria", pensou, com admiração. "Como será que vai aceitar a idéia de ter um sócio?"


"Cometi um erro ao mandá-lo", pensou Ellen Scott. "Agora terei de detê-lo. E o que farei com a garota? Uma freira! Mas não vou julgá-la até conhecê-la."

A secretária avisou pelo interfone:

- Estão todos à sua espera na sala de reuniões, Srª Scott.

- Já estou indo.


Lucia e Rubio continuaram a avançar pelo bosque, aos escorregões e tropeções, lutando com galhos de árvores, moitas e insetos, mas cada passo os levava para mais longe dos perseguidores.

Rubio finalmente anunciou:

- Podemos parar por aqui. Não vão mais nos encontrar.

Estavam bem alto nas montanhas, no meio de uma densa floresta. Lucia deitou-se, fazendo o maior esforço para recuperar o fôlego. Em sua mente, reconstituiu as cenas terríveis que testemunhara. Tomás fuzilado sem qualquer aviso. "E os filhos da puta tencionavam assassinar a todos nós", pensou Lucia. Só continuava viva graças ao homem sentado ao seu lado.

Ela observou Rubio, enquanto ele se levantava e fazia um reconhecimento da área em redor.

- Podemos passar o resto da noite aqui, irmã.

- Está bem. - Ela estava impaciente em continuar, mas sabia que precisava descansar.

Como se lesse seus pensamentos, Rubio acrescentou:

- Partiremos ao amanhecer.

Lucia sentiu uma pontada no estômago.

- Deve estar faminta. Vou à procura de comida. Ficará bem aqui sozinha?

- Claro. Não se preocupe comigo.

Rubio agachou-se ao seu lado.

- Por favor, tente não ficar assustada. Sei como deve ser difícil para você se encontrar outra vez no mundo, após tantos anos no convento. Tudo deve lhe parecer muito estranho.

Lucia fitou-o e disse, sem qualquer inflexão na voz:

- Farei um esforço para me acostumar.

- É muito corajosa, irmã. - Ele levantou-se. - Voltarei logo.

Lucia observou-o desaparecer entre as árvores. Era hora de tomar uma decisão, e havia duas opções: podia escapar agora, tentar alcançar alguma cidadezinha próxima, trocar a cruz por um passaporte e dinheiro suficiente para chegar à Suíça; ou podia continuar com Rubio até se distanciarem ainda mais dos soldados.

"A segunda opção é mais segura", decidiu Lucia.

Ouviu um barulho entre as árvores e virou-se. Era Rubio. Ele aproximou-se, sorrindo. Trazia a boina na mão, estofada de tomates, uvas e maçãs.

Sentou-se no chão, ao lado de Lucia.

- Café da manhã. Havia uma galinha gorda e bonita disponível, mas o fogo que precisaríamos para cozinhá-la poderia denunciar nossa presença. Há uma fazenda aqui perto.

Lucia olhou para o conteúdo da boina.

- Parece ótimo. Estou faminta.

Ele deu-lhe uma maçã.

- Prove esta.

Terminaram de comer, e Rubio estava falando, mas Lucia, absorta em seus pensamentos, não prestava atenção.

- Disse que está há dez anos no convento, irmã?

Lucia foi arrancada de seu devaneio.

- Como?

- Passou dez anos no convento?

- Passei.

Ele sacudiu a cabeça.

- Então não tem a menor idéia do que aconteceu durante todo esse tempo.

- Ahn… não.

- Muita coisa mudou nos últimos dez anos, irmã.

- É mesmo?

- Sí. Franco morreu - disse Rubio gravemente.

- Não!

- É verdade. No ano passado.

"E indicou Juan Carlos seu herdeiro."

- Pode achar muito difícil acreditar, mas o homem andou na lua pela primeira vez. É a pura verdade.

"Na verdade, dois homens", pensou Lucia. "Como eram seus nomes? Neil Amstrong e Buzz alguma coisa."

- É, sim. Norte-americanos. É há agora um avião de passageiros que voa mais rápido do que o som.

- Incrível!

"Mal posso esperar para viajar no Concorde", pensou Lucia.

Rubio era como criança, ansioso em pô-la a par dos últimos acontecimentos no mundo

- Houve uma revolução em Portugal, e nos Estados Unidos da América o presidente Nixon esteve envolvido num grande escândalo e foi obrigado a renunciar.

"Rubio é sem dúvida muito simpático", refletiu Lucia.

Ele tirou do bolso um maço de cigarros Ducados, o forte tabaco preto da Espanha.

- Não vou ofendê-la, irmã?

- Claro que não. Por favor, fume.

Observou-o a acender um cigarro, e no momento em que a fumaça alcançou suas narinas sentiu-se desesperada para fumar.

- Importa-se que eu experimente um?

Ele ficou espantado.

- Quer experimentar um cigarro?

- Só para ver como é - apressou-se Lucia em explicar.

- Ah… claro. - Rubio estendeu-lhe o maço.

Ela pegou um e pôs entre os lábios, ele acendeu-o. Lucia inalou fundo e sentiu-se maravilhosa quando a fumaça encheu-lhe os pulmões.

Rubio observava-a perplexo.

Lucia tossiu.

- Então é esse o gosto de um cigarro…

- Acha bom.

- Não muito, mas…

Deu outra tragada, profunda, satisfatória. Só Deus sabia o quanto sentia falta de um cigarro. Mas precisava ser cautelosa.

Não queria deixá-lo desconfiado. Por isso apagou o cigarro que segurava desajeitadamente entre os dedos. Passara apenas poucos meses no convento, mas Rubio estava certo. Parecia estranho se encontrar outra vez no mundo. Especulou como Megan e Graciela estariam se sentindo. E o que acontecera à irmã Teresa? Teria sido capturada pelos soldados?

Os olhos de Lucia começaram a arder. Fora uma noite longa, de muita tensão.

- Acho que vou dormir um pouco.

- Não se preocupe. Ficarei de vigia, irmã.

- Obrigada - disse ela com um sorriso. Momentos depois ela dormia.

Rubio Arzano contemplou-a e pensou: "Jamais conheci uma mulher assim." Era tão espiritual que dedicara sua vida a Deus, mas ao mesmo tempo era prática e objetiva. E se comportara naquela noite tão bravamente quanto qualquer homem. "Você é uma mulher muito especial", pensou Rubio Arzano, enquanto a observava a dormir. "Irmãzinha de Jesus."


Capítulo 20


O coronel Fal Sostelo estava em seu décimo cigarro. "Não posso adiar por mais tempo", decidiu. Respirou fundo várias vezes para se acalmar e depois discou um número. E disse, assim que Ramón Acoca atendeu:

- Coronel, atacamos um acampamento terrorista ontem à noite. Fui informado de que Jaime Miró estava lá. Achei que deveria ser informado.

Houve um silêncio perigoso.

- Pegou-o?

- Não.

- Realizou essa operação sem me consultar?

- Não havia tempo para…

- Mas houve tempo para deixar Miró escapar. - A voz de Acoca estava inpregnada de fúria. - O que o levou a empreender essa operação executada com tanta competência?

O coronel Sostelo engoliu em seco.

- Pegamos uma das freiras do convento. Ela nos levou a Miró e seus homens. Matamos um deles no ataque.

- Mas todos os outros escaparam?

- Isso mesmo, coronel.

- Onde está a freira agora? Ou será que a deixou escapar também? - O tom era sarcástico.

- Claro que não, coronel. Ela está aqui, no acampamento. Começamos a interrogá-la e…

- Não faça isso. Pode deixar que a interrogarei pessoalmente. Estarei aí dentro de uma hora. Veja se consegue mantê-la até minha chegada. - Ele bateu o telefone.


Exatamente uma hora depois, o coronel Ramón Acoca chegou ao acampamento em que a irmã Teresa se encontrava. Estava acompanhado por uma dúzia de homens do "GOE".

- Tragam-me a irmã - ordenou Acoca.

Irmã Teresa foi conduzida à barraca do comandante, onde o coronel Acoca a aguardava.

Ele levantou-se polidamente quando ela entrou e sorriu.

- Sou o coronel Acoca.

"Finalmente!"

- Sabia que você viria. Deus me disse.

Ele acenou com a cabeça, amavelmente.

- É mesmo? Ótimo. Sente-se, por favor, irmã.

Irmã Teresa sentia-se nervosa demais para se sentar.

- Precisa me ajudar.

- Vamos ajudar um ao outro - assegurou o coronel. - Escapou do convento Cisterciense em Ávila, não é mesmo?

- É, sim. Foi terrível. Todos aqueles homens… Eles fizeram coisas horríveis e… - Sua voz hesitou.

"E coisas estúpidas. Deixamos que você e as outras escapassem."

- Como chegou aqui, irmã?

- Deus me trouxe. Está me testando, como outrora testou…

- Junto com Deus, alguns homens também a trouxeram para cá, irmã?

- Isso mesmo. Eles me sequestraram. E eu tinha de fugir deles.

- Disse ao coronel Sostelo onde poderia encontrar esses homens?

- Disse, sim. Os homens maus. Raul está por trás de tudo isso. Ele me enviou uma carta e disse…

- Irmã, o homem que procuramos em particular é Jaime Miró. Por acaso o viu?

Ela estremeceu.

- Vi, sim. Ele…

O coronel inclinou-se para a frente.

- Isso é ótimo. Agora me diga onde posso encontrá-lo.

- Ele e os outros estão a caminho de Éze.

Acoca franziu o rosto, perplexo.

- Para Éze? Na França?

Suas palavras eram um murmúrio.

- Isso mesmo. Monique abandonou Raul e ele enviou os homens para me sequestrarem por causa do bebê, para que eu…

O coronel tentou controlar sua crescente impaciência.

- Miró e seus homens estão seguindo para o norte. Éze fica para o leste.

- …Não deve deixar que me levem de volta para Raul. Não quero vê-lo nunca mais. Pode compreender. Não poderia encará-lo…

O coronel Acoca interveio bruscamente:

- Não estou interessado nesse tal de Raul. Quero saber onde posso encontrar Jaime Miró.

- Já lhe disse. Ele está em Éze, à minha espera. Quer…

- Está mentindo. Acho que tenta proteger Miró. Não quero machucá-la, por isso vou perguntar mais uma vez. Onde está Jaime Miró?

Irmã Teresa fitou-o, desamparada.

- Não sei - murmurou ela, olhando ao redor, desvairada. - Não sei.

- Disse há um momento atrás que ele se encontrava em Éze.

A voz do coronel era como um chicote estalado.

- É verdade. Deus me contou.

O coronel Acoca já aguentara demais. A mulher era demente ou uma atriz brilhante. De qualquer forma, ela o enojava com toda aquela conversa de Deus. Ele virou-se para Patrício Arrieta, seu ajudante-de-ordens.

- A memória da irmã precisa de algum estímulo. Leve-a para a barraca do intendente. Talvez você e seus homens possam ajudá-la a se lembrar onde está Jaime Miró.

- Está bem, coronel.

Patrício Arrieta e os seus homens que o acompanhavam haviam participado do ataque ao convento em Ávila. Sentiam-se responsáveis por ter deixado as quatro freiras escaparem.

"Pois compensaremos isso agora", pensou Arrieta. Ele virou-se para irmã Teresa.

- Venha comigo, irmã.

- Está certo. - "Abençoado Jesus, obrigada." - Não vão deixar que eles me levem para Éze, não é mesmo?

- Não, não vai para Éze - Assegurou Arrieta.

"O coronel tem razão", ele pensou. "Ela está se divertindo conosco. Mas vamos lhe ensinar outras diversões. Será que ficará deitada quietinha ou gritará?"

Ao chegarem à barraca de intendência, Arrieta disse:

- Irmã, vamos lhe dar a última oportunidade. Onde está Jaime Miró?

"Já me perguntaram isso antes? Ou foi outra pessoa? Foi aqui ou… tudo está confuso demais."

- Ele me sequestrou a mando de Raul, porque Monique abandonou-o, e ele pensou…

- Bueno, se é assim que você prefere… - murmurou Arrieta. - Veremos se conseguimos lhe refrescar a memória.

- Eu gostaria muito, por favor. Tudo é muito confuso.

Meia dúzia de homens de Acoca entraram na barraca, junto com alguns soldados uniformizados. Irmã Teresa fitou-os, aturdida.

- Esses homens vão me levar para o convento agora?

- Farão melhor do que isso. - Patrício Arrieta sorriu. - Vão levá-la ao paraíso, irmã.

Os homens adiantaram-se, cercando-a.

- É muito bonito o vestido que está usando - disse um soldado. - Tem certeza que é freira, querida?

- Sou, sim. - Raul a chamava de querida. Aquele era Raul? - Tivemos de trocar de roupa para escapar dos soldados.

Mas aqueles homens eram soldados. Estava tudo confuso demais. Um dos homens empurrou Teresa para o catre.

- Não é nenhuma beleza, mas vamos ver como parece por baixo de todas essas roupas.

- O que está fazendo?

Ele estendeu a mão e arrancou a parte superior do vestido, enquanto outro homem rasgava a saia.

- Até que não é um corpo dos piores para uma velha, não é mesmo, pessoal?

Teresa gritou. Olhou para os homens à sua volta. "Deus vai fulminar todos eles. Não permitirá que me toquem, pois sou seu receptáculo. Estou com o Senhor, bebendo de Sua fonte de pureza."

Um dos soldados abriu o cinto. Um instante depois, irmã Teresa sentiu mãos rudes abrirem suas pernas. Enquanto o soldado se esparramava por cima dela, sentiu sua carne dura penetrá-la e tornou a gritar.

- Agora, Deus! Castigue-os agora! - Esperou pela trovoada e um relâmpago brilhante que destruiria todos aqueles homens.

Outro soldado subiu em cima dela. Um nevoeiro vermelho assentou-lhe os olhos. Teresa ficou à espera que Deus os fulminasse, quase inconsciente dos homens que a estupravam. Não sentia mais dor.

Arrieta estava de pé ao lado do catre. Depois que cada homem terminava com Teresa, ele perguntava:

- Já é o suficiente, irmã? Pode acabar com isso a qualquer momento. Tudo que precisa fazer é contar onde está Jaime Miró.

Irmã Teresa não ouvia. Gritava em sua mente: "Fulmine-os com Seu Poder, Senhor. Extermine-os como exterminou os outros iníquos em Sodoma e Gomorra."

Por mais incrível que pudesse parecer, Ele não respondeu.

Não é possível, pois Deus se encontrava em toda a parte. E quando o sexto homem penetrou em seu corpo, a epifania ocorreu-lhe subitamente. Deus não estava escutando porque não havia Deus.

Ela enganara-se a si mesma durante todos aqueles anos, idolatrando um poder supremo e servindo-o fielmente. Mas não havia nenhum poder supremo. "Se Deus existisse, Ele teria me salvado."

O nevoeiro vermelho dissipou-se da frente dos olhos de irmã Teresa, e ela teve uma visão nítida do que acontecia pela primeira vez. Havia pelo menos uma dúzia de soldados na barraca esperando a vez de estuprá-la. Os soldados na fila estavam de uniforme, não se dando ao trabalho de tirá-lo. Enquanto um soldado saía de cima dela, o seguinte agachou-se por cima dela e penetrou-a logo depois.

"Não há Deus, mas existe um Satã, e estes são seus ajudantes", pensou irmã Teresa. "E eles devem morrer. Todos eles."

Enquanto o soldado afundava nela, irmã Teresa tirou-lhe a pistola do coldre. Antes que alguém pudesse reagir, ela apontou para Arrieta. A bala acertou-lhe na garganta. Apontou então a arma para os outros soldados e continuou a disparar. Quatro deles caíram ao chão antes que os outros recuperassem o controle e começassem a atirar nela. Por causa do soldado em cima dela tiveram dificuldade para mirar.

Irmã Teresa e seu último estuprador morreram ao mesmo tempo.


Capítulo 21


Jaime Miró acordou instantaneamente, despertado por um movimento na beira da clareira. Saiu do saco de dormir e levantou-se, com a arma na mão. Quando se aproximou, viu Megan ajoelhada, rezando. Ficou imóvel, estudando-a. Havia uma extraordinária beleza na imagem daquela linda mulher concentrada em suas orações na floresta, no meio da noite. Jaime descobriu-se ressentido. "Se Felix Carpio não dissesse que estávamos a caminho de San Sebastián, eu não estaria com o fardo da irmã, para começar."

Era indispensável que ele chegasse a San Sebastián o mais depressa possível. O coronel Acoca e seus homens fechavam o cerco. Mesmo sozinho, já seria difícil escapar da rede. Com o fardo adicional daquela mulher para retardá-lo, o perigo era dez vezes maior.

Aproximou-se de Megan, irritado, a voz soou mais ríspida do que tencionava.

- Já lhe disse para dormir um pouco. Não quero que nos retarde amanhã.

Megan fitou-o e disse calmamente:

- Desculpe se o deixei zangado.

- Irmã, guardo minha raiva para coisas mais importantes. Seu tipo me cansa. Passam suas vidas escondidas por trás de muros de pedra, à espera de uma viagem gratuita para o outro mundo. Deixam meu estômago embrulhado, todas vocês.

- Porque acreditamos no outro mundo?

- Não, irmã. Porque não acreditam neste. E fogem dele.

- Para rezar por homens como você. Dedicamos nossas vidas a preces por vocês.

- E acha que isso resolverá os problemas do mundo?

- Com o tempo, sim.

- Não há tempo. Seu Deus não pode ouvir as orações por causa do barulho dos canhões e os gritos das crianças sendo dilaceradas pelas bombas.

- Quando se tem fé…

- Ora, irmã, tenho muita fé. Tenho fé naquilo por que estou lutando. Tenho fé em meus homens e nas minhas armas. Só não tenho fé nas pessoas que andam sobre a água. Se acha que seu Deus está nos escutando agora, diga a ele para nos levar ao convento em Mendavia, para que eu possa me livrar de você.

Estava furioso consigo mesmo por perder a calma. Não era culpa dela que a Igreja se tivesse posto de lado, sem fazer nada, enquanto os falangistas de Franco torturavam, estupravam e assassinavam bascos e catalães. "Não foi culpa dela que minha família estivesse entre as vítimas."

Ele era criança na ocasião, mas aquela lembrança ficaria gravada em sua memória para sempre…


Foi despertado no meio da noite pelo barulho das bombas caindo. Desciam do céu como mortíferas flores de som, plantando suas sementes de destruição por toda a parte.

- Levanta, Jaime! Depressa!

O medo na voz do pai era mais assustador para o menino do que o estrondo terrível do bombardeio aéreo.

Guernica era um baluarte dos bascos, e o general Franco decidira convertê-la numa lição: "Destruam-na."

A temida Legião Condor nazista e alguns aviões italianos desfecharam um ataque concentrado sem misericórdia. Os moradores da pequena cidade tentaram fugir da chuva de morte que caía do céu, mas não havia escapatória.

Jaime, a mãe, o pai e duas irmãs nazistas velhas fugiram junto com os outros.

- Para a igreja! - gritou o pai de Jaime. - Eles não vão bombardear a igreja.

Ele estava certo. Todos sabiam que a Igreja se postara do lado do caudilho, ignorando o tratamento brutal dispensado a seus inimigos. A família Miró encaminhou-se para a igreja, fazendo força para abrir caminho pela multidão em pânico que tentava fugir.

O menino segurava com toda força a mão do pai e procurava não ouvir o barulho terrível à sua volta. Lembrou um tempo em que o pai não estava assustado, nem fugindo.

- Vamos ter uma guerra? - perguntou ele ao pai uma vez.

- Não, Jaime. É apenas boato de jornal. Tudo o que pedimos é que o governo nos dê um mínimo de independência. Os bascos e catalães têm direito à sua própria língua, bandeira e feriados. Ainda somos uma nação. E espanhóis nunca lutarão contra espanhóis.

Jaime era muito pequeno na ocasião para compreender, mas claro que havia mais em jogo do que a questão dos catalães e bascos. Era um profundo conflito ideológico entre o governo republicano e os nacionalistas da direita, e o que começara como uma faísca de dissidência logo se transformou numa conflagração incontrolável, que atraiu outras potências estrangeiras.

Quando as forças superiores de Franco derrotaram os republicanos e os nacionalistas já mantinham um firme controle da Espanha, o ditador concentrara sua atenção nos intransigentes bascos: "Punam-nos."

E o sangue continuara a jorrar.

Um grupo de líderes bascos criara a "ETA", um movimento por um Estado Basco Livre, e o pai de Jaime fora convidado a aderir.

- Não. Está errado. Devemos obter o que é nosso por direito através de meios pacíficos. A guerra nada realiza.

Mas os gaviões demonstraram ser mais fortes do que as pombas, e a "ETA" logo se tornara uma força poderosa.

Jaime tinha amigos cujos pais eram membros da "ETA" e escutava as histórias de seus feitos heróicos.

- Meu pai e um grupo de amigos atacaram à bomba o quartel-general da Guarda Civil - lhe diria um amigo.

Ou:

- Já soube do assalto ao banco em Barcelona? Foi meu pai. Agora eles podem comprar armas para combater os fascistas.

E o pai de Jaime insistia:

- A violência é um erro… Devemos negociar.

- Explodimos uma das fábricas deles em Madrid. Por que seu pai não está do nosso lado? Ele é um covarde?

O pai dizia a Jaime:

- Não dê atenção aos seus amigos, Jaime. A atitude deles é criminosa.

- Franco ordenou que uma dúzia de bascos fossem executados sem um julgamento sequer. Vamos promover uma retaliação em escala nacional. Seu pai vai se juntar a nós?

- Papai…?

- Somos todos espanhóis, Jaime. Não devemos permitir que ninguém nos divida.

E o menino estava dividido. "Meus amigos estão certos? Papai é um covarde?" Jaime acreditava no pai.

E agora…, Armagedom. O mundo desmoronava ao seu redor. As ruas de Guernica estavam apinhadas por uma multidão que gritava e tentava escapar das bombas vindas do céu. Prédios, estátuas e calçadas explodiam em chuvas de concreto e sangue.

Jaime, a mãe, o pai e as irmãs chegaram à enorme igreja, o único prédio da praça que ainda se encontrava de pé. Outras pessoas batiam à porta.

- Deixem-nos entrar! Em nome de Jesus, abram a porta!

- O que está acontecendo? - gritou o pai de Jaime.

- Os padres trancaram a igreja. Não querem nos deixar entrar.

- Vamos arrombar a porta!

- Não!

Jaime olhou para o pai, surpreso.

- Não arrombamos a casa de Deus - declarou o pai. - Ele nos protegerá onde quer que estejamos.

Tarde demais, eles viram o esquadrão de falangistas aparecer vindo da esquina e abrir fogo de metralhadora, varrendo a multidão desarmada de homens, mulheres e crianças na praça. Mesmo enquanto sentia as balas se cravando em seu corpo, o pai de Jaime segurou o filho e puxou-o para baixo, para a segurança, seu próprio corpo protegendo Jaime da saraivada mortífera.

Um silêncio fantástico parecia envolver o mundo depois do ataque. O som de armas, de pessoas às carreiras e gritos desapareceu, como um passe de mágica. Jaime abriu os olhos e ficou imóvel por um longo tempo, sentindo o peso do corpo do pai por cima, como um cobertor de amor. O pai, a mãe e as irmãs estavam mortos, junto com centenas de outros. E na frente dos cadáveres estavam as portas trancadas da igreja.

Noite tarde Jaime deixou a cidade, e dois dias depois, ao chegar a Bilbao, ingressou na "ETA".

O oficial de recrutamento fitou-o e disse:

- Você é jovem demais para se juntar a nós, filho. Devia estar na escola.

- Vocês serão minha escola - respondeu Jaime Miró, calmamente. - Vão me ensinar a lutar, para que eu possa vingar o assassinato da minha família.

Ele nunca olhou para trás. Lutava por si mesmo e pela família, seus feitos se tornaram lendários. Jaime planejava e executava ataques audaciosos a fábricas e bancos, comandava as execuções de opressores. Quando algum dos seus homens era capturado, ele conduzia missões temerárias para salvá-lo.

Ao ser informado da criação do "GOE" para perseguir os bascos, Jaime sorriu e comentou:

- Ótimo. Eles nos notaram.

Nunca se perguntou se os riscos que assumia se relacionavam de alguma forma com os gritos de "Seu pai é um covarde" ou se tentava provar alguma coisa a si mesmo e aos outros. Era suficiente que provasse sempre sua coragem e que não tivesse medo de arriscar a vida pelo que acreditava.

Agora, porque um dos seus homens falara demais, Jaime se descobria sobrecarregado com uma freira.

"É irónico que sua Igreja esteja agora do nosso lado. Mas é tarde demais, a menos que eles possam promover um Segundo Advento e incluam minha mãe, pai e irmãs", pensou.

Eles andaram pela floresta à noite, o luar branco salpicava a paisagem ao redor. Evitavam as cidades principais, alertas a qualquer sinal de perigo. Jaime ignorava Megan. Ia junto de Felix, conversando sobre as aventuras passadas. Megan descobriu-se intrigada. Jamais conhecera alguém como Jaime. Era um homem seguro e confiante. "Se alguém pode me levar a Mendavia, é esse homem."

Havia momentos em que Jaime sentia pena da irmã, até mesmo uma admiração relutante pela maneira como ela se comportava na árdua jornada. Especulava como seus outros homens estariam se saindo com as pupilas de Deus.

Pelo menos ele tinha Amparo. À noite, encontrava nela um grande conforto.

"Ela é tão dedicada quanto eu", pensou Jaime. "E tem ainda mais motivos do que eu para odiar o governo."

Toda a família de Amparo fora exterminada pelo Exército Nacionalista. Ela era profundamente independente e dominada por uma paixão intensa.

Ao amanhecer, estavam se aproximando de Salamanca, à margem do rio Tormes.

- Estudantes de toda a Espanha vêm cursar a universidade aqui - Felix explicou para Megan. - Provavelmente é a melhor do país.

Jaime não prestava atenção. Concentrava-se em seu próprio movimento. Se eu fosse o caçador, onde poria minha armadilha? Ele virou-se para Felix.

- Não vamos para Salamanca. Há um parador fora da cidade. Ficaremos lá até o anoitecer.

A estalagem, "o parador", era pequena, afastada do fluxo principal de turistas. Alguns degraus levavam ao saguão, guardado por uma antiga armadura de cavaleiro. Ao se aproximarem da entrada, Jaime disse às duas mulheres:

- Ele acenou com a cabeça para Felix Carpio e os dois desapareceram.

- Para onde eles vão?

Amparo lançou-lhe um olhar desdenhoso.

- Talvez estejam à procura do seu Deus.

- Espero que O encontrem - respondeu Megan, suavemente.

Os homens voltaram dez minutos depois.

- Tudo calmo - informou Jaime a Amparo. - Você e a irmã partilharão um quarto. Felix ficará comigo. - Ele entregou-lhe uma chave.

- Querido, quero ficar com você, não…

- Faça o que estou dizendo. E fique de olho nela.

Amparo olhou para Megan.

- Bueno. Vamos embora, irmã.

Megan entrou no "parador" e subiu os degraus atrás de Amparo.

O quarto era um dos doze localizados no segundo andar, ao longo de um corredor cinzento. Amparo abriu a porta, e as duas entraram. Era pequeno e desolado, escassamente mobilado, o chão de tábuas, paredes de estuque, uma cama, um pequeno catre, uma cómoda escalavrada e duas cadeiras.

Megan olhou ao redor e exclamou:

- É lindo!

Amparo virou-se com raiva, pensando que Megan estava sendo sarcástica.

- Quem é você para se queixar…?

- É tão grande… - acrescentou Megan.

Amparo fitou-a em silêncio por um momento, depois riu. Claro que devia parecer enorme, em comparação com as celas em que as irmas viviam.

Amparo começou a se despir.

Megan não pôde deixar de contemplá-la. Era a primeira vez em que realmente olhava para Amparo Jiró, à luz do dia. A mulher era muito bonita, de uma maneira simples. Tinha cabelos ruivos, pele branca, seios fartos, cintura fina e quadris que ondeavam a cada movimento.

Amparo percebeu que ela a observava.

- Irmã… poderia me dizer uma coisa? Por que alguém ingressaria para um convento?

Era uma pergunta fácil de responder.

- O que pode ser mais maravilhoso do que se devotar à glória de Deus?

- De imediato, posso pensar em mil coisas. - Amparo foi até a cama e sentou-se. - Pode dormir no catre. Pelo que me contaram, seu Deus não quer que fiquem muito confortáveis.

Megan sorriu.

- Não tem importância. Eu me sinto confortável por dentro.


Em seu quarto, no outro lado do corredor, Jaime Miró acomodou-se na cama. Felix Carpio tentava ajeitar-se no pequeno catre.

Os dois permaneciam vestidos. A arma de Jaime encontrava-se debaixo do travesseiro, a de Felix na mesinha escalavrada ao seu lado.

- O que será que as levam a fazerem isso? - especulou Felix, em voz alta.

- Fazem o quê, "amigo?"

- Ficam trancafiadas num convento a vida inteira, como prisioneiras.

Jaime Miró encolheu os ombros.

- Pergunte à irmã. Eu gostaria muito que estivéssemos viajando sozinhos. Estou com um terrível pressentimento.

- Jaime, Deus nos agradecerá por esta boa ação.

- Acredita mesmo nisso? Não me faça rir.

Felix Carpio não insistiu no assunto. Não era conveniente discutir sobre a Igreja Católica com Jaime. Os dois ficaram em silêncio, cada um absorto em seus pensamentos.

Felix Carpio estava pensando: "Deus pôs as irmãs em nossas mãos. Precisamos levá-las a salvo a um convento."

Jaime pensava em Amparo. Queria-a desesperadamente naquele momento. "Aquela maldita freira." Começou a puxar as cobertas quando se lembrou que ainda havia uma coisa a ser feita.


No saguão pequeno e escuro lá embaixo, o recepcionista estava sentado em silêncio, à espera até ter certeza que os novos hóspedes dormiam. Seu coração batia forte quando pegou o telefone e discou.

Uma voz indolente atendeu.

- Delegacia de polícia.

O recepcionista sussurrou ao telefone para o sobrinho:

- Florian, Jaime Miró e mais três terroristas estão aqui. Não gostaria de ter a honra de prendê-los?


Capítulo 22


Cento e cinquenta quilômetros para o leste, numa área de bosque no caminho para Peñafiel, Lucia Carmine dormia.

Rubio Arzano estava sentado, observando-a, relutante em acordá-la. "Ela dorme como um anjo", pensou.

Mas era quase manhã, hora de seguir viajem. Rubio inclinou-se e sussurrou gentilmente em seu ouvido:

- Irmã Lucia…

Ela abriu os olhos.

- Está na hora de partirmos.

Lucia bocejou e espreguiçou-se. A blusa desabotoara e parte de um seio apareceu. Rubio logo desviou os olhos.

"Devo me precaver contra meus pensamentos. Ela é a esposa de Jesus."

- Irmã…

- O que é?

- Eu… eu gostaria de lhe pedir um favor. - Ele estava quase corando.

- Pode pedir.

- Eu… já faz muito tempo que rezei pela última vez, mas fui criado como católico. Importa-se de dizer uma oração?

"Há quanto tempo eu não faço uma oração?", indagou-se Lucia. O convento não contava. Enquanto as outras rezavam, sua mente estava ocupada com os planos de fuga.

- Eu…, eu não…

- Tenho certeza que isso faria com que nos sentíssemos melhor.

Como ela podia explicar que não se lembrava de nenhuma oração?

- Eu… ahn…

"Ei!" Havia uma de que se lembrava agora. Era pequena, ajoelhada junto a cama, o pai de pé ao seu lado, pronto para ajeitá-la na cama. Lentamente, as palavras do Salmo 23 começaram a aflorar-lhe.

- O Senhor é meu pastor. Nada me faltará. Ele me faz repousar em pastos verdejantes: leva-me para junto das águas de descanso. Refrigera-me a alma: guia-me pelas veredas da justiça, por amor do Seu nome…

As lembranças jorravam.

Lucia e o pai possuíam um mundo. E ele sentia o maior orgulho da filha.

"Você nasceu sob uma estrela da sorte, faccia d'angelo."

E, ouvindo isso, Lucia sentira-se afortunada e bela. Não era a linda filha do grande Angelo Carmine?

- … Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei o mal…

O mal era representado pelos inimigos de seu pai e irmãos. E ela os fizera pagar.

- Porque estás comigo; Tua vara e cajado me sustentam…

"Onde estava Deus quando precisei de conforto e apoio?"

- Preparas-me uma mesa com óleo, minha taça transborda…

Ela falava mais devagar agora, a voz um mero sussurro. O que acontecera, especulou, com a menininha no vestido branco da primeira comunhão? O futuro parecia maravilhoso. De alguma forma, tudo saíra errado. Tudo." "Perdi meu pai e meus irmãos, e a mim mesma."

No convento, ela não pensava em Deus. Mas agora, aqui fora, com aqueles camponeses tão simples… "Importa-se de dizer uma oração por nós?"

Lucia continuou.

- Bondade e misericórdia me acompanharão com certeza por todos os dias da minha vida, e habitarei para sempre na casa do Senhor.

Rubio observava-a, comovido.

- Obrigado, irmã.

Lucia acenou com a cabeça, incapaz de falar. "O que está acontecendo comigo?", perguntou-se.

- Está pronta, irmã?

Ela olhou para Rubio Arzano.

- Estou, sim.

Cinco minutos depois os dois estavam a caminho.


Foram apanhados por um súbito temporal e abrigaram-se numa cabana abandonada. A chuva caía com violência contra o telhado e os lados da cabana.

- Acha que a tempestade vai passar algum dia?

Rubio sorriu.

- Não é uma tempestade de verdade, irmã. É o que nós, os bascos, chamamos de sirimiri. Vai passar tão depressa quanto começou. A terra está muito seca. Precisa desta chuva.

- É mesmo?

- Conheço essas coisas. Sou um lavrador.

"Dá para perceber", pensou Lucia.

- Perdoe-me por dizer isso, irmã, mas nós dois temos muita coisa em comum.

Lucia contemplou o empavonado camponês e pensou: "Esse dia nunca vai chegar."

- Acha mesmo?

- Acho. Acredito sinceramente que, em muitas coisas, viver numa fazenda é como estar num convento.

Ela não percebeu a ligação.

- Não entendi.

- Ora, irmã, num convento se pensa muito sobre Deus e Seus milagres. Não é verdade?

- Isso mesmo.

- De certa forma, uma fazenda é Deus. Vive-se cercado pela criação. Todas as coisas que crescem da terra de Deus, quer seja trigo, azeitonas ou uvas… tudo vem de Deus, não é mesmo? São milagres e acontecem todos os dias… e como você ajuda as coisas a crescer, é parte do milagre.

Lucia não pôde deixar de sorrir pelo entusiasmo em sua voz.

A chuva parou de repente.

- Podemos continuar agora, irmã. Chegaremos ao rio Duero daqui a pouco - disse Rubio. - As cataratas Peñafiel ficam logo à frente. Continuaremos por Aranda de Duero e depois seguiremos para Logroño, onde nos encontraremos com os outros.

"Você estará indo para esses lugares", pensou Lucia. "E boa sorte. Eu estarei na Suíça, meu amigo."

Ouviram o barulho das cataratas meia hora antes de alcançarem-nas. As cataratas Peñafiel eram um espetáculo deslumbrante, as águas caindo abruptamente no rio veloz. Seu estrondo era quase ensurdecedor.

- Quero tomar um banho - disse Lucia.

Parecia que já se passara anos desde a última vez em que tomara um banho.

Rubio ficou surpreso.

- Aqui?

"Não, seu idiota, em Roma."

- Isso mesmo.

- Tome cuidado. O rio está cheio por causa da chuva.

- Não se preocupe. - Ficou parada, esperando pacientemente.

- Ah… vou me afastar enquanto se despe.

- Não vá muito longe - pediu Lucia. - Provavelmente havia animais selvagens no bosque.

Enquanto Lucia começava a tirar as roupas, Rubio afastou-se alguns passos, apressado, e ficou de costas.

- Não vá muito longe, irmã. O rio é traiçoeiro.

Lucia deixou a cruz embrulhada num lugar em que poderia vigiá-la. O ar frio da manhã era maravilhoso em seu corpo nu.

Despiu-se completamente e entrou na água. Estava fria e revigorante. Virou-se e constatou que Rubio continuava com os olhos voltados para o outro lado, de costas para ela. Sorriu para si mesma. Todos os homens que conhecera estariam regalando os olhos.

Ela avançou mais um pouco, evitando as pedras à sua volta.

Jogou água na cabeça, sentindo o rio impetuoso empurrando-lhe as pernas com força. Perto dali uma pequena árvore estava sendo arrastada pela correnteza. Ao se virar para observá-la, Lucia perdeu subitamente o equilíbrio e escorregou, gritando. Bateu com a cabeça numa pedra ao cair.

Rubio virou-se e observou horrorizado, enquanto Lucia desaparecia nas águas tumultuosas.


Capítulo 23


Quando o sargento Florian Santiago desligou o telefone na delegacia de polícia de Salamanca, suas mãos tremiam.

"Estou com Jaime Miró e três terroristas aqui. Não gostaria de ter a honra de prendê-los?"

O governo prometera uma grande recompensa pela cabeça de Jaime Miró, e agora o bandido basco se encontrava em suas mãos. O dinheiro da recompensa mudaria sua vida por completo.

Poderia mandar os filhos para uma escola melhor, comprar uma máquina de lavar roupa para a esposa e jóias para a amante.

Claro que teria de partilhar uma parte da recompensa com o tio. "Darei vinte por cento a ele", pensou Santiago. "Ou talvez dez por cento."

Ele estava bem a par da reputação de Jaime Miró e não tinha a menor intenção de arriscar a vida na tentativa de capturar o terrorista. "Que os outros enfrentem o perigo e me entreguem a recompensa."

Continuou sentado à mesa, à procura da melhor maneira de cuidar da situação. O nome do coronel Acoca aflorou-lhe no mesmo instante na mente. Todo mundo sabia que havia uma vendeta de sangue entre o coronel e o terrorista. Além do mais, o coronel tinha todo o "GOE" sob seu comando. Isso mesmo, era a melhor maneira de agir.

Santiago pegou o telefone, e dez minutos depois falava pessoalmente com o coronel.

- Aqui é o sargento Florian Santiago, da delegacia de polícia em Salamanca. Descobri o paradeiro de Jaime Miró.

O coronel Ramón Acoca fez um esforço para manter a voz calma.

- Tem certeza?

- Tenho sim, coronel. Ele está no Parador Nacional Raimundo de Borgón, nos arredores da cidade. Passará a noite ali. Meu tio é o recepcionista. Acaba de me telefonar. Há outro homem e duas mulheres com Miró.

- Seu tio tem certeza absoluta de que é mesmo Miró?

- Absoluta, coronel. Ele e os outros estão dormindo nos dois quartos dos fundos, no segundo andar da estalagem.

- Preste muita atenção no que vou dizer, sargento. Quero que vá imediatamente para a estalagem e fique de vigia do lado de fora, a fim de impedir a saída de qualquer um. Deverei chegar aí em três horas. Não deixe que ninguém o veja. Entendido?

- Entendido, senhor. Partirei agora mesmo. - Santiago hesitou. - Coronel, sobre a recompensa…

- Quando pegarmos Miró, será toda sua.

- Obrigado, coronel. Estou muito…

- Vá logo.

- Está bem, senhor.

Florian Santiago desligou. Sentia-se tentado a ligar para a amante e lhe dar a notícia sensacional, mas isso podia esperar. Deixaria a surpresa para depois. Antes disso, tinha uma missão a cumprir. Chamou um dos guardas de plantão:

- Assuma o comando aqui. Tenho uma missão a fazer. Voltarei dentro de algumas horas.

"E voltarei um homem rico", pensou. "A primeira coisa que farei será comprar um carro novo - um Seat. Azul. Não, talvez branco seja melhor."


O coronel Ramón Acoca desligou e ficou imóvel, deixando o cérebro trabalhar. Desta vez não queria erro algum. Era o movimento final na partida de xadrez entre os dois, embora soubesse que Miró teria sentinelas alertas para o perigo. Acoca chamou o seu ajudante-de-ordens.

- Pois não, coronel?

- Escolha duas dúzias dos seus melhores homens. Providencie para que estejam armados com armas automáticas. Partiremos para Salamanca dentro de 15 minutos.

- Claro, senhor.

Não havia escapatória para Miró. A estalagem seria completamente cercada, os homens avançariam depressa, sem qualquer barulho. "Um ataque de surpresa antes que o carniceiro possa assassinar mais algum dos meus homens. Mataremos todos enquanto dormem."


O sargento Santiago não perdeu tempo em chegar à estalagem.

Mesmo sem a advertência do coronel, não tinha a menor intenção de atacar os terroristas. Mas agora, em obediência às ordens de Acoca, permaneceu nas sombras, a vinte metros da estalagem, num ponto que tinha boa vista a porta da frente. Fazia frio, mas o pensamento da recompensa mantinha Santiago aquecido. Especulou se as duas mulheres lá dentro eram bonitas e se estariam na cama junto com os homens. De uma coisa Santiago tinha certeza: dentro de poucas horas todos estariam mortos.

O caminhão do exército atravessou a cidade sem alarme e seguiu para a estalagem. O coronel Acoca acendeu uma lanterna e estudou o mapa.

- Pare aqui - disse ele, a um quilômetro e meio da estalagem. - Seguiremos a pé o restante do caminho. Mantenham-se em silêncio.

Santiago não percebeu a aproximação até que a voz em seu ouvido sobressaltou-o com uma pergunta:

- Quem é você?

Ele virou-se e descobriu-se diante do coronel Ramón Acoca.

"Por Deus", pensou Santiago, "ele tem uma aparência assustadora!"

- Sou o sargento Santiago, senhor.

- Alguém saiu da estalagem?

- Não, senhor. Estão todos lá dentro, provavelmente em sono profundo a esta altura.

O coronel virou-se para seu ajudante-de-ordens.

- Quero que a metade dos homens cerquem a estalagem. Se alguém tentar escapar, eles devem atirar para matar. Os outros irão comigo. Os fugitivos estão em dois quartos nos fundos, no segundo andar. Vamos embora.

Santiago observou o coronel e seus homens entrarem pela porta da frente da estalagem, em silêncio. Especulou se haveria tiroteio. E se houvesse, pensou no perigo de que o tio pudesse morrer no fogo cruzado. Seria uma pena. Mas, por outro lado, não haveria mais ninguém com quem partilhar o dinheiro da recompensa.

Quando o coronel Acoca e seus homens chegaram ao alto da escada, ele sussurrou:

- Não corram riscos. Abram fogo assim que os virem.

- Gostaria que eu fosse na sua frente, coronel? - perguntou o ajudante-de-ordens

- Não. - Acoca queria ter o prazer de matar Jaime Miró pessoalmente.

No final do corredor estavam os dois quartos em que Miró e seus terroristas dormiam. Acoca fez sinal em silêncio para que alguns homens cobrissem uma porta e seis ficaram na outra.

- Agora! - gritou.

Era o momento pelo qual tanto ansiava. Ao seu sinal, os homens chutavam as portas ao mesmo tempo e entraram correndo nos quartos, as armas levantadas. Pararam no meio dos quartos, as armas levantadas. Pararam no meio dos quartos vazios, olhando para as camas desarrumadas.

- Espalhem-se! - berrou Acoca. - Depressa! Lá embaixo!

Os soldados revistaram todos os quartos, arrombando portas, acordando hóspedes aturdidos. Jaime Miró e os outros não estavam em parte alguma.

O coronel desceu furioso para uma confrontação com o recepcionista. Não havia ninguém no saguão.

- Alô! - ele gritou - Alô!

Não houve resposta. O covarde estava se escondendo.

Um dos soldados olhava para o chão, por trás da recepção.

- Coronel…,

Acoca foi para o seu lado e olhou para o chão. O corpo amarrado e amordaçado do recepcionista estava ali, encostado na parede. Com um cartaz pendurado no pescoço. Dizia: FAVOR NÃO INCOMODAR.


Capítulo 24


Rubio Arzano observou, horrorizado, enquanto Lucia desaparecia sob as águas turbulentas e era arrastada pela correnteza. Numa fração de segundos, ele virou-se e saiu desesperado pela margem do rio, pulando sobre pequenos troncos e moitas. Na primeira curva do rio vislumbrou o corpo de Lucia se aproximando. Mergulhou e nadou freneticamente para alcançá-la, lutando contra a forte correnteza. Era quase impossível. Sentiu que estava sendo puxado. Lucia se encontrava a apenas três metros dele, mas parecia a quilômetros. Ele fez um último e heróico esforço, conseguiu segurar-lhe o braço, os dedos quase escorregando. Segurou-a firme, enquanto começava a voltar à segurança da margem.

Quando por fim atingiu a margem, Rubio puxou Lucia para a relva e deitou-a, tentando recuperar o fôlego. Ela estava inconsciente e sem respirar. Rubio virou-a de barriga para baixo, montou-a e começou a massagear-lhe os pulmões. Um minuto passou, depois dois; quando já se desesperava, um jato de água saiu-lhe pela boca e Lucia gemeu. Rubio murmurou uma prece de graças.

Ele manteve a pressão, mais gentil agora, até as batidas do coração de Lucia se tornarem firmes. Quando ela começou a tremer de frio, Rubio correu para algumas árvores e pegou um punhado de folhas. Levou-as para junto de Lucia, para enxugar-lhe o corpo. Ele também estava molhado e com frio, as roupas encharcadas, mas não prestou a menor atenção a isso.

Ficara em pânico, com medo de que irmã Lucia morresse. Agora, enquanto esfregava gentilmente o corpo nu com as folhas secas, pensamentos indignos afloraram-lhe à mente.

"Ela tem o corpo de uma deusa. Perdoe-me, Senhor, ela Lhe pertence, e não devo acalentar esses pensamentos horríveis…"

Lucia foi gradativamente despertada pela massagem suave em seu corpo. Estava na praia, a língua de Ivo deslocava-se por seu corpo. "Ah, está bom", pensou. "Continue. Não pare, meu querido." Sentiu-se excitada antes mesmo de abrir os olhos.

Ao cair no rio, o último pensamento de Lucia fora o do homem que a salvara. Sem querer pensar, Lucia estendeu as mãos e puxou Rubio. Havia uma expressão de surpresa chocada no rosto dele.

- Irmã… - protestou ele. - Não podemos…

- Psiu! - Os lábios de Lucia encontraram-se com os de Rubio, impetuosos, sôfregos, exigentes, sua língua explorava-lhe o interior da boca. Era demais para Rubio.

- Depressa! - sussurrou Lucia - Depressa! - Observou Rubio tirar nervosamente as roupas molhadas." Ele merece uma recompensa", pensou Lucia. "E eu também." Ao tornar a se aproximar, hesitante, Rubio murmurou:

- Irmã, não deveríamos…

Lucia não estava com disposição para conversas. Sentiu o corpo de Rubio se unir ao seu, num ritual eterno, entregou-se às gloriosas sensações que a dominaram. E foi tudo ainda melhor por causa de seu quase encontro com a morte.

Rubio era um amante surpreendentemente bom, ao mesmo tempo gentil e impetuoso. Possuía uma vulnerabilidade que surpreendeu Lucia. E havia uma expressão de tanta ternura em seus olhos que ela sentiu um súbito aperto na garganta.

"Espero que esse camponês não se apaixone por mim. Ele está ansioso demais para me agradar. Quando foi a última vez em que um homem se empenhou tanto em me agradar?" E Lucia pensou no pai.

Especulou se ele teria gostado de Rubio Arzano. E depois indagou por que especulava se o pai teria gostado de Rubio Arzano. "Devo estar louca. Este homem é um camponês. Sou Lucia Carmine, a filha de Angelo Carmine. A vida de Rubio não tem nada a ver com a minha. Fomos reunidos apenas por um estúpido acidente do destino."

Rubio abraçava-a e murmurava:

- Lucia, minha Lucia…

E o brilho em seus olhos dizia a Lucia tudo o que ele sentia. "Ele é tão terno", pensou ela. E depois: "O que há comigo? Porque estou pensando nele assim? Estou fugindo da polícia e…"

Lembrou-se de repente da cruz de ouro e soltou um ofego. "Oh, Deus! Como pude esquecer, mesmo que por um momento apenas?" Sentou-se no mesmo instante.

- Rubio, deixei um…, um embrulho na margem do rio, lá atrás. Poderia trazê-lo para mim, por favor? E minhas roupas também?

- Claro. Voltarei num instante.

Lucia ficou sentada, à espera, frenética pela possibilidade de ter acontecido alguma coisa à cruz. E se tivesse desaparecido? E se alguém passara e a levara?

Foi com um enorme sentimento de alívio que viu Rubio voltar com a cruz embrulhada debaixo do braço. "Não devo deixar que fique longe da minha vista outra vez."

- Obrigada - disse para Rubio.

Rubio entregou-lhe as roupas. Lucia fitou-o e disse, insinuante:

- Não vou precisar disso imediatamente…

O sol em sua pele nua fazia Lucia sentir-se indolente e quente, e estar nos braços de Rubio era um conforto maravilhoso. Era como se tivesse encontrado um oásis pacífico. Os perigos de que fugiam pareciam a anos-luz de distância.

- Fale-me a respeito de sua fazenda - pediu Lucia.

O rosto de Rubio se iluminou e havia orgulho em sua voz.

- Era uma fazenda pequena, nos arredores de uma aldeia perto de Bilbao. Pertencia à minha família há gerações.

- O que aconteceu?

A expressão de Rubio tornou-se sombria.

- Porque sou um basco, o governo de Madrid puniu-me com impostos extras. Recusei-me a pagar, e confiscaram-me a fazenda. Foi nessa ocasião que conheci Jaime Miró. Uni-me a ele para lutar contra o governo pelo que é justo. Tenho mãe e duas irmãs, um dia vamos recuperar nossa fazenda e tornarei a administrá-la.

Lucia pensou no pai e dois irmãos, trancafiados na prisão para sempre.

- É muito ligado à sua família?

Rubio sorriu, efusivamente.

- Claro. A família é o nosso primeiro amor, não acha?

"É, sim", pensou Lucia. "Mas jamais tornarei a ver a minha."

- Fale-me a respeito de sua família, Lucia. Antes de entrar no convento, eram muito unidos?

A conversa enveredava por um rumo perigoso. "O que posso lhe dizer? Meu pai é um mafioso. Ele e meus dois irmãos estão na prisão por homicídio."

- Éramos, sim… muito unidos.

- O que faz o seu pai?

- Ele… ele é um homem de negócios.

- Tem irmãos e irmãs?

- Dois irmãos. Trabalham com papai.

- Por que foi para o convento, Lucia?

"Porque a polícia me procura por ter assassinado dois homens. Preciso de acabar com esta conversa", pensou Lucia. Em voz alta, ela disse:

- Eu precisava escapar.

"Está bem perto da verdade."

- Sentiu que o mundo era… era demais para você?

- Mais ou menos isso.

- Não tenho o direito de dizer isso, Lucia, mas estou apaixonado por você.

- Rubio…

- Quero casar com você. Em toda a minha vida, nunca disse isso a outra mulher. - Havia algo comovente e sério nele.

"Rubio não sabe jogar", pensou Lucia. "Preciso tomar cuidado para não magoá-lo. Mas a perspectiva da filha de Angelo Carmine se tornar esposa de um camponês é demais!" Ela quase soltou uma risada.

Rubio interpretou de maneira errada o sorriso no rosto de Lucia.

- Não viverei escondido para sempre. O governo terá de fazer a paz com a gente. Voltarei então para a minha fazenda. "Querida…" Quero passar o resto da vida fazendo você feliz. Teremos muitos filhos, e as meninas crescerão para serem como você…

"Não posso deixá-lo continuar assim", decidiu Lucia. "Preciso detê-lo agora." Mas por algum motivo, não foi capaz. Ficou escutando Rubio descrever imagens românticas da vida que levariam juntos, descobriu-se quase a desejar que pudesse acontecer. Estava cansada de fugir. Seria maravilhoso encontrar um refúgio em que pudesse permanecer sã e salva, protegida por alguém que a amasse… "Devo estar perdendo o juízo."

- Não falemos mais sobre isso agora - murmurou Lucia. - Devemos partir.


Os dois viajaram para o nordeste, seguindo pela margem sinuosa do rio Duero, com seus campos ondulados e árvores exuberantes. Pararam na pitoresca aldeia de Villalba de Duero para comprar pão, queijo e vinho, e fizeram um piquenique idílico numa campina relvada.

Lucia sentiu-se contente ao lado de Rubio. Havia nele uma força tranquila que lhe parecia dar força também. "Ele não é para mim, mas tornará muito feliz alguma mulher afortunada", pensou ela.

Depois que terminaram de comer, Rubio disse:

- A próxima cidade é Aranda. É bem grande. Seria melhor se a contornássemos, para evitar o "GOE" e os soldados.

Era o momento da verdade, a hora de deixá-lo. Lucia estivera à espera que se aproximassem de uma cidade maior. Rubio Arzano e sua fazenda eram um sonho, a fuga para a Suíça era a realidade.

Lucia sabia o quanto o magoaria e não suportou fitá-lo nos olhos quando disse:

- Rubio… eu gostaria que fôssemos para a cidade.

Ele franziu o rosto.

- Pode ser perigoso, "querida." Os soldados…

- Não estarão à nossa procura ali. - Ela pensou rapidamente. - Além do mais, eu… eu preciso de uma muda de roupa, não posso continuar assim.

A perspectiva de entrar na cidade perturbava Rubio, mas ele se limitou a dizer:

- Se é isso o que você quer…

Ao longe, os muros de Aranda de Duero assomaram diante deles, como uma montanha construída pelo homem.

Rubio tentou mais uma vez.

- Lucia… tem certeza que precisamos ir à cidade?

- Tenho, sim.

Os dois atravessaram a comprida ponte que levava à via principal, a Avenida Castilla. Passaram por uma usina de açúcar, igrejas e lojas de aves, o ar impregnado com uma variedade de cheiros. Lojas e prédios de apartamentos margeavam a avenida.

Lucia avistou finalmente o que procurava… uma placa que dizia CASA DE EMPEÑOS - uma loja de penhores. Ela continuou calada.

Chegaram à praça, com suas lojas, mercados e bares, passaram pela Taverna Cueva, com um balcão comprido e mesa de madeira.

Havia uma vitrola automática lá dentro, salames e fieiras de alho pendurado no teto em vigas.

Lucia percebeu a oportunidade.

- Estou com sede, Rubio. Podemos entrar?

- Claro.

Rubio pegou-a pelo braço e entraram no bar.

Havia alguns homens no balcão. Lucia e Rubio foram para uma mesa no canto.

- O que vai querer, querida?

- Peça um copo de vinho para mim, por favor. Voltarei num instante. Tem uma coisa que preciso fazer. - Levantou-se e saiu para a rua, deixando Rubio perplexo.

Lá fora, Lucia voltou apressada até a Casa de Empeños, apertando com força a cruz embrulhada. No outro lado da rua avistou uma placa preta com letras brancas que dizia: POLÍCIA.

Fitou-a por um momento, o coração quase parando, depois virou-se e entrou na loja de penhores.

Um homem encarquilhado, com uma cabeça enorme, estava atrás do balcão, mal visível.

- Buenos dias, señorita.

- Buenos dias, señor. Tenho uma coisa que gostaria de vender. - Estava tão nervosa que precisou comprimir os joelhos com força, a fim de evitar que tremessem.

- Sí?

Lucia desembrulhou a cruz de ouro e estendeu-a.

- Estaria… estaria interessado em comprar isto?

O homem pegou a cruz, e Lucia percebeu o brilho em seus olhos.

- Posso perguntar onde adquiriu isto?

- Foi deixada por um tio que acaba de morrer. - A garganta estava tão seca que Lucia mal conseguia falar.

O homem pegou a cruz, virando-a lentamente.

- Quanto está pedindo?

O sonho se transformava em realidade.

- Quero 250 mil pesetas.

Ele franziu o rosto e sacudiu a cabeça.

- Não. Val e apenas cem mil pesetas.

- Prefiro vender meu corpo primeiro.

- Talvez eu pudesse chegar a 150 mil pesetas.

- Prefiro derretê-la e deixar o ouro escorrer pelas ruas.

- Duzentas mil pesetas. É a minha última oferta.

Lucia tirou-lhe a cruz de ouro.

- Está me roubando vergonhosamente, mas vou aceitar. - Percebeu o excitamento no rosto do homem.

- Buenos, señorita. - Estendeu as mãos para a cruz, Lucia puxou-a.

- Há uma condição.

- Que condição, señorita?

- Meu passaporte foi roubado. Preciso de um novo, para poder deixar o país para visitar minha tia doente.

Ele a estudava agora, cauteloso. Balançou a cabeça.

- Entendo…

- Se puder me ajudar a resolver o problema, a cruz é sua.

Ele suspirou.

- Não é fácil arrumar passaportes, señorita. As autoridades são muito rigorosas.

Lucia fitava-o em silêncio.

- Não sei como poderia ajudá-la.

- De qualquer forma, obrigada, señor. - Encaminhou-se para a porta. O homem deixou-a chegar lá antes de dizer:

- Momentito.

Lucia parou.

- Acabo de me lembrar de uma coisa. Tenho um primo que às vezes se envolve em questões delicadas desse tipo. É um primo "distante", espero que compreenda.

- Claro que compreendo.

- Eu poderia falar com ele. Quando vai precisar desse passaporte?

- Hoje.

A cabeça enorme balançou para cima e para baixo.

- E se eu conseguir, temos um negócio fechado?

- Quando eu receber o passaporte.

- Combinado. Volte depois das oito horas, e meu primo estará aqui. Ele providenciará a fotografia necessária e porá em seu passaporte.

Lucia sentiu o coração disparar.

- Obrigada, señor.

- Não gostaria de deixar a cruz aqui, como medida de segurança?

- Estará segura comigo.

- Oito horas então. Hasta luego.

Ela deixou a loja. Lá fora, evitou com todo cuidado a delegacia de polícia e se encaminhou para a taverna, onde Rubio a esperava. Começou a andar mais devagar. Finalmente conseguia o que queria. Com o dinheiro da cruz, poderia alcançar a Suíça e a liberdade. Deveria estar feliz mas, em vez disso, sentia-se estranhamente deprimida.

"O que há de errado comigo? Estou a caminho. Rubio me esquecerá em breve. Encontrará outra."

Recordou a expressão nos olhos de Rubio quando lhe disse:

"Quero casar com você. Nunca disse isso a outra mulher em toda a minha vida."

"Dane-se ele!", pensou. "Ora, ele não é problema meu."

Diante da taberna, Lucia parou e respirou fundo; forçou então um sorriso e entrou para se juntar a Rubio.


Capítulo 25


Os meios de comunicação estavam alvoroçados. As manchetes se sucediam. Houvera o ataque ao convento, a prisão das freiras por abrigar terroristas, a fuga de quatro freiras, o fuzilamento de cinco soldados por uma das freiras, antes de ela ser alvejada e morta. As agências noticiosas internacionais estavam excitadas.

Repórteres do mundo inteiro chegaram a Madrid, e o primeiro-ministro Leopoldo Martínez, num esforço para atenuar a crise, concordava em conceder uma coletiva. Quase cinquenta repórteres do mundo todo se reuniram em seu gabinete. Os coronéis Ramón Acoca e Fal Sostelo estavam ao seu lado. O primeiro-ministro vira na manchete do "Times" de Londres naquela tarde: TERRORISTAS E FREIRAS ESCAPAM DO EXÉRCITO E DA POLÍCIA DA ESPANHA.

Um repórter do "Paris Match" perguntou:

- Senhor primeiro-ministro, tem alguma idéia do paradeiro das freiras neste momento?

- O coronel Ramón Acoca está no comando da operação de busca - respondeu o primeiro-ministro Martínez. - Deixarei que ele responda.

- Temos motivos para acreditar que se encontram em poder dos terroristas bascos - falou Acoca. - Também lamento informar que há indício de que as freiras estão colaborando com os terroristas.

Os repórtes escreviam febrilmente.

- O que tem a dizer sobre a morte de irmã Teresa e dos soldados?

- Temos informações de que a irmã Teresa trabalhava com Jaime Miró. Sob o pretexto de nos ajudar a encontrar Miró, ela entrou no acampamento do exército e fuzilou cinco soldados antes que fosse possível detê-la. Posso assegurar que o exército e o "GOE" estão envidando todos os esforços para levar os criminosos à justiça.

- E as freiras que foram presas e trazidas para Madrid?

- Estão sendo interrogadas - respondeu Acoca.

O primeiro-ministro queria encerrar a entrevista o mais depressa possível. Tinha dificuldades para manter o controle.

O fracasso em localizar as freiras e capturar os terroristas faziam com que seu governo - e ele próprio - parecesse inapto e tolo, permitindo que a imprensa tirasse o máximo de proveito da situação.

- Pode nos dizer alguma coisa sobre os antecedentes das quatro freiras que escaparam, primeiro-ministro? - perguntou um repórter de Oggi.

- Sinto muito, mas não posso fornecer novas informações. Repito, senhoras e senhores, o governo está fazendo tudo ao seu alcance para encontrar as freiras.

- Primeiro-ministro, há rumores sobre a brutalidade do ataque ao convento em Ávila. Poderia fazer algum comentário a esse respeito?

Era uma questão delicada para Martínez, por ser verdade.

O coronel Acoca ultrapassara em muito a sua autoridade. Mas cuidaria dele mais tarde. Naquele momento para demonstrar união, virou-se para o coronel e disse suavemente:

- O coronel Acoca pode responder a isso.

- Também já ouvi esses rumores infundados - retrucou Acoca. - Os fatos são simples. Recebemos informações confiáveis de que o terrorista Jaime Miró e uma dúzia de seus homens escondiam-se no convento Cisterciense e que estavam fortemente armados. Quando chegamos ao convento, no entanto, eles já haviam fugido.

- Coronel, soubemos que alguns dos seus homens molestaram…

- Isso é uma acusação afrontosa!

- Obrigado, senhoras e senhores - interveio o primeiro-ministro Martínez. - Serão informados de tudo e de qualquer acontecimento novo.

Depois que os repórteres se retiraram, o primeiro-ministro virou-se para os coronéis Acoca e Sostelo.

- Eles estão fazendo com que pareçamos selvagens aos olhos do mundo.

Acoca não tinha o menor interesse pela opinião do primeiro-ministro. O que o preocupava era um telefonema que recebera à meia-noite.

- Coronel Acoca?

Era uma voz que conhecia muito bem. Despertara imediatamente.

- Pois não, senhor.

- Estamos desapontados com você. Esperávamos resultados mais rápidos.

- Estou chegando perto, senhor. - Ele descobrira que suava profundamente. - Peço-lhe um pouco mais de paciência. Não vou desapontá-lo. - Prendera a respiração, à espera da resposta.

- Seu tempo está se esgotando.

A ligação fora cortada.

O coronel Acoca também desligara e continuara sentado, frustrado. Onde está o miserável do Miró?


Capítulo 26

Загрузка...