a cruel frase, tantas vezes repetida, que diz o passado, passado está, ele,
em compensação, graças ao que na linguagem corrente chamamos
consciência histórica, é de opinião que os vivos não deveriam nunca ser
separados dos mortos e que, no caso contrário, não só os mortos
ficariam para sempre mortos, como também os vivos só por metade
viveriam a sua vida, ainda que ela fosse mais longa que a de
matusalém, sobre quem há dúvidas de se morreu aos novecentos e
sessenta e nove anos como diz o antigo testamento masorético ou aos
setecentos e vinte como afirma o pentateuco samaritano. Certamente
nem toda a gente estará de acordo com a ousada proposta arquivística
do conservador de todos os nomes havidos e por haver, mas, pelo que
possa vir a valer no futuro, aqui a deixaremos consignada.
A morte examina o verbete e não encontra nele nada que não tivesse
visto antes, isto é, a biografia de um músico que já deveria estar morto
há mais de uma semana e que, apesar disso, continua tranquilamente a
viver no seu modesto domicílio de artista, com aquele seu cão preto que
sobe para o regaço das senhoras, o piano e o violoncelo, as suas sedes
nocturnas e o seu pijama às riscas. Tem de haver um meio de resolver
este bico-de-obra, pensou a morte, o preferível, claro está, seria que o
assunto pudesse arrumar-se sem se notar demasiado, mas se as altas
instâncias servem para algo, se não estão lá apenas para receber honras
e louvores, então têm agora uma boa ocasião para demonstrarem que
não são indiferentes a quem, cá em baixo, na planície, leva a cabo o
trabalho duro, que alterem o regulamento que decretem medidas
excepcionais, que autorizem, se for necessário chegar a tanto, uma acção
de legalidade duvidosa, qualquer cousa menos permitir que semelhante
157
escândalo continue. o curioso do caso é que a morte não tem nenhuma
ideia de quem sejam, em concreto, as tais altas instâncias que
supostamente lhe devem resolver o dito bico-deobra. É verdade que,
numa das suas cartas publicadas na imprensa, salvo erro a segunda, ela
se havia referido a uma morte universal que faria desaparecer não se
sabia quando todas as manifestações de vida do universo até ao último
micróbio, mas isso, além de tratar-se de uma obviedade filosófica
porque nada pode durar sempre, nem sequer a morte, resultava, em
termos práticos, de uma dedução de senso comum que desde há muito
circulava entre as mortes sectoriais, embora lhe faltasse a confirmação
de um conhecimento avalizado pelo exame e pela experiência. Já muito
faziam elas em conservar a crença numa morte geral que até hoje ainda
não havia dado nem o mais simples indício do seu imaginário poder.
Nós, as sectoriais, pensou a morte, somos as que realmente trabalhamos
a sério, limpando o terreno de excrescências, e, na verdade, não me
surpreenderia nada que, se o cosmo desaparecer, não seja em conse-
quência de uma proclamação solene da morte universal, retumbando
entre as galáxias e os buracos negros, mas sim como derradeiro efeito
da acumulação das mortezinhas particulares e pessoais que estão à
nossa responsabilidade, uma a uma. como se a galinha do provérbio,
em lugar de encher o papo grão a grão, grão a grão o fosse estupida-
mente esvaziando, que assim me parece mais que haverá de suceder
com a vida, que por si mesma vai preparando o seu fim, sem precisar de
nós, sem esperar que lhe dêmos uma mãozinha. É mais do que
compreensível a perplexidade da morte. Tinham-na posto neste mundo
há tanto tempo que já não consegue recordar-se de quem foi que rece-
beu as instruções indispensáveis ao regular desempenho da operação
de que a incumbiam. Puseram-lhe o regulamento nas mãos, apontaram-
158
lhe a palavra matarás como único farol das suas actividades futuras e,
sem que provavelmente se tivessem apercebido da macabra ironia,
disseram-lhe que fosse à sua vida. E ela foi, julgando que, em caso de
dúvida ou de algum improvável equívoco, sempre iria ter as costas
quentes, sempre haveria alguém, um chefe, um superior hierárquico,
um guia espiritual, a quem pedir conselho e orientação.
Não é crível, porém, e aqui entraremos enfim no frio e objectivo
exame que a situação da morte e do violoncelista vem requerendo, que
um sistema de informação tão perfeito como o que tem mantido estes
arquivos em dia ao longo de milénios, actualizando continuamente os
dados, fazendo aparecer e desaparecer verbetes consoante nasceste ou
morreste, não é crível, repetimos, que um sistema assim seja primitivo e
unidireccional, que a fonte informativa, lá onde quer que se encontre,
não esteja continuamente recebendo, por sua vez, os dados resultantes
das actividades quotidianas da morte em funções. E, se efectivamente
os recebe e não reage à extraordinária notícia de que alguém não
morreu quando devia, então uma de duas, ou o episódio, contra as
nossas lógicas e naturais expectativas, não lhe interessa e portanto não
se sente com a obrigação de intervir para neutralizar a perturbação
surgida no processo, ou então subentender-se-á que a morte, ao
contrário do que ela própria pensava, tem carta branca para resolver,
como bem entender, qualquer problema que lhe surgir no seu dia-a-dia
de trabalho. Foi necessário que esta palavra dúvida tivesse sido dita
aqui uma e duas vezes para que na memória da morte ecoasse
finalmente uma certa passagem do regulamento que, por estar escrita
em letra pequena e em rodapé, não atraía a atenção do estudioso e
muito menos a fixava. Largando o verbete do violoncelista, a morte
159
deitou mão ao livro. sabia que aquilo que procurava não era nos
apêndices nem nas adendas que se encontrava, que teria de estar na
parte inicial do regulamento, a mais antiga, e portanto a menos
consultada, como em geral sucede aos textos históricos básicos, e ali foi
dar com ela. Rezava assim, Em caso de dúvida, a morte em funções
deverá, no mais curto prazo possível, tomar as medidas que a sua
experiência lhe vier a aconselhar a fim de que seja irremissivelmente
cumprido o desideratum que em toda e qualquer circunstância sempre
deverá orientar as suas acções. Isto é, pôr termo às vidas humanas
quando se lhes extinguir o tempo que lhes havia sido prescrito ao
nascer, ainda que para esse efeito se torne necessário recorrer a métodos
menos ortodoxos em situações de uma anormal resistência do sujeito ao
fatal desígnio ou da ocorrência de factores anómalos obviamente
imprevisíveis na época em que este regulamento está a ser elaborado.
Mais claro, água. a morte tem as mãos livres para agir como melhor lhe
parecer. o que, assim o mostra o exame a que procedemos, não era
nenhuma novidade. E, se não, vejamos. Quando a morte, por sua conta
e risco, decidiu suspender a sua actividade a partir do dia um de janeiro
deste ano, não lhe passou pela oca cabeça a ideia de que uma instância
superior da hierarquia poderia pedir-lhe contas do bizarro despautério,
como igualmente não pensou na altíssima probabilidade de que a sua
pinturesca invenção das cartas de cor violeta fosse vista com maus
olhos pela referida instância ou outra mais acima. são estes os perigos
do automatismo das práticas, da rotina embaladora, da práxis cansada.
uma pessoa, ou a morte, para o caso tanto faz, vai cumprindo escrupu-
losamente o seu trabalho, um dia atrás de outro dia, sem problemas,
sem dúvidas, pondo toda a sua atenção em seguir as pautas superior-
mente estabelecidas, e se, ao cabo de um tempo, ninguém lhe aparece a
160
meter o nariz na maneira como desempenha as suas obrigações, é certo
e sabido que essa pessoa, e assim sucedeu também à morte, acabará por
comportar-se, sem que de tal se aperceba, como se fosse rainha e
senhora do que faz, e não só isso, também de quando e de como o deve
fazer. Esta é a única explicação razoável de porquê à morte não lhe
pareceu necessário pedir autorização à hierarquia quando tomou e pôs
em execução as transcendentes decisões que conhecemos e sem as quais
este relato, feliz ou infelizmente, não poderia ter existido. E que nem
sequer nisso pensou. E agora, paradoxalmente, é no justo momento em
que não cabe em si de contentamento por descobrir que o poder de
dispor das vidas humanas é, afinal, unicamente seu e de que dele não
terá que dar satisfações a ninguém. nem hoje nem nunca, é quando os
fumos da glória ameaçam entontecê-la, que não consegue evitar aquela
receosa reflexão de uma pessoa que, mesmo a ponto de ser apanhada
em falta, milagrosamente havia escapado no último instante, Do que eu
me livrei.
Apesar de tudo, a morte que agora se está levantando da cadeira é
uma imperatriz. Não deveria estar nesta gelada sala subterrânea, como
se fosse uma enterrada viva, mas sim no cimo da mais alta montanha
presidindo aos destinos do mundo, olhando com benevolência o
rebanho humano, vendo como ele se move e agita em todas as direcções
sem perceber que todas elas vão dar ao mesmo destino, que um passo
atrás o aproximará tanto da morte como um passo em frente, que tudo é
igual a tudo porque tudo terá um único fim, esse em que uma parte de
ti sempre terá de pensar e que é a marca escura da tua irremediável
humanidade. A morte segura na mão o verbete do músico. Está ciente
de que terá de fazer alguma cousa com ele, mas ainda não sabe bem o
161
quê. Em primeiro lugar deverá acalmar-se, pensar que não é agora mais
morte do que era antes, que a única diferença entre hoje e ontem é ter
maior certeza de o ser. Em segundo lugar, o facto de finalmente poder
ajustar as suas contas com o violoncelista não é motivo para se esquecer
de enviar as cartas do dia. Pensou-o e instantaneamente duzentos e
oitenta e quatro verbetes apareceram em cima da mesa, metade eram
homens. metade eram mulheres, e com eles duzentas e oitenta e quatro
folhas de papel e duzentos e oitenta e quatro sobrescritos. A morte
voltou a sentar-se, pôs de lado o verbete do músico e começou a escre-
ver. uma ampulheta de quatro horas teria deixado cair o derradeiro
grão de areia precisamente quando ela acabou de assinar a ducentésima
octogésima quarta carta. Uma hora depois os sobrescritos estavam
fechados. prontos para a expedição. A morte foi buscar a carta que três
vezes havia sido enviada e três vezes havia vindo devolvida e colocou-a
sobre a pilha dos sobrescritos de cor violeta, Vou dar-te uma última
oportunidade, disse. Fez o gesto do costume com a mão esquerda e as
cartas desapareceram. Ainda dez segundos não tinham passado quando
a carta do músico, silenciosamente, reapareceu em cima da mesa. Então
a morte disse, Assim o quiseste, assim o terás.
Riscou no verbete a data de nascimento e passou-a para um ano
depois, a seguir emendou a idade, onde estava escrito cinquenta
corrigiu para quarenta e nove. Não podes fazer isso, disse de lá a
gadanha, Já está feito, Haverá consequências, uma só, Qual, A morte,
enfim, do maldito violoncelista que se anda a divertir à minha custa,
Mas ele, coitado, ignora que já tinha de estar morto, Para mim é como se
o soubesse, seja como for, não tens poder nem autoridade para emendar
um verbete, Enganas-te, tenho todos os poderes e toda a autoridade,
sou a morte, e toma nota de que nunca o fui tanto como a partir deste
162
dia, Não sabes no que te vais meter, avisou a gadanha, Em todo o
mundo há um só lugar onde a morte não se pode meter, Que lugar, Esse
a que chamam urna, caixão, tumba, ataúde, féretro, esquife, aí não entro
eu, aí só os vivos entram, depois de que eu os mate, claro, Tantas
palavras para uma só e triste cousa, É o costume desta gente, nunca
acabam de dizer o que querem.
A morte tem um plano. A mudança no ano de nascimento do músico
não foi senão o movimento inicial de uma operação em que, podemos
adiantá-lo desde já, serão empregados meios absolutamente excepcio-
nais, jamais usados em toda a história das relações da espécie humana
com a sua figadal inimiga. Como num jogo de xadrez, a morte avançou
a rainha. uns quantos lances mais deverão abrir caminho ao xeque-mate
e a partida terminará.
Poder-se-á agora perguntar por que não regressa a morte ao statu
quo ante, quando as pessoas morriam simplesmente porque tinham de
morrer, sem precisarem de esperar que o carteiro lhes trouxesse uma
carta de cor violeta. A pergunta tem a sua lógica, mas a resposta não a
terá menos. Trata-se, em primeiro lugar, de uma questão de pundonor,
de brio, de orgulho profissional, porquanto, aos olhos de toda a gente,
regressar a morte à inocência daqueles tempos seria o mesmo que
reconhecer a sua derrota. uma vez que o processo actualmente em vigor
é o das cartas de cor violeta, então terá de ser por via dele que o violon-
celista irá morrer. Bastará que nos imaginemos no lugar da morte para
compreendermos a bondade das suas razões. Claro que, como por
quatro vezes tivemos ocasião de ver, o magno problema de fazer chegar
a já cansada carta ao destinatário subsiste, e é aí que, para lograr o
almejado desiderato, entrarão em acção os meios excepcionais a que
163
aludimos acima. Não antecipemos, porém, os factos, observemos o que
a morte faz neste momento. A morte, neste preciso momento, não faz
nada mais do que aquilo que sempre fez, isto é, empregando uma
expressão corrente, anda por aí, embora, a falar verdade, fosse mais
exacto dizer que a morte está, não anda.
Ao mesmo tempo, e em toda aparte. Não necessita de correr atrás
das pessoas para as apanhar, sempre estará onde elas estiverem.
Agora, graças ao método do aviso por correspondência, poderia
deixar-se ficar tranquilamente na sala subterrânea e esperar que o
correio se encarregasse do trabalho, mas a sua natureza é mais forte,
precisa de se sentir livre, desafogada. Como já dizia o ditado antigo,
galinha do mato não quer capoeira. Em sentido figurado, portanto, a
morte anda no mato. Não tornará a cair na estupidez, ou na
indesculpável fraqueza, de reprimir o que em si há de melhor, a sua
ilimitada virtude expansiva, portanto não repetirá a penosa acção de se
concentrar e manter no último limiar do visível, sem passar para o outro
lado, como havia feito na noite passada, sabe deus com que custo,
durante as horas que permaneceu em casa do músico. Presente, como
temos dito mil e uma vezes, em toda a parte, está lá também. o cão
dorme no quintal, ao sol, esperando que o dono regresse ao lar. Não
sabe aonde ele foi nem o que foi fazer, e a ideia de lhe seguir o rasto, se
alguma vez o tentou, é algo em que já deixou de pensar, tantos e tão
desorientadores são os bons e maus cheiros de uma cidade capital.
Nunca pensamos que aquilo que os cães conhecem de nós são outras
cousas de que não fazemos a menor ideia. A morte, essa, sim, sabe que
o violoncelista está sentado no palco de um teatro, à direita do maestro,
no lugar que corresponde ao instrumento que toca, vê-o mover o arco
com a mão destra, vê a mão esquerda, esquerda mas não menos destra
164
que a outra, a subir e a descer ao longo das cordas, tal como ela própria
havia feito meio às escuras, apesar de nunca ter aprendido música, nem
sequer o mais elementar dos solfejos, o chamado três por quatro. o
maestro interrompeu o ensaio, repenicou a batuta na borda do atril para
um comentário e uma ordem, pretende que nesta passagem os violon-
celos, justamente os violoncelos, se façam ouvir sem parecer que soam,
uma espécie de charada acústica que os músicos dão mostras de haver
decifrado sem dificuldade, a arte é assim, tem cousas que parecem de
todo impossíveis ao profano e afinal de contas não o eram. A morte,
escusado será dizer, enche o teatro todo até ao alto, até às pinturas
alegóricas do tecto e ao imenso lustre agora apagado, mas o ponto de
vista que neste momento prefere é o de um camarote acima do nível do
palco, fronteiro, ainda que um pouco de esguelha, aos naipes de cordas
de tonalidade grave, às violas, que são os contraltos da família dos violi-
nos, aos violoncelos, que correspondem ao baixo, e aos contrabaixos,
que são os da voz grossa. Está ali sentada, numa estreita cadeira forrada
de veludo carmesim, e olha fixamente o primeiro violoncelista, esse a
quem viu dormir e que usa pijama às riscas, esse que tem um cão que a
estas horas dorme ao sol no quintal da casa, esperando o regresso do
dono. Aquele é o seu homem, um músico, nada mais que um músico,
como o são os quase cem homens e mulheres arrumados em semicírculo
diante do seu xamã privado, que é o maestro, e que um dia destes, em
uma qualquer semana, mês e ano futuros, receberão em casa a cartinha
de cor violeta e deixarão o lugar vazio, até que outro violinista, ou
flautista, ou trompetista, venha sentar-se na mesma cadeira, talvez já
com outro xamã a fazer gestos com o pauzinho para conjurar os sons, a
vida é uma orquestra que sempre está tocando, afinada, desafinada, um
paquete titanic que sempre se afunda e sempre volta à superfície, e é
165
então que a morte pensa que ficará sem ter que fazer se o barco
afundado não puder subir nunca mais cantando aquele evocativo canto
das águas escorrendo pelo costado, como deve ter sido, deslizando com
outra rumorosa suavidade pelo ondulante corpo da deusa, o de anfitrite
na hora única do seu nascimento, para a tornar naquela que rodeia os
mares, que esse é o significado do nome que lhe deram. A morte
pergunta-se onde estará agora anfitrite, a filha de nereu e de dóris, onde
estará o que, não tendo existido nunca na realidade, habitou não
obstante por um breve tempo a mente humana a fim de nela criar,
também por breve tempo, uma certa e particular maneira de dar sentido
ao mundo, de procurar entendimentos dessa mesma realidade. E não a
entenderam, pensou a morte, e não a podem entender por mais que
façam, porque na vida deles tudo é provisório, tudo precário, tudo
passa sem remédio, os deuses, os homens, o que foi, acabou já, o que é,
não será sempre. e até eu, morte, acabarei quando não tiver mais a
quem matar, seja à maneira clássica, seja por correspondência. sabemos
que não é a primeira vez que um pensamento destes passa pelo que
nela pensa, seja aquilo que for, mas foi a primeira vez que tê-lo pensado
lhe causou este sentimento de profundo alívio, como alguém que,
havendo terminado o seu trabalho, lentamente se recosta para
descansar. De súbito, a orquestra calou-se, apenas se ouve o som de um
violoncelo, chama-se a isto um solo, um modesto solo que não chegará a
durar nem dois minutos, é como se das forças que o xamã havia
invocado se tivesse erguido uma voz, falando porventura em nome de
todos aqueles que agora estão silenciosos, o próprio maestro está
imóvel, olha aquele músico que deixou aberto numa cadeira o caderno
com a suite número seis opus mil e doze em ré maior de johann
sebastian bach, a suite que ele nunca tocará neste teatro, porque é
166
apenas um violoncelista de orquestra, ainda que principal do seu naipe,
não um daqueles famosos concertistas que percorrem o mundo inteiro
tocando e dando entrevistas, recebendo flores, aplausos, homenagens e
condecorações, muita sorte tem por uma vez ou outra lhe saírem uns
quantos compassos para tocar a solo, algum compositor generoso que
se lembrou daquele lado da orquestra onde poucas cousas costumam
passar-se fora da rotina. Quando o ensaio terminar guardará o
violoncelo na caixa e voltará para casa de táxi, daqueles que têm um
porta-bagagem grande, e é possível que esta noite, depois de jantar,
abra a suite de bach sobre o atril, respire fundo e roce com o arco as
cordas para que a primeira nota nascida o venha consolar das
incorrigíveis banalidades do mundo e a segunda as faça esquecer se
pode, o solo terminou já, o tutti da orquestra cobriu o último eco do
violoncelo, e o xamã, com um gesto imperioso da batuta, voltou ao seu
papel de invocador e guia dos espíritos sonoros. A morte está orgulhosa
do bem que o seu violoncelista tocou. Como se se tratasse de uma
pessoa da família, a mãe, a irmã, uma noiva, esposa não, porque este
homem nunca se casou.
Durante os três dias seguintes, excepto o tempo necessário para
correr à sala subterrânea, escrever as cartas a toda a pressa e enviá-las
ao correio, a morte foi, mais do que a sombra, o próprio ar que o músico
respirava. A sombra tem um grave defeito, perde-se-lhe o sítio, não se
dá por ela assim que lhe falta uma fonte luminosa. A morte viajou
sentada ao lado dele no táxi que o levou a casa, entrou quando ele
entrou, contemplou com benevolência as loucas efusões do cão à
chegada do amo, e depois, tal como faria uma pessoa convidada a
passar ali uma temporada, instalou-se.
167
Para quem não precisa de se mover, é fácil, tanto lhe dá estar sentado
no chão como empoleirado na cimeira de um armário. O ensaio da
orquestra tinha acabado tarde, daqui a pouco será noite.
O violoncelista deu de comer ao cão, depois preparou o seu próprio
jantar com o conteúdo de duas latas que abriu, aqueceu o que era para
aquecer, depois estendeu uma toalha sobre a mesa da cozinha, pôs os
talheres e o guardanapo, deitou vinho num copo e, sem pressa, como se
pensasse noutra cousa, meteu a primeira garfada de comida na boca. o
cão sentou-se ao lado, algum resto que o dono deixe ficar no prato e
possa ser-lhe dado à mão será a sua sobremesa. A morte olha o
violoncelista. Por princípio, não distingue entre gente feia e gente
bonita, se calhar porque, não conhecendo de si mesma senão a caveira
que é, tem a irresistível tendência de fazer aparecer a nossa desenhada
por baixo da cara que nos serve de mostruário. No fundo, no fundo,
manda a verdade que se diga, aos olhos da morte todos somos da
mesma maneira feios, inclusive no tempo em que havíamos sido
rainhas de beleza ou reis do que masculinamente lhe equivalha.
Aprecia-lhe os dedos fortes, calcula que as polpas da mão esquerda
devem ter-se tornado a pouco e pouco mais duras, talvez até levemente
calosas, a vida tem destas e doutras injustiças, veja-se este caso da mão
esquerda, que tem à sua conta o trabalho mais pesado do violoncelo e
recebe do público muito menos aplausos que a mão direita. Terminado
o jantar, o músico lavou a louça, dobrou cuidadosamente pelos vincos a
toalha e o guardanapo, meteu-os numa gaveta do armário e antes de
sair da cozinha olhou em redor para ver se havia ficado alguma cousa
fora do seu lugar. o cão foi atrás dele para a sala de música, onde a
168
morte os esperava. Ao contrário da suposição que havíamos feito no
teatro, o músico não tocou a suite de bach. um dia, em conversa com
alguns colegas da orquestra que em tom ligeiro falavam sobre a
possibilidade da composição de retratos musicais, retratos autênticos,
não tipos, como os de samuel goldenberg e schmuyle, de mussorgsky,
lembrou-se de dizer que o seu retrato, no caso de existir de facto em
música, não o encontrariam em nenhuma composição para violoncelo,
mas num brevíssimo estudo de chopin, opus vinte e cinco, número
nove, em sol bemol maior. Quiseram saber porquê e ele respondeu que
não conseguia ver-se a si mesmo em nada mais que tivesse sido escrito
numa pauta e que essa lhe parecia ser a melhor das razões. E que em
cinquenta e oito segundos chopin havia dito tudo quanto se poderia
dizer a respeito de uma pessoa a quem não podia ter conhecido.
Durante alguns dias, como amável divertimento, os mais graciosos
chamaram-lhe cinquenta e oito segundos, mas a alcunha era por de
mais comprida para perdurar, e também porque nenhum diálogo é
possível manter com alguém que tinha decidido demorar cinquenta e
oito segundos a responder ao que lhe perguntavam. o violoncelista
acabaria por ganhar a amigável contenda. Como se tivesse percebido a
presença de um terceiro em sua casa, a quem, por motivos não
explicados, deveria falar de si mesmo, e para não ter de fazer o longo
discurso que até a vida mais simples necessita para dizer de si mesma
algo que valha a pena, o violoncelista sentou-se ao piano, e, após uma
breve pausa para que a assistência se acomodasse, atacou a composição.
Deitado ao lado do atril e já meio adormecido, o cão não pareceu dar
importância à tempestade sonora que se havia desencadeado por cima
da sua cabeça, quer fosse por a ter ouvido outras vezes, quer fosse
porque ela não acrescentava nada ao que conhecia do dono. A morte,
169
porém, que por dever de ofício tantas outras músicas havia escutado,
com particular relevância para a marcha fúnebre do mesmo chopin ou
para o adagio assai da terceira sinfonia de beethoven, teve pela primeira
vez na sua longuíssima vida a percepção do que poderá chegar a ser
uma perfeita convizinhança entre o que se diz e o modo por que se está
dizendo. Importava-lhe pouco que aquele fosse o retrato musical do
violoncelista, o mais provável é que as alegadas parecenças, tanto as
efectivas como as imaginadas, as tivesse ele fabricado na sua cabeça, o
que à morte impressionava era ter-lhe parecido ouvir naqueles
cinquenta e oito segundos de música uma transposição rítmica e
melódica de toda e qualquer vida humana, corrente ou extraordinária,
pela sua trágica brevidade, pela sua intensidade desesperada, e também
por causa daquele acorde final que era como um ponto de suspensão
deixado no ar, no vago, em qualquer parte, como se, irremediavel-
mente, alguma cousa ainda tivesse ficado por dizer. o violoncelista
havia caído num dos pecados humanos que menos se perdoa, o da
presunção, quando imaginara ver a sua própria e exclusiva figura num
retrato em que afinal se encontravam todos, a qual presunção, em todo
o caso, se repararmos bem, se não nos deixarmos ficar à superfície das
cousas, igualmente poderia ser interpretada como uma manifestação do
seu radical oposto, ou seja, a humildade, uma vez que, sendo aquele
retrato de todos, também eu teria de estar retratado nele. A morte
hesita, não acaba de decidir-se pela presunção ou pela humildade, e,
para desempatar, para tirar-se de dúvidas, entretém-se agora a observar
o músico, esperando que a expressão da cara lhe revele o que está a
faltar, ou talvez as mãos, as mãos são dois livros abertos, não pelas
razões, supostas ou autênticas, da quiromancia, com as suas linhas do
coração e da vida, da vida, meus senhores, ouviram bem, da vida, mas
170
porque falam quando se abrem ou se fecham, quando acariciam ou
golpeiam, quando enxugam uma lágrima ou disfarçam um sorriso,
quando se pousam sobre um ombro ou acenam um adeus, quando
trabalham, quando estão quietas, quando dormem, quando despertam,
e então a morte, terminada a observação, concluiu que não é verdade
que o antónimo da presunção seja a humildade, mesmo que o estejam
jurando a pés juntos todos os dicionários do mundo, coitados dos
dicionários, que têm de governar-se eles e governar-nos anos com as
palavras que existem, quando são tantas as que ainda faltam, por
exemplo, essa que iria ser o contrário activo da presunção, porém em
nenhum caso a rebaixada cabeça da humildade, essa palavra que vemos
claramente escrita na cara e nas mãos do violoncelista, mas que não é
capaz de dizer-nos como se chama.
Calhou ser domingo o dia seguinte. Estando o tempo de boa cara,
como sucede hoje, o violoncelista tem o costume de ir passar a manhã
num dos parques da cidade em companhia do cão e de um ou dois
livros. o animal nunca se afasta muito, mesmo quando o instinto o faz
andar de árvore em árvore a farejar as mijadas dos congéneres. Alça a
perna de vez em quando, mas por aí se fica no que à satisfação das suas
necessidades excretórias se refere. A outra, por assim dizer complemen-
tar, resolve-a disciplinadamente no quintal da casa onde mora, por isso
o violoncelista não tem de ir atrás dele recolhendo-lhe os excrementos
num saquinho de plástico com a ajuda da pazinha especialmente
desenhada para esse fim. Tratar-se-ia de um notável exemplo dos
resultados de uma boa educação canina se não se desse a circunstância
extraordinária de ter sido uma ideia do próprio animal, o qual é de
opinião de que um músico, um violoncelista, um artista que se esforça
171
por chegar a tocar dignamente a suite número seis opus mil e doze em
ré maior de bach, é de opinião, dizíamos, que não está bem que um
músico, um violoncelista, um artista, tenha vindo ao mundo para
levantar do chão as cacas ainda fumegantes do seu cão ou de qualquer
outro. Não é próprio, bach, por exemplo, disse este um dia em conversa
com o dono, nunca o fez. o músico respondeu que desde então os
tempos mudaram muito, mas foi obrigado a reconhecer que bach, de
facto, nunca o havia feito. Embora seja apreciador da literatura em
geral, bastará olhar as prateleiras médias da sua biblioteca para o
comprovar, o músico tem uma predilecção especial pelos livros sobre
astronomia e ciências naturais ou da natureza, e hoje lembrou-se de
trazer um manual de entomologia. Por falta de preparação prévia não
espera aprender muito com ele, mas distrai-se lendo que na terra há
quase um milhão de espécies de insectos e que estes se dividem em
duas ordens, a dos pterigotos, que são providos de asas, e os
apterigotos, que não as têm, e que se classificam em ortópteros, como o
gafanhoto, blatóideos, como a barata, mantídeos, como o louva-a-deus,
nevrópteros, como a crisopa, odonatos, como a libélula, efemerópteros,
como o efémero, tricópteros, como o frigano, isópteros, como a térmita,
afanípteros, como a pulga, anopluros, como o piolho, malófagos, como
o piolhinho das aves, heterópteros, como o percevejo, homópteros,
como o pulgão, dípteros, como a mosca, himenópteros, como a vespa,
lepidópteros, como a caveira, coleópteros, como o escaravelho, e,
finalmente, tisanuros, como o peixe-de-prata. Conforme se pode ver na
imagem que vem no livro, a caveira é uma borboleta, e o seu nome
latino é acherontia atropos. É nocturna, ostenta na parte dorsal do tórax
um desenho semelhante a uma caveira humana, alcança doze centí-
metros de envergadura e é de coloração escura, com as asas posteriores
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amarelas e negras. E chamam-lhe atropos. isto é, morte. o músico não
sabe, e não poderia imaginá-lo nunca, que a morte olha, fascinada, por
cima do seu ombro, a fotografia a cores da borboleta. Fascinada e
também confundida.
Recordemos que a parca encarregada de tratar da passagem da vida
dos insectos à sua não-vida, ou seja, matá-los, é outra, não é esta, e que,
embora em muitos casos o modus operandi seja o mesmo para ambas,
as excepções também são numerosas, basta dizer que os insectos não
morrem por causas tão comuns na espécie humana como são, por
exemplo, a pneumonia, a tuberculose, o cancro, a síndroma da
imunodeficiência adquirida, vulgarmente conhecida por sida, os
acidentes de viação ou as afecções cardiovasculares. Até aqui, qualquer
pessoa entenderia. o que custa mais a perceber, o que está a confundir
esta morte que continua a olhar por cima do ombro do violoncelista é
que uma caveira humana, desenhada com extraordinária precisão,
tenha aparecido, não se sabe em que época da criação, no lombo peludo
de uma borboleta. É certo que no corpo humano também aparecem por
vezes umas borboletazitas, mas isso nunca passou de um artifício
elementar, são simples tatuagens, não vieram com a pessoa ao nascer.
Provavelmente, pensa a morte, houve um tempo em que todos os
seres vivos eram uma cousa só, mas depois, a pouco e pouco, com a
especialização, acharam-se divididos em cinco remos, a saber, as
móneras, os protistos, os fungos, as plantas e os animais, em cujo inte-
rior, aos remos nos referimos, infindas macrospecializações e microspe-
cializações se sucederam ao longo das eras, não sendo portanto nada de
estranhar que, em meio de tal confusão, de tal atropelo biológico,
algumas particularidades de uns tivessem aparecido repetidas noutros.
Isso explicaria, por exemplo, não só a inquietante presença de uma
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caveira branca no dorso desta borboleta acherontia atropos, que,
curiosamente, além da morte, tem no seu nome o nome de um rio do
inferno, como também as não menos inquietantes semelhanças da raiz
da mandragora com o corpo humano. Não sabe uma pessoa o que
pensar diante de tanta maravilha da natureza, diante de assombros tão
sublimes. Porém, os pensamentos da morte, que continua a olhar
fixamente por cima do ombro do violoncelista, tomaram já outro
caminho. Agora está triste porque compara o que haveria sido utilizar
as borboletas da caveira como mensageiras de morte em lugar daquelas
estúpidas cartas de cor violeta que ao princípio lhe tinham parecido a
mais genial das ideias. A uma borboleta destas nunca lhe ocorreria a
ideia de voltar para trás, leva marcada a sua obrigação nas costas, foi
para isso que nasceu. Além disso, o efeito espectacular seria totalmente
diferente, em lugar de um vulgar carteiro que nos vem entregar uma
carta, veríamos doze centímetros de borboleta adejando sobre as nossas
cabeças, o anjo da escuridão exibindo as suas asas negras e amarelas, e
de repente, depois de rasar o chão e traçar o círculo de onde já não
sairemos, ascender verticalmente diante de nós e colocar a sua caveira
diante da nossa. É mais do que evidente que não regatearíamos
aplausos à acrobacia. Por aqui se vê como a morte que leva a seu cargo
os seres humanos ainda tem muito que aprender. Claro que, como bem
sabemos, as borboletas não se encontram sob a sua jurisdição. Nem elas,
nem todas as outras espécies animais, praticamente infinitas. Teria de
negociar um acordo com a colega do departamento zoológico, aquela
que tem à sua responsabilidade a administração daqueles produtos
naturais, pedir-lhe emprestadas umas quantas borboletas acherontia
atropos. embora o mais provável, lamentavelmente, tendo em conta a
abissal diferença de extensão dos respectivos territórios e das popu-
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lações correspondentes, seria responder-lhe a referida colega com um
soberbo, malcriado e peremptório não, para que aprendamos que a falta
de camaradagem não é uma palavra vã, até mesmo na gerência da
morte. Pense-se só naquele milhão de espécies de insectos de que falava
o manual de entomolonia elementar, imagine-se, se tal é possível, o
número de indivíduos existentes em cada uma, e digam-me cá se não se
encontrariam mais bichinhos desses na terra que de estrelas tem o céu,
ou o espaço sideral, se preferirmos dar um nome poético à convulsa
realidade do universo em que somos um fiozinho de merda a ponto de
se dissolver. A morte dos humanos, neste momento uma ridicularia de
sete mil milhões de homens e mulheres bastante mal distribuídos pelos
cinco continentes, é uma morte secundária, subalterna, ela própria tem
perfeita consciência do seu lugar na escala hierárquica de tânatos, como
teve a honradez de reconhecer na carta enviada ao jornal que lhe havia
escrito o nome com inicial maiúscula. No entanto, sendo a porta dos
sonhos tão fácil de abrir, tão ao jeito de qualquer que nem impostos nos
exigem pelo consumo, a morte, esta que já deixou de olhar por cima do
ombro do violoncelista, compraz-se a imaginar o que seria ter às suas
ordens um batalhão de borboletas alinhadas em cima da mesa, ela
fazendo a chamada uma a uma e dando as instruções, vais a tal lado,
procuras tal pessoa, pões-lhe diante a caveira e voltas aqui. Então o
músico julgaria que a sua borboleta acherontia atropos havia levantado
voo da página aberta, seria esse o seu último pensamento e a última
imagem que levaria agarrada à retina, nenhuma mulher gorda vestida
de preto a anunciar-lhe a morte, como se diz que viu marcel proust,
nenhum mastronço embrulhado num lençol branco, como afirmam os
moribundos de vista penetrante. uma borboleta, nada mais que o suave
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ruge-ruge das asas de seda de uma borboleta grande e escura com uma
pinta branca que parece uma caveira.
O violoncelista olhou o relógio e viu que eram mais do que horas de
almoço. o cão, que já levava dez minutos a pensar o mesmo, tinha-se
sentado ao lado do dono e, apoiando a cabeça no joelho dele, esperava
pacientemente que regressasse ao mundo.
Não longe dali havia um pequeno restaurante que fornecia
sanduíches e outras minudências alimentícias de natureza semelhante.
sempre que vinha a este parque pela manhã, o violoncelista era cliente e
não variava na encomenda que fazia. Duas sanduíches de atum com
maionese e um copo de vinho para si, uma sanduíche de carne mal
passada para o cão. se o tempo estava agradável, como hoje, sentavam-
se no chão, à sombra de uma árvore, e, enquanto comiam, conversavam.
o cão guardava sempre o melhor para o fim, começava por despachar as
fatias de pão e só depois é que se entregava aos prazeres da carne,
mastigando sem pressa, conscientemente, saboreando os sucos.
Distraído, o violoncelista comia como calhava, pensava na suite em ré
maior de bach, no prelúdio, uma certa passagem levada dos diabos em
que lhe acontecia deter-se algumas vezes, hesitar, duvidar, que é o pior
que pode suceder na vida a um músico. Depois de acabarem de comer,
estenderam-se um ao lado do outro, o violoncelista dormitou um
pouco, o cão já estava a dormir um minuto antes. Quando acordaram e
voltaram para casa, a morte foi com eles. Enquanto o cão corria ao
quintal para descarregar a tripa, o violoncelista pós a suite de bach no
atril, abriu-a na passagem escabrosa, um pianíssimo absolutamente
diabólico, e a implacável hesitação repetiu-se. A morte teve pena dele,
Coitado, o pior é que não vai ter tempo para conseguir, aliás, nunca o
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têm, mesmo os que chegaram perto sempre ficaram longe. Então, pela
primeira vez, a morte reparou que em toda a casa não havia um único
retrato de mulher, salvo de uma senhora de idade que tinha todo o ar
de ser a mãe e que estava acompanhada por um homem que devia ser o
pai.
Tenho um grande favor a pedir-te, disse a morte. Como sempre, a
gadanha não respondeu, o único sinal de ter ouvido foi um estremeci-
mento pouco mais que perceptível, uma expressão geral de desconcerto
físico, posto que jamais haviam saído daquela boca semelhantes
palavras, pedir um favor, e ainda por cima grande. Vou ter de estar fora
durante uma semana, continuou a morte, e necessito que durante esse
tempo me substituas no despacho das cartas, evidentemente não te
estou a pedir que as escrevas, apenas que as envies, só terás de emitir
uma espécie de ordem mental e fazer vibrar um poucochinho a tua
lâmina por dentro, assim como um sentimento, uma emoção, qualquer
cousa que mostre que estás viva, isso bastará para que as cartas sigam
para o seu destino. A gadanha manteve-se calada, mas o silêncio
equivalia a uma pergunta. É que não posso estar sempre a entrar e a sair
para tratar do correio, disse a morte, tenho de me concentrar totalmente
na resolução do problema do violoncelista, descobrir a maneira de lhe
entregar a maldita carta. A gadanha esperava. A morte prosseguiu, A
minha ideia é esta, escrevo de uma assentada todas as cartas referentes
à semana em que estarei ausente, procedimento que me permito a mim
mesma usar considerando o carácter excepcional da situação, e, tal
como já disse, tu só terás de as enviar, nem precisarás de sair de onde
estás, aí encostada à parede, repara que estou a ser simpática, peço-te
um favor de amiga quando poderia muito bem, sem contemplações,
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dar-te uma simples ordem, o facto de nos últimos tempos ter deixado
de me aproveitar de ti não significa que não continues ao meu serviço. o
silêncio resignado da gadanha confirmava que assim era. Então estamos
de acordo, concluiu a morte, dedicarei este dia a escrever as cartas,
calculo que venham a ser umas duas mil e quinhentas, imagina só,
tenho a certeza de que chegarei ao fim do trabalho com o pulso aberto,
deixo-tas arrumadas em cima da mesa, em grupos separados, da
esquerda para a direita, não te equivoques, da esquerda para a direita,
repara bem, desde aqui até aqui, arranjar-me-ias outra complicação dos
diabos se as pessoas recebessem fora de tempo as suas notificações,
quer para mais, quer para menos. Diz-se que quem cala, consente. A
gadanha havia calado, portanto tinha consentido. Envolvida no seu
lençol, com o capuz atirado para trás a fim de desafogar a visão, a morte
sentou-se a trabalhar. Escreveu, escreveu, passaram as horas e ela a
escrever, e eram as cartas, e eram os sobrescritos, e era dobrá-las, e era
fechá-los, perguntar-se-á como o conseguia se não tem língua nem de
onde lhe venha a saliva, isso, meus caros senhores, foi nos felizes
tempos do artesanato, quando ainda vivíamos nas cavernas de uma
modernidade que mal começava a despontar, agora os sobrescritos são
dos chamados autocolantes, retira-se-lhes a tirinha de papel, e já está,
dos múltiplos empregos que a língua tinha, pode dizer-se que este
passou à história. A morte só não chegou ao fim com o pulso aberto
depois de tão grande esforço porque, em verdade, aberto já ela o tem
desde sempre. são modos de falar que se nos pegam à linguagem,
continuamos a usá-los mesmo depois de se terem desviado há muito do
sentido original, e não nos damos conta de que, por exemplo, no caso
desta nossa morte que por aqui tem andado em figura de esqueleto, o
pulso já lhe veio aberto de nascença, basta ver a radiografia. o gesto de
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despedida fez desaparecer no hiperespaço os duzentos e oitenta e tal
sobrescritos de hoje, porquanto será só a partir de amanhã que a
gadanha principiará a desempenhar as funções de expedidora postal
que acabavam de ser-lhe confiadas. sem pronunciar uma palavra, nem
adeus, nem até logo, a morte levantou-se da cadeira, dirigiu-se à única
porta existente na sala, aquela portazinha estreita a que tantas vezes nos
referimos sem a menor ideia de qual pudesse ser a sua serventia, abriu-
a, entrou e tornou a fechá-la atrás de si. A emoção fez com que a
gadanha experimentasse ao longo da lâmina, até ao bico, até à ponta
extrema, uma fortíssima vibração. Nunca, de memória de gadanha,
aquela porta havia sido utilizada.
As horas passaram, todas as que foram necessárias para que o sol
nascesse lá fora, não aqui nesta sala branca e fria, onde as pálidas
lâmpadas, sempre acesas, pareciam ter sido postas ali para espantar as
sombras a um morto que tivesse medo da escuridão. Ainda é cedo para
que a gadanha emita a ordem mental que fará desaparecer da sala o
segundo monte de cartas, poderá, portanto, dormir um pouco mais. Isto
é o que costumam dizer os insones que não pregaram olho em toda a
noite, mas que, pobres deles, julgam ser capazes de iludir o sono só
porque lhe pedem um pouco mais, apenas um pouco mais, eles a quem
nem um minuto de repouso lhes havia sido concedido. sozinha, durante
todas aquelas horas, a gadanha procurou uma explicação para o insólito
facto de a morte ter saído por uma porta cega que, desde o momento
em que a tinham colocado ali, parecia condenada para o fim dos
tempos. Por fim desistiu de dar voltas à cabeça, mais tarde ou mais cedo
terá de acabar por saber o que está a passar-se ali atrás, pois é
praticamente impossível que haja segredos entre a morte e a gadanha
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como também os não há entre a foice e a mão que a empunha. Não teve
de esperar muito. Meia hora teria passado num relógio quando a porta
se abriu e uma mulher apareceu no limiar. A gadanha tinha ouvido
dizer que isto podia acontecer, transformar-se a morte em um ser
humano, de preferência mulher por essa cousa dos géneros, mas
pensava que se tratava de uma historieta, de um mito, de uma lenda
como tantas e tantas outras, por exemplo, a fénix renascida das suas
próprias cinzas, o homem da lua carregando com um molho de lenha às
costas por ter trabalhado em dia santo, o barão de münchhausen que,
puxando pelos seus próprios cabelos, se salvou de morrer afogado num
pântano e ao cavalo que montava, o drácula da transilvânia que não
morre por mais que o matem, a não ser que lhe cravem uma estaca no
coração, e mesmo assim não falta quem duvide, a famosa pedra, na
antiga irlanda, que gritava quando o rei verdadeiro lhe tocava, a fonte
do epiro que apagava os archotes acesos e inflamava os apagados, as
mulheres que deixavam escorrer o sangue da menstruação pelos
campos cultivados para aumentar a fertilidade da sementeira, as
formigas do tamanho de cães, os Cães do tamanho de formigas, a
ressurreição no terceiro dia porque não tinha podido ser no segundo.
Estás muito bonita, comentou a gadanha, e era verdade, a morte estava
muito bonita e era jovem, teria trinta e seis ou trinta e sete anos Como
haviam calculado os antropólogos, Falaste, finalmente, exclamou a
morte, Pareceu-me haver um bom motivo, não é todos os dias que se vê
a morte transformada num exemplar da espécie de quem é inimiga,
Quer dizer que não foi por me ter achado bonita, Também, também,
mas igualmente teria falado se me tivesses aparecido na figura de uma
mulher gorda vestida de preto como a monsieur marcel proust, Não sou
gorda nem estou vestida de preto, e tu não tens nenhuma ideia de quem
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foi marcel proust, Por razões óbvias, as gadanhas, tanto esta de ceifar
gente como as outras, vulgares, de ceifar erva, nunca puderam aprender
aler, mas todas fomos dotadas de boa memória, elas da seiva, eu do
sangue, ouvi dizer algumas vezes por aí o nome de proust e liguei os
factos, foi um grande escritor, um dos maiores que jamais existiram, e o
verbete dele deverá estar nos antigos arquivos, sim, mas não nos meus,
não fui eu a morte que o matou, Não era então deste país o tal monsieur
marcel proust, perguntou a gadanha, Não, era de um outro, de um que
se chama frança, respondeu a morte, e notava-se um certo tom de
tristeza nas suas palavras, Que te console do desgosto de não teres sido
tu a matá-lo o bonita que te vejo, benza-te deus, ajudou a gadanha,
sempre te considerei uma amiga, mas o meu desgosto não vem de não o
ter matado eu, Então, Não saberia explicar. A gadanha olhou a morte
com estranheza e achou preferível mudar de assunto, Aonde foste
encontrar o que levas posto, perguntou, Há muito por onde escolher
atrás daquela porta, aquilo é como um armazém, como um enorme
guarda-roupa de teatro, são centenas de armários, centenas de
manequins, milhares de cabides, Levas-me lá, pediu a gadanha, seria
inútil, não entendes nada de modas nem de estilos, À simples vista não
me parece que tu entendas muito mais, não creio que as diferentes
partes do que vestes joguem bem umas com outras, Como nunca sais
desta sala, ignoras o que se usa nos dias de hoje, Pois dir-te-ei que essa
blusa se parece muito a outras que recordo de quando levava uma vida
activa, As modas são rotativas, vão e voltam, voltam e vão, se eu te
contasse o que vejo por essas ruas, Acredito sem que tenhas de mo
dizer, Não achas que a blusa acerta bem com a cor das calças e dos
sapatos, Creio que sim, concedeu a gadanha, E com este gorro que levo
na cabeça, Também, E com este casaco de pele, Também, E com esta
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bolsa ao ombro, Não digo que não, E com estes brincos nas orelhas,
Rendo-me, Estou irresistível, confessa, Depende do tipo de homem a
quem queiras seduzir, Em todo o caso parece-te mesmo que vou bonita,
Fui eu quem o disse em primeiro lugar, sendo assim, adeus, estarei de
regresso no domingo, o mais tardar na segunda-feira, não te esqueças
de despachar o correio de cada dia, suponho que não será demasiado
trabalho para quem passa o seu tempo encostado à parede, Levas a
carta, perguntou a gadanha, que decidira não reagir à ironia, Levo, vai
aqui dentro, respondeu a morte, tocando a bolsa com as pontas de uns
dedos finos, bem tratados, que a qualquer um apeteceria beijar.
A morte apareceu à luz do dia numa rua estreita, com muros de um
lado e do outro, já quase fora da cidade. Não se vê qualquer porta ou
portão por onde possa ter saído, também não se percebe nenhum
indício que nos permita reconstituir o caminho que desde a fria sala
subterrânea a trouxe até aqui. o sol não molesta órbitas vazias, por isso
os crânios resgatados nas escavações arqueológicas não têm necessi-
dade de baixar as pálpebras quando a luz súbita lhes bate na cara e o
feliz antropólogo anuncia que o seu achado ósseo tem todo o aspecto de
ser um neanderthal, embora um exame posterior venha a demonstrar
que afinal se trata de um vulgar homo sapiens. A morte, porém, esta
que se fez mulher, tira da bolsa uns óculos escuros e com eles defende
os seus olhos agora humanos dos perigos de uma oftalmia mais do que
provável em quem ainda terá de habituar-se às refulgências de uma
manhã de verão. A morte desce a rua até onde os muros terminam e os
primeiros prédios se levantam. A partir daí encontra-se em terreno
conhecido, não há uma só casa destas e de todas quantas se estendem
diante dos seus olhos até aos limites da cidade e do país em que não
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tenha estado alguma vez, e até mesmo naquela obra em construção terá
de entrar daqui a duas semanas para empurrar de um andaime um
pedreiro distraído que não reparará onde vai pôr o pé. Em casos como
estes é nosso costume dizer que assim é a vida, quando muito mais
exactos seríamos se disséssemos que assim é a morte. A esta rapariga de
óculos escuros que está entrando num táxi não lhe daríamos nós tal
nome, provavelmente acharíamos que seria a própria vida em pessoa e
correríamos ofegantes atrás dela, ordenaríamos ao condutor doutro táxi,
se o houvesse, siga aquele carro, e seria inútil porque o táxi que a leva já
virou a esquina e não há aqui outro ao qual pudéssemos suplicar, Por
favor, siga aquele carro. Agora, sim, já tem todo o sentido dizermos que
é assim a vida e encolher resignados os ombros. Seja como for, e que
isso nos sirva ao menos de consolação, a carta que a morte leva na sua
bolsa tem o nome de outro destinatário e outro endereço, a nossa vez de
cair do andaime ainda não chegou. Ao contrário do que poderia
razoavelmente prever-se, a morte não deu ao motorista do táxi a
direcção do violoncelista, mas sim a do teatro em que ele toca. É certo
que decidira apostar pelo seguro depois dos sucessivos desaires sofri-
dos, mas não havia sido por uma mera casualidade que tinha começado
por se transformar em mulher, ou, como um espírito gramático poderia
também ser levado apensar, por aquilo dos géneros que havíamos
sugerido antes, ambos eles, neste caso, da mulher e da morte, femi-
ninos. Apesar da sua absoluta falta de experiência do mundo exterior,
particularmente no capítulo dos sentimentos, apetites e tentações, a
gadanha havia acertado em cheio no alvo quando, em certa altura da
conversa com a morte, se perguntou sobre o tipo do homem a quem ela
pretendia seduzir. Esta era a palavra-chave, seduzir. A morte poderia
ter ido directamente a casa do violoncelista, tocar-lhe à campainha e,
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quando ele abrisse aporta, lançar-lhe o primeiro engodo de um sorriso
mavioso depois de tirar os óculos escuros, anunciar-se, por exemplo,
como vendedora de enciclopédias, pretexto arqui-conhecido, mas de
resultados quase sempre seguros, e então de duas, uma, ou ele a
mandaria entrar para tratarem do assunto tranquilamente diante de
uma chávena de chá, ou ele lhe diria logo ali que não estava interessado
e fazia o gesto de fechar a porta, ao mesmo tempo que delicadamente
pedia desculpa pela recusa, Ainda se fosse uma enciclopédia musical,
justificaria com um sorriso tímido. Em qualquer das situações a entrega
da carta seria fácil, digamos mesmo que ultrajantemente fácil, e isto era
o que não agradava à morte. o homem não a conhecia a ela, mas ela
conhecia o homem, passara uma noite no mesmo quarto que ele,
ouvira-o tocar, cousas que, quer se queira, quer não, criam laços,
estabelecem uma harmonia, desenham um princípio de relações, dizer-
lhe de chofre, Vai morrer, tem oito dias para vender o violoncelo e
encontrar outro dono para o cão, seria uma brutalidade imprópria da
mulher bem-parecida em que se havia tornado. o seu plano é outro.
No cartaz exposto à entrada do teatro informava-se o respeitável
público de que nessa semana se dariam dois concertos da orquestra
sinfónica nacional, um na quinta-feira, isto é, depois de amanhã, outro
no sábado. É natural que a curiosidade de quem vem seguindo este
relato com escrupulosa e miudinha atenção, à cata de contradições,
deslizes, omissões e faltas de lógica, exija que lhe expliquem com que
dinheiro vai a morte pagar a entrada para os concertos se há menos de
duas horas acabou de sair de uma sala subterrânea onde não consta que
existam caixas automáticas nem bancos de porta aberta. E, já que se
encontra em maré de perguntar, também há-de querer que lhe digam se
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os motoristas de táxi passaram a não cobrar o devido às mulheres que
levam óculos escuros e têm um sorriso agradável e um corpo bem feito.
ora, antes que a mal intencionada suposição comece a lançar raízes,
apressamo-nos a esclarecer que a morte não só pagou o que o taxímetro
marcava como não se esqueceu de lhe juntar uma gorjeta. Quanto à
proveniência do dinheiro, se essa continua a ser a preocupação do
leitor, bastará dizer que saiu donde já tinham saído os óculos escuros,
isto é, da bolsa ao ombro, uma vez que, em princípio, e que se saiba,
nada se opõe a que de onde saiu uma cousa não possa sair outra. o que,
sim, poderia acontecer, era que o dinheiro com que a morte pagou a
viagem de táxi e haverá de pagar as duas entradas para os concertos,
além do hotel onde ficará hospedada nos próximos dias, se encontrasse
fora de circulação. Não seria a primeira vez que iríamos para a cama
com uma moeda e nos levantaríamos com outra. É de presumir,
portanto, que o dinheiro seja de boa qualidade e esteja coberto pelas leis
em vigor, a não ser que, conhecidos como são os talentos mistificadores
da morte, o motorista do táxi, sem se dar conta de que estava a ser
ludibriado, tenha recebido da mulher dos óculos escuros uma nota de
banco que não é deste mundo ou, pelo menos, não desta época, com o
retrato de um presidente da república em lugar da veneranda e familiar
face de sua majestade orei. A bilheteira do teatro acabou de abrir agora
mesmo, a morte entra, sorri, dá os bons-dias e pede dois camarotes de
primeira ordem, um para quinta-feira, outro para sábado.
Insiste com a empregada que pretende o mesmo camarote para
ambas as funções e que, questão fundamental, esteja situado no lado
direito do palco e o mais próximo possível dele. A morte meteu a mão
ao acaso na bolsa, tirou a carteira das notas e entregou as que lhe
pareceram necessárias. A empregada devolveu o troco, Aqui está, disse,
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espero que vá gostar dos nossos concertos, suponho que é a primeira
vez, pelo menos não me lembro de a ter visto por aqui, e olhe que tenho
uma excelente memória para fisionomias, nenhuma me escapa, também
é certo que os óculos alteram muito a cara da gente, sobretudo se são
escuros como os seus.
A morte tirou os óculos, E agora que lhe parece, perguntou, Tenho a
certeza de nunca a ter visto antes, Talvez porque a pessoa que tem
diante de si, esta que sou agora, nunca tivesse precisado de comprar
entradas para um concerto, ainda há poucos dias tive a satisfação de
assistir a um ensaio da orquestra e ninguém deu pela minha presença,
Não compreendo, Lembre-me para que lho explique um dia, Quando,
um dia, o dia, aquele que sempre chega, Não me assuste. A morte sorriu
o seu lindo sorriso e perguntou, Falando francamente, acha que tenho
um aspecto que meta medo a alguém. Que ideia, não foi isso o que quis
dizer, Então faça como eu, sorria e pense em cousas agradáveis, A
temporada de concertos ainda durará um mês, ora aí está uma boa
notícia, talvez nos voltemos a ver na próxima semana, Estou sempre
aqui, já sou quase um móvel do teatro, Descanse, encontrá-la-ia ainda
que aqui não estivesse, Então cá fico à sua espera, Não faltarei. A morte
fez uma pausa e perguntou, A propósito, recebeu, ou alguém da sua
família, a carta de cor violeta, A da morte, sim, a da morte, Graças a
deus, não, mas os oito dias de um vizinho meu cumprem-se amanhã, o
pobrezinho está num desespero que dá pena, Que lhe havemos de
fazer, a vida é assim, Tem razão, suspirou a empregada, a vida é assim.
Felizmente outras pessoas haviam chegado para comprar entradas, de
outro modo não se sabe aonde esta conversação poderia ter levado.
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Agora trata-se de encontrar um hotel que não esteja muito longe da
casa do músico. A morte desceu andando para o centro, entrou numa
agência de viagens, pediu que a deixassem consultar um mapa da
cidade, situou rapidamente o teatro, daí o seu dedo indicador viajou
sobre o papel para o bairro onde o violoncelista vivia. A zona estava um
tanto afastada, mas havia hotéis nas redondezas. o empregado sugeriu-
lhe um deles, sem luxo, mas confortável. Ele próprio se ofereceu para
fazer a reserva pelo telefone e quando a morte lhe perguntou quanto
devia pelo trabalho respondeu, sorrindo, Ponha na minha conta. É o
costume, as pessoas dizem cousas à toa, lançam palavras à aventura e
não lhes passa pela cabeça deter-se a pensar nas consequências, Ponha
na minha conta, disse o homem, imaginando provavelmente, com a
incorrigível fatuidade masculina, algum aprazível encontro em futuros
próximos. Arriscou-se a que a morte lhe respondesse com um olhar frio,
Tenha cuidado, não sabe com quem está a falar, mas ela apenas sorriu
vagamente, agradeceu e saiu sem deixar número do telefone nem
cartão-de-visita. No ar ficou um difuso perfume em que se misturavam
a rosa e o crisântemo, De facto, é o que parece, metade rosa e metade
crisântemo, murmurou o empregado, enquanto dobrava lentamente o
mapa da cidade. Na rua, a morte mandava parar um táxi e dava ao
condutor a direcção do hotel. Não se sentia satisfeita consigo mesma.
Assustara a amável senhora da bilheteira, divertira-se à sua custa, e isso
tinha sido um abuso sem perdão. As pessoas já têm suficiente medo da
morte para necessitarem que ela lhes apareça com um sorriso a dizer,
olá, sou eu, que é a versão corrente, por assim dizer familiar, do
ominoso latim memento, homo, qui pulvis es et in pulverem reverteris, e logo
depois, como se fosse pouco, havia estado a ponto de atirar a uma
pessoa simpática que lhe estava fazendo um favor aquela estúpida
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pergunta com que as classes sociais chamadas superiores têm a
descarada sobranceria de provocar as que estão por baixo, Você sabe
com quem está a falar. Não, a morte não está contente com o seu
procedimento. Tem a certeza de que no estado de esqueleto nunca lhe
teria ocorrido portar-se desta maneira, se calhar foi por ter tomado
figura humana, estas cousas devem pegar-se, pensou. Casualmente
olhou pela janela do táxi e reconheceu a rua em que passavam, é aqui
que o violoncelista mora e aquele é o rés-do-chão em que vive. À morte
pareceu-lhe sentir um brusco aperto no plexo solar, uma agitação súbita
dos nervos, podia ser o frémito do caçador ao avistar a presa, quando a
tem na mira da espingarda, podia ser uma espécie de obscuro temor,
como se começasse a ter medo de si mesma. o táxi parou, o hotel é este,
disse o condutor. A morte pagou com os trocos que a empregada do
teatro lhe devolvera, Fique com o resto, disse, sem reparar que o resto
era superior ao que o taxímetro marcava. Tinha desculpa, só hoje é que
havia começado a utilizar os serviços deste transporte público.
Ao aproximar-se do balcão da recepção lembrou-se de que o empre-
gado da agência de viagens não lhe tinha perguntado como se chamava,
limitara-se a avisar o hotel, Vou-lhes mandar uma cliente, sim, uma
cliente, agora mesmo, e ela ali estava, esta cliente que não poderia dizer
que se chamava morte, com letra pequena, por favor, que não sabia que
nome dar, ah, a bolsa, a bolsa que traz ao ombro, a bolsa donde saíram
os óculos escuros e o dinheiro, a bolsa donde vai ter de sair um
documento de identificação. Boas tardes, em que posso servi-la,
perguntou o recepcionista, Telefonaram de uma agência de viagens há
um quarto de hora a fazer uma reserva para mim, sim, minha senhora,
fui eu que atendi, Pois aqui estou, Queira preencher esta ficha, por
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favor. Agora a morte já sabe o nome que tem, disse-lho o documento de
identificação aberto sobre o balcão, graças aos óculos escuros poderá
copiar discretamente os dados sem que o recepcionista se de conta, um
nome, uma data do nascimento, uma naturalidade, um estado civil,
uma profissão, Aqui está, disse, Quantos dias ficará no nosso hotel,
Tenciono sair na próxima segunda-feira, Permite-me que fotocopie o
seu cartão de crédito, Não o trouxe comigo, mas posso pagar já,
adiantado, se quiser, Ah, não, não é necessário, disse o recepcionista.
Pegou no documento de identificação para conferir os dados passados
para a ficha e, com uma expressão de estranheza na cara, levantou o
olhar. o retrato que o documento exibia era de uma mulher mais velha.
A morte tirou os óculos escuros e sorriu. Perplexo, o recepcionista olhou
novamente o documento, o retrato e a mulher que estava na sua frente
eram agora como duas gotas de água, iguais. Tem bagagem, perguntou
enquanto passava a mão pela testa húmida, Não, vim à cidade fazer
compras, respondeu a morte.
Permaneceu no quarto durante todo o dia, almoçou e jantou no
hotel. Viu televisão até tarde. Depois meteu-se na cama e apagou a luz.
Não dormiu. A morte nunca dorme.
Com o seu vestido novo comprado ontem numa loja do centro, a
morte assiste ao concerto. Está sentada, sozinha, no camarote de
primeira ordem, e, como havia feito durante o ensaio, olha o violonce-
lista. Antes que as luzes da sala tivessem sido baixadas, quando a
orquestra esperava a entrada do maestro, ele reparou naquela mulher.
Não foi o único dos músicos a dar pela sua presença. Em primeiro lugar
porque ela ocupava sozinha o camarote, o que, não sendo caso raro, tão-
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pouco é frequente. Em segundo lugar porque era bonita, porventura
não a mais bonita entre a assistência feminina, mas bonita de um modo
indefinível, particular, não explicável por palavras, como um verso cujo
sentido último, se é que tal cousa existe num verso, continuamente
escapa ao tradutor. E finalmente porque a sua figura isolada, ali no
camarote, rodeada de vazio e ausência por todos os lados, como se
habitasse um nada, parecia ser a expressão da solidão mais absoluta. A
morte, que tanto e tão perigosamente havia sonido desde que saiu do
seu gelado subterrâneo, não sorri agora. Do público, os homens tinham-
na observado com dúbia curiosidade, as mulheres com zelosa inquie-
tação, mas ela, como uma águia descendo rápida sobre o cordeiro, só
tem olhos para o violoncelista. Com uma diferença, porém. No olhar
desta outra águia que sempre apanhou as suas vítimas há algo como
um ténue véu de piedade, as águias, já o sabemos, estão obrigadas a
matar, assim lho impõe a sua natureza, mas esta aqui, neste instante,
talvez preferisse, perante o cordeiro indefeso, abrir num repente as
poderosas asas e voar de novo para as alturas, para o frio ar do espaço,
para os inalcançáveis rebanhos das nuvens. A orquestra calou-se. o
violoncelista começa a tocar o seu solo como se só para isso tivesse
nascido. Não sabe que aquela mulher do camarote guarda na sua
recém-estreada malinha de mão uma carta de cor violeta de que ele é
destinatário, não o sabe, não poderia sabê-lo, e apesar disso toca como
se estivesse a despedir-se do mundo, a dizer por fim tudo quanto havia
calado, os sonhos truncados, os anseios frustrados, a vida, enfim. Os
outros músicos olham-no com assombro, o maestro com surpresa e
respeito, o público suspira, estremece, o véu de piedade que nublava o
olhar agudo da águia é agora uma lágrima. o solo terminou já, a
orquestra, como um grande e lento mar, avançou e submergiu suave-
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mente o canto do violoncelo, absorveu-o, ampliou-o como se quisesse
conduzi-lo a um lugar onde a música se sublimasse em silêncio, a
sombra de uma vibração que fosse percorrendo a pele como a última e
inaudível ressonância de um timbale aflorado por uma borboleta. o voo
sedoso e malévolo da acherontia atropos perpassou rápido pela
memória da morte, mas ela afastou-o com um gesto de mão que tanto se
parecia àquele que fazia desaparecer as cartas de cima da mesa na sala
subterrânea como a um aceno de agradecimento para o violoncelista
que agora voltava a cabeça na sua direcção, abrindo caminho aos olhos
na obscuridade cálida da sala. A morte repetiu o gesto e foi como se os
seus finos dedos tivessem ido pousar-se sobre a mão que movia o arco.
Apesar de o coração ter feito tudo quanto podia para que tal
sucedesse, o violoncelista não errou a nota. os dedos não tornariam a
tocar-lhe, a morte tinha compreendido que não se deve nunca distrair o
artista na sua arte. Quando o concerto terminou e o público rompeu em
aclamações, quando as luzes se acenderam e o maestro mandou
levantar a orquestra, e depois quando fez sinal ao violoncelista para que
se levantasse, ele só, a fim de receber o quinhão de aplausos que por
merecimento lhe cabia, a morte, de pé no camarote, sorrindo enfim,
cruzou as mãos sobre o peito, em silêncio, e olhou, nada mais, os outros
que batessem palmas, os outros que soltassem gritos, os outros que
reclamassem dez vezes o maestro, ela só olhava. Depois, lentamente,
como a contragosto, o público começou a sair, ao mesmo tempo que a
orquestra se retirava.
Quando o violoncelista se virou para o camarote, ela, a mulher, já
não estava. Assim é a vida, murmurou.
191
Enganava-se, a vida não é assim sempre, a mulher do camarote
estará à sua espera na porta dos artistas. Alguns dos músicos que vão
saindo olham-na com intenção, mas percebem, sem saber como, que ela
está defendida por uma cerca invisível, por um circuito de alta
voltagem em que se queimariam como minúsculas borboletas
nocturnas. Então, apareceu o violoncelista. Ao vê-la, estacou, chegou
mesmo a esboçar um movimento de recuo, como se, vista de perto, a
mulher fosse outra cousa que mulher, algo de outra esfera, de outro
mundo, da face oculta da lua. Baixou a cabeça, tentou juntar-se aos
colegas que saíam, fugir, mas a caixa do violoncelo, suspensa de um dos
seus ombros, dificultou-lhe a manobra de esquiva. A mulher estava
diante dele, dizia-lhe, Não me fuja, só vim para lhe agradecer a emoção
e o prazer de tê-lo ouvido, Muito obrigado, mas eu sou apenas músico
de orquestra, não um concertista famoso, daqueles que os admiradores
esperam durante uma hora só para lhe tocarem ou pedirem um
autógrafo, se a questão é essa, eu também lho poderei pedir, não trouxe
comigo o álbum de autógrafos, mas tenho aqui um sobrescrito que
poderá servir perfeitamente, Não me entendeu, o que quis dizer é que,
embora lisonjeado pela sua atenção, não me sinto merecedor dela, o
público não parece ter sido da mesma opinião, são dias, Exactamente,
são dias, e, por coincidência, é este o dia em que eu lhe apareço, Não
quereria que visse em mim uma pessoa ingrata, mal-educada, mas o
mais provável é que amanhã já lhe tenha passado o resto da emoção de
hoje, e, assim como me apareceu, desaparecerá, Não me conhece, sou
muito firme nos meus propósitos. E quais são eles, um só, conhecê-lo a
si, Já me conheceu, agora podemos dizer-nos adeus, Tem medo de mim,
perguntou a morte, Inquieta-me, nada mais, E é pouca cousa sentir-se
inquieto na minha presença. Inquietar-se não significa forçosamente ter
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medo, poderá ser apenas o alerta da prudência. A prudência só serve
para adiar o inevitável, mais cedo ou mais tarde acaba por se render,
Espero que não seja o meu caso, E eu tenho a certeza de que o será. o
músico passou a caixa do violoncelo de um ombro para outro, Está
cansado, perguntou a mulher, um violoncelo não pesa muito, o pior é a
caixa, sobretudo esta, que é das antigas, Necessito falar consigo, Não
vejo como, é quase meia-noite, toda a gente se foi embora, Ainda estão
ali algumas pessoas. Essas estão à espera do maestro, Conversaríamos
num bar, Está a ver-me a entrar com um violoncelo às costas num sítio
abarrotado de gente. sorriu o músico, imagine que os meus colegas iam
todos lá e levavam os instrumentos, poderíamos dar outro concerto.
Poderíamos, perguntou o músico, intrigado pelo plural. sim, houve um
tempo em que toquei violino, há mesmo retratos meus em que apareço
assim, Parece ter decidido surpreender-me com cada palavra que diz,
Está na sua mão saber até que ponto ainda serei capaz de surpreendê-lo,
Não se pode ser mais explícita, Engano seu, não me referia àquilo em
que pensou, E em que pensei eu, se se pode saber, Numa cama, e em
mim nessa cama, Desculpe, A culpa foi minha, se eu fosse homem e
tivesse ouvido as palavras que lhe disse a si, certamente teria pensado o
mesmo, a ambiguidade paga-se, Agradeço-lhe a franqueza. A mulher
deu uns passos e disse, Vamos lá, Aonde, perguntou o violoncelista, Eu,
ao hotel onde estou hospedada, você, imagino que a sua casa, Não a
tornarei a ver, Já lhe passou a inquietação, Nunca estive inquieto, Não
minta, De acordo, estive-o, mas já não estou agora. Na cara da morte
apareceu uma espécie de sorriso em que não havia a sombra de uma
alegria, Precisamente quando mais motivos deveria ter, disse, Arrisco-
me, por isso repito a pergunta, Qual foi, se não a tornarei a ver, Virei ao
concerto de sábado, estarei no mesmo camarote, o programa é diferente,
193
não tenho nenhum solo, Jáo sabia, Pelos vistos, pensou em tudo, sim, E
o fim disto, qual vai ser, Ainda estamos no princípio. Aproximava-se
um táxi livre. A mulher fez-lhe sinal para parar e voltou-se para o
violoncelista, Levo-o a casa, Não, levo-a eu ao hotel e depois sigo para
casa, será como eu digo, ou então vai ter de tomar outro táxi, Está
habituada a levar a sua avante, sim, sempre, Alguma vez terá falhado,
deus é deus e quase não tem feito outra cousa, Agora mesmo poderia
demonstrar-lhe que não falho, Estou pronto para a demonstração, Não
seja estúpido, disse de repente a morte, e havia na sua voz uma ameaça
soterrada, obscura, terrível, o violoncelo foi metido na mala do carro.
Durante todo o trajecto os dois passageiros não pronunciaram palavra.
Quando o táxi parou no primeiro destino, o violoncelista disse antes
de sair, Não consigo compreender o que está a passar-se entre nós, creio
que o melhor é não nos vermos mais, Ninguém o poderá impedir, Nem
sequer você, que sempre leva a sua avante, perguntou o músico,
esforçando-se por ser irónico, Nem sequer eu, respondeu a mulher, Isso
significa que falhará, Isso significa que não falharei. o motorista tinha
saído para abrir a mala do carro e esperava que fossem retirar a caixa. o
homem e a mulher não se despediram, não disseram até sábado, não se
tocaram, era como um rompimento sentimental, dos dramáticos, dos
brutais, como se tivessem jurado sobre o sangue e a água não voltar a
ver-se nunca mais. Com o violoncelo suspenso do ombro, o músico
afastou-se e entrou no prédio. Não se virou para trás, nem mesmo
quando no limiar da porta, por um instante, se deteve. A mulher olhava
para ele e apertava com força a malinha de mão. o táxi partiu. o
violoncelista entrou em casa murmurando irritado, É doida, doida,
doida, a única vez na vida que alguém me vai esperará saída para dizer
que toquei bem, sai-me uma mentecapta, e eu, como um néscio, a
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perguntar-lhe se não a tornarei a ver, a meter-me em trabalhos por meu
próprio pé, há defeitos que ainda podem ter algo de respeitável, pelo
menos digno de atenção, mas a fatuidade é ridícula, a enfatuação é
ridícula, e eu fui ridículo. Afagou distraído o cão que tinha corrido a
recebê-lo à porta e entrou na sala do piano. Abriu a caixa acolchoada,
retirou com todo o cuidado o instrumento que ainda teria de afinar
antes de ir para a cama porque as viagens de táxi, mesmo curtas, não
lhe faziam nenhum bem à saúde. Foi à cozinha pôr um pouco de
comida ao cão, preparou uma sanduíche para si, que acompanhou com
um copo de vinho. o pior da sua irritação já tinha passado, mas o
sentimento que a pouco e pouco a ia substituindo não era mais
tranquilizador.
Recordava frases que a mulher havia dito, a alusão às ambiguidades
que sempre se pagam e descobria que todas as palavras que ela
pronunciara, se bem que pertinentes no contexto, pareciam levar dentro
um outro sentido, algo que não se deixava captar. Algo tantalizante,
como a água que se retirou quando a intentávamos beber, como o ramo
que se afastou quando íamos para colher o fruto. Não direi que seja
louca, pensou, mas lá que é uma mulher estranha, sobre isso não há
dúvida. Acabou de comer e voltou à sala de música, ou do piano, as
duas maneiras por que a temos designado até agora quando teria sido
muito mais lógico chamar-lhe sala do violoncelo, uma vez que é este
instrumento o ganha-pão do músico, em todo o caso há que reconhecer
que não soaria bem, seria como se o lugar se degradasse, como se
perdesse uma parte da sua dignidade, bastará seguir a escala descen-
dente para compreender o nosso raciocínio, sala de música, sala do
piano, sala do violoncelo, até aqui ainda seria aceitável, mas imagine-se
aonde iríamos parar se começássemos a dizer sala do clarinete, sala do
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pífaro, sala do bombo, sala dos ferrinhos. As palavras também têm a
sua hierarquia, o seu protocolo, os seus títulos de nobreza, os seus
estigmas de plebeu. o cão veio com o dono e foi-se-lhe deitar ao lado
depois de ter dado as três voltas sobre si mesmo que eram a única
recordação que lhe havia ficado dos tempos em que havia sido lobo, o
músico afinava o violoncelo pelo lá do diapasão, restabelecia amorosa-
mente as harmonias do instrumento depois do bruto trato que a
trepidação do táxi sobre as pedras da calçada lhe infligira. Por
momentos havia conseguido esquecer a mulher do camarote, não
exactamente a ela, mas à inquietante conversação que haviam mantido
à porta dos artistas, se bem que a violenta troca de palavras no táxi
continuava a ouvir-se lá atrás, como um abafado rufar de tambores. Da
mulher do camarote não se esquecia, da mulher do camarote não queria
esquecer-se. Via-a de pé, com as mãos cruzadas sobre o peito, sentia que
lhe tocava o seu olhar intenso, duro como diamante e como ele
resplandecendo quando ela sorriu. Pensou que no sábado a tornaria a
ver, sim, vê-la-ia, mas ela já não se poria de pé nem cruzaria as mãos
sobre o peito, nem o olharia de longe, esse momento mágico havia sido
engolido, desfeito pelo momento seguinte, quando se virou para a ver
pela derradeira vez, assim o cria, e ela já lá não estava. o diapasão
regressara ao silêncio, o violoncelo recuperara a afinação e o telefone
tocou. o músico sobressaltou-se, olhou o relógio, quase uma e meia.
Quem diabo será a esta hora, pensou. Levantou o auscultador e durante
uns segundos ficou à espera. Era absurdo, claro, ele é que deveria falar,
dizer o nome, ou o número do telefone, provavelmente responderiam
do outro lado, Foi engano, desculpe, mas a voz que falou tinha
preferido perguntar, É o cão que está a atender o telefone, se é ele, ao
menos que faça o favor de ladrar, o violoncelista respondeu, sim, sou o
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cão, mas já há muito tempo que deixei de ladrar, também perdi o hábito
de morder, a não ser a mim mesmo quando a vida me repugna, Não se
zangue, estou a telefonar-lhe para que me perdoe, a nossa conversa
meteu-se logo por um atalho perigoso, e o resultado viu-se, um
desastre, Alguém a desviou para lá, mas não eu, A culpa foi toda
minha, em geral sou uma pessoa equilibrada, serena, Não me pareceu
nem uma cousa nem outra, Talvez sofra de dupla personalidade, Nesse
caso devemos ser iguais, eu próprio sou cão e homem, As ironias não
soam bem na sua boca, suponho que o seu ouvido musical já lho terá
dito, As dissonâncias também fazem parte da música, minha senhora,
Não me chame minha senhora, Não tenho outro modo de tratá-la,
ignoro como se chama, o que faz, o que é, A seu tempo o virá a saber, as
pressas são más conselheiras. mesmo agora acabámos de conhecer-nos,
Vai mais adiantada que eu, tem o meu número de telefone, Para isso
servem os serviços de informações, a recepção encarregou-se de
averiguar. É pena que este aparelho seja antigo. Porquê. se fosse dos
actuais eu já saberia donde me está a falar, Estou a falar-lhe do quarto
do hotel, Grande novidade, E quanto à antiguidade do seu telefone,
tenho de lhe dizer que contava que assim fosse, que não me surpreende
nada, Porquê, Porque em si tudo parece antigo, é como se em lugar de
cinquenta anos tivesse quinhentos. Como sabe que tenho cinquenta
anos, sou muito boa a calcular idades, nunca falho, Está-me a parecer
que presume demasiado de nunca falhar, Leva razão, hoje, por
exemplo, falhei duas vezes, posso jurar que nunca me tinha acontecido,
Não percebo. Tenho uma carta para lhe entregar e não lha entreguei.
podia tê-lo feito à saída do teatro ou no táxi, Que carta é essa,
Assentemos em que a escrevi depois de ter assistido ao ensaio do seu
concerto, Estava lá, Estava, Não a vi, É natural, não podia ver-me, De
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qualquer maneira, não é o meu concerto, sempre modesto, E assen-
temos não é a mesma cousa que ser certo, Às vezes, sim, Mas neste caso,
não, Parabéns, além de modesto, perspicaz. Que carta é essa, Também a
seu tempo o saberá, Porquê não ma entregou, se teve oportunidade
para isso, Duas oportunidades. Insisto, porquê não ma deu, Isso é o que
eu espero vir a saber, talvez lha entregue no sábado, depois do concerto,
Segunda-feira já terei saído da cidade, Não vive aqui, Viver aqui, o que
se chama viver, não ViVo, Não entendo nada, falar consigo é o mesmo
que ter caído num labirinto sem portas. ora aí está uma excelente
definição da vida, Você não é a vida, sou muito menos complicada que
ela. Alguém escreveu que cada um de nós é por enquanto a vida, sim,
por enquanto. só por enquanto. Quem dera que esta confusão ficasse
esclarecida depois de amanhã, a carta, a razão porque não ma deu,
tudo, estou cansado de mistérios, Isso a que chama mistérios é muitas
vezes uma protecção. há os que levam armaduras, há os que levam
mistérios, Protecção ou não, quero ver essa carta, se eu não falhar
terceira vez, vê-la-á, E porquê irá falhar terceira vez, se tal suceder só
poderá ser pela mesma razão que falhei nas anteriores, Não brinque
comigo, estamos como no jogo do gato e do rato, o tal jogo em que o
gato sempre acaba por apanhar o rato, Excepto se o rato conseguir pôr
um guizo no pescoço do gato. A resposta é boa, sim senhor, mas não
passa de um sonho fútil, de uma fantasia de desenhos animados, ainda
que o gato estivesse a dormir, o ruído acordá-lo-a, e então adeus rato,
sou eu esse rato a quem está a dizer adeus, se estamos metidos no jogo,
um dos dois terá de sê-lo forçosamente. e eu não o vejo a si com figura
nem astúcia para gato, Portanto condenado a ser rato toda a vida,
Enquanto ela durar, sim, um rato violoncelista,outro desenho animado,
Ainda não reparou que os seres humanos são desenhos animados, Você
198
também, suponho. Teve ocasião de ver o que pareço, uma linda mulher,
obrigada. Não sei se já se apercebeu de que esta conversação ao telefone
se parece muito com um flarte, se a telefonista do hotel se diverte a
escutar as conversas dos hóspedes. já terá chegado a essa mesma
conclusão, Mesmo que seja assim, não há que temer consequências
graves, a mulher do camarote, cujo nome continuo a ignorar, partirá na
segunda-feira. Para não voltar nunca mais, Tem a certeza, Dificilmente
se repetirão os motivos que me fizeram vir desta vez.
Dificilmente não significa que venha a ser impossível. Tomarei as
providências necessárias para não ter de repetir a viagem. Apesar de
tudo valeu a pena, Apesar de tudo, quê. Desculpe, não fui delicado,
queria dizer que, Não se canse a ser amável comigo, não estou
habituada, além disso é fácil adivinhar o que ia a dizer, no entanto, se
considera que deverá dar-me uma explicação mais completa. talvez
possamos continuar a conversa no sábado, Não a verei daqui até lá,
Não. A ligação foi cortada. o violoncelista olhou o telefone que ainda
tinha na mão, húmida de nervosismo, Devo ter sonhado, murmurou.
isto não é aventura para acontecer-me a mim. Deixou cair o telefone no
descanso e perguntou. agora em voz alta, ao piano, ao violoncelo, às
estantes, Que me quer esta mulher, quem é, porquê aparece na minha
vida. Despertado pelo ruído, o cão tinha levantado a cabeça. Nos seus
olhos havia uma resposta. mas o violoncelista não lhe deu atenção,
cruzava a sala de um lado para outro, com os nervos mais agitados que
antes, e a resposta era assim, Agora que falas nisso, tenho a vaga
lembrança de haver dormido no regaço de uma mulher, pode ser que
tenha sido ela, Que regaço, que mulher, teria perguntado o violonce-
lista, Tu dormias, onde, Aqui. na tua cama, E ela, onde estava, Por aí,
Boa piada. senhor cão, há quanto tempo é que não entra uma mulher
199
nesta casa, naquele quarto. vá. diga-me. Como deverás saber, a
percepção de tempo da espécie dos caninos não é igual à dos humanos.
mas realmente creio ter sido muito o tempo que passou desde a última
senhora que recebeste na tua cama, isto dito sem ironia, claro está,
Portanto sonhaste, É o mais provável. Os cães são uns sonhadores
incorrigíveis. chegamos a sonhar de olhos abertos, basta vermos algo na
penumbra para logo imaginarmos que aquilo é um regaço de mulher e
saltarmos para ele, Cousas de cães, diria o Violoncelista. Mesmo não
sendo certo, responderia o cão, não nos queixamos. No seu quarto do
hotel, a morte, despida, está parada diante do espelho. Não sabe quem
é.
Durante todo o dia seguinte a mulher não telefonou, o violoncelista
não saiu de casa, à espera. A noite passou. e nem uma palavra. o
violoncelista dormiu ainda pior que na noite anterior. Na manhã de
sábado, antes de sair para o ensaio, entrou-lhe na cabeça a peregrina
ideia de ir perguntar pelos hotéis das imediações se ali estaria
hospedada uma mulher com esta figura, esta cor de cabelo, esta cor dos
olhos, esta forma de boca, este sorriso, este mover das mãos, mas
desistiu do alucinado propósito. era óbvio que seria imediatamente
despedido com um ar de indisfarçável suspeita e um seco Não estamos
autorizados a dar a informação que pede. o ensaio não lhe correu bem
nem mal, limitou-se a tocar o que estava escrito no papel. sem outro
empenho que não errar demasiadas notas. Quando terminou correu
outra vez para casa. Ia a pensar que se ela tivesse telefonado durante a
sua ausência não teria encontrado um miserável gravador para deixar o
recado, Não sou um homem de há quinhentos anos, sou um troglodita
da idade da pedra, toda a gente usa atendedores de chamadas menos
200
eu, resmungou. se precisava de uma prova de que ela não tinha
telefonado, deram-lha as horas seguintes. Em princípio, quem telefonou
e não teve resposta, telefonará outra vez, mas o maldito aparelho
manteve-se silencioso toda a tarde, alheio aos olhares cada vez mais
desesperançados que o violoncelista lhe lançava. Paciência, tudo indica
que ela não ligará, talvez por uma razão ou outra não lhe tivesse sido
possível, mas irá ao concerto, regressarão os dois no mesmo táxi como
aconteceu depois do outro concerto, e, quando aqui chegarem, ele
convidá-la-á a entrar, e então poderão conversar tranquilamente. ela
dar-lhe-á finalmente a ansiada carta e depois ambos acharão muita
graça aos exagerados elogios que ela, arrastada pelo entusiasmo
artístico, havia escrito após o ensaio em que ele não a tinha visto, e ele
dirá que não é nenhum rostropovitch, e ela dirá sabe-se lá o que o
futuro lhe reserva, e quando já não tiverem mais nada que dizer ou
quando as palavras começarem a ir por um lado e os pensamentos por
outro, então se verá se algo poderá suceder que valha a pena recordar
quando formos velhos. Foi neste estado de espírito que o violoncelista
saiu de casa, foi este estado de espírito que o levou ao teatro, com este
estado de espírito entrou no palco e foi sentar-se no seu lugar. O
camarote estava vazio. Atrasou-se, disse consigo mesmo, deverá estar a
ponto de chegar, ainda há pessoas a entrar na sala. Era certo, pedindo
desculpa pelo incómodo de fazer levantar os que já estavam sentados,
os retardatários iam ocupando as suas cadeiras, mas a mulher não
apareceu. Talvez no intervalo. Nada. o camarote permaneceu vazio até
ao fim da função. Contudo, ainda havia uma esperança razoável, a de
que, tendo-lhe sido impossível vir ao espectáculo por motivos que já
explicaria, estivesse à sua espera lá fora, na porta dos artistas. Não
estava. E como as esperanças têm esse fado que cumprir, nascer umas
201
das outras, por isso é que, apesar de tantas decepções, ainda não se
acabaram no mundo, poderia ser que ela o aguardasse à entrada do
prédio comum, sorriso nos lábios e a carta na mão, Aqui a tem, o
prometido é devido. Também não estava, o violoncelista entrou em casa
como um autómato, dos antigos, dos da primeira geração, daqueles que
tinham de pedir licença a uma perna para poderem mover a outra.
Empurrou o cão que o viera saudar, largou o violoncelo onde calhou e
foi-se estender em cima da cama. Aprende, pensava, aprende de uma
vez, pedaço de estúpido. portaste-te como um perfeito imbecil, puseste
os significados que desejavas em palavras que afinal de contas tinham
outros sentidos, e mesmo esses não os conheces nem conhecerás.
acreditaste em sorrisos que não passavam de meras e deliberadas
contracções musculares. esqueceste-te de que levas quinhentos anos às
costas apesar de caridosamente to haverem recordado, e agora eis-te aí,
como um trapo, deitado na cama onde esperavas recebê-la, enquanto
ela se está rindo da triste figura que fizeste e da tua incurável parvoíce.
Esquecido já da ofensa de ter sido rejeitado, o cão veio consolá-lo. Pôs
as patas da frente em cima do colchão, arrastou o corpo até chegar à
altura da mão esquerda do dono, ali abandonada como algo inútil,
inservível, e sobre ela, suavemente, pousou a cabeça. Podia tê-la
lambido e tornado a lamber, como costumam fazer os cães vulgares,
mas a natureza, desta vez benévola, reservara para ele uma
sensibilidade tão especial que até lhe permitia inventar gestos diferentes
para expressar as sempre mesmas e únicas emoções. o violoncelista
virou-se para o lado do cão, moveu e dobrou o corpo até que a sua
própria cabeça pôde ficar a um palmo da cabeça do animal, e assim
ficaram, a olhar-se, dizendo sem necessidade de palavras, pensando
bem, não tenho ideia nenhuma de quem és, mas isso não conta, o que
202
importa é que gostemos um do outro. A amargura do violoncelista foi
diminuindo a pouco e pouco. em verdade o mundo está mais que farto
de episódios como este, ele esperou e ela faltou. ela esperou e ele não
veio, no fundo, e aqui para nós, cépticos e descrentes que somos, antes
isso que uma perna partida. Era fácil dizê-lo, mas bem melhor seria tê-
lo calado, porque as palavras têm muitas vezes efeitos contrários aos
que se haviam proposto, tanto assim que não é raro que estes homens
ou aquelas mulheres jurem e praguejem, Detesto-a, Detesto-o, e logo
rebentem lágrimas depois da palavra dita. o violoncelista sentou-se na
cama, abraçou o cão, que lhe pusera as patas nos joelhos em último
gesto de solidariedade, e disse, como quem a si mesmo se repreendia.
um pouco de dignidade, por favor, já basta de lamúrias. Depois, para o
cão, Tens fome, claro. Abanando o rabo, o cão respondeu que sim
senhor, tinha fome, há uma quantidade de horas que não comia, e os
dois foram para a cozinha. o violoncelista não comeu, não lhe apetecia.
Além disso o nó que tinha na garganta não o deixaria engolir. passada
meia hora já estava na cama, havia tomado uma pastilha para o ajudar a
entrar no sono, mas de pouco lhe serviu. Acordava e adormecia.
acordava e adormecia, sempre com a ideia de que tinha de correr atrás
do sono para o agarrar e impedir que a insónia viesse ocupar-lhe o
outro lado da cama. Não sonhou com a mulher do camarote, mas houve
um momento em que despertou e a viu de pé, no meio da sala de
música, com as mãos cruzadas sobre o peito.
O dia seguinte era domingo, e domingo é o dia de levar o cão a
passear. Amor com amor se paga, parecia dizer-lhe o animal, já com a
trela na boca e a postos para o passeio. Quando, já no parque, o
violoncelista se encaminhava para o banco onde era costume sentar-se,
viu, de longe, que uma mulher já se encontrava ali.
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Os bancos de jardim são livres, públicos e em geral gratuitos. Não se
pode dizer a quem chegou primeiro que nós, Este banco é meu, tenha a
bondade de ir procurar outro. Nunca o faria um homem de boa
educação como o violoncelista, e menos ainda se lhe tivesse parecido
reconhecer na pessoa a famosa mulher do camarote de primeira ordem,
a mulher que havia faltado ao encontro, a mulher a quem vira no meio
da sala de música com as mãos cruzadas sobre o peito. Como se sabe,
aos cinquenta anos os olhos já não são de fiar, começamos a piscar, a
semicerrá-los como se quiséssemos imitar os heróis do faroeste ou os
navegadores de antanho, em cima do cavalo ou à proa da caravela, com
a mão em pala, a esquadrinhar os horizontes distantes. A mulher está
vestida de maneira diferente, de calças e casaco de pele, é com certeza
outra pessoa, isto diz o violoncelista ao coração, mas este, que tem
melhores olhos, diz-te que abras os teus, que é ela, e agora vê lá bem
como te vais portar. A mulher levantou a cabeça e o violoncelista
deixou de ter dúvidas, era ela. Bons dias, disse quando se deteve junto
do banco, hoje poderia esperar tudo, mas não encontrá-la aqui, Bons
dias, vim para me despedir e pedir-lhe desculpa por não ter aparecido
ontem no concerto. o violoncelista sentou-se, tirou a trela ao cão, disse-
lhe Vai, e, sem olhar a mulher, respondeu, Não tenho nada que
desculpar-lhe, é uma cousa que está sempre a suceder, as pessoas
compram bilhete e depois, por isto ou por aquilo, não podem ir, é
natural, E sobre o nosso adeus, não tem opinião, perguntou a mulher, É
uma delicadeza muito grande da sua parte considerar que deveria vir
despedir-se de um desconhecido, ainda que eu não seja capaz de
imaginar como pôde saber que venho a este parque todos os domingos,
Há poucas cousas que eu não saiba de si, Por favor, não regressemos às
absurdas conversas que tivemos na quinta-feira à porta do teatro e
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depois ao telefone, não sabe nada de mim, nunca nos tínhamos visto
antes, Lembre-se de que estive no ensaio, E não compreendo como o
conseguiu, o maestro é muito rigoroso com a presença de estranhos, e
agora não me venha para cá com a história de que também o conhece a
ele, Não tanto como a si, mas você é uma excepção, Melhor que não o
fosse, Porquê, Quer que lho diga, quer mesmo que lho diga, perguntou
o violoncelista com uma veemência que roçava o desespero. Quero,
Porque me apaixonei por uma mulher de quem não sei nada, que anda
a divertir-se à minha custa, que irá amanhã sei lá para onde e que não
voltarei a ver, É hoje que partirei, não amanhã, Mais essa, E não é
verdade que tenha andado a divertir-me à sua custa, Pois se não anda,
imita muito bem, Quanto a ter-se apaixonado por mim, não espere que
lhe responda, há certas palavras que estão proibidas na minha boca,
Mais um mistério, E não será o último, Com esta despedida vão ficar
todos resolvidos, outros poderão começar, Por favor, deixe-me, não me
atormente mais, A carta, Não quero saber da carta para nada, Mesmo
que quisesse não lha poderia dar, deixei-a no hotel, disse a mulher
sorrindo, Pois então rasgue-a. Pensarei no que devo fazer com ela, Não
precisa pensar. Rasgue-a e acabou-se. A mulher pôs-se de pé. Já se vai
embora, perguntou o violoncelista. Não se havia levantado, estava de
cabeça baixa, ainda tinha algo para dizer. Nunca lhe toquei, murmurou,
Fui eu que não quis que me tocasse, Como o conseguiu, Para mim não é
difícil, Nem sequer agora, Nem sequer agora, Ao menos um aperto de
mão, Tenho as mãos frias. o violoncelista ergueu a cabeça. A mulher já
não estava ali.
Homem e cão saíram cedo do parque, as sanduíches foram
compradas para comer em casa, não houve sestas ao sol. A tarde foi
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longa e triste, o músico pegou num livro, leu meia página e atirou-o
para o lado. sentou-se ao piano para tocar um pouco. mas as mãos não
lhe obedeceram, estavam entorpecidas, frias, como mortas. E, quando se
voltou para o amado violoncelo, foi o próprio instrumento que se lhe
negou. Dormitou numa cadeira, quis afundar-se num sono
interminável, não acordar nunca mais. Deitado no chão, à espera de um
sinal que não vinha, o cão olhava-o. Talvez a causa do abatimento do
dono fosse a mulher que apareceu no parque, pensou. afinal não era
certo aquele provérbio que dizia que o que os olhos não vêem, não o
sente o coração. os provérbios estão constantemente a enganar-nos,
concluiu o cão. Eram onze horas quando a campainha da porta tocou.
Algum vizinho com problemas, pensou o violoncelista, e levantou-se
para ir abrir.
Boas noites, disse a mulher do camarote, pisando o limiar, Boas
noites, respondeu o músico, esforçando-se por dominar o espasmo que
lhe contraía a glote. Não me pede que entre, Claro que sim, faça o favor.
Afastou-se para a deixar passar. fechou aporta. Tudo devagar.
lentamente, para que o coração não lhe explodisse. Com as pernas
tremendo acompanhou-a à sala de música, com a mão que tremia
indicou-lhe a cadeira. Pensei que já se tivesse ido embora, disse, Como
vê, resolvi ficar, respondeu a mulher, Mas partirá amanhã, A isso me
comprometi. suponho que veio para trazer acarta, que não a rasgou.
sim, tenho-a aqui nesta bolsa, Dê-ma. então, Temos tempo, recordo ter-
lhe dito que as pressas são más conselheiras, Como queira. estou ao seu
dispor. Di-lo a sério.
É o meu maior defeito, digo tudo a sério, mesmo quando faço rir.
principalmente quando faço rir, Nesse caso atrevo-me a pedir-lhe um
favor, Qual, Compense-me de ter faltado ontem ao concerto, Não vejo
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de que maneira, Tem ali um piano. Nem pense nisso, sou um pianista
medíocre, ou o violoncelo, É outra cousa, sim, poderei tocar-lhe uma ou
duas peças se faz muita questão. Posso escolher, perguntou a mulher,
sim, mas só o que estiver ao meu alcance, dentro das minhas
possibilidades. A mulher pegou no caderno da suite número seis de
bach e disse, Isto, É muito longa, leva mais de meia hora, e já começa a
ser tarde, Repito-lhe que temos tempo, Há uma passagem no prelúdio
em que tenho dificuldades, Não importa. salta-lhe por cima quando lá
chegar, disse a mulher, ou nem será preciso. vai ver que tocará ainda
melhor que rostropovitch. o violoncelista sorriu, Pode ter a certeza.
Abriu o caderno sobre o atril, respirou fundo, colocou a mão esquerda
no braço do violoncelo, a mão direita conduziu o arco até quase roçar as
cordas, e começou. De mais sabia ele que não era rostropovitch. Que
não passava de um solista de orquestra quando o acaso de um
programa assim o exigia, mas aqui, perante esta mulher, com o seu cão
deitado aos pés, a esta hora da noite, rodeado de livros, de cadernos de
música, de partituras. era o próprio johann sebastian bach compondo
em cöthen o que mais tarde seria chamado opus mil e doze, obras elas
quase tantas como foram as da criação. A passagem difícil foi transposta
sem que ele se tivesse apercebido da proeza que havia cometido, mãos
felizes faziam murmurar, falar, cantar, rugir o violoncelo, eis o que
faltou a Rostropovitch, esta sala de música, esta hora, esta mulher.
Quando ele terminou, as mãos dela já não estavam frias, as suas ardiam,
por isso foi que as mãos se deram às mãos e não se estranharam.
Passava muito da uma hora da madrugada quando o violoncelista
perguntou, Quer que chame um táxi para a levar ao hotel, e a mulher
respondeu, Não, ficarei contigo, e ofereceu-lhe aboca. Entraram no
quarto. despiram-se e o que estava escrito que aconteceria, aconteceu
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enfim, e outra vez, e outra ainda. Ele adormeceu, ela não. Então ela, a
morte, levantou-se, abriu a bolsa que tinha deixado na sala e retirou a
carta de cor violeta. olhou em redor como se estivesse à procura de um
lugar onde a pudesse deixar, sobre o piano, metida entre as cordas do
violoncelo, ou então no próprio quarto. debaixo da almofada em que a
cabeça do homem descansava. Não o fez. saiu para a cozinha, acendeu
um fósforo, um fósforo humilde, ela que poderia desfazer o papel com o
olhar, reduzi-lo a uma impalpável poeira, ela que poderia pegar-lhe
fogo só com o contacto dos dedos, e era um simples fósforo, o fósforo
comum, o fósforo de todos os dias, que fazia arder a carta da morte,
essa que só a morte podia destruir. Não ficaram cinzas. A morte voltou
para a cama, abraçou-se ao homem e, sem compreender o que lhe
estava a suceder, ela que nunca dormia, sentiu que o sono lhe fazia
descair suavemente as pálpebras. No dia seguinte ninguém morreu.
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