José Saramago

As intermitências

da morte

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Companhia das letras

Copyright © 2005 by José Saramago

Por desejo do autor, foi mantida a ortografia vigente em Portugal

os personagens e situações desta obra são reais apenas no universo

da ficção; não se referem a pessoas natos concretos, e sobre eles não

emitem opinião

ISNB: 85-359-0725-4

2005

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A Pilar, minha casa

saberemos cada vez menos o que é um ser humano.

Livro das Previsões

Pensa por ex. mais na morte, - & seria estranho em verdade

que não tivesse de conhecer por esse facto novas

representações, novos âmbitos da linguagem.

Wittgenstem

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No dia seguinte ninguém morreu. o facto, por absolutamente

contrário às normas da vida, causou nos espíritos uma perturbação

enorme, efeito em todos os aspectos justificado, basta que nos

lembremos de que não havia notícia nos quarenta volumes da história

universal, nem ao menos um caso para amostra, de ter alguma vez

ocorrido fenómeno semelhante, passar-se um dia completo, com todas

as suas pródigas vinte e quatro horas, contadas entre diurnas e

nocturnas, matutinas e vespertinas, sem que tivesse sucedido um

falecimento por doença, uma queda mortal, um suicídio levado a bom

fim, nada de nada, pela palavra nada. Nem sequer um daqueles

acidentes de automóvel tão frequentes em ocasiões festivas, quando a

alegre irresponsabilidade e o excesso de álcool se desafiam mutuamente

nas estradas para decidir sobre quem vai conseguir chegar à morte em

primeiro lugar. A passagem do ano não tinha deixado atrás de si o

habitual e calamitoso regueiro de óbitos, como se a velha átropos da

dentuça arreganhada tivesse resolvido embainhar a tesoura por um dia.

sangue, porém, houve-o, e não pouco.

Desvairados, confusos, aflitos, dominando a custo as náuseas, os

bombeiros extraíam da amálgama dos destroços míseros corpos

humanos que, de acordo com a lógica matemática das colisões,

deveriam estar mortos e bem mortos, mas que, apesar da gravidade dos

ferimentos e dos traumatismos sofridos, se mantinham vivos e assim

eram transportados aos hospitais, ao som das dilacerantes sereias das

ambulâncias. Nenhuma dessas pessoas morreria no caminho e todas

iriam desmentir os mais pessimistas prognósticos médicos, Esse pobre

diabo não tem remédio possível, nem valia a pena perder tempo a

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operá-lo, dizia o cirurgião à enfermeira enquanto esta lhe ajustava a

máscara à cara.

Realmente, talvez não houvesse salvação para o coitado no dia

anterior, mas o que estava claro é que a vítima se recusava a morrer

neste. E o que acontecia aqui, acontecia em todo o país. Até à meia-noite

em ponto do último dia do ano ainda houve gente que aceitou morrer

no mais fiel acatamento às regras, quer as que se reportavam ao fundo

da questão, isto é, acabar-se a vida, quer as que atinham às múltiplas

modalidades de que ele, o referido fundo da questão, com maior ou

menor pompa e solenidade, usa revestir-se quando chega o momento

fatal. um caso sobre todos interessante, obviamente por se tratar de

quem se tratava, foi o da idosíssima e veneranda rainha-mãe. As vinte e

três horas e cinquenta e nove minutos daquele dia trinta e um de

dezembro ninguém seria tão ingénuo que apostasse um pau de fósforo

queimado pela vida da real senhora. Perdida qualquer esperança,

rendidos os médicos à implacável evidência, a família real,

hierarquicamente disposta ao redor do leito, esperava com resignação o

derradeiro suspiro da matriarca, talvez umas palavrinhas, uma última

sentença edificante com vista à formação moral dos amados príncipes

seus netos, talvez uma bela e arredondada frase dirigida à sempre

ingrata retentiva dos súbditos vindouros. E depois, como se o tempo

tivesse parado, não aconteceu nada. A rainha-mãe nem melhorou nem

piorou, ficou ali como suspensa, baloiçando o frágil corpo à borda da

vida, ameaçando a cada instante cair para o outro lado, mas atada a este

por um ténue fio que a morte, só podia ser ela, não se sabe por que

estranho capricho, continuava a segurar. Já tínhamos passado ao dia

seguinte, e nele, como se informou logo no princípio deste relato,

ninguém iria morrer.

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A tarde já ia muito adiantada quando começou a correr o rumor de

que, desde a entrada do novo ano, mais precisamente desde as zero

horas deste dia um de janeiro em que estamos, não havia constância de

se ter dado em todo o país um só falecimento que fosse. Poderia pensar-

se, por exemplo, que o boato tivesse tido origem na surpreendente

resistência da rainha-mãe a desistir da pouca vida que ainda lhe

restava, mas a verdade é que a habitual parte médica distribuída pelo

gabinete de imprensa do palácio aos meios de comunicação social não

só assegurava que o estado geral da real enferma havia experimentado

visíveis melhoras durante a noite, como até sugeria, como até dava a

entender, escolhendo cuidadosamente as palavras, a possibilidade de

um completo restabelecimento da importantíssima saúde. Na sua

primeira manifestação o rumor também poderia ter saído com toda a

naturalidade de uma agência de enterros e trasladações, Pelos vistos

ninguém parece estar disposto a morrer no primeiro dia do ano, ou de

um hospital, Aquele tipo da cama vinte e sete não ata nem desata, ou do

porta-voz da polícia de trânsito, É um autêntico mistério que, tendo

havido tantos acidentes na estrada, não haja ao menos um morto para

exemplo. o boato, cuja fonte primigénia nunca foi descoberta, sem que,

por outro lado, à luz do que viria a suceder depois, isso importasse

muito, não tardou a chegar aos jornais, à rádio e à televisão, e fez

espevitar imediatamente as orelhas a directores, adjuntos e chefes de

redacção, pessoas não só preparadas para farejar à distância os grandes

acontecimentos da história do mundo como treinadas no sentido de os

tornar ainda maiores sempre que tal convenha. Em poucos minutos já

estavam na rua dezenas de repórteres de investigação fazendo

perguntas a todo o bicho-careta que lhes aparecesse pela frente, ao

mesmo tempo que nas fervilhantes redacções as baterias de telefones se

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agitavam e vibravam em idênticos frenesis indagadores. Fizeram-se

chamadas para os hospitais, para a cruz vermelha, para a morgue, para

as agências funerárias, para as polícias, para todas elas, com

compreensível exclusão da secreta, mas as respostas iam dar às mesmas

lacónicas palavras, Não há mortos. Mais sorte teria aquela jovem

repórter de televisão a quem um transeunte, olhando alternadamente

para ela e para a câmara, contou um caso vivido em pessoa e que era a

exacta cópia do já citado episódio da rainha-mãe, Estava justamente a

dar a meia-noite, disse ele, quando o meu avô, que parecia mesmo a

ponto de finar-se, abriu de repente os olhos antes que soasse a última

badalada no relógio da torre, como se se tivesse arrependido do passo

que ia dar, e não morreu. A repórter ficou a tal ponto excitada com o

que tinha acabado de ouvir que, sem atender a protestos nem súplicas,

Ó minha senhora, por favor, não posso, tenho de ir à farmácia, o avô

está lá à espera do remédio, empurrou o homem para dentro do carro

da reportagem, Venha, venha comigo, o seu avô já não precisa de

remédios, gritou, e logo mandou arrancar para o estúdio da televisão,

onde nesse preciso momento tudo estava a preparar-se para um debate

entre três especialistas em fenómenos paranormais, a saber, dois bruxos

conceituados e uma famosa vidente, convocados a toda a pressa para

analisarem e darem a sua opinião sobre o que já começava a ser

chamado por alguns graciosos, desses que nada respeitam, a greve da

morte. A confiada repórter laborava no mais grave dos enganos,

porquanto havia interpretado as palavras da sua fonte informativa

como significando que o moribundo, em sentido literal, se tinha

arrependido do passo que estava prestes a dar, isto é, morrer, defuntar,

esticar o pernil, e portanto resolvera fazer marcha atrás. ora, as palavras

que o feliz neto havia efectivamente pronunciado, Como se se tivesse

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arrependido, eram radicalmente diferentes de um peremptório

Arrependeu-se. Umas quantas luzes de sintaxe elementar e uma maior

familiaridade com as elásticas subtilezas dos tempos verbais teriam

evitado o quiproquó e a consequente descompostura que a pobre moça,

rubra de vergonha e humilhação, teve de suportar do seu chefe directo.

Mal podiam imaginar, porém, ele e ela, que a tal frase, repetida em

directo pelo entrevistado e novamente escutada em gravação no

telejornal da noite, iria ser compreendida da mesma equivocada

maneira por milhões de pessoas, o que virá a ter como desconcertante

consequência, num futuro muito próximo, a criação de um movimento

de cidadãos firmemente convencidos de que pela simples acção da

vontade será possível vencer a morte e que, por conseguinte, o

imerecido desaparecimento de tanta gente no passado só se tinha

devido a uma censurável debilidade de volição das gerações anteriores.

Mas as cousas não ficarão por aqui. uma vez que as pessoas, sem que

para tal tenham de cometer qualquer esforço perceptível, irão continuar

a não morrer, um outro movimento popular de massas, dotado de uma

visão prospectiva mais ambiciosa, proclamará que o maior sonho da

humanidade desde o princípio dos tempos, isto é, o gozo feliz de uma

vida eterna cá na terra, se havia tornado em um bem para todos, como o

sol que nasce todos os dias e o ar que respiramos. Apesar de

disputarem, por assim dizer, o mesmo eleitorado, houve um ponto em

que os dois movimentos souberam pôr-se de acordo, e foi terem

nomeado para a presidência honorária, dada a sua eminente qualidade

de precursor, o corajoso veterano que, no instante supremo, havia

desafiado e derrotado a morte. Tanto quanto se sabe, não virá a ser

atribuída particular importância ao facto de o avôzinho se encontrar em

estado de coma profundo e, segundo todos os indícios, irreversível.

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Embora a palavra crise não seja certamente a mais apropriada para

caracterizar os singularíssimos sucessos que temos vindo a narrar,

porquanto seria absurdo, incongruente e atentatório da lógica mais

ordinária falar-se de crise numa situação existencial justamente

privilegiada pela ausência da morte, compreende-se que alguns

cidadãos, zelosos do seu direito a uma informação veraz, andem a

perguntar-se a si mesmos, e uns aos outros, que diabo se passa com o

governo, que até agora não deu o menor sinal de vida. É certo que o

ministro da saúde, interpelado à passagem no breve intervalo entre

duas reuniões, havia explicado aos jornalistas que, tendo em

consideração a falta de elementos suficientes de juízo, qualquer

declaração oficial seria forçosamente prematura, Estamos a coligir as

informações que nos chegam de todo o país, acrescentou, e realmente

em nenhuma delas há menção de falecimentos, mas é fácil imaginar

que, colhidos de surpresa como toda a gente, ainda não estejamos

preparados para enunciar uma primeira ideia sobre as origens do

fenómeno e sobre as suas implicações, tanto as imediatas como as

futuras. Poderia ter-se deixado ficar por aqui, o que, levando em conta

as dificuldades da situação, já seria motivo para agradecer, mas o

conhecido impulso de recomendar tranquilidade às pessoas a propósito

de tudo e de nada, de as manter sossegadas no redil seja como for, esse

tropismo que nós políticos, em particular se são governo, se tornou

numa segunda natureza, para não dizer automatismo, movimento

mecânico, levou-o a rematar a conversa da pior maneira, Como

responsável pela pasta da saúde, asseguro a todos quantos me escutam

que não existe qualquer motivo para alarme, se bem entendi o que

acabo de escutar, observou um jornalista em tom que não queria

parecer demasiado irónico, na opinião do senhor ministro não é

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alarmante o facto de ninguém estar a morrer, Exacto, embora por outras

palavras, foi isso mesmo o que eu disse, senhor ministro, permita-me

que lhe recorde que ainda ontem havia pessoas que morriam e a

ninguém lhe passaria pela cabeça que isso fosse alarmante. É natural, o

costume é morrer, e morrer só se torna alarmante quando as mortes se

multiplicam, uma guerra, uma epidemia, por exemplo. Isto é, quando

saem da rotina, Poder-se-á dizer assim, Mas, agora que não se encontra

quem esteja disposto a morrer, é quando o senhor ministro nos vem

pedir que não nos alarmemos, convirá comigo que, pelo menos, é

bastante paradoxal, Foi a força do hábito, reconheço que o termo alarme

não deveria ter sido chamado a este caso, Que outra palavra usaria

então o senhor ministro, faço a pergunta porque, como jornalista

consciente das minhas obrigações que me prezo de ser, me preocupa

empregar o termo exacto sempre que possível. Ligeiramente enfadado

com a insistência, o ministro respondeu secamente, Não uma, mas

quatro, Quais, senhor ministro, Não alimentemos falsas esperanças.

Teria sido, sem dúvida, uma boa e honesta manchete para o jornal do

dia seguinte, mas o director, após consultar com o seu redactor-chefe,

considerou desaconselhável, também do ponto de vista empresarial,

lançar esse balde de água gelada sobre o entusiasmo popular, Ponha-lhe

o mesmo de sempre, Ano Novo, Vida Nova, disse.

No comunicado oficial, finalmente difundido já a noite ia adiantada,

o chefe do governo ratificava que não se haviam registado quaisquer

defunções em todo o país desde o início do novo ano, pedia

comedimento e sentido de responsabilidade nas avaliações e

interpretações que do estranho facto viessem a ser elaboradas, lembrava

que não deveria excluir-se a hipótese de se tratar de uma casualidade

fortuita, de uma alteração cósmica meramente acidental e sem

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continuidade, de uma conjunção excepcional de coincidências intrusas

na equação espaço-tempo, mas que, pelo sim, pelo não, já se haviam

iniciado contactos exploratórios com os organismos internacionais

competentes em ordem a habilitar o governo a uma acção que seria

tanto mais eficaz quanto mais concertada pudesse ser. Enunciadas estas

vaguidades pseudocientíficas, destinadas, também elas, a tranquilizar,

pelo incompreensível, o alvoroço que reinava no país, o primeiro-

ministro terminava afirmando que o governo se encontrava preparado

para todas as eventualidades humanamente imagináveis. decidido a

enfrentar com coragem e com o indispensável apoio da população os

complexos problemas sociais, económicos, políticos e morais que a

extinção definitiva da morte inevitavelmente suscitaria, no caso, que

tudo parece indicar como previsível, de se vir a confirmar. Aceitaremos

o repto da imortalidade do corpo, exclamou em tom arrebatado, se essa

for a vontade de deus, a quem para todo o sempre agradeceremos, com

as nossas orações, haver escolhido o bom povo deste país para seu

instrumento. significa isto, pensou o chefe do governo ao terminar a

leitura, que estamos metidos até aos gorgomilos numa camisa-de-onze-

varas. Não podia ele imaginar até que ponto o colarinho lhe iria apertar.

Ainda meia hora não tinha passado quando, já no automóvel oficial que

o levava a casa, recebeu uma chamada do cardeal, Boas noites, senhor

primeiro-ministro, Boas noites, eminência, Telefono-lhe para lhe dizer

que me sinto profundamente chocado, Também eu, eminência, a

situação é muito grave, a mais grave de quantas o país teve de viver até

hoje. Não se trata disso. De que se trata então, eminência. É a todos os

respeitos deplorável que, ao redigir a declaração que acabei de escutar,

o senhor primeiro-ministro não se tenha lembrado daquilo que constitui

o alicerce, a viga mestra, a pedra angular, a chave de abóbada da nossa

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santa religião, Eminência, perdoe-me, temo não compreender aonde

quer chegar. sem morte, ouça-me bem, senhor primeiro-ministro, sem

morte não há ressurreição, e sem ressurreição não há igreja, o diabo,

Não percebi o que acaba de dizer, repita, por favor. Estava calado,

eminência, provavelmente terá sido alguma interferência causada pela

electricidade atmosférica, pela estática, ou mesmo um problema de

cobertura, o satélite às vezes falha, dizia vossa eminência que, Dizia o

que qualquer católico, e o senhor não é uma excepção, tem obrigação de

saber, que sem ressurreição não há igreja, além disso, como lhe veio à

cabeça que deus poderá querer o seu próprio fim, afirmá-lo é uma ideia

absolutamente sacrílega, talvez a pior das blasfémias, Eminência, eu não

disse que deus queria o seu próprio fim, De facto, por essas exactas

palavras, não, mas admitiu a possibilidade de que a imortalidade do

corpo resultasse da vontade de deus, não será preciso ser-se doutorado

em lógica transcendental para perceber que quem diz uma cousa, diz a

outra, Eminência, por favor, creia-me, foi uma simples frase de efeito

destinada a impressionar, um remate de discurso, nada mais, bem sabe

que a política tem destas necessidades, Também a igreja as tem, senhor

primeiro-ministro, mas nós ponderamos muito antes de abrir a boca,

não falamos por falar, calculamos os efeitos à distância, a nossa

especialidade, se quer que lhe dê uma imagem para compreender

melhor, é a balística, Estou desolado, eminência, No seu lugar também

o estaria. Como se estivesse a avaliar o tempo que a granada levaria a

cair, o cardeal fez uma pausa, depois, em tom mais suave, mais cordial,

continuou, Gostaria de saber se o senhor primeiro-ministro levou a

declaração ao conhecimento de sua majestade antes de a ler aos meios

de comunicação social, Naturalmente, eminência, tratando-se de um

assunto de tanto melindre, E que disse orei, se não é segredo de estado,

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Pareceu-lhe bem, Fez algum comentário ao terminar, Estupendo,

Estupendo, quê, Foi o que sua majestade me disse, estupendo, Quer

dizer que também blasfemou, Não sou competente para formular juízos

dessa natureza, eminência, viver com os meus próprios erros já me dá

trabalho suficiente, Terei de falar ao rei, recordar-lhe que, em uma

situação como esta, tão confusa, tão delicada, só a observância fiel e sem

desfalecimento das provadas doutrinas da nossa santa madre igreja

poderá salvar o país do pavoroso caos que nos vai cair em cima, Vossa

eminência decidirá, está no seu papel, Perguntarei a sua majestade que

prefere. se ver a rainha-mãe para sempre agonizante, prostrada num

leito de que não voltará a levantar-se, com o imundo corpo a reter-lhe

indignamente a alma, ou vê-la, por morrer, triunfadora da morte, na

glória eterna e resplandecente dos céus, Ninguém hesitaria na resposta,

sim, mas, ao contrário do que se julga, não são tanto as respostas que

me importam. Senhor primeiro-ministro, mas as perguntas, obviamente

refiro-me às nossas, observe como elas costumam ter, ao mesmo tempo,

um objectivo à vista e uma intenção que vai escondida atrás, se as

fazemos não é apenas para que nos respondam o que nesse momento

necessitamos que os interpelados escutem da sua própria boca, é

também para que se vá preparando o caminho às futuras respostas,

Mais ou menos como na política, eminência, Assim é, mas a vantagem

da igreja é que, embora às vezes o não pareça, ao gerir o que está no

alto, governa o que está em baixo. Houve uma nova pausa, que o

primeiro-ministro interrompeu, Estou quase a chegar a casa, eminência,

mas, se me dá licença, ainda gostaria de lhe pôr uma breve questão,

Diga, Que irá fazer a igreja se nunca mais ninguém morrer, Nunca mais

é demasiado tempo, mesmo tratando-se da morte, senhor primeiro-

ministro, Creio que não me respondeu, eminência, Devolvo-lhe a

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pergunta, que vai fazer o estado se nunca mais ninguém morrer, o

estado tentará sobreviver, ainda que eu muito duvide de que o venha a

conseguir, mas a igreja, A igreja, senhor primeiro-ministro, habituou-se

de tal maneira às respostas eternas que não posso imaginá-la a dar

outras, Ainda que a realidade as contradiga, Desde o princípio que nós

não temos feito outra cousa que contradizer a realidade, e aqui

estamos, Que irá dizer o papa, se eu o fosse, perdoe-me deus a estulta

vaidade de pensar-me tal, mandaria pôr imediatamente em circulação

uma nova tese, a da morte adiada, sem mais explicações, À igreja nunca

se lhe pediu que explicasse fosse o que fosse, a nossa outra

especialidade, além da balística, tem sido neutralizar, pela fé, o espírito

curioso, Boas noites, eminência, até amanhã, se deus quiser, senhor

primeiro-ministro, sempre se deus quiser, Tal como estão as cousas

neste momento, não parece que ele o possa evitar, Não se esqueça,

senhor primeiro-ministro, de que fora das fronteiras do nosso país se

continua a morrer com toda anormalidade, e isso é um bom sinal,

Questão de ponto de vista, eminência, talvez lá de fora nos estejam a

olhar como um oásis, um jardim, um novo paraíso, ou um inferno, se

forem inteligentes, Boas noites, eminência, desejo-lhe um sono tranquilo

e reparador, Boas noites, senhor primeiro-ministro, se a morte resolver

regressar esta noite, espero que não se lembre de o ir escolher a si, se a

justiça neste mundo não é uma palavra vã, a rainha-mãe deverá ir

primeiro que eu, Prometo que não o denunciarei amanhã ao rei, Quanto

lhe agradeço, eminência, Boas noites, Boas noites.

Eram três horas da madrugada quando o cardeal teve de ser levado a

correr ao hospital com um ataque de apendicite aguda que obrigou a

uma imediata intervenção cirúrgica. Antes de ser sugado pelo túnel da

anestesia, naquele instante veloz que precede a perda total da

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consciência, pensou o que tantos outros têm pensado, que poderia vir a

morrer durante a operação, depois lembrou-se de que tal já não era

possível, e, finalmente, num último lampejo de lucidez, ainda lhe

passou pela mente a ideia de que se, apesar de tudo, morresse mesmo,

isso significaria que teria, paradoxalmente, vencido a morte. Arrebatado

por uma irresistível ânsia sacrificial ia implorar a deus que o matasse,

mas já não foi a tempo de pôr as palavras na sua ordem. A anestesia

poupou-o ao supremo sacrilégio de querer transferir os poderes da

morte para um deus mais geralmente conhecido como dador da vida.

Embora tivesse sido imediatamente posta a ridículo pelos jornais da

concorrência, que haviam conseguido arrancar à inspiração dos seus

redactores principais os mais diversos e substanciosos títulos, algumas

vezes dramáticos, líricos outras, e, não raro, filosóficos ou místicos,

quando não de comovedora ingenuidade, como tinha sido o caso

daquele diário popular que se contentou com a pergunta E Agora Que

Irá ser De Nós, acrescentando como rabo da frase o alarde gráfico de

um enorme ponto de interrogação, a já falada manchete Ano Novo,

Vida Nova, não obstante a confrangedora banalidade, caiu como sopa

no mel em algumas pessoas que, por temperamento natural ou

educação adquirida, preferiam acima de tudo a firmeza de um

optimismo mais ou menos pragmático, mesmo se tivessem motivos

para suspeitar de que se trataria de uma mera e talvez fugaz aparência.

Tendo vivido, até estes dias de confusão, naquilo que haviam

imaginado ser o melhor de todos os mundos possíveis e prováveis,

descobriam, deliciados, que o melhor, realmente o melhor, era agora

que estava a acontecer, que já o tinham ali mesmo, à porta de casa, uma

vida única, maravilhosa, sem o medo quotidiano da rangente tesoura

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da parca, a imortalidade na pátria que nos deu o ser, a salvo de

incomodidades metafísicas e grátis para toda a gente, sem uma carta de

prego para abrir à hora da morte, tu para o paraíso, tu para o

purgatório, tu para o inferno, nesta encruzilhada se separavam em

outros tempos, queridos companheiros deste vale de lágrimas chamado

terra, os nossos destinos no outro mundo. Posto isto, não tiveram os

periódicos reticentes ou problemáticos outra solução, e com eles as

televisões e as rádios afins, que unir-se à maré alta de alegria colectiva

que alastrava de norte a sul e de leste a oeste, refrescando as mentes

temerosas e arrastando para longe da vista a longa sombra de tânatos.

Com o passar dos dias, e vendo que realmente ninguém morria, os

pessimistas e os cépticos, aos poucos e poucos no princípio, depois em

massa, foram-se juntando ao mare magnum de cidadãos que aprovei-

tavam todas as ocasiões para sair à rua e proclamar, e gritar, que, agora

sim, a vida é bela.

Um dia, uma senhora em estado de viúva recente, não encontrando

outra maneira de manifestar a nova felicidade que lhe inundava o ser, e

se bem que com a ligeira dor de saber que, não morrendo ela, nunca

mais voltaria a ver o pranteado defunto, lembrou-se de pendurar para a

rua, na sacada florida da sua casa de jantar, a bandeira nacional. Foi o

que se costuma chamar meu dito, meu feito. Em menos de quarenta e

oito horas o embandeiramento alastrou a todo o país, as cores e os sím-

bolos da bandeira tomaram conta da paisagem, com maior visibilidade

nas cidades pela evidente razão de estarem mais beneficiadas de

varandas e janelas que o campo. Era impossível resistir a um tal fervor

patriótico, sobretudo porque, vindas não se sabia donde, haviam

começado a difundir-se certas declarações inquietantes, para não dizer

francamente ameaçadoras, como fossem, por exemplo, Quem não puser

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a imortal bandeira da pátria à janela da sua casa, não merece estar vivo,

Aqueles que não andarem com a bandeira nacional bem à vista é

porque se venderam à morte, Junte-se a nós, seja patriota, compre uma

bandeira, Compre outra, Compre mais outra, Abaixo os inimigos da

vida, o que lhes vale a eles é já não haver mais morte. As ruas eram um

autêntico arraial de insígnias desfraldadas, batidas pelo vento, se este

soprava, ou, quando não, um ventilador eléctrico colocado ajeito fazia-

lhe as vezes, e se a potência do aparelho não era bastante para que o

estandarte virilmente drapejasse, obrigando-o a dar aqueles estalos de

chicote que tanto exaltamos espíritos marciais, ao menos fazia com que

ondulassem honrosamente as cores da pátria. Algumas raras pessoas, à

boca pequena, murmuravam que aquilo era um exagero, um

despropósito, que mais tarde ou mais cedo não haveria outro remédio

que retirar aquele bandeiral todo, e quanto mais cedo o fizermos,

melhor, porque da mesma maneira que demasiado açúcar no pudim dá

cabo do paladar e prejudica o processo digestivo, também o normal e

mais do que justo respeito pelos emblemas patrióticos acabará por

converter-se em chacota se permitirmos que descambe em autênticos

atentados contra o pudor, como os exibicionistas de gabardina de

execrada memória. Além disso, diziam, se as bandeiras estão aí para

celebrar o facto de que a morte deixou de matar, então de duas uma, ou

as retiramos antes de que com a fartura comecemos a embirrar com os

símbolos da pátria, ou vamos levar o resto da vida, isto é, a eternidade,

sim, dizemos bem, a eternidade, a mudá-los de cada vez que os

apodreça a chuva, que o vento os esfarrape ou o sol lhes coma o

colorido. Eram pouquíssimas as pessoas que tinham a coragem de pôr

assim, publicamente, o dedo na ferida, e um pobre homem houve que

teve de pagar o antipatriótico desabafo com uma tareia que, se não lhe

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acabou ali mesmo com a triste vida, foi só porque a morte havia

deixado de operar neste país desde o princípio do ano.

Nem tudo é festa, porém, ao lado de uns quantos que riem, sempre

haverá outros que chorem, e às vezes, como no presente caso, pelas

mesmas razões. Importantes sectores profissionais, seriamente

preocupados com a situação, já começaram a fazer chegar a quem de

direito a expressão do seu descontentamento. Como seria de esperar, as

primeiras e formais reclamações vieram das empresas do negócio

funerário. Brutalmente desprovidos da sua matéria-prima, os

proprietários começaram por fazer o gesto clássico de levar as mãos à

cabeça, gemendo em carpideiro coro, E agora que irá ser de nós, mas

logo, perante a perspectiva de uma catastrófica falência que a ninguém

do grémio minero pouparia, convocaram a assembleia geral da classe,

ao fim da qual, após acabadas discussões, todas elas improdutivas

porque todas, sem excepção, iam dar com a cabeça no muro indestru-

tível da falta de colaboração da morte, essa a que se haviam habituado,

de pais a filhos, como algo que por natureza lhes era devido, aprovaram

um documento a submeter à consideração do governo da nação, o qual

documento adoptava a única proposta construtiva, construtiva, sim,

mas também hilariante, que havia sido apresentada a debate, Vão-se rir

de nós, avisou o presidente da mesa, mas reconheço que não temos

outra saída, ou é isto, ou será a ruína do sector. Informava pois o

documento que, reunidos em assembleia geral extraordinária para

examinar a gravíssima crise com que se estavam debatendo por motivo

da falta de falecimentos em todo o país, os representantes das agências

funerárias, depois de uma intensa e participada análise, durante a qual

sempre havia imperado o respeito pelos supremos interesses da nação,

tinham chegado à conclusão de que ainda era possível evitar as

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dramáticas consequências do que sem dúvida irá passar à história como

a pior calamidade colectiva que nos caiu em cima desde a fundação da

nacionalidade, isto é, que o governo decida tornar obrigatórios o

enterramento ou a incineração de todos os animais domésticos que

venham a defuntar de morte natural ou por acidente, e que tal

enterramento ou tal incineração, regulamentados e aprovados, sejam

obrigatoriamente levados a cabo pela indústria funerária, tendo em

contra as meritórias provas prestadas no passado como autêntico

serviço público que têm sido, no sentido mais profundo da expressão,

gerações após gerações. o documento continuava, solicitamos ainda a

melhor atenção do governo para o facto de que a indispensável

reconversão da indústria não será viável sem vultosos investimentos,

pois não é a mesma cousa sepultar um ser humano e levar à última

morada um gato ou um canário, e porque não dizer um elefante de

circo ou um crocodilo de banheira, sendo portanto necessário

reformular de alto a baixo o nosso know how tradicional, servindo de

providencial apoio a esta indispensável actualização a experiência já

adquirida desde a oficialização dos cemitérios para animais, ou seja,

aquilo que até agora não havia passado de uma intervenção marginal

da nossa indústria, ainda que, não o negamos, bastamente lucrativa,

tomar-se-ia em actividade exclusiva, evitando-se assim, na medida do

possível, o despedimento de centenas senão milhares de abnegados e

valorosos trabalhadores que em todos os dias da sua vida enfrentaram

corajosamente a imagem terrível da morte e a quem a mesma morte

volta agora imerecidamente as costas, Exposto o que, senhor primeiro-

ministro, rogamos, com vista à merecida protecção de uma profissão

milenariamente classificada de utilidade pública, se digne considerar,

não somente a urgência de uma decisão favorável, mas também, em

19

paralelo, a abertura de uma linha de créditos bonificados, ou então, e

isso seria ouro sobre azul, ou dourado sobre negro, que são as nossas

cores, para não dizer da mais elementar justiça, a concessão de

empréstimos a fundo perdido que ajudem a viabilizar a rápida

revitalização de um sector cuja sobrevivência se encontra ameaçada

pela primeira vez na história, e desde muito antes dela, em todas as

épocas da pré-história, pois nunca a um cadáver humano deve ter

faltado quem, mais cedo ou mais tarde, acudisse a enterrá-lo, ainda que

não fosse mais que a generosa terra abrindo-se. Respeitosamente,

pedem deferimento.

Também os directores e administradores dos hospitais, tanto do

estado como privados, não tardaram muito a ir bater à porta do

ministério da tutela, o da saúde, para expressar junto dos serviços

competentes as suas inquietações e os seus anseios, os quais, por

estranho que pareça, quase sempre relevavam mais de questões

logísticas que propriamente sanitárias. Afirmavam eles que o corrente

processo rotativo de enfermos entrados, enfermos curados e enfermos

mortos havia sofrido, por assim dizer, um curto-circuito ou, se

quisermos falar em termos menos técnicos, um engarrafamento como os

dos automóveis, o qual tinha a sua causa na permanência indefinida de

um número cada vez maior de internados que, pela gravidade das

doenças ou dos acidentes de que haviam sido vítimas, já teriam, em

situação normal, passado à outra vida. A situação é difícil, argumen-

tavam, já começámos a pôr doentes nos corredores, isto é, mais do que

era costume fazê-lo, e tudo indica que em menos de uma semana nos

iremos encontrar a braços não só com a escassez das camas, mas

também, estando repletos os corredores e as enfermarias, sem saber, por

falta de espaço e dificuldade de manobra, onde colocar as que ainda

20

estejam disponíveis. É certo que há uma maneira de resolver o

problema, concluíam os responsáveis hospitalares, porém, ofendendo

ela, ainda que de raspão, o juramento hipocrático, a decisão, no caso de

vir a ser tomada, não poderá ser nem médica nem administrativa, mas

política. Como a bom entendedor sempre meia palavra bastou, o

ministro da saúde, depois de consultar o primeiro-ministro, exarou o

seguinte despacho, Considerando a imparável sobreocupação de inter-

nados que já começa a prejudicar seriamente o ate agora excelente

funcionamento do nosso sistema hospitalar e que é a directa consequên-

cia do crescente número de pessoas ingressadas em estado de vida

suspensa e que assim irão manter-se indefinidamente, sem quaisquer

possibilidades de cura ou de simples melhora, pelo menos até que a

investigação médica alcance as novas metas que se tem proposto, o

governo aconselha e recomenda às direcções e administrações

hospitalares que, após uma análise rigorosa, caso por caso, da situação

clínica dos doentes que se encontrem naquela situação, e confirmando-

se a irreversibilidade dos respectivos processos mórbidos, sejam eles

entregues aos cuidados das famílias, assumindo os estabelecimentos

hospitalares a responsabilidade de assegurar aos enfermos, sem reserva,

todos os tratamentos e exames que os seus médicos de cabeceira ainda

julguem necessários ou simplesmente aconselháveis. Fundamenta-se

esta decisão do governo numa hipótese facilmente admissível por toda

a gente, a de que a um paciente em tal estado, permanentemente à beira

de um falecimento que permanentemente lhe vai sendo negado, deverá

ser-lhe pouco menos que indiferente, mesmo em algum momento de

lucidez, o lugar em que se encontre, quer se trate do seio carinhoso da

sua família ou da congestionada enfermaria de um hospital, uma vez

que nem aqui nem ali conseguirá morrer, como também nem ali nem

21

aqui poderá recuperar a saúde. o governo quer aproveitar esta

oportunidade para informar a população de que prosseguem em ritmo

acelerado os trabalhos de investigação que, assim o espera e confia, hão-

de levar a um conhecimento satisfatório das causas, até este momento

ainda misteriosas, do súbito desaparecimento da morte. Igualmente

informa que uma nutrida comissão interdisciplinar, incluindo represen-

tantes das diversas religiões em vigor e filósofos das diversas escolas

em actividade, que nestes assuntos sempre têm uma palavra a dizer,

está encarregada da delicada tarefa de reflectir sobre o que virá a ser um

futuro sem morte, ao mesmo tempo que tentará elaborar uma previsão

plausível dos novos problemas que a sociedade terá de enfrentar, o

principal dos quais alguns resumiriam nesta cruel pergunta, Que vamos

fazer com os velhos, se já não está aí a morte para lhes cortar o excesso

de veleidades macróbias.

Os lares para a terceira e quarta idades, essas benfazejas instituições

criadas em atenção à tranquilidade das famílias que não têm tempo

nem paciência para limpar os ranhos, atender aos esfíncteres fatigados e

levantar-se de noite para chegar a arrastadeira, também não tardaram,

tal como já o haviam feito os hospitais e as agências funerárias, a vir

bater com a cabeça no muro das lamentações. Fazendo justiça a quem se

deve, temos de reconhecer que a incerteza em que se encontravam

divididos, isto é, continuar ou não continuar a receber hóspedes, era

uma das mais angustiantes que poderiam desafiar os esforços

equitativos e o talento planificador de qualquer gestor de recursos

humanos. Principalmente porque o resultado final, e isso é o que

caracteriza os autênticos dilemas, iria ser sempre o mesmo. Habituados

até agora, tal como os seus queixosos parceiros da injecção intravenosa

22

e da coroa de flores com fita roxa, à segurança resultante da contínua e

imparável rotação de vidas e mortes, umas que vinham entrando,

outras que iam saindo, os lares da terceira e quarta idades não queriam

nem pensar num futuro de trabalho em que os objectos dos seus

cuidados não mudariam nunca de cara e de corpo, salvo para exibi-los

mais lamentáveis em cada dia que passasse, mais decadentes, mais

tristemente descompostos, o rosto enrugando-se, prega a prega, igual

que uma passa de uva, os membros trémulos e duvidosos, como um

barco que inutilmente andasse à procura da bússola que lhe tinha caído

ao mar. um novo hóspede sempre havia sido motivo de regozijo para os

lares do feliz ocaso, tinha um nome que seria preciso fixar na memória,

hábitos próprios trazidos do mundo exterior, manias que eram só dele,

como um certo funcionário aposentado que todos os dias tinha de lavar

a fundo a escova de dentes porque não suportava ver nela restos da

pasta dentífrica, ou aquela anciã que desenhava árvores genealógicas da

sua família e nunca acertava com os nomes que deveria pendurar nos

ramos. Durante algumas semanas, até que a rotina nivelasse a atenção

devida aos internados, ele seria o novo, o benjamim do grupo, e iria sê-

lo pela última vez na vida, ainda que durando ela tanto como a

eternidade, esta que, como do sol costuma dizer-se, passou a brilhar

para toda a gente deste país afortunado, nós que veremos extinguir-se o

astro do dia e continuaremos vivos, ninguém sabe como nem porquê.

Agora, porém, o novo hóspede, excepto se ainda veio preencher alguma

vaga e arredondar a receita do lar, é alguém cujo destino se conhece de

antemão, não o veremos sair daqui para ir morrer a casa ou ao hospital

como acontecia nos bons tempos, enquanto os outros hóspedes

fechavam à chave apressadamente a porta dos seus quartos para que a

morte não entrasse e os levasse também a eles, já sabemos que tudo isto

23

são cousas de um passado que não voltará, mas alguém do governo terá

de pensar na nossa sorte, nós, patrão, gerente e empregados dos lares

do feliz ocaso, o destino que nos espera é não termos ninguém que nos

acolha quando chegar a hora em que tenhamos de baixar os braços,

reparai que nem sequer somos senhores daquilo que de alguma

maneira também havia sido nosso, ao menos pelo trabalho que nos deu

durante anos e anos, aqui deverá perceber-se que os empregados

tomaram a palavra, o que queremos dizer é que não haverá sítio para

estes que somos nos lares do feliz ocaso, salvo se pusermos de lá para

fora uns quantos hóspedes, ao governo já lhe tinha ocorrido a mesma

ideia quando foi daquele debate sobre a pletora dos hospitais, que a

família reassuma as suas obrigações, disseram, mas para isso seria

necessário que ainda se encontrasse nela alguém com suficiente tino na

cabeça e energias bastantes no resto do corpo, dons cujo prazo de

validade, como sabemos por experiência própria e pelo panorama que o

mundo oferece, têm a duração de um suspiro se o compararmos com

esta eternidade recentemente inaugurada, o remédio, salvo opinião

mais abalizada, seria multiplicar os lares do feliz ocaso, não como até

agora, aproveitando vivendas e palacetes que em tempos conheceram

melhor sorte, mas construindo de raiz grandes edifícios, com a forma de

um pentágono, por exemplo, de uma torre de babel, de um labirinto de

cnossos, primeiro bairros, depois cidades, depois metrópoles, ou,

usando palavras mais cruas, cemitérios de vivos onde a fatal e

irrenunciável velhice seria cuidada como deus quisesse, até não se sabe

quando, pois os seus dias não teriam fim, o problema bicudo, e para ele

nos sentimos no dever de chamar a atenção de quem de direito, é que,

como passar do tempo, não só haverá cada vez mais idosos internados

nos lares do feliz ocaso, como também será necessária cada vez mais

24

gente para tomar conta deles, dando em resultado que o rombóide das

idades virará rapidamente os pés pela cabeça, uma massa gigantesca de

velhos lá em cima, sempre em crescimento, engolindo como uma

serpente pitão as novas gerações, as quais, por sua vez, na sua maioria

convertidas em pessoal de assistência e administração dos lares do feliz

ocaso, depois de terem gasto a melhor parte da sua vida a cuidar de

velhorros de todas as idades, quer as normais, quer as matusalénicas,

multidões de pais, avós, bisavós, trisavós, tetravós, pentavós, hexavós, e

por aí fora, ad infinitum, se juntarão, uma atrás de outra, como folhas

que das árvores se desprendem e vão tombar sobre as folhas dos

outonos pretéritos, mais oü sont les neiges d'antan, do formigueiro

interminável dos que, pouco a pouco, levaram a vida a perder os dentes

e o cabelo, das legiões dos de má vista e mau ouvido, dos herniados,

dos catarrosos, dos que fracturaram o colo do fémur, dos paraplégicos,

dos caquécticos agora imortais que não são capazes de segurar nem a

baba que lhes escorre do queixo, vossas excelências, senhores que nos

governam, talvez não nos queiram crer, mas o que aí nos vem em Cima

é o pior dos pesadelos que alguma vez um ser humano pôde haver

sonhado, nem mesmo nas escuras cavernas, quando tudo era terror e

tremor, se terá visto semelhante cousa, dizemo-lo nós que temos a

experiência do primeiro lar do feliz ocaso, é certo que então tudo era em

ponto pequeno, mas para alguma cousa a imaginação nos haveria de

servir, se quer que lhe falemos com franqueza, de coração nas mãos,

antes a morte, senhor primeiro-ministro, antes a morte que tal sorte.

Uma terrível ameaça que vem pôr em perigo a sobrevivência da

nossa indústria, foi o que declarou aos órgãos de comunicação social o

presidente da federação das companhias seguradoras, referindo-se aos

muitos milhares de cartas que, mais ou menos por idênticas palavras,

25

Como se as tivessem copiado de uma minuta única, haviam entrado nos

últimos dias nas empresas trazendo uma ordem de cancelamento

imediato das apólices de seguros de vida dos respectivos signatários,

Afirmavam estes que, considerando o facto público e notório de que a

morte havia posto termo aos seus dias, seria absurdo, para não dizer

simplesmente estúpido, continuar a pagar uns prémios altíssimos que

só iram servir, sem qualquer espécie de contrapartida, para enriquecer

as companhias. Não estou para sustentar burros a pão-de-ló, desaba-

fava, em post scriptum, um segurado particularmente maldisposto.

Alguns iam mais longe, reclamavam a evolução das quantias pagas,

mas, esses, percebia-se logo que era só um atirar barro à parede por

descargo de consciência, a ver se pegava. À inevitável pergunta dos

jornalistas sobre o que pensavam fazer as companhias de seguros para

contrapor à salva de artilharia pesada que de repente lhes tinha caído

em cima, o presidente da federação respondeu que, embora os

assessores jurídicos estivessem, neste preciso momento, a estudar com

toda a atenção a letra pequena das apólices à procura de qualquer

possibilidade interpretativa que permitisse, sempre dentro da mais

estrita legalidade, claro esta, impor aos segurados heréticos, mesmo

contra sua vontade, a obrigação de pagar enquanto fossem vivos, quer

dizer, sempiternamente, o mais provável, no entanto, seria que viesse a

ser-lhes proposto um pacto de consenso, um acordo de cavalheiros, o

qual consistiria na inclusão de uma breve adenda às apólices, tanto para

a rectificação de agora como para a vigência futura, em que ficaria

fixada a idade de oitenta anos para morte obrigatória, obviamente em

sentido figurado, apressou-se o presidente a acrescentar, sorrindo com

indulgência. Desta maneira, as companhias passariam a cobrar os

prémios na mais perfeita normalidade até à data em que o feliz

26

segurado cumprisse o seu octogésimo aniversário, momento em que,

uma vez que se havia convertido em alguém virtualmente morto,

mandaria proceder à cobrança do montante integral do seguro, o qual

lhe seria pontualmente satisfeito. Havia que acrescentar ainda, e isso

não seria o menos interessante, que, no caso de assim o desejarem, os

clientes poderiam renovar o seu contrato por mais oitenta anos, ao fim

dos quais, para os efeitos devidos, se registaria o segundo óbito, repe-

tindo-se o procedimento anterior, e assim sucessivamente. ouviram-se

murmúrios de admiração e algum esboço de aplauso entre os jornalistas

entendidos em cálculo actuarial, que o presidente agradeceu baixando

de leve a cabeça. Estratégica e tacticamente, a jogada tinha sido perfeita,

ao ponto de que logo no dia a seguir começaram a afluir cartas às

companhias de seguros dando por nulas e sem efeito as primeiras.

Todos os segurados se declaravam dispostos a aceitar o acordo de

cavalheiros proposto, graças ao qual se poderá dizer, sem exagero, que

este foi um daqueles raríssimos casos em que ninguém perdia e todos

ganhavam. Em especial as companhias de seguros, salvas da catástrofe

por um cabelo. Já se espera que na próxima eleição o presidente da

federação seja reconduzido no cargo que tão brilhantemente

desempenha.

Da primeira reunião da comissão interdisciplinar tudo se pode dizer

menos que tenha corrido bem. A culpa, se o pesado termo tem aqui

cabimento, teve-a o dramático memorando levado ao governo pelos

lares do feliz ocaso, em especial aquela cominatória frase que o

rematava, Antes a morte, senhor primeiro-ministro, antes a morte que

tal sorte. Quando os filósofos, divididos, como sempre, em pessimistas e

optimistas, uns carrancudos, outros risonhos, se dispunham a

recomeçar pela milésima vez a cediça disputa do copo de que não se

27

sabe se está meio cheio ou meio vazio, a qual disputa, transferida para a

questão que ali os chamara, se reduziria no final, com toda a

probabilidade, a um mero inventário das vantagens ou desvantagens de

estar morto ou de viver para sempre, os delegados das religiões

apresentaram-se formando uma frente unida comum com a qual

aspiravam a estabelecer o debate no único terreno dialéctico que lhes

interessava, isto é, a aceitação explícita de que a morte era absoluta-

mente fundamental para a realização do reino de deus e que, portanto,

qualquer discussão sobre um futuro sem morte seria não só blasfema

como absurda, porquanto teria de pressupor. inevitavelmente, um deus

ausente, para não dizer simplesmente desaparecido. Não se tratava de

uma atitude nova, o próprio cardeal já havia apontado o dedo ao busílis

que significaria esta versão teológica da quadratura do círculo quando,

na sua conversação telefónica com o primeiro- ministro, admitiu, ainda

que por palavras muito menos claras, que se se acabasse a morte não

poderia haver ressurreição, e que se não houvesse ressurreição, então

não teria sentido haver igreja. ora, sendo esta, pública e notoriamente, o

único instrumento de lavoura de que deus parecia dispor na terra para

lavrar os caminhos que deveriam conduzir ao seu reino, a conclusão

óbvia e irrebatível é de que toda a história santa termina inevitavel-

mente num beco sem saída. Este ácido argumento saiu da boca do mais

velho dos filósofos pessimistas, que não ficou por aqui e acrescentou

acto contínuo, As religiões, todas elas, por mais voltas que lhes dermos,

não têm outra justificação para existir que não seja a morte, precisam

dela como do pão para a boca. os delegados das religiões não se deram

ao incómodo de protestar. Pelo contrário, um deles, conceituado

integrante do sector católico, disse, Tem razão, senhor filósofo, é para

isso mesmo que nós existimos, para que as pessoas levem toda a vida

28

com o medo pendurado ao pescoço e, chegada a sua hora, acolham a

morte como uma libertação, o paraíso, Paraíso ou inferno, ou cousa

nenhuma, o que se passe depois da morte importa-nos muito menos

que o que geralmente se crê, a religião, senhor filósofo, é um assunto da

terra, não tem nada que ver com o céu, Não foi o que nos habituaram a

ouvir, Algo teríamos que dizer para tornar atractiva a mercadoria, Isso

quer dizer que em realidade não acreditam na vida eterna, Fazemos de

conta.

Durante um minuto ninguém falou. o mais velho dos pessimistas

deixou que um vago e suave sorriso se lhe espalhasse na cara e mostrou

o ar de quem tinha acabado de ver coroada de êxito uma difícil

experiência de laboratório. sendo assim, interveio um filósofo da ala

optimista, porquê vos assusta tanto que a morte tenha acabado, Não

sabemos se acabou, sabemos apenas que deixou de matar, não é o

mesmo, De acordo, mas, uma vez que essa dúvida não está resolvida,

mantenho a pergunta, Porque se os seres humanos não morressem tudo

passaria a ser permitido, E isso seria mau, perguntou o filósofo velho,

Tanto como não permitir nada. Houve um novo silêncio. Aos oito

homens sentados ao redor da mesa tinha sido encomendado que

reflectissem sobre as consequências de um futuro sem morte e que

construíssem a partir dos dados do presente uma previsão plausível das

novas questões com que a sociedade iria ter de enfrentar-se, além,

escusado seria dizer, do inevitável agravamento das questões velhas.

Melhor então seria não fazer nada, disse um dos filósofos optimistas, os

problemas do futuro, o futuro que os resolva, o pior é que o futuro é já

hoje, disse um dos pessimistas, temos aqui, entre outros, os memo-

randos elaborados pelos chamados lares do feliz ocaso, pelos hospitais,

pelas agências funerárias, pelas companhias de seguros, e, salvo o caso

29

destas, que sempre hão-de encontrar maneira de tirar proveito de

qualquer situação, há que reconhecer que as perspectivas não se

limitam a ser sombrias, são catastróficas, terríveis, excedem em perigos

tudo o que a mais delirante imaginação pudesse conceber, sem preten-

der ser irónico, o que nas actuais circunstâncias seria de péssimo gosto,

observou um integrante não menos conceituado do sector protestante,

parece-me que esta comissão já nasceu morta, os lares do feliz ocaso têm

razão, antes a morte que tal sorte, disse o porta-voz dos católicos, Que

pensam então fazer, perguntou o pessimista mais idoso, além de propor

a extinção imediata da comissão, como parece ser o Vosso desejo, Por

nossa parte, igreja católica, apostólica e romana, organizaremos uma

campanha nacional de orações para rogar a deus que providencie o

regresso da morte o mais rapidamente possível a fim de poupar a pobre

humanidade aos piores horrores, Deus tem autoridade sobre a morte,

perguntou um dos optimistas, são as duas caras da mesma moeda, de

um lado o rei, do outro a coroa, sendo assim, talvez tenha sido por

ordem de deus que a morte se retirou, A seu tempo conheceremos os

motivos desta provação, entretanto vamos pôr os rosários a trabalhar,

Nós faremos o mesmo, refiro-me às orações, claro está, não aos rosários,

sorriu o protestante, E também vamos fazer sair à rua em todo o país

procissões a pedir a morte, da mesma maneira que já as fazíamos ad

petendem pluviam, para pedir chuva, traduziu o católico, A tanto não

chegaremos nós, essas procissões nunca fizeram parte das manias que

cultivamos, tornou a sorrir o protestante. E nós, perguntou um dos

filósofos optimistas em um tom que parecia anunciar o seu próximo

ingresso nas fileiras contrárias, que vamos fazer a partir de agora,

quando parece que todas as portas se fecharam, Para começar, levantar

a sessão, respondeu o mais velho, E depois, Continuar a filosofar, já que

30

nascemos para isso, e ainda que seja sobre o vazio, Para quê, Para quê,

não sei, Então porquê, Porque a filosofia precisa tanto da morte como as

religiões, se filosofamos é por saber que morreremos, monsieur de

montaigne já tinha dito que filosofar é aprender a morrer.

Mesmo não sendo filósofos, ao menos no sentido mais comum do

termo, alguns haviam conseguido aprender o caminho. Paradoxal-

mente, não tanto a aprender a morrer eles próprios, porque ainda não

lhes teria chegado o tempo, mas a enganar a morte de outros, ajudando-

a. o expediente utilizado, como não tardará a ver-se, foi uma nova

manifestação da inesgotável capacidade inventiva da espécie humana.

Numa aldeia qualquer, a poucos quilómetros da fronteira com um dos

países limítrofes, havia uma família de camponeses pobres que tinha,

por mal dos seus pecados, não um parente, mas dois, em estado de vida

suspensa ou, como eles preferiam dizer, de morte parada. um deles era

um avô daqueles à antiga usança, um rijo patriarca que a doença havia

reduzido a um mísero farrapo, ainda que não lhe tivesse feito perder

por completo o uso da fala. o outro era uma criança de poucos meses a

quem não tinham tido tempo de ensinar nem a palavra vida nem a

palavra morte e a quem a morte real recusava dar-se a conhecer. Não

morriam, não estavam vivos, o médico rural que os visitava uma vez

por semana dizia que já nada podia fazer por eles nem contra eles, nem

sequer injectar-lhes, a um e a outro, uma boa droga letal, daquelas que

não há muito tempo teriam sido a solução radical para qualquer

problema. Quando muito, talvez pudesse empurrá-los um passo na

direcção aonde se supunha que a morte se encontraria, mas seria em

vão, inútil, porque nesse preciso instante, inalcançável como antes, ela

daria um passo atrás e guardaria a distância. A família foi pedir ajuda

ao padre, que ouviu, levantou os olhos ao céu e não teve outra palavra

31

para responder senão que todos estamos na mão de deus e que a

misericórdia divina é infinita. Pois sim, infinita será, mas não o

suficiente para ajudar o nosso pai e avô a morrer em paz nem para

salvar um pobre inocentinho que nenhum mal fez ao mundo. Nisto

estávamos, nem para a frente, nem para trás, sem remédio nem

esperança dele, quando o velho falou, Que se chegue aqui alguém,

disse, Quer água, perguntou uma das filhas, Não quero água, quero

morrer, Bem sabe que o médico diz que não é possível, pai, lembre-se

de que a morte acabou, o médico não entende nada, desde que o mundo

começou a ser mundo sempre houve uma hora e um lugar para morrer,

Agora não, Agora sim, sossegue, pai, que lhe sobe a febre, Não tenho

febre, e mesmo que a tivesse daria o mesmo, ouve-me com atenção,

Estou a ouvir, Aproxima-te mais, antes que se me quebre a voz, Diga. o

velho sussurrou algumas palavras ao ouvido da filha. Ela abanava a

cabeça, mas ele insistia e insistia. Isso não vai resolver nada, pai,

balbuciou ela estupefacta, pálida de espanto, Resolverá, E se não

resolver, Não perderemos nada por experimentar, E se não resolver, É

simples, trazem-me outra vez para casa, E o menino, o menino vai

também, se eu lá ficar, ficará comigo. A filha tentou pensar, lia-se-lhe na

cara a confusão, e finalmente perguntou, E por que não os trazemos e

enterramos aqui, Imagina o que seria, dois mortos em casa numa terra

onde ninguém, por mais que faça, consegue morrer, como o explicarias

tu, além disso, tenho as minhas dúvidas de que a morte, tal como estão

as cousas, nos deixasse regressar, É uma loucura, pai, Talvez seja, mas

não vejo outro meio para sair desta situação, Queremo-lo vivo, e não

morto, Mas não no estado em que me vês aqui, um vivo que está morto,

um morto que parece vivo, se é assim que quer, cumpriremos a sua

vontade, Dá-me um beijo. A filha beijou-o na testa e saiu a chorar. Dali,

32

lavada em lágrimas, foi anunciar ao resto da família que o pai havia

determinado que o levassem nessa mesma noite ao outro lado da

fronteira, lá onde, segundo a sua ideia, a morte, ainda em vigor nesse

país, não teria mais remédio que aceitá-lo. A notícia foi recebida com

um sentimento complexo de orgulho e resignação, orgulho porque não

é cousa de todos os dias ver um ancião oferecer-se assim, por seu

próprio pé, à morte que lhe foge, resignação porque perdido por um,

perdido por cem, que se lhe há-de fazer, contra o que tem de ser toda a

força sobra. Como está escrito que não se pode ter tudo na vida, o

corajoso velho deixará em seu lugar nada mais que uma família pobre e

honesta que certamente não se esquecerá de lhe honrar a memória. A

família não era só esta filha que saiu a chorar e a criança que não tinha

feito mal nenhum ao mundo, era também uma outra filha e o marido

respectivo, pais de três meninos felizmente de boa saúde, mais uma tia

solteira a quem já se lhe passou há muito a idade de casar. o outro

genro, marido da filha que saiu a chorar, está a viver num país distante,

emigrou para ganhar a vida e amanhã saberá que perdeu de uma só vez

o único filho que tinha e o sogro a quem estimava. É assim a vida, vai

dando com uma mão até que chega o dia em que tira tudo com a outra.

Que importam pouco a este relato os parentescos de uns tantos

camponeses que o mais provável é não voltarem a aparecer nele,

melhor que ninguém o sabemos, mas pareceu-nos que não estaria bem,

mesmo de um estrito ponto de vista técnico-narrativo, despachar em

duas rápidas linhas precisamente aquelas pessoas que irão ser

protagonistas de um dos mais dramáticos lances ocorridos nesta,

embora certa, inverídica história sobre as intermitências da morte. Aí

ficam, pois. Faltou-nos apenas dizer que a tia solteira ainda manifestou

uma dúvida, Que dirá a vizinhança, perguntou, quando der por que já

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não estão aqui aqueles que, sem morrer, à morte estavam. Em geral a tia

solteira não fala de uma maneira tão preciosa, tão rebuscada, mas se o

fez agora foi para não rebentar em lágrimas, que assim sucederia se

tivesse pronunciado o nome do menino que não tinha feito mal nenhum

ao mundo e as palavras meu irmão. Respondeu-lhe o pai dos outros três

meninos, Dizemos o que se passou e esperamos as consequências, pela

certa seremos acusados de fazer enterros clandestinos, fora do cemitério

e sem conhecimento das autoridades, e ainda por cima noutro país,

oxalá não comecem nenhuma guerra por causa disto, disse a tia.

Era quase meia-noite quando saíram a caminho da fronteira. Como

se suspeitasse de que algo de estranho estaria a tramar-se, a aldeia havia

tardado mais do que o costume a recolher aos lençóis. Por fim, o

silêncio tomou conta das ruas e as luzes das casas foram-se apagando

uma a uma. Amula foi atrelada à carroça, depois, com muito esforço,

apesar do pouco que pesava, o genro e as duas filhas fizeram descer o

avô, tranquilizaram-no quando ele, em voz sumida, perguntou se

levavam a pá e a enxada, Levamos, sim, esteja descansado, e logo a mãe

da criança subiu, tomou-a ao colo, disse Adeus meu filho que não te

torno a ver, e isto não era verdade, porque ela também iria na carroça

com a irmã e o cunhado, posto que três não seriam de mais para a

tarefa. A tia solteira não quis despedir-se dos viajantes que não

regressariam e fechou-se no quarto com os sobrinhos. Como os aros

metálicos das rodas da carroça causariam estrépito no empedrado

irregular da calçada, com grave risco de fazerem aparecer à janela os

moradores curiosos de saber aonde iriam os vizinhos àquela hora,

deram um rodeio por caminhos de terra até que chegaram finalmente à

estrada, fora da povoação. Não estavam muito longe da fronteira, mas o

pior era que a estrada não os levaria lá, em certa altura teriam de a

34

deixar e continuar por atalhos onde a carroça mal caberia, sem falar que

o último troço tinha de ser feito a pé, por assim dizer a corta-mato,

carregando com o avô sabe deus como. Felizmente o genro conhece

bem aquelas paragens porque, além de as ter calcorreado como caçador,

também, uma vez por outra, nelas havia exercido de contrabandista

amador. Tardaram quase duas horas a chegar ao ponto onde teriam de

deixar a carroça, e foi aí que o genro teve a ideia de levarem o avô em

cima da mula, fiado na firmeza dos jarretes do animal. Desatrelaram a

besta, aliviaram-na dos arreios supérfluos, e, com muito trabalho,

trataram de içar o velho. As duas mulheres choravam Ai o meu querido

pai, Ai o meu querido pai, e com as lágrimas ia-se-lhes a pouca força

que ainda lhes restava. o pobre homem estava meio inconsciente, como

se fosse já atravessando o primeiro umbral da morte. Não conseguimos,

exclamou com desespero o genro, mas de súbito lembrou-se de que a

solução seria montar primeiro ele próprio e puxá-lo depois para a cruz

da mula, à sua frente, Levo-o abraçado, não há outra maneira, vocês

ajudem daí. A mãe do menino foi à carroça ajeitar a pequena manta que

o cobria, não fosse o pobrezinho colher frio, e voltou para ajudar a irmã,

A uma, às duas, às três, disseram, mas foi como se nada, agora o corpo

pesava que parecia chumbo, não puderam fazer mais que soerguê-lo do

chão. Então deu-se uma cousa nunca vista, uma espécie de milagre, um

prodígio, uma maravilha. Como se por um instante a lei da gravidade

se tivesse suspendido ou passado a exercer-se ao contrário, de baixo

para cima, o avô escapou-se suavemente das mãos das filhas e, por si

mesmo, levitando, subiu para os braços estendidos do genro. o céu, que

desde o princípio da noite havia estado coberto de pesadas nuvens que

ameaçavam chuva, abriu-se e deixou aparecer a lua. Já podemos seguir,

disse o genro, falando para a mulher, tu conduzes a mula. A mãe do

35

menino abriu um pouco a manta para ver como estava o filho. As

pálpebras, cerradas, eram como duas pequenas manchas pálidas, o

rosto um desenho confuso. Então ela soltou um grito que varreu todo o

espaço ao redor e fez estremecer nas suas covas os bichos do mato, Não,

não serei eu quem leve o meu filho ao outro lado, não o trouxe à vida

para entregá-lo à morte por minhas próprias mãos, levem o pai, eu fico

aqui. A irmã veio para ela e perguntou-lhe, Preferes assistir, um ano

atrás de outro, à sua agonia, Tens três filhos com saúde, falas de farta, o

teu filho é como se fosse meu, se é assim, leva-o tu, eu não posso, E eu

não devo, seria matá-lo, Qual é a diferença, Não é o mesmo levar à

morte e matar, pelo menos neste caso, tu és a mãe desse menino, não eu,

serias capaz de levar um dos teus filhos, ou todos eles, Penso que sim,

mas não o poderei jurar, Então a razão tenho-a eu, se é assim que

queres, espera-nos, nós vamos levar o pai. A irmã afastou-se, agarrou a

mula pela brida e perguntou, Vamos, o marido respondeu, Vamos, mas

devagar, não quero que se me caia. Alua, cheia, brilhava. Em algum

lugar, adiante, encontrava-se a fronteira, essa linha que só nos mapas é

visível. Como iremos saber que chegamos, perguntou a mulher, o pai o

saberá. Ela compreendeu e não fez mais perguntas. Continuaram a

andar, ainda cem metros, ainda dez passos, e de súbito o homem disse,

Chegamos, Acabou, sim. Atrás deles uma voz repetiu, Acabou. A mãe

do menino amparava pela última vez o filho morto no regaço do seu

braço esquerdo, a mão direita segurava ao ombro a pá e a enxada de

que os outros se tinham esquecido. Andemos um pouco mais, até

àquele freixo, disse o cunhado. Ao longe, numa encosta, distinguiam-se

as luzes de uma povoação. Pelo pisar da mula percebia-se que a terra se

tornara macia, deveria ser fácil de cavar. Este sítio parece-me bom, disse

por fim o homem, a árvore servir-nos-á de sinal para quando viermos

36

trazer-lhes umas flores. A mãe do menino deixou cair a enxada e a pá e,

suavemente, deitou o filho no chão. Depois, as duas irmãs, com mil

cautelas para que não resvalasse, receberam o corpo do pai e, sem

esperarem a ajuda do homem que já descia da mula, foram colocá-lo ao

lado do neto. A mãe do menino soluçava, repetia monotonamente, Meu

filho, meu pai, e a irmã veio e abraçou-se a ela, chorando também e

dizendo, Foi melhor assim, foi melhor assim, a vida destes infelizes já

não era vida. Ajoelharam-se ambas no chão a prantear os mortos que

tinham vindo a enganar a morte. o homem já manejava a enxada,

cavava, retirava com a pá a terra solta, e logo voltava a cavar. Para

baixo a terra era mais dura, mais compacta, algo pedregosa, só ao cabo

de meia hora de trabalho contínuo a cova ganhou profundidade

suficiente. Não havia caixão nem mortalha, os corpos descansariam

sobre a terra estreme, somente com as roupas que traziam postas.

unindo as forças, o homem e as duas mulheres, ele dentro da cova, elas

fora, uma de cada lado, fizeram descer devagar o corpo do velho, elas

sustentando-o pelos braços abertos em cruz, ele amparando-o até que

tocou o fundo. As mulheres não paravam de chorar, o homem tinha os

olhos secos, mas todo ele tremia, como se estivesse atacado de sezões.

Ainda faltava o pior. Entre lágrimas e gemidos, o menino foi descido,

arrumado ao lado do avô, mas ali não estava bem, um vultozinho

pequeno, insignificante, uma vida sem importância, deixado à parte

como se não pertencesse à família. Então o homem curvou-se, tomou a

criança do chão, deitou-a de bruços sobre o peito do avô, depois os

braços deste foram cruzados sobre o corpinho minúsculo, agora sim, já

estão acomodados, prepa-rados para o seu descanso, podemos começar

a lançar-lhes a terra para cima, com jeito, pouco a pouco, para que ainda

possam olhar-nos por algum tempo mais, para que possam despedir-se

37

de nós, ouçamos o que estão dizendo, adeus minhas filhas, adeus meu

genro, adeus meus tios, adeus minha mãe. Quando a cova ficou cheia, o

homem calcou e alisou a terra para que não se percebesse, se alguém

passasse por ali, que havia gente enterrada. Colocou uma pedra à

cabeceira e outra mais pequena aos pés, a seguir espalhou sobre a cova

as ervas que havia cortado antes com a enxada, outras plantas, vivas,

em poucos dias virão tomar o lugar destas que, murchas, mortas,

ressequidas, entrarão no ciclo alimentar da mesma terra de que haviam

brotado. o homem mediu a passos largos a distância entre a árvore e a

cova, doze foram, depois pôs ao ombro a pá e a enxada, Vamos, disse. A

lua desaparecera, o céu estava outra vez coberto. Começou a chover

quando acabavam de atrelar a mula à carroça.

Os actores do dramático lance que acaba de ser descrito com

desusada minúcia num relato que até agora havia preferido oferecer ao

leitor curioso, por assim dizer, uma visão panorâmica dos factos, foram,

quando da sua inopinada entrada em cena, socialmente classificados

como camponeses pobres. o erro, resultante de uma impressão precipi-

tada do narrador, de um exame que não passou de superficial, deverá,

por respeito à verdade, ser imediatamente rectificado. uma família

camponesa pobre, das realmente pobres, nunca chegaria a ser

proprietária de uma carroça nem teria posses para sustentar um animal

de tanto alimento como é a mula. Tratava-se, sim, de uma família de

pequenos agricultores, gente remediada na modéstia do meio em que

viviam, pessoas com educação e instrução escolar suficiente para

poderem manter entre si diálogos não só gramaticalmente correctos,

mas também com aquilo a que, à falta de melhor, alguns costumam

chamar conteúdo, outros substância, outros, mais terra-a-terra, miolo.

38

Se assim não fosse, nunca jamais a tia solteira teria sido capaz de pôr de

pé aquela tão formosa frase antes comentada. Que dirá a vizinhança

quando der por que já não estão aqui aqueles que, sem morrer, à morte

estavam. Corrigido a tempo o lapso, posta a verdade no seu lugar,

vejamos então o que disse a vizinhança. Apesar das precauções

tomadas, alguém vira a carroça e estranhara a saída daqueles três a tais

horas. Precisamente foi essa a pergunta que o vizinho vigilante fizera

mentalmente, Aonde irão aqueles três a esta hora da noite, repetida na

manhã seguinte, com uma pequena mudança, ao genro do velho

agricultor, Aonde iam vocês àquela hora da noite. o interpelado

respondeu que tinham ido tratar de um assunto, mas o vizinho não se

deu por satisfeito, um assunto à meia-noite, de carroça, com a tua

mulher e a tua cunhada, caso raro, disse ele, será raro, mas foi assim

mesmo, E donde vinham vocês quando o céu já começava a clarear,

Não é da tua conta, Tens razão, desculpa, realmente não é da minha

conta, mas em todo o caso suponho que te posso perguntar como se

encontra o teu sogro, Na mesma, E o teu sobrinho pequeno, Também,

Ah, estimo as melhoras de ambos, obrigado, Até logo, Até logo. o

vizinho deu uns passos, parou, voltou atrás, Pareceu-me ver que

levavam algo na carroça, pareceu-me ver que a tua irmã tinha uma

criança ao colo, e, se assim era, então o mais provável é que o vulto

deitado que me pareceu ver, coberto com uma manta, fosse o teu sogro,

tanto mais, Tanto mais, quê, Tanto mais que no regresso a carroça vinha

vazia e a tua irmã não trazia nenhuma criança ao colo, Pelos vistos, não

dormes de noite, Tenho o sono leve, acordo com facilidade, Acordaste

quando nos fomos, acordaste quando voltámos, a isso se chama

coincidência, Assim é, E queres que te diga o que se passou, se essa for a

tua vontade, Vem comigo. Entraram em casa, o vizinho cumprimentou

39

as três mulheres, Não quero incomodar, disse contrafeito, e esperou.

serás a primeira pessoa a saber, disse o genro, e não terás de guardar

segredo porque não to vamos pedir, Não digas senão o que realmente

queiras dizer, o meu sogro e o meu sobrinho morreram esta noite,

levámo-los ao outro lado da fronteira, lá onde a morte continua em

actividade, Mataram-nos, exclamou o vizinho, De certa maneira, sim,

uma vez que eles não poderiam ter ido por seu pé, de certa maneira,

não, porque o fizemos por ordem do meu sogro, quanto ao menino,

pobrezinho, esse não tinha querer nem vida para viver, ficaram

enterrados ao pé de um freixo, podia dizer-se que abraçados um ao

outro. o vizinho levou as mãos à cabeça, E agora, Agora tu vais contá-lo

a toda a aldeia, seremos presos e levados à polícia, provavelmente

julgados e condenados pelo que não fizemos, Fizeram, sim, um metro

antes da fronteira ainda estavam vivos, um metro depois já estavam

mortos, diz-me tu quando foi que os matámos, e como, se não os

tivessem levado, sim, estariam aqui, esperando a morte que não vinha.

Caladas, serenas, as três mulheres olhavam o vizinho. Vou-me embora,

disse ele, realmente desconfiava de que algo tinha acontecido, mas

nunca pensei que fosse isto, Tenho um pedido a fazer-te, disse o genro,

Qual, Que me acompanhes à polícia, assim não terás tu que ir de porta

em porta, por aí, a contar às pessoas os horríveis crimes que cometemos,

imagine-se, parricídio, infanticídio, santo deus, que monstros vivem

nesta casa, Não o contaria dessa maneira, Bem sei, acompanhas-me,

Quando, Agora mesmo, o ferro deve bater-se enquanto está quente,

Vamos.

Não foram nem condenados nem julgados. Como um rastilho, a

notícia correu veloz por todo o país, os meios de comunicação

vituperaram os infames, as irmãs assassinas, o genro instrumento do

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crime, choraram-se lágrimas sobre o ancião e o inocentinho como se eles

fossem o avô e o neto que toda a gente desejaria ter tido, pela milésima

vez jornais bem pensantes que actuavam como barómetros da

moralidade pública apontaram o dedo à imparável degradação dos

valores tradicionais da família, fonte, causa e origem de todos os males

em sua opinião, e eis senão quando quarenta e oito horas depois

começaram a chegar informações sobre práticas idênticas que estavam a

ocorrer em todas as regiões fronteiriças. outras carroças e outras mulas

levaram outros corpos inermes, falsas ambulâncias deram voltas e

voltas por azinhagas abandonadas para chegarem ao lugar onde

deviam descarregá-los, atados no trajecto, em geral, pelos cintos de

segurança ou, em algum censurável caso, escondidos nos porta-

bagagens e tapados com uma manta, carros de todas as marcas,

modelos e preços transportaram a essa nova guilhotina cujo fio, com

perdão da comparação libérrima, era a finíssima linha da fronteira,

invisível a olho nu, aqueles infelizes a quem a morte, no lado de cá,

havia mantido em situação de pena suspensa. Nem todas as famílias

que assim procederam poderiam alegar em sua defesa os motivos de

algum modo respeitáveis, ainda que obviamente discutíveis,

apresentados pelos nossos conhecidos e angustiados agricultores que,

muito longe de imaginarem as consequências, haviam dado início ao

tráfico. Algumas não quiseram ver no expediente de ir despejar o pai ou

o avô em território estrangeiro senão uma maneira limpa e eficaz,

radical seria um termo mais exacto, de se verem livres dos autênticos

pesos mortos que os seus moribundos eram lá em casa. os meios de

comunicação que antes tinham vituperado energicamente as filhas e o

genro do velho enterrado com o neto, incluindo depois nessa

reprovação a tia solteira, acusada de cumplicidade e conivência,

41

estigmatizavam agora a crueldade e a falta de patriotismo de pessoas

aparentemente decentes que nesta circunstância de gravíssima crise

nacional tinham deixado cair a máscara hipócrita por trás da qual

escondiam o seu verdadeiro carácter. Apertado pelos governos dos três

países limítrofes e pela oposição política interna, o chefe do governo

condenou a desumana acção, apelou ao respeito pela vida e anunciou

que as forças armadas tomariam imediatamente posições ao longo da

fronteira para impedir a passagem de qualquer cidadão em estado de

diminuição física terminal, quer fosse o intento de sua própria

iniciativa, quer determinado por arbitrária decisão de parentes. No

fundo, no fundo, mas disto, claro está, não ousou falar o primeiro-

ministro, o governo não via com tão maus olhos um êxodo que, em

última análise, serviria o interesse do país na medida em que ajudaria a

baixar uma pressão demográfica em aumento contínuo desde há três

meses, embora ainda longe de atingir níveis realmente inquietantes.

Também não disse o chefe do governo que nesse mesmo dia se havia

reunido discretamente com o ministro do interior a fim de planear a

colocação de vigilantes, ou espias, em todas as localidades do país,

cidades, vilas e aldeias, com a missão de comunicarem às autoridades

qualquer movimento suspeito de pessoas afins a padecentes em

situação de morte suspensa. A decisão de intervir ou não intervir seria

ponderada caso por caso, uma vez que não era objectivo do governo

travar totalmente este surto migratório de novo tipo, mas sim dar uma

satisfação parcial às preocupações dos governos dos países com

fronteiras comuns, o suficiente para calarem por um tempo as

reclamações. Não estamos aqui para fazer o que eles querem, disse com

autoridade o primeiro-ministro, Ainda vão ficar fora do plano os

pequenos casarios, as herdades, as casas isoladas, notou o ministro do

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interior, A esses vamos deixá-los à vontade, que façam o que

entenderem, bem sabe, meu caro ministro, por experiência, que é

impossível colocar um polícia ao pé de cada pessoa.

Durante duas semanas o plano funcionou mais ou menos na

perfeição, mas, a partir daí, uns quantos vigilantes começaram a

queixar-se de que estavam a receber ameaças pelo telefone, cominando-

os, se queriam viver uma vida tranquila, a fazerem vista grossa ao

tráfico clandestino de padecentes terminais, e mesmo a fechar os olhos

por completo se não queriam aumentar com o seu próprio corpo a

quantidade das pessoas de cuja observação haviam sido encarregados.

Não eram palavras vãs, como logo se viu quando as famílias de quatro

vigilantes foram avisadas por telefonemas anónimos de que deveriam ir

recolhê-los em sítios determinados. Tal como se encontravam, isto é,

não mortos, mas também não vivos. Perante a gravidade da situação, o

ministro do interior decidiu mostrar o seu poder ao desconhecido

inimigo, ordenando, por um lado, que os espias intensificassem a acção

investigadora, e, por outro lado, cancelando o sistema de conta-gotas,

este sim, este não, que vinha sendo aplicado de acordo com a táctica do

primeiro-ministro. A resposta foi imediata, outros quatro vigilantes

sofreram a triste sorte dos anteriores, mas, neste caso, não houve mais

que uma chamada telefónica, dirigida ao próprio ministério do interior,

o que poderia ser interpretado como uma provocação, mas igualmente

como uma acção determinada pela pura lógica, como quem diz Nós

existimos. A mensagem, porém, não ficou por aqui, trazia anexa uma

proposta construtiva, Estabeleçamos um acordo de cavalheiros, disse a

voz do outro lado, o ministério manda retirar os vigilantes e nós

encarregamo-nos de transportar discretamente os padecentes, Quem

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são vocês, perguntou o director de serviço que atendera a chamada,

Apenas um grupo de pessoas amantes da ordem e da disciplina, gente

altamente competente na sua especialidade, que detesta confusões e

cumpre sempre o que promete, gente honesta, enfim, E esse grupo tem

nome, quis saber o funcionário, Há quem nos chame máphia, com ph,

Porquê com ph, Para nos distinguirmos da outra, da clássica, o estado

não faz acordos com máfias, Em papéis com assinaturas reconhecidas

por notário, certamente que não, Nem esses nem outros, Que cargo é o

seu, sou director de serviço, Quer dizer, alguém que não conhece nada

da vida real, Tenho as minhas responsabilidades, A única que nos

interessa neste momento é que faça chegar a proposta a quem de

direito, ao ministro, se a ele tem acesso, Não tenho acesso ao senhor

ministro, mas esta conversação será imediatamente transmitida à

hierarquia, o governo terá quarenta e oito horas para estudar a

proposta, nem um minuto mais, mas previna já a sua hierarquia de que

haverá novos vigilantes em coma se a resposta não for a que esperamos,

Assim farei, Depois de amanhã, a esta mesma hora, voltarei a telefonar

para conhecer a decisão. Tomei nota, Foi um prazer falar consigo, Não

poderei eu dizer o mesmo, Estou certo de que começará a mudar de

opinião quando souber que os vigilantes regressaram sãos e salvos a

suas casas, se ainda não se esqueceu das orações da sua infância, vá

rezando para que isso aconteça, Compreendo, sabia que compreenderia,

Assim é, Quarenta e oito horas, nem um minuto a mais, Com certeza

não serei eu a atendê-lo, Pois eu tenho a certeza de que sim, Porquê,

Porque o ministro não quererá falar directamente comigo, além disso, se

as cousas correrem mal será você a carregar com as culpas, lembre-se de

que o que propomos é um acordo de cavalheiros, sim senhor, Boas

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tardes, Boas tardes. O director de serviço retirou a fita magnética do

gravador e foi falar com a hierarquia.

Meia hora depois a cassete estava nas mãos do ministro do interior.

Este ouviu, tornou a ouvir, ouviu terceira vez, depois perguntou, Esse

seu director de serviço é pessoa de confiança, Até hoje não tive a menor

razão de queixa, respondeu a hierarquia, Também nem a maior, espero,

Nem a maior nem a menor, disse a hierarquia, que não tinha percebido

a ironia. o ministro retirou a cassete do gravador e pôs-se a desenrolar a

fita. Quando terminou, juntou-a num grande cinzeiro de cristal e

chegou-lhe a chama do isqueiro. A fita começou a enrugar-se, a

encarquilhar-se, e em menos de um minuto estava transformada num

enredado enegrecido, quebradiço e informe. Eles também devem ter

gravado o diálogo com o director de serviço, disse a hierarquia, Não

importa, qualquer poderia simular uma conversação ao telefone, para

isso bastavam duas vozes e um gravador, o que contava, aqui, era

destruir a nossa fita, queimado o original ficaram de antemão

queimadas todas as cópias que a partir dele se poderiam vir a fazer,

Não necessita que lhe diga que a operadora telefónica conserva os

registos, Providenciaremos para que esses desapareçam também, sim

senhor, agora, se me permite, retiro-me, deixo-o a pensar no assunto, Já

está pensado, não se vá embora, Realmente não me surpreende, o

senhor ministro goza do privilégio de ter um pensamento agilíssimo, o

que acaba de dizer seria uma lisonja se não fosse realidade, é verdade,

penso com rapidez, Vai aceitar a proposta, Vou fazer uma contra-

proposta, Temo que eles não a aceitem, os termos em que o emissário

falou, além de peremptórios, eram mais do que ameaçadores, haverá

novos vigilantes em coma se a resposta não vier a ser a que esperamos,

45

estas foram as palavras, Meu caro, a resposta que vamos dar-lhes é

precisamente a que esperam, Não compreendo, Meu caro, o seu

problema, digo-o sem ânimo de ofender, é não ser capaz de pensar

como um ministro, Culpa minha, lamento, Não lamente, se alguma vez

o chamarem a servir o país em funções ministeriais perceberá que o

cérebro lhe dará uma volta no preciso momento em que se sentar numa

cadeira como esta, nem imagina a diferença, Também não ganharia

nada em criar fantasias, sou um funcionário, Conhece o ditado antigo,

nunca digas desta água não beberei, Agora mesmo tem aí o senhor

ministro uma água bastante amarga para beber, disse a hierarquia

apontando os restos da fita queimada, Quando se segue uma estratégia

bem definida e se conhecem com suficiência os dados da questão, não é

difícil traçar uma linha de acção segura, sou todo ouvidos, senhor

ministro, Depois de amanhã, o seu director de serviço, uma vez que

será ele quem irá responder ao emissário, é ele o negociador por parte

do ministério, e ninguém mais, dirá que concordámos em examinar a

proposta que nos fizeram, mas imediatamente adiantará que a opinião

pública e a oposição ao governo jamais permitiriam que esses milhares

de vigilantes fossem retirados da sua missão sem uma explicação

aceitável, E está claro que a explicação aceitável não poderia ser que a

máphia passou a tomar conta do negócio, Assim é, embora o mesmo

pudesse ter sido dito em termos mais escolhidos, Desculpe, senhor

ministro, saiu-me sem pensar, Bem, chegados a este ponto, o director de

serviço apresentará a contraproposta, a que também poderemos chamar

sugestão alternativa, isto é, os vigilantes não serão retirados, permane-

cerão nos lugares onde agora se encontram, mas desactivados,

Desactivados, sim, creio que a palavra é bastante clara, sem dúvida,

senhor ministro, apenas manifestei a minha surpresa, Não vejo de quê,

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é a única maneira que temos de não parecer que cedemos à chantagem

desse bando de patifes, Ainda que em realidade tenhamos cedido, o

importante é que não pareça, que mantenhamos a fachada, o que

acontecer por trás dela já não será da nossa responsabilidade, Por

exemplo, Imaginemos que interceptamos agora um transporte e pren-

demos os tipos, não é preciso dizer que esses riscos já estavam incluídos

na factura que os parentes tiveram de pagar, Não haverá factura nem

recibo, a máphia não paga impostos, É uma maneira de falar, o que

interessa neste caso é o facto de que todos acabaremos ganhando, nós,

que nos tiramos um peso de cima, os vigilantes, que não voltarão a ser

lesados na sua integridade física, as famílias, que descansarão sabendo

que os seus mortos-vivos se converteram finalmente em vivos-mortos, e

a máphia, que cobrará pelo trabalho, um arranjo perfeito, senhor

ministro, Que aliás conta com a fortíssima garantia de que ninguém

estará interessado em abrir a boca, Creio que tem razão, Talvez, meu

caro, o seu ministro lhe esteja parecendo demasiado cínico, De modo

algum, senhor ministro, só admiro a rapidez com que conseguiu pôr

tudo isso de pé, tão firme, tão lógico, tão coerente, A experiência, meu

caro, a experiência, Vou falar com o director de serviço, transmitir-lhe

as suas instruções, estou convencido de que dará boa conta do recado,

tal como eu tinha dito antes, nunca me deu a menor razão de queixa,

Nem a maior, creio, Nem nenhumas destas nem nenhumas daquelas,

respondeu a hierarquia, que tinha compreendido enfim a finura do

jocoso toque.

Tudo, ou quase tudo, para sermos mais precisos, se passou como o

ministro havia previsto. Exactamente à hora marcada, nem um minuto

antes, nem um minuto depois, o emissário da associação de delin-

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quentes que a si mesma se denomina máphia telefonou para ouvir o

que o ministério tinha para dizer. o director de serviço desobrigou-se

com nota alta da incumbência que lhe havia sido adjudicada, foi firme e

claro, persuasivo na questão fundamental, isto é, os vigilantes permane-

ceriam nos seus lugares, porém desactivados, e teve a satisfação de

receber em troca, e logo transmitir à hierarquia, a melhor das respostas

possíveis na actual circunstância, a de que a sugestão alternativa do

governo iria ser atentamente examinada e de que passadas vinte e

quatro horas seria feita outra chamada. Assim sucedeu. Do exame tinha

resultado que a proposta do governo poderia ser aceite, mas com uma

condição, a de que só deveriam ser desactivados os vigilantes que se

mantivessem leais ao governo, ou, por outras palavras, aqueles a quem

a máphia, simplesmente, não tivesse convencido a colaborar com o

novo patrão, isto é, ela própria. Façamos um esforço para entender o

ponto de vista dos criminosos. Colocados perante uma complexa

operação de longa duração e à escala nacional, e tendo de empregar

uma boa parte do seu mais experimentado pessoal nas visitas às

famílias que em princípio estariam inclinadas a desfazer-se dos seus

entes queridos para louvavelmente os poupar a sofrimentos não só

inúteis, como eternos, estava mui claro que lhes conviria, na medida do

possível, e utilizando para tal as suas armas preferidas, corrupção,

suborno, intimidação, aproveitar os serviços da gigantesca rede de

informadores já montada pelo governo. Foi contra esta pedra de súbito

atirada ao meio do caminho que a estratégia do ministro do interior

esbarrou com grave dano para a dignidade do estado e do governo.

Entalado entre a espada e a parede, entre sila e caribdes, entre a cruz e a

caldeirinha, correu a consultar o primeiro-ministro sobre o inesperado

nó górdio surgido. o pior de tudo era que as cousas haviam ido

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demasiado longe para que se pudesse agora voltar atrás. o chefe do

governo, apesar de mais experiente que o ministro do interior, não

encontrou melhor saída para a dificuldade que propor uma nova

negociação, agora com o estabelecimento de uma espécie de numerus

clausus, qualquer cousa como o máximo de vinte e cinco por cento do

número total de vigilantes em actividade que passariam a trabalhar

para a outra parte. Mais uma vez viria a caber ao director de serviço

transmitir a um interlocutor já impaciente a plataforma conciliatória

com a qual, forçados pela sua própria ansiedade a acalentar esperanças,

o chefe do governo e o ministro do interior acreditavam que o acordo

viria a ser finalmente homologado. sem assinaturas, uma vez que se

tratava de um acordo de cavalheiros, desses em que é suficiente o

simples empenho da palavra, prescindindo, como nos explica o

dicionário, de formalidades legais. Era não fazer a menor ideia do

retorcido e maligno que é o espírito dos maphiosos. Em primeiro lugar,

não marcaram um prazo para a resposta, deixando sobre áscuas o pobre

do ministro do interior, já resignado a entregar a sua carta de demissão.

Em segundo lugar, quando ao cabo de vários dias lhes ocorreu que

deviam telefonar foi somente para dizer que ainda não haviam chegado

a nenhuma conclusão sobre se a plataforma seria toleravelmente

conciliatória para eles, e, de passagem, assim como quem não quer a

cousa, aproveitaram a ocasião para informar que não tinham qualquer

responsabilidade no facto lamentável de no dia anterior terem sido

encontrados em péssimo estado de saúde mais quatro vigilantes. Em

terceiro lugar, graças a que toda a espera tem seu fim, feliz ou infeliz ele

seja, a resposta que acabou por ser comunicada ao governo pela

direcção nacional maphiosa, via director de serviço e hierarquia,

dividia-se em dois pontos, a saber, ponto a, o numerus clausus não seria

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de vinte e cinco por cento, mas de trinta e cinco, ponto b, sempre que o

considerasse conveniente para os seus interesses, e sem necessidade de

prévia consulta às autoridades e menos ainda consentimento, a

organização exigia que lhe fosse reconhecido o direito de transferir

vigilantes ao seu próprio serviço para lugares onde se encontrassem

vigilantes desactivados, sendo escusado dizer que aqueles iriam ocupar

os lugares destes. Era pegar ou largar. Vê alguma maneira de fugir a

esta disjuntiva, perguntou o chefe do governo ao ministro do interior,

Não creio sequer que ela exista, senhor, se recusarmos, calculo que

iremos ter quatro vigilantes inutilizados para o serviço e para a vida em

cada dia que passe, se aceitarmos, ficaremos nas mãos dessa gente deus

sabe por quanto tempo, Para sempre, ou ao menos enquanto houver

famílias que se queiram ver livres a qualquer preço dos empecilhos que

têm lá em casa, Isso acaba de dar-me uma ideia, Não sei se deva

alegrar-me, Tenho feito o melhor que posso, senhor primeiro-ministro,

se me tornei num empecilho de outro tipo só tem que dizer uma

palavra, Adiante, não seja tão susceptível, que ideia é essa, Creio,

senhor primeiro-ministro, que nos encontramos perante um claríssimo

exemplo de oferta e procura, E isso a que propósito vem, estamos a falar

de pessoas que neste momento só têm uma maneira de morrer, Tal

como na dúvida clássica de saber o que apareceu primeiro, se o ovo, se

a galinha, também nem sempre é possível distinguir se foi a procura

que precedeu a oferta ou se, pelo contrário, foi a oferta que pôs em

movimento a procura, Estou a ver que não seria de má política tirá-lo da

pasta do interior e passá-lo para a economia, Não são assim tão

diferentes, senhor primeiro-ministro, da mesma maneira que no interior

existe uma economia, existe também na economia um interior, são

vasos comunicantes, por assim dizer, Não divague, diga-me qual é a

50

ideia, se àquela primeira família não lhe tivesse ocorrido que a solução

do problema podia estar à sua espera no outro lado da fronteira, talvez

a situação em que hoje nos encontramos fosse diferente, se muitas

famílias não lhe tivessem seguido o exemplo depois, a máphia não teria

aparecido a querer explorar um negócio que simplesmente não existiria,

Teoricamente assim é, ainda que, como sabemos, eles sejam capacíssi-

mos de espremer de uma pedra a água que lá não está e depois vendê-

la mais cara, de um modo ou outro continuo sem ver que ideia é essa

sua, É simples, senhor primeiro-ministro, oxalá o seja, Em poucas

palavras, estancar o caudal da oferta, E isso como se conseguiria,

Convencendo as famílias, em nome dos mais sagrados princípios de

humanidade, de amor ao próximo e de solidariedade, a ficar com os

seus enfermos terminais em casa, E como crê que poderá produzir esse

milagre, Estou a pensar numa grande campanha de publicidade em

todos os meios de difusão, imprensa, televisão e rádio, incluindo

desfiles de rua, sessões de esclarecimento, distribuição de panfletos e

autocolantes, teatro de rua e de sala, cinema, sobretudo dramas

sentimentais e desenhos animados, uma campanha capaz de emocionar

até às lágrimas, uma campanha que leve ao arrependimento os parentes

desencaminhados dos seus deveres e obrigações, que torne as pessoas

solidárias, abne-gadas, compassivas, estou convencido de que em

pouquíssimo tempo as famílias pecadoras se tornariam conscientes da

imperdoável crueza do seu actual comportamento e regressariam aos

valores transcendentes que ainda não há muito tempo eram os seus

mais sólidos alicerces, As minhas dúvidas aumentam a cada minuto,

agora pergunto-me se não deveria antes entregar-lhe a pasta da cultura,

ou a dos cultos, para a qual também lhe encontro certa vocação, ou

então, senhor primeiro-ministro, reunir as três pastas no mesmo

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ministério, E já agora também a de economia, sim, por aquilo dos vasos

comunicantes, Para o que não serviria, meu caro, seria para a

propaganda, essa ideia de uma campanha de publicidade que fizesse

regressar as famílias ao redil das almas sensíveis é um perfeito

disparate, Porquê, senhor primeiro-ministro, Porque, em realidade,

campanhas desse tipo só aproveitam a quem cobrou por elas, Temos

feito muitas, sim, com os resultados que se conhecem, além disso, para

tornar à questão que nos deve ocupar, ainda que a sua campanha viesse

a dar resultado, não seria nem para hoje nem para amanhã, e eu tenho

de tomar uma decisão agora mesmo, Aguardo as suas ordens, senhor

primeiro-ministro. o chefe do governo sorriu com desalento, Tudo isto é

ridículo, absurdo, disse, sabemos muito bem que não temos por onde

escolher e que as propostas que fizemos só serviram para agravar a

situação, sendo assim, sendo assim, e se não queremos carregar a

consciência com quatro vigilantes por dia empurrados à cacetada para o

portão de entrada da morte, não nos resta outro caminho que não seja

aceitar as condições que nos propuseram, Podíamos desencadear uma

operação policial relâmpago, uma captura fulminante, meter na cadeia

umas quantas dezenas de maphiosos, talvez conseguíssemos fazê-los

recuar, A única maneira de liquidar o dragão é cortar-lhe a cabeça,

aparar-lhe as unhas não serve de nada, Para algo serviria, Quatro

vigilantes por dia, recorde, senhor ministro do interior, quatro

vigilantes por dia, melhor é reconhecer que nos encontramos atados de

pés e mãos, A oposição vai atacar-nos com a maior violência, acusar-

nos-ão de ter vendido o país à máphia, Não dirão país, dirão pátria, Pior

ainda, Esperemos que a igreja nos queira dar uma ajuda, imagino que

deverão ser receptivos ao argumento de que, além de lhe fornecermos

uns quantos mortos úteis, foi para salvar vidas que tomámos esta

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decisão, Já não se pode dizer salvar vidas, senhor primeiro-ministro,

isso era antes, Tem razão, vai ser preciso inventar outra expressão.

Houve um silêncio. Depois o chefe do governo disse, Acabemos com

isto, dê as necessárias instruções ao seu director de serviço e comece a

trabalhar no plano de desactivação, também precisamos de saber quais

são as ideias da máphia sobre a distribuição territorial dos vinte e cinco

por cento de vigilantes que constituirão o numerus clausus, Trinta e

cinco por cento, senhor primeiro-ministro, Não lhe agradeço que me

tenha recordado que a nossa derrota ainda foi maior do que aquela que

desde o princípio já parecia inevitável, É um dia triste, As famílias dos

quatro seguintes vigilantes, se soubessem o que se está a passar aqui,

não lhe chamariam assim, E pensarmos nós que esses quatro vigilantes

poderão estar amanhã a trabalhar para a máphia, Assim é a vida, meu

caro titular do ministério dos vasos comunicantes, Do interior, senhor

primeiro-ministro, do interior, Esse é o depósito central.

Poder-se-ia pensar que, após tantas e tão vergonhosas cedências

como haviam sido as do governo durante o sobe-e-desce das transac-

ções com a máphia, indo ao extremo de consentir que humildes e

honestos funcionários públicos passassem a trabalhar a tempo inteiro

para a organização criminosa, poder-se-ia pensar, dizíamos, que já não

seriam possíveis maiores baixezas morais. Infelizmente, quando se

avança às cegas pelos pantanosos terrenos da realpolitik, quando o

pragmatismo toma conta da batuta e dirige o concerto sem atender ao

que está escrito na pauta, o mais certo é que a lógica imperativa do

aviltamento venha a demonstrar, afinal, que ainda havia uns quantos

degraus para descer. Através do ministério competente, o da defesa,

chamado da guerra em tempos mais sinceros, foram despachadas

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instruções para que as forças do exército que haviam sido colocadas ao

longo da fronteira se limitassem a vigiar as estradas principais, em

especial aquelas que dessem saída para os países vizinhos, deixando

entregues à sua bucólica paz as de segunda e terceira categoria, e

também, por maioria de razões, a miúda rede dos caminhos vicinais,

das veredas, das azinhagas, dos carreiros e dos atalhos. Como não

podia deixar de ser, isto significou o regresso a quartéis da maior parte

dessas forças, o que, se é verdade ter dado um alegrão à tropa rasa,

incluindo cabos e furriéis, fartos, todos eles, de sentinelas e rondas

diurnas e nocturnas, veio causar, muito pelo contrário, um declarado

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