menos verdade que os povos não são sempre a mesma cousa. Numa

palavra, em um caso como no outro, depende. ou é conforme, se se

preferir dizê-lo em duas palavras. Como se vai ver, qualquer obser-

vador, mesmo que não especialmente propenso à imparcialidade dos

juízos, não teria a menor dúvida em reconhecer que o governo soube

mostrar-se à altura da gravidade da situação.

Todos estaremos lembrados de que na alegria daqueles primeiros e

deliciosos dias de imortalidade, afinal tão breves, a que este povo

inocentemente se entregou, uma senhora, viúva de pouco tempo, teve a

ideia de celebrar essa felicidade nova pendurando na varanda florida

da sua casa de jantar, aquela que dava para a rua, a bandeira nacional.

Também estaremos recordados de como o embandeiramento, em

105

menos de quarenta e oito horas, qual rastilho de pólvora, qual nova

epidemia, alastrou a todo o país. Passados estes sete meses de contínuas

e mal-sofridas desilusões, só raras bandeiras haviam sobrevivido, e,

mesmo essas, reduzidas a melancólicos farrapos, com as cores comidas

pelo sol e deslavadas pela chuva, além de lamentavelmente desman-

chada a arquitectura do emblema. Dando prova de um admirável

espírito previsor, o governo, entre outras medidas de urgência desti-

nadas a suavizar os danos colaterais do inopinado regresso da morte,

tinha recuperado a bandeira da pátria como indicativo de que ali,

naquele terceiro andar esquerdo, havia um morto à espera. Assim

industriadas, as famílias que tinham sido feridas pela odiosa parca

mandaram um dos seus à loja a comprar o símbolo, penduraram-no à

janela e, enquanto enxotavam as moscas da cara do falecido, puseram-

se a aguardar o médico que viria certificar o óbito. Reconheça-se que a

ideia não só era eficaz, como da mais extremada elegância. Os médicos

de cada cidade, vila, aldeia ou simples lugar, de carro, de bicicleta ou a

pé, só tinham de percorrer as ruas de olho atento à bandeira, subir à

casa assinalada e, tendo comprovado a defunção à vista desarmada,

sem a ajuda de instrumentos, porquanto outros exames mais chegados

ao corpo se haviam tornado impossíveis por causa da urgência, deixa-

vam um papel assinado com o qual se tranquilizariam as agências

funerárias sobre a natureza específica da matéria-prima, isto é, que se a

esta enlutada casa tinham vindo por lebre, não seria gato o que leva-

riam dela. Como já se terá percebido, a bem lembrada utilização da

bandeira nacional iria ter uma dupla finalidade e uma dupla vantagem.

Havendo começado por servir de guia aos médicos, iria ser agora farol

para os empacotadores do defunto. No caso das cidades maiores, e com

distinção para a capital, metrópole desproporcionada em relação ao

106

pequeno tamanho do país, a divisão do espaço urbano por talhões, com

vista ao estabelecimento de quotas proporcionais de participação no

bolo, como com fino espírito havia dito o desditoso presidente da asso-

ciação dos funerários, facilitaria enormemente a tarefa dos angariadores

de fretes humanos na sua correria contra o tempo. um outro efeito

subsequente da bandeira, não previsto, não esperado, mas que veio

mostrar a que ponto podemos estar equivocados quando nos dedi-

camos a cultivar cepticismos da espécie sistemática, foi o virtuoso gesto

de uns quantos cidadãos respeitadores das mais arraigadas tradições de

esmerada conduta social e que ainda usavam chapéu, descobrindo-se ao

passar diante das festoadas janelas e deixando no ar a dúvida admirável

de se o faziam por causa do falecido ou do símbolo vivo e sagrado da

pátria.

Os jornais, nem seria necessário dizê-lo, tiveram uma procura

enorme, maior ainda do que quando pareceu que se tinha deixado de

morrer. Claro que um grande número de pessoas já haviam sido infor-

madas pela televisão do cataclismo que lhes caíra sobre ascabeças,

muitas delas tinham até parentes mortos em casa à espera do médico e

bandeiras chorando na sacada, mas é muito fácil de compreender que

existe uma certa diferença entre a imagem nervosa de um director-geral

falando ontem à noite no pequeno ecrã e estas páginas convulsas,

agitadas, manchadas de títulos exclamativos e apocalípticos que se

podem dobrar, guardar no bolso e levar para reler em casa com todo o

vagar e de que nos contentaremos com respigar aqui estes poucos mas

expressivos exemplos, Depois Do Paraíso o Inferno, A Morte Dirige o

Baile, Imortais Por Pouco Tempo, outra Vez Condenados A Morrer,

Xeque-Mate, Aviso Prévio A Partir De Agora, sem Apelo E Com

107

Agravo, um Papel De Cor Violeta, sessenta E Dois Mil Mortos Em

Menos De um segundo, A Morte Ataca À Meia-Noite, Ninguém Foge

Ao seu Destino, sair Do sonho Para Cair No Pesadelo, Regresso A

Normalidade, Que Fizemos Nós Para Merecer Isto, et caetera, et caetera.

Todos os jornais, sem excepção, publicavam na primeira página o

manuscrito da morte, mas um deles, para tornar mais fácil a leitura,

reproduziu o texto em letra de forma corpo catorze dentro de uma

caixa, corrigiu-lhe a pontuação e a sintaxe, acertou-lhe as conjugações

verbais, pôs as maiúsculas onde faltavam, sem esquecer a assinatura

final, que passou de morte a Morte, uma diferença inapreciável ao

ouvido, mas que irá provocar nesse mesmo dia um indignado protesto

da autora da missiva, também por escrito e no mesmo papel de cor

violeta. segundo a opinião autorizada de um gramático consultado pelo

jornal, a morte, simplesmente, não dominava nem sequer os primeiros

rudimentos da arte de escrever. Logo a caligrafia, disse ele, é estranha-

mente irregular, parece que se reuniram ali todos os modos conhecidos,

possíveis e aberrantes de traçar as letras do alfabeto latino, como se

cada uma delas tivesse sido escrita por uma pessoa diferente, mas isso

ainda se perdoaria, ainda poderia ser tomado como defeito menor à

vista da sintaxe caótica, da ausência de pontos finais, do não uso de

parêntesis absolutamente necessários, da eliminação obsessiva dos

parágrafos, da virgulação aos saltinhos e, pecado sem perdão, da

intencional e quase diabólica abolição da letra maiúscula, que, imagine-

se, chega a ser omitida na própria assinatura da carta e substituída pela

minúscula correspondente. Uma vergonha, uma provocação, conti-

nuava o gramático, e perguntava, se a morte, que teve o impagável

privilégio de assistir no passado aos maiores génios da literatura,

escreve desta maneira, como não o farão amanhã as nossas crianças se

108

lhes dá para imitar semelhante monstruosidade filológica, a pretexto de

que, andando a morte por cá há tanto tempo, deverá saber tudo de

todos os ramos do conhecimento. E o gramático terminava, os dispa-

rates sintácticos que recheiam a lamentável carta levar-me-iam a pensar

que estaríamos perante uma gigantesca e grosseira mistificação se não

fosse a tristíssima realidade, a dolorosa evidência de que a terrível

ameaça se cumpriu. Na tarde deste mesmo dia, como já havíamos

antecipado, chegou à redacção do jornal uma carta da morte exigindo,

nos termos mais enérgicos, a imediata rectificação do seu nome, senhor

director, escrevia, eu não sou a Morte, sou simplesmente morte, a Morte

é uma cousa que aos senhores nem por sombras lhes pode passar pela

cabeça o que seja, vossemecês, os seres humanos, só conhecem, tome

nota o gramático de que eu também saberia pôr vós, os seres humanos,

só conheceis esta pequena morte quotidiana que eu sou, esta que até

mesmo nos piores desastres é incapaz de impedir que a vida continue,

um dia virão a saber o que é a Morte com letra grande, nesse momento,

se ela, improvavelmente, vos desse tempo para isso, perceberíeis a

diferença real que há entre o relativo e o absoluto, entre o cheio e o

vazio, entre o ainda ser e o não ser já, e quando falo de diferença real

estou a referir-me a algo que as palavras jamais poderão exprimir,

relativo, absoluto, cheio, vazio, ser ainda, não ser já, que é isso, senhor

director, porque as palavras, se o não sabe, movem-se muito, mudam

de um dia para o outro, são instáveis como sombras, sombras elas

mesmas, que tanto estão como deixaram de estar, bolas de sabão,

conchas de que mal se sente a respiração, troncos cortados, aí lhe fica a

informação, é gratuita, não cobro nada por ela, entretanto preocupe-se

com explicar bem aos seus leitores os comos e os porquês da vida e da

morte, e, já agora, regressando ao objectivo desta carta, escrita, tal como

109

a que foi lida na televisão, de meu punho e letra, convido-o instante-

mente a cumprir aquelas honradas disposições da lei de imprensa que

mandam rectificar no mesmo lugar e com a mesma valorização gráfica

o erro, a omissão ou o lapso cometidos, arriscando-se neste caso o

senhor director, se esta carta não for publicada na íntegra, a que eu lhe

despache, amanhã mesmo, com efeitos imediatos, o aviso prévio que

tenho reservado para si daqui por alguns anos, não lhe direi quantos

para não lhe amargar o resto da vida, sem outro assunto, subscrevo-me

com a atenção devida, morte. A carta apareceu pontualíssima no dia

seguinte com derramadas desculpas do director e também em dupli-

cado, isto é, manuscrita e em letra deforma, corpo catorze e caixa. só

quando o jornal saiu à rua é que o director se atreveu a sair do bunker

em que se havia encerrado a sete chaves a partir do momento em que

leu a cominatória carta. E tão assustado estava ainda que se recusou a

publicar o estudo grafológico que um importante especialista na

matéria lhe foi entregar pessoalmente. Já basta que me tivesse metido

em sarilhos com a assinatura da morte com maiúscula, disse, leve a sua

análise a outro jornal, dividimos o mal pelas aldeias e a partir daqui seja

o que deus quiser, tudo menos ter de sofrer outro susto igual ao que

apanhei. o grafólogo foi a um jornal, foi a outro, e a outro, e só à quarta

vez, a ponto já de perder as esperanças, conseguiu que lhe recebessem o

fruto das não poucas horas do labiríntico trabalho a que, com lupa

diurna e nocturna, se havia dedicado. O substancioso e suculento

relatório começava por recordar que a interpretação da escrita, nas suas

origens, havia sido um dos ramos da fisiognomia, sendo os outros, para

informação de quem não esteja a par desta ciência exacta, a mímica, os

gestos, a pantomima e a fonognomonia, feito o que passou a chamar à

colação as maiores autoridades na complexa matéria, como foram, cada

110

um em seu tempo e lugar, camillo baldi, johann caspar lavater, édouard

auguste patrice hocquart, adolf henze, jean-hippolyte michon, william

thierry preyer, cesare lombroso, jules crépieux-jamin, rudolf pophal,

ludwig klages, wilhelm helmuth müller, alice enskat, robert heiss,

graças aos quais a grafologia havia sido reestruturada no seu aspecto

psicológico, demonstrando-se a ambivalência das particularidades

grafológicas e a necessidade de conceber a sua expressão como um

conjunto, posto o que, uma vez expostos os dados históricos e essenciais

da questão, o nosso grafólogo avançou pelo campo da definição

exaustiva das características principais da escrita sub judice, a saber, o

tamanho, a pressão, o arranjo, a disposição no espaço, os ângulos, a

pontuação, a proporção de traços altos e baixos das letras, ou, por

outras palavras, a intensidade, a forma, a inclinação, a direcção e a

continuação dos signos gráficos, e, finalmente, havendo deixado claro o

facto de que o objectivo do seu estudo não era um diagnóstico clínico,

nem uma análise do carácter, nem um exame de aptidão profissional, o

especialista concentrou a sua atenção nas evidentes mostras relacio-

nadas com o foro criminológico que a escrita a cada passo ia revelando,

Não obstante, escrevia frustrado e pesaroso, encontro-me colocado

perante uma contradição que não vejo forma nenhuma de solucionar,

que duvido mesmo que haja para ela resolução possível, e é que se é

certo que todos os vectores da metódica e minuciosa análise grafológica

a que procedi apontam a que a autora do escrito é aquilo a que se

chama uma serial killer, uma assassina em série, outra verdade igual-

mente irrefragável, igualmente resultante do meu exame e que de

algum modo vem desbaratar a tese anterior, acabou por se me impor,

isto é, a verdade de que a pessoa que escreveu esta carta está morta.

Assim era, de facto, e a própria morte não teve mais remédio que

111

confirmá-lo, Tem razão, o senhor grafólogo, foram as suas palavras

depois de ler a erudita demonstração. só não se compreendia como,

estando ela morta, e toda feita ossos, fosse capaz de matar. E, sobretudo,

que escrevesse cartas. Estes mistérios nunca serão esclarecidos.


Ocupados a explicar o que depois da hora fatídica havia sucedido às

sessenta e duas mil quinhentas e oitenta pessoas que se encontravam

em estado de vida suspensa, adiámos para um momento mais opor-

tuno, que veio a ser este, as indispensáveis reflexões sobre a maneira

como reagiram à mudança de situação os lares do feliz ocaso, os hospi-

tais, as companhias de seguros, a máphia e a igreja, especialmente a

católica, maioritária no país, ao ponto de nele ser crença comum que o

senhor jesus cristo não quereria outro lugar para nascer se tivesse de

repetir, de a até z, a sua primeira e até agora, que se saiba, única

existência terreal. Nos lares do feliz ocaso, começando por eles, os

sentimentos foram o que se esperaria. se se levar em conta que a inin-

terrupta rotação dos internados, como ficou claramente explicado logo

no princípio destes surpreendentes sucessos, era a própria condição da

prosperidade económica das empresas, o regresso da morte teria de ser,

como foi, motivo de alegria e renovadas esperanças para as respectivas

administrações. Passado o choque inicial causado pela leitura da famosa

carta na televisão, os gerentes começaram imediatamente a deitar

contas à vida e viram que todas lhes saíam certas. Não poucas garrafas

de champanhe foram bebidas à meia-noite para festejar o já não

esperado regresso à normalidade, o que, parecendo constituir o cúmulo

da indiferença e do desprezo pela vida alheia, não era, afinal, senão o

natural alívio, o legítimo desafogo de quem, posto perante uma porta

fechada e tendo perdido a chave, a via agora aberta de par em par,

112

escancarada, com o sol do outro lado. Dirão os escrupulosos que ao

menos se deveria ter evitado a ostentação ruidosa e pacóvia do cham-

panhe, o saltar da rolha, a espuma a escorrer, e que um discreto cálice

deporto ou madeira, uma gota de conhaque, um cheirinho de brande no

café, seriam festejo mais que suficiente, mas nós, aqui, que bem

sabemos com que facilidade o espírito deixa escapar as rédeas do corpo

quando a alegria se desmanda, ainda quando não se deva desculpar,

perdoar sempre se pode. Na manhã seguinte, os responsáveis pela

gerência chamaram as famílias para que fossem buscar os corpos,

mandaram arejar os quartos e mudar os lençóis, e após terem reunido o

pessoal para lhes comunicar que, afinal, a vida continuava, sentaram-se

a examinar a lista de pedidos de ingresso e a escolher, entre os preten-

dentes, aqueles que mais prometedores lhes parecessem. Por razões não

em todos os aspectos idênticas, mas de igual consideração, também a

disposição anímica dos administradores hospitalares e da classe médica

havia melhorado da noite para o dia. Embora, como já havia ficado dito

antes, uma grande parte dos doentes sem cura e cuja enfermidade havia

chegado ao seu extremo e derradeiro grau, se era lícito dizer tal de um

estado nosológico que se havia anunciado como eterno, tivessem sido

recambiados para as suas casas e famílias, Em que melhores mãos

poderiam estar os pobres diabos, perguntava-se hipocritamente, o certo

é que um elevado número deles, sem parentes conhecidos nem dinheiro

para pagar a pensão exigida nos lares do feliz ocaso, se amontoavam

por ali ao sabor do que calhasse, não já nos corredores, como é costume

velho destes beneméritos estabelecimentos de assistência, ontem, hoje e

sempre, mas em arrecadações e em recantos, em esconsos e em desvãos,

onde com frequência os deixavam abandonados por vários dias, sem

que isso importasse a quem quer que fosse, pois, como diziam médicos

113

e enfermeiros, por muito mal que se encontrassem, morrer não

poderiam. Agora já estavam mortos, levados dali e enterrados, o ar dos

hospitais tornara-se puro e cristalino, com aquele seu inconfundível

aroma de éter, tintura de iodo e creolina, como nas altas montanhas, a

céu aberto. Não se abriram garrafas de champanhe, mas os sorrisos

felizes dos administradores e directores clínicos eram um alívio para as

almas, e, no que aos médicos se refere, não há mais que dizer senão que

haviam recuperado o histórico olhar devorador com que seguiam o

pessoal feminino de enfermagem. Portanto, em todos os sentidos da

palavra, a normalidade.

Quanto às empresas seguradoras, terceiras da lista, não há até este

momento muito para informar, porquanto ainda não acabaram de

entender-se sobre se a actual situação, à luz das alterações introduzidas

nas apólices de seguro de vida e a que antes fizemos referência porme-

norizada, as prejudicaria ou beneficiaria. Não darão um passo sem

estarem bem seguras da firmeza do chão que pisam, mas, quando

finalmente o derem, ali mesmo implantarão novas raízes sob a forma de

contrato que consigam inventar mais adequada aos seus interesses,

Entretanto, como o futuro a deus pertence e porque não se sabe o que o

dia de amanhã nos virá trazer, continuarão a considerar como mortos

todos os segurados que atingirem a idade de oitenta anos, este pássaro,

pelo menos, já o têm bem seguro na mão, só falta ver se amanhã arran-

jarão maneira de fazer cair dois na rede. Há quem adiante, no entanto,

que, aproveitando a confusão que reina na sociedade, agora mais do

que nunca entre a espada e a parede, entre sila e caribdes, entre a cruz e

a caldeirinha, talvez não fosse má ideia aumentar para oitenta e cinco

ou mesmo noventa anos a idade da morte actuarial. o raciocínio dos que

defendem a alteração é transparente e claro como água, dizem que,

114

chegando àquelas idades, as pessoas, em geral, além de não terem já

parentes para lhes acudirem numa necessidade, ou terem-nos tão

velhos eles próprios que tanto faz, sofrem sérios rebaixamentos no valor

das suas pensões de reforma por efeito da inflação e dos crescentes

aumentos do custo de vida, causa de que muitíssimas vezes se vejam

forçadas a interromper o pagamento dos seus prémios de seguro,

dando às companhias o melhor dos motivos para considerarem nulo e

sem efeito o respectivo contrato. É uma desumanidade, objectam

alguns. Negócios são negócios, respondem outros.

Veremos no que isto vai dar.

Onde também a estas horas se está a falar muito de negócios é na

máphia. Talvez que por ter sido excessivamente minuciosa, admitimo-

lo sem reserva, a descrição feita nestas páginas dos negros túneis por

onde a organização criminosa penetrou na exploração funerária poderá

ter levado algum leitor a pensar que mísera máphia era esta se não

tinha outras maneiras de ganhar dinheiro com muito menor esforço e

mais pingues proventos. Tinha-as, e variadas, como qualquer das suas

congéneres espalhadas pelas sete partidas do mundo, porém,

habilíssima em equilíbrios e mútuas potenciações das tácticas e das

estratégias, a máphia local não se limitava a apostar prosaicamente no

lucro imediato, os seus objectivos eram muito mais vastos, visavam

nada menos que a eternidade, ou seja, implantar, com a derivação tácita

das famílias para a bondade da eutanásia e com as bênçãos do poder

político, que fingiria olhar para outro lado, o monopólio absoluto das

mortes e dos enterramentos dos seres humanos, assumindo no mesmo

passo a responsabilidade de manter a demografia nos níveis em cada

momento mais convenientes para o país, abrindo ou fechando a

115

torneira, conforme a imagem já antes usada, ou, para empregar uma

expressão com mais rigor técnico, controlando o fluxómetro. se não

poderia, ao menos nesta primeira fase, espevitar ou ralear a procriação,

ao menos estaria na sua mão acelerar ou retardar as viagens à fronteira,

não a geográfica, mas a de sempre. No preciso ponto em que entrámos

na sala, o debate havia-se centrado na melhor maneira de reaplicar em

actividades similarmente remunerativas a força de trabalho que tinha

ficado sem ocupação com o regresso da morte, e, sendo certo que as

sugestões não faltaram à roda da mesa, mais radicais umas que outras,

acabou por preferir-se algo já com largo historial de provas dadas e que

não necessitava dispositivos complicados, isto é, a protecção. Logo no

dia seguinte, de norte a sul, por todo o país, as agências funerárias

viram entrar-lhes pela porta dentro quase sempre dois homens, às vezes

um homem e uma mulher, raramente duas mulheres, que perguntavam

educadamente pelo gerente, ao qual, depois, com os melhores modos,

explicavam que o seu estabelecimento corria o risco de ser assaltado e

mesmo destruído, ou à bomba, ou incendiado, por activistas de umas

quantas associações ilegais de cidadãos que exigiam a inclusão do

direito à eternidade na declaração universal dos direitos humanos e

que, agora frustrados, pretendiam desafogar a sua ira fazendo cair

sobre inocentes empresas o pesado braço da vingança, só porque eram

elas que levavam os cadáveres à última morada. Estamos informados,

dizia um dos emissários, de que as acções destrutivas concertadas, que

poderão ir, em caso de resistência, até ao assassínio do proprietário e do

gerente e suas famílias, e na falta deles um ou dois empregados, come-

çarão amanhã mesmo, talvez neste bairro, talvez noutro, E que posso eu

fazer, perguntava tremendo o pobre homem, Nada, o senhor não pode

fazer nada, mas nós poderemos defendê-lo se no-lo pedir, Claro que

116

sim, claro que peço, por favor, Há condições a satisfazer, Quaisquer que

sejam, por favor, protejam-me, A primeira é que não falará deste

assunto a ninguém, nem sequer à sua mulher, Não sou casado, Tanto

faz, à sua mãe, à sua avó, à sua tia, A minha boca não se abrirá, Melhor

assim, ou então arriscar-se-á a ficar com ela fechada para sempre, E as

outras condições, uma só, pagar o que lhe dissermos, Pagar, Teremos de

montar os operativos de protecção, e isso, caro senhor, custa dinheiro,

Compreendo, Até poderíamos defender a humanidade inteira se ela

estivesse disposta a pagar o preço, no entanto, uma vez que atrás de

tempo sempre outro tempo virá, ainda não perdemos a esperança,

Estou a perceber, Ainda bem que é de percepção rápida, Quanto

deverei pagar, Está apontado nesse papel, Tanto, E o justo, E isto é por

ano, ou por mês, Por semana, É demasiado para as minhas posses, com

o negócio funerário não se enriquece facilmente, Tem sorte em não lhe

pedirmos aquilo que, em sua opinião, a sua vida deverá valer, É

natural, não tenho outra, E não a terá, por isso o conselho que lhe

damos é que trate de acautelar esta, Vou pensar, precisarei de falar com

os meus sócios, Tem vinte e quatro horas, nem mais um minuto, a partir

daí lavamos as nossas mãos do assunto, a responsabilidade passa a ser

toda sua, se algum acidente vier a suceder-lhe, temos quase a certeza de

que, por ser o primeiro, não será mortal, nessa altura talvez voltemos a

conversar consigo, mas o preço dobrará, e então não terá outra solução

que pagar o que lhe pedirmos, não imagina como são implacáveis essas

associações de cidadãos que reivindicam a eternidade, Muito bem,

pago, Quatro semanas adiantadas, por favor, Quatro semanas, o seu

caso é dos urgentes, e, como já lhe tínhamos dito antes, custa dinheiro

montar os operativos de protecção, Em numerário, em cheque, Nume-

rário, cheques só para transacções doutro tipo e doutros montantes,

117

quando não convém que os dinheiros passem directamente de uma mão

a outra. o gerente foi abrir o cofre, contou as notas e perguntou

enquanto as entregava, Dão-me um recibo, um documento que me

garanta a protecção, Nem recibo, nem garantia, terá de contentar-se

com a nossa palavra de honra, De honra, Exactamente, de honra, não

imagina até que ponto honramos a nossa palavra, onde poderei

encontrá-los se tiver algum problema, Não se preocupe, nós o encontra-

remos a si, Acompanho-os à saída, Não vale a pena levantar-se, já

conhecemos o caminho, virar à esquerda depois do armazém de

ataúdes, sala de maquilhagem, corredor, recepção, a porta da rua é logo

ali, Não se perderão, Temos um sentido de orientação muito apurado,

nunca nos perdemos, por exemplo, na quinta semana depois desta virá

alguém aqui para fazer a cobrança, Como saberei se se trata da pessoa

própria, Não terá nenhuma dúvida quando a vir, Boas tardes, Boas

tardes, não tem nada que nos agradecer.

Finalmente, last but not least, a igreja católica, apostólica e romana

tinha muitos motivos para estar satisfeita consigo mesma. Convencida

desde o princípio de que a abolição da morte só poderia ter sido obra do

diabo e de que para ajudar a deus contra as obras do demo nada é mais

poderoso que a perseverança na prece, tinha posto de lado a virtude da

modéstia que com não pequeno esforço e sacrifício ordinariamente

cultivava, para passar a felicitar-se, sem reservas, pelo êxito da

campanha nacional de orações cujo objectivo, recordemo-lo, fora rogar

ao senhor deus que providenciasse o regresso da morte o mais rapida-

mente possível para poupar a pobre humanidade aos piores horrores,

fim de citação. As preces haviam demorado quase oito meses a chegar

ao céu, mas há que pensar que só para atingir o planeta marte

118

precisamos de seis, e o céu, como é fácil de imaginar, deverá estar muito

mais para lá, treze mil milhões de anos-luz de distância da terra,

números redondos. Na legítima satisfação da igreja havia, porém, uma

sombra negra. Discutiam os teólogos, e não se punham de acordo, sobre

as razões que teriam levado deus a mandar regressar subitamente a

morte, sem ao menos dar tempo para levar a extrema-unção aos

sessenta e dois mil moribundos que, privados da graça do último

sacramento, haviam expirado em menos tempo do que leva a dizê-lo. A

dúvida de que deus teria autoridade sobre a morte ou se, pelo contrário,

a morte seria o superior hierárquico de deus, torturava em surdina as

mentes e os corações do santo instituto, onde aquela ousada afirmação

de que deus e a morte eram as duas caras da mesma moeda passara a

ser considerada, mais do que heresia, abominável sacrilégio. Isto era o

que se vivia por dentro. À vista de toda a gente o que preocupava

realmente a igreja era a sua participação no funeral da rainha-mãe.

Agora que os sessenta e dois mil mortos comuns já descansavam nas

suas últimas moradas e não atrapalhavam o trânsito na cidade, era

tempo de levar a veneranda senhora, convenientemente encerrada no

seu caixão de chumbo, ao panteão real. Como os jornais não se

esqueceriam de escrever, virava-se uma página da história.

É possível que só uma educação esmerada, daquelas que já se vêm

tornando raras, a par, talvez, do respeito mais ou menos supersticioso

que nas almas timoratas a palavra escrita costuma infundir, tenha

levado os leitores, embora motivos não lhes faltassem para manifestar

explícitos sinais de mal contida impaciência, a não interromperem o que

tão profusamente viemos relatando e a quererem que se lhes diga o que

é que, entretanto, a morte andou a fazer desde a noite fatal em que

119

anunciou o seu regresso. Dado o papel importante que desempenharam

nestes nunca vistos sucessos, bem está que tivéssemos explicado com

abundância de pormenores como responderam à súbita e dramática

mudança de situação os lares do feliz ocaso, os hospitais, as companhias

de seguros, a máphia e a igreja católica, porém, a não ser que a morte,

levando em conta a enorme quantidade de defuntos que era preciso

enterrar nas horas imediatas, houvesse decidido, num inesperado e

louvável gesto de simpatia, prolongar a sua ausência por mais alguns

dias a fim de dar tempo a que a vida tornasse a girar nos antigos eixos,

outra gente falecida de fresca data, isto é, logo nos primeiros dias da

restauração do regime, teria por força de vir juntar-se aos infelizes que

durante meses haviam mal-vivido entre cá e lá, e desses novos mortos,

como imporia a lógica, deveríamos ter que falar. No entanto, não

sucedeu tal, a morte não foi tão generosa. O motivo da pausa em que

durante oito dias ninguém morreu e que começou por criar a falaz

ilusão de que afinal nada tivesse mudado, resultava simplesmente das

actuais pautas de relacionamento entre a morte e os mortais, ou seja,

que todos eles passariam a ser avisados de antemão de que ainda

disporiam de uma semana de vida, por assim dizer até ao vencimento

da livrança, para resolverem os seus assuntos, fazer testamento, pagar

os impostos em atraso e despedir-se da família e dos amigos mais

chegados. Em teoria parecia uma boa ideia, mas a prática não tardaria a

demonstrar que não o era tanto. Imagine-se uma pessoa, dessas que

gozam de uma esplêndida saúde, dessas que nunca tiveram uma dor de

cabeça, optimistas por princípio e por claras e objectivas razões, e que,

uma manhã, saindo de casa para o trabalho, encontra na rua o

prestimoso carteiro da sua área, que lhe diz, Ainda bem que o vejo,

senhor fulano, trago aqui uma carta para si, e imediatamente vê

120

aparecer nas mãos dele um sobrescrito de cor violeta a que talvez ainda

não desse especial atenção, porquanto poderia tratar-se de mais uma

impertinência dos senhores da publicidade directa, se não fosse a

estranha caligrafia com que o seu nome está nele escrito, igualzinha à

do famoso fac simile publicado no jornal. se o coração lhe der nesse

instante um salto de susto, se o invadir o pressentimento lúgubre de

uma desgraça sem remédio, e quiser, por isso, negar-se a receber a

carta, não o conseguirá, será então como se alguém, segurando-o

suavemente pelo cotovelo, o estivesse ajudando a descer o degrau, a

evitar a casca de banana no chão, a fazê-lo virar a esquina sem tropeçar

nos próprios pés. Também não valerá a pena tentar rasgá-la em

pedaços, já se sabe que as cartas da morte são por definição

indestrutíveis, nem um maça-rico de acetileno funcionando à máxima

força seria capaz de entrar com elas, e o ardil ingénuo de fingir que se

lhe caiu da mão seria igualmente inútil porque a carta não se deixa

soltar, fica como pegada aos dedos, e, se, por um milagre, o contrário

pudesse suceder, é certo e sabido que logo apareceria um cidadão de

boa vontade a recolhê-la e a correr atrás do falso distraído para lhe

dizer, Creio que esta carta lhe pertence, talvez seja importante, e ele

teria de responder melancolicamentte, É, sim, é importante, muito

obrigado pelo seu cuidado. Mas isto só poderia ter acontecido ao

princípio, quando ainda poucos sabiam que a morte estava a utilizar o

serviço postal público para mensageiro das suas fúnebres notificações.

Em poucos dias a cor violeta iria tornar-se na mais execrada de todas

as cores, mais ainda que o negro apesar de este significar luto, o que é

facilmente compreensível se pensarmos que o luto o põem os vivos, e

não os mortos, mesmo quando a estes os enterram com o fato preto

posto. Imagine-se a perturbação, o desconcerto, a perplexidade daquele

121

que ia para o seu trabalho e viu de repente saltar-lhe ao caminho a

morte na figura de um carteiro que nunca tocará duas vezes, a este

bastar-lhe-á, se o acaso não o fez encontrar o destinatário na rua, meter

a carta na caixa do inquilino em questão ou introduzi-la, deslizando,

por baixo da porta. O homem está ali parado, no meio do passeio, com a

sua estupenda saúde, a sua sólida cabeça, tão sólida que nem mesmo

agora lhe dói apesar do terrível choque, de repente o mundo deixou de

lhe pertencer ou ele de pertencer ao mundo, passaram a estar empres-

tados um ao outro por oito dias, não mais que oito dias, di-lo esta carta

de cor violeta que resignadamente acaba de abrir, os olhos nublados de

lágrimas mal conseguem decifrar o que nela está escrito, Caro senhor,

lamento comunicar-lhe que a sua vida terminará no prazo irrevogável e

improrrogável de uma semana, aproveite o melhor que puder o tempo

que lhe resta, sua atenta servidora, morte. A assinatura vem com inicial

minúscula, o que, como sabemos, representa, de alguma forma, o seu

certificado de origem. Duvida o homem, senhor fulano lhe chamou o

carteiro, portanto é do sexo masculino, e logo o confirmámos nós

próprios, duvida o homem se deverá voltar para casa e desabafar com a

família a irremediável pena, ou se, pelo contrário, terá de engolir as

lágrimas e prosseguir o seu caminho, ir aonde o trabalho o espera.

cumprir todos os dias que lhe restam, então poderá perguntar Morte

onde esteve a tua vitória, sabendo no entanto que não receberá resposta,

porque a morte nunca responde. e não é porque não queira, é só porque

não sabe o que há-de dizer diante da maior dor humana.

Este episódio de rua, unicamente possível num país pequeno onde

toda a gente se conhece, é por de mais eloquente quanto aos

inconvenientes do sistema de comunicação instituído pela morte para a

122

rescisão do contrato temporário a que chamamos vida ou existência.

Poderia tratar-se de uma sádica manifestação de crueldade, como tantas

que vemos todos os dias, mas a morte não tem qualquer necessidade de

ser cruel, a ela, tirar a vida às pessoas basta-lhe e sobeja-lhe. Não

pensou, é o que é. E agora, absorvida como deverá estar na reorgani-

zação dos seus serviços de apoio depois da longa paragem de sete

meses, não tem olhos nem ouvidos para os clamores de desespero e

angústia dos homens e das mulheres que, um a um, vão sendo avisados

da sua morte próxima, desespero e angústia que, em alguns casos, estão

a causar efeitos precisamente contrários àqueles que tinham sido

previstos, isto é, as pessoas condenadas a desaparecer não resolvem os

seus assuntos, não fazem testamento, não pagam os impostos em

dívida, e, quanto às despedidas da família e dos amigos mais chegados,

deixam-nas para o último minuto, o que, como é evidente, não vai dar

nem para o mais melancólico dos adeuses. Mal informados sobre a

natureza profunda da morte, cujo outro nome é fatalidade, os jornais

têm-se excedido em furiosos ataques contra ela, acusando-a de

impiedosa. cruel. tirana, malvada, sanguinária, vampira, imperatriz do

mal, drácula de saias, inimiga do género humano, desleal, assassina,

traidora, serial killer outra vez, e houve até um sem anário, dos

humorísticos, que, espremendo o mais que pôde o espírito sarcástico

dos seus criativos, conseguiu chamar-lhe filha-da-puta. Felizmente, o

bom senso ainda perdura em algumas redacções. um dos jornais mais

respeitáveis do reino, decano da imprensa nacional, publicou um sisudo

editorial em que apelava a um diálogo aberto e sincero com a morte,

sem reservas mentais, de coração nas mãos e espírito fraterno, no caso,

como era óbvio, de se conseguir descobrir onde ela se alojava, o seu

fojo, o seu covil, o seu quartel-general. um outro jornal sugeriu às

123

autoridades policiais que investigassem nas papelarias e fabricas de

papel, porquanto os consumidores humanos de sobrescritos de cor

violeta, se os houvera, e pouquíssimos seriam, deveriam de ter mudado

de gosto epistolar à vista dos acontecimentos recentes, sendo portanto

facílimo caçar a macabra cliente quando ela se apresentasse a renovar a

provisão. outro jornal, rival acérrimo deste último, apressou-se a classi-

ficar a ideia de estupidez crassa, porquanto só a um idiota chapado

poderia ocorrer a lembrança de que a morte, um esqueleto embrulhado

num lençol como toda a gente sabe, saísse por seu pé, chocalhando os

calcâneos nas pedras da calçada, para ir lançar as cartas ao correio. Não

querendo ficar atrás da imprensa, a televisão aconselhou o ministério

do interior a pôr agentes de guarda aos receptáculos ou marcos postais,

esquecida, pelos vistos, de que a primeira carta, aquela que lhe havia

sido dirigida, tinha aparecido no gabinete do director-geral estando a

porta fechada com duas voltas à chave e as janelas com as vidraças

intactas. Tal como o chão, as paredes e o tecto não apresentavam nem

sequer uma simples fenda onde uma lâmina de barbear pudesse caber.

Talvez fosse realmente possível convencer a morte a tratar com mais

compaixão os infelizes condenados, mas para isso era preciso começar

por encontrá-la e ninguém sabia como nem onde.

Foi então que a um médico legista, pessoa bem informada sobre tudo

quanto, de maneira directa ou indirecta, dissesse respeito à sua

profissão, lhe ocorreu a ideia de mandar vir do estrangeiro um famoso

especialista em reconstituição de rostos a partir de caveiras, o qual dito

especialista, partindo de representações da morte em pinturas e

gravuras antigas, sobretudo aquelas que mostram o crânio descoberto,

trataria de restituir a carne aonde fazia falta, reencaixaria os olhos nas

124

órbitas, distribuiria em adequadas proporções cabelo, pestanas e

sobrancelhas, espalharia nas faces os coloridos próprios, até que diante

de si surgisse uma cabeça perfeita e acabada de que se fariam mil cópias

fotográficas que outros tantos investigadores levariam na carteira para

as compararem com quantas caras de mulher lhes aparecessem pela

frente. o mal foi que, concluída a intervenção do especialista

estrangeiro, só uma vista pouco treinada admitiria como iguais as três

caveiras escolhidas, obrigando portanto a que os investigadores, em

lugar de uma fotografia, tivessem de trabalhar com três, o que, obvia-

mente, iria dificultar a tarefa da caça-à-morte como, ambiciosamente, a

operação havia sido denominada. uma única cousa havia ficado

demonstrada por cima de qualquer dúvida, a saber, que nem a

iconografia mais rudimentar, nem a nomenclatura mais enredada, nem

a simbólica mais abstrusa se haviam equivocado. A morte, em todos os

seus traços, atributos e características, era, inconfundivelmente, uma

mulher. A esta mesma conclusão, como decerto estareis lembrados, já o

eminente grafólogo que estudou o primeiro manuscrito da morte havia

chegado quando se referiu a uma autora e não a um autor, mas isso

talvez tenha sido consequência do simples hábito, dado que, à excepção

de alguns idiomas, poucos, em que, não se sabe porquê, se preferiu

optar pelo género masculino, ou neutro, a morte sempre foi uma pessoa

do sexo feminino. Embora esta informação já tenha sido dada antes,

convirá, para que não esqueça, insistir no facto de que os três rostos,

sendo todos de mulher, e de mulher jovem, eram diferentes uns dos

outros em determinados pontos, não obstante, também, as flagrantes

semelhanças que neles unanimemente se reconheciam. Porque, não

sendo crível a existência de três mortes distintas, por exemplo, a

trabalhar por turnos, duas delas teriam de ser necessariamente excluí-

125

das, embora também pudesse acontecer, para complicar mais ainda a

situação, que o modelo esquelético da verdadeira e real morte viesse a

não corresponder a nenhum dos três que haviam sido seleccionados. De

acordo com a frase feita, iria ser o mesmo que disparar um tiro na

escuridão e confiar que o benévolo acaso tivesse tempo de colocar o

alvo na trajectória da bala.

Iniciou-se a investigação, como doutra maneira não poderia ser, nos

arquivos do serviço oficial de identificação onde se reuniam, classifi-

cadas e ordenadas por características básicas, doucocéfalos de um lado,

braquicéfalos do outro, as fotografias de todos os habitantes do país,

tanto naturais como forâneos. Os resultados foram decepcionantes.

Claro está que, em princípio, havendo os modelos escolhidos para a

reconstituição facial, tal como antes referimos, sido tomados de

gravuras e pinturas antigas, não se esperaria encontrar a imagem

humanada da morte em sistemas de identificação modernos, só há

pouco mais de um século instituídos, mas, por outro lado, considerando

que a mesma morte existe desde sempre e não se vislumbra nenhum

motivo para que precisasse de mudar de cara ao longo dos tempos, sem

esquecer que deveria ser-lhe difícil realizar o seu trabalho de modo

cabal e ao abrigo de suspeitas se vivesse na clandestinidade, é perfeita-

mente lógico admitir a hipótese de que ela se tivesse inscrito no registo

civil sob um nome falso, uma vez que, como temos mais do que

obrigação de saber, à morte nada é impossível. Fosse como fosse, o certo

é que, apesar de os investigadores terem recorrido aos talentos das artes

da informática no cruzamento de dados, nenhuma fotografia de uma

mulher concretamente identificada coincidiu com qualquer das três

imagens virtuais da morte. Não houve portanto outro remédio, aliás

126

como já havia sido previsto em caso de necessidade, que regressar aos

métodos da investigação clássica, ao artesanato policial de cortar e

coser, espalhando por todo o país aqueles mil agentes de autoridade

que, de casa em casa, de loja em loja, de escritório em escritório, de

fábrica em fábrica, de restaurante em restaurante, de bar em bar, e até

mesmo em lugares reservados ao exercício oneroso do sexo, passariam

revista a todas as mulheres com exclusão das adolescentes e das de

idade madura ou provecta, pois as três fotografias que levavam no

bolso não deixavam dúvidas de que a morte, se chegasse a ser

encontrada, seria uma mulher ao redor dos trinta e seis anos de idade e

formosa como poucas. De acordo com o padrão obtido, qualquer delas

poderia ser a morte, porém, nenhuma o era em realidade. Depois de

ingentes esforços, depois de calcorrearem léguas e léguas por ruas,

estradas e caminhos, depois de subirem escadas que todas juntas os

levariam ao céu, os agentes lograram identificar duas dessas mulheres,

as quais só diferiam dos retratos existentes nos arquivos porque haviam

beneficiado de intervenções de cirurgia estética que, por uma assom-

brosa coincidência, por uma estranha casualidade, haviam acentuado as

semelhanças dos seus rostos com os rostos dos modelos reconstituídos.

No entanto, um exame minucioso das respectivas biografias eliminou,

sem margem de erro, qualquer possibilidade de que algum dia elas se

tivessem dedicado, nem que fosse nas horas vagas, às mortíferas activi-

dades da parca, quer profissionalmente, quer como simples amadoras.

Quanto à terceira mulher, só identificada graças ao álbum de fotografias

da família, essa, tinha falecido no ano passado. Por simples exclusão de

partes, não poderia ser a morte quem dela precisamente havia sido

vítima. E escusado será dizer que enquanto as investigações decorre-

ram, e duraram elas algumas semanas, os sobrescritos de cor violeta

127

continuaram a chegar a casa dos seus destinatários. Era evidente que a

morte não arredara pé do seu compromisso com a humanidade.

Naturalmente haveria que perguntar se o governo se estava limi-

tando a assistir impávido ao drama quotidiano vivido pelos dez

milhões de habitantes do país. A resposta é dupla, afirmativa por um

lado, negativa por outro. Afirmativa, ainda que só em termos bastante

relativos, porque morrer é, afinal de contas, o que há de mais normal e

corrente na vida, facto de pura rotina, episódio da interminável herança

de pais a filhos, pelo menos desde adão e eva, e muito mal fariam os

governos de todo o mundo à precária tranquilidade pública se

passassem a decretar três dias de luto nacional de cada vez que morre

um mísero velho no asilo de indigentes. E é negativa porque não seria

possível, até mesmo a um coração de pedra, permanecer indiferente à

demonstração palpável de que a semana de espera estabelecida pela

morte havia tomado proporções de verdadeira calamidade colectiva,

não só para a média de trezentas pessoas a cuja porta a sorte mofina ia

bater diariamente, mas também para a restante gente, nada mais nada

menos que nove milhões novecentas e noventa e nove mil e setecentas

pessoas de todas as idades, fortunas e condições que viam todas as

manhãs, ao acordar de uma noite atormentada pelos mais terríveis

pesadelos, a espada de dâmocles suspensa por um fio sobre as suas

cabeças. Quanto aos trezentos habitantes que haviam recebido a fatídica

carta de cor violeta, as maneiras de reagir à implacável sentença

variavam, como é natural, segundo o carácter de cada um. Além

daquelas pessoas, já mencionadas antes, que, impelidas por uma ideia

distorcida de vingança a que com justa razão se poderia aplicar o

neologismo de pré-póstuma, decidiram faltar ao cumprimento dos seus

128

deveres cívicos e familiares, não fazendo testamento nem pagando os

impostos em dívida, houve muitas que, pondo em prática uma inter-

pretação mais do que viciosa do carpe diem horaciano, malbarataram o

pouco tempo de vida que ainda lhes ficava entregando-se a repreen-

síveis orgias de sexo, droga e álcool, talvez pensando que, incorrendo

em tão desmedidos excessos, poderiam atrair sobre as suas cabeças um

colapso fulminante ou, na sua falta, um raio divino que, matando-as ali

mesmo, as furtasse às garras da morte propriamente dita, pregando-lhe

assim uma partida que talvez lhe servisse de emenda. outras pessoas,

estóicas, dignas, corajosas, optavam pela radicalidade absoluta do

suicídio, crendo também que dessa maneira estariam a dar uma lição de

civilidade ao poder de tânatos, aquilo a que antigamente chamávamos

uma bofetada sem mão, daquelas que, de acordo com as honestas

convicções da época, mais dolorosas seriam por terem a sua origem no

foro ético e moral e não em qualquer movimento de primário desforço

físico. Escusado seria dizer que todas estas tentativas se malograram, à

excepção de algumas pessoas obstinadas que reservaram o seu suicídio

para o último dia do prazo. uma jogada de mestre, esta, sim, para a qual

a morte não encontrou resposta.

Honra lhe seja feita, a primeira instituição a ter uma percepção muito

clara da gravidade da situação anímica do povo em geral foi a igreja

católica, apostólica e romana, à qual, uma vez que vivemos num tempo

dominado pela hipertrofiada utilização de siglas na comunicação

quotidiana, tanto privada como pública, não assentaria mal a abrevia-

tura simplificadora de icar. Também é certo que seria preciso estar cega

de todo para não ver como, quase de um momento para outro, se lhe

tinham enchido os templos de gente aflita que ia à procura de uma

129

palavra de esperança, de um consolo, de um bálsamo, de um analgé-

sico, de um tranquilizante espiritual. Pessoas que até aí tinham vivido

conscientes de que a morte é certa e de que a ela não há meio de

escapar, mas pensando ao mesmo tempo que, havendo tanta gente para

morrer, só por um grande azar lhes tocaria a vez, passavam agora o

tempo a espreitar por trás da cortina da janela a ver se vinha o carteiro

ou tremendo de ter de voltar a casa, onde a temível carta de cor violeta,

pior que um sanguinário monstro de fauces escancaradas, poderia estar

atrás da porta para lhes saltar em cima. Nas igrejas não se parava um

momento, as extensas filas de pecadores contritos, constantemente

refrescadas como se fossem linhas de montagem, davam duas voltas à

nave central. os confessores de serviço não baixávamos braços, às vezes

distraídos pela fadiga, outras vezes com a atenção de súbito espevitada

por um pormenor escandaloso do relato, no fim aplicavam uma peni-

tência pro forma, tantos pai-nossos, tantas ave-marias, e despachavam

uma apressada absolvição. No breve intervalo entre o confessado que se

retirava e o confitente que se ajoelhava, davam uma dentada no

sanduíche de frango que seria todo o seu almoço, enquanto vagamente

imaginavam compensações para o jantar. os sermões versavam

invariavelmente sobre o tema da morte como porta única para o paraíso

celeste, onde, dizia-se, nunca ninguém entrou estando vivo, e os

pregadores, no seu afã consolador, não duvidavam em recorrer a todos

os métodos da mais alta retórica e a todos os truques da mais baixa

catequese para convencerem os aterrados fregueses de que, no fim de

contas, se podiam considerar mais afortunados que os seus ancestres,

uma vez que a morte lhes havia concedido tempo suficiente para

prepararem as almas com vista à ascensão ao éden.

130

Alguns padres houve, porém, que, encerrados na malcheirosa

penumbra do confessionário, tiveram que fazer das tripas coração, sabe

deus com que custo, porque também eles, nessa manhã, haviam

recebido o sobrescrito de cor violeta e por isso tinham sobra de razões

para duvidarem das virtudes lenitivas do que naquele momento

estavam a dizer.

O mesmo se passava com os terapeutas da mente que o ministério da

saúde, correndo a imitar as providências terapêuticas da igreja, tinha

enviado para auxilio dos mais desesperados. E que não foram poucas as

vezes que um psicólogo, no preciso momento em que aconselhava o

paciente a deixar sair as lágrimas como sendo a melhor maneira de

aliviar a dor que o atormentava, se desfazia em convulsivo choro ao

lembrar-se de que também ele poderia ser o destinatário de um sobres-

crito idêntico na primeira distribuição postal de amanhã. Acabavam os

dois a sessão em desabalado pranto, abraçados pela mesma desgraça,

mas pensando o terapeuta da mente que se lhe viesse a suceder uma

infelicidade, ainda teria oito dias, cento e noventa e duas horas para

viver. umas orgiazinhas de sexo, droga e álcool, como tinha ouvido

dizer que se organizavam, ajudá-lo-iam a passar para o outro mundo,

embora correndo o risco de que, lá no assento etéreo onde subiste, se te

venham a agravar as saudades deste.

Diz-se, di-lo a sabedoria das nações, que não há regra sem excepção,

e realmente assim deverá ser, porquanto até mesmo no caso de regras

que todos consideraríamos maximamente inexpugnáveis como são, por

exemplo, as da morte soberana, em que, por simples definição do con-

ceito, seria inadmissível que se pudesse apresentar qualquer absurda

131

excepção, aconteceu que uma carta de cor violeta foi devolvida à proce-

dência. objectar-se-á que semelhante cousa não é possível, que a morte,

precisamente por estar em toda a parte, não pode estar em nenhuma em

particular, daqui decorrendo, portanto, neste caso, a impossibilidade,

tanto material como metafísica, de situar e definir o que costumamos

entender por procedência, ou seja, na acepção que aqui nos interessa, o

lugar de onde veio. Igualmente se objectará, embora com menos

pretensão especulativa, que, tendo mil agentes da polícia procurado a

morte durante semanas, passando o país inteiro, casa por casa, a pente

fino, como se de um piolho esquivo e hábil nas fintas se tratasse, e não a

tendo visto nem cheirado, é óbvio que se até ao momento em que

estamos não nos foi dada nenhuma explicação de como as cartas da

morte vão para o correio, menos ainda se nos dirá por que misteriosos

canais agora lhe chegou às mãos a carta devolvida.

Reconhecemos humildemente que têm faltado explicações, estas e

decerto muitas mais, confessamos que não estamos em condições de as

dar a contento de quem no-las requer, salvo se, abusando da creduli-

dade do leitor e saltando por cima do respeito que se deve à lógica dos

sucessos, juntássemos novas irrealidades à congénita irrealidade da

fábula, compreendemos sem custo que tais faltas prejudicam seriamente

a sua credibilidade, porém, nada disto significa, repetimos, nada disto

significa que a carta de cor violeta a que nos referimos não tenha sido

efectivamente devolvida ao remetente. Factos são factos, e este, quer se

queira, quer não, pertence à ordem dos incontornáveis. Não pode haver

melhor prova dele que a imagem da própria morte que temos diante

dos olhos, sentada numa cadeira e embrulhada no seu lençol, e tendo na

orografia da sua óssea cara um ar de total desconcerto. Olha descon-

fiada o sobrescrito violeta, dá-lhe voltas para ver se nele encontra

132

alguma das anotações que os carteiros devem escrever em casos seme-

lhantes, como sejam, recusado, mudou de residência, ausente em parte

incerta e por tempo indeterminado, falecido, Que estupidez a minha,

murmurou, como poderia ter falecido ele se a carta que o devia matar

voltou para trás. Tinha pensado as últimas palavras sem lhes dar maior

atenção, mas imediatamente as recuperou para repeti-las em voz alta,

com expressão sonhadora, Voltou para trás. Não é necessário ser-se

carteiro para saber que voltar para trás não é o mesmo que ser

devolvido, que voltar para trás poderá estar a dizer unicamente que a

carta de cor violeta não chegou ao seu destino, que num ponto qualquer

do percurso algo lhe aconteceu que a fez desandar o caminho, voltar

para donde tinha vindo. ora, as cartas só podem ir aonde as levam, não

têm pernas nem asas, e, tanto quanto se sabe, não foram dotadas de

iniciativa própria, tivessem-na elas e apostamos que se recusariam a

levar as notícias terríveis de que tantas vezes têm de ser portadoras.

Como esta minha, admitiu a morte com imparcialidade, informar

alguém de que vai morrer numa data precisa é a pior das notícias, é

como estar no corredor da morte há uma quantidade de anos e de

repente vem o carcereiro e diz, Aqui tens a carta, prepara-te. o curioso

do assunto é que todas as restantes cartas da última expedição foram

entregues aos seus destinatários, e se esta o não foi, só poderá ter sido

por qualquer fortuita casualidade, pois assim como tem havido casos de

uma missiva de amor ter levado, só deus sabe com que consequências,

cinco anos a chegar a um destinatário que residia a dois quarteirões de

distância, menos de um quarto de hora andando, também poderia

suceder que esta tivesse passado de uma cinta transportadora a outra

sem que ninguém se apercebesse e depois regressasse ao ponto de

partida como quem, tendo-se perdido no deserto, não tem nada mais

133

em que confiar que o rasto deixado atrás de si. A solução será enviá-la

outra vez, disse a morte à gadanha que estava ao lado, encostada à

parede branca. Não se espera que uma gadanha responda, e esta não

fugiu à norma. A morte prosseguiu, se te tivesse mandado a ti, com esse

teu gosto pelos métodos expeditivos, a questão já estaria resolvida, mas

os tempos mudaram muito ultimamente, há que actualizar os meios e

os sistemas, pôr-se a par das novas tecnologias, por exemplo, utilizar o

correio electrónico, tenho ouvido dizer que é o que há de mais higié-

nico, que não deixa cair borrões nem mancha os dedos, além disso é

rápido, no mesmo instante em que a pessoa abre o outlook express da

microsoft já está filada, o inconveniente seria obrigar-me a trabalhar

com dois arquivos separados, o daqueles que utilizam computador e o

dos que não o utilizam, de qualquer maneira temos muito tempo para

decidir, estão sempre a aparecer novos modelos, novos designs, tecno-

logias cada vez mais aperfeiçoadas, talvez um dia me resolva a

experimentar, até lá continuarei a escrever com caneta, papel e tinta,

tem o charme da tradição, e a tradição pesa muito nisto de morrer.

A morte olhou fixamente o sobrescrito de cor violeta, fez um gesto

com a mão direita, e a carta desapareceu. Ficámos assim a saber que,

contrariamente ao que tantos criam, a morte não leva as cartas ao

correio.

Sobre a mesa há uma lista de duzentos e noventa e oito nomes, algo

menos que a média do costume, cento e cinquenta e dois homens e

cento e quarenta e seis mulheres, um número igual de sobrescritos e de

folhas de papel de cor violeta destinados à próxima operação postal, ou

falecimento-pelo-correio. A morte acrescentou à lista o nome da pessoa

a quem se dirigia a carta que tinha regressado à procedência, sublinhou

134

as palavras e pousou a caneta no porta-penas. se tivesse nervos, pode-

ríamos dizer que se encontra ligeiramente excitada, e não sem motivo.

Havia vivido demasiado para considerar a devolução da carta como um

episódio sem importância. Compreende-se facilmente, um pouco de

imaginação bastará, que o posto de trabalho da morte seja porventura o

mais monótono de todos quantos foram criados desde que, por

exclusiva culpa de deus, caim matou a abel. Depois de tão deplorável

acontecimento, que logo no princípio do mundo veio mostrar como é

difícil viver em família, e até aos nossos dias, a cousa tinha vindo por aí

fora, séculos, séculos e mais séculos, repetitiva, sem pausa, sem

interrupções, sem soluções de continuidade, diferente nas múltiplas

formas de passar da vida à não-vida, mas no fundo sempre igual a si

mesma porque sempre igual foi também o resultado. Na verdade,

nunca se viu que não morresse quem tivesse de morrer. E agora,

insolitamente, um aviso assinado pela morte, de seu próprio punho e

letra, um aviso em que se anunciava o irrevogável e improrrogável fim

de uma pessoa, tinha sido devolvido à origem, a esta sala fria onde a

autora e signatária da carta, sentada, envolta na melancólica mortalha

que é seu uniforme histórico, com o capuz pela cabeça, medita no

sucedido enquanto os ossos dos seus dedos, ou os seus dedos de ossos,

tamborilam sobre o tampo da mesa. surpreende-se um pouco a desejar

que a carta outra vez enviada lhe venha novamente devolvida, que o

sobrescrito traga, por exemplo, a indicação de ausente em parte incerta,

porque isso, sim, seria uma absoluta surpresa para quem sempre

conseguiu descobrir onde nos havíamos escondido, se dessa infantil

maneira alguma vez julgámos poder escapar-lhe.

Não crê, porém, que a suposta ausência lhe apareça anotada no

reverso do sobrescrito, aqui os arquivos vão-se actualizando automa-

135

ticamente a cada gesto e movimento que fazemos, a cada passo que

damos, mudança de casa, de estado, de profissão, de hábitos e costu-

mes, se fumamos ou não fumamos, se comemos muito, ou pouco, ou

nada, se somos activos ou indolentes, se temos dor de cabeça ou azia de

estômago, se sofremos de prisão de ventre ou diarreia, se nos cai o

cabelo ou nos tocou o cancro, se sim, se não, se talvez, bastará abrir o

gavetão do ficheiro alfabético, procurar o correspondente verbete, e lá

está tudo. E não nos admiremos se, no preciso instante em que

estivéssemos a ler o nosso cadastro particular, nos aparecesse instanta-

neamente registado o choque da angústia que de súbito nos petrificou.

A morte conhece tudo a nosso respeito, e talvez por isso seja triste. se é

certo que nunca sorri, é só porque lhe faltam os lábios, e esta lição

anatómica nos diz que, ao contrário do que os vivos julgam, o sorriso

não é uma questão de dentes. Há quem diga, com humor menos

macabro que de mau gosto, que ela leva afivelada uma espécie de

sorriso permanente, mas isso não é verdade, o que ela traz à vista é um

esgar de sofrimento, porque a recordação do tempo em que tinha boca,

e a boca língua, e a língua saliva, a persegue continuamente. Com um

breve suspiro, puxou para si uma folha de papel e começou a escrever a

primeira carta deste dia, Cara senhora, lamento comunicar-lhe que a

sua vida terminará no prazo irrevogável e improrrogável de uma

semana, desejo-lhe que aproveite o melhor que puder o tempo que lhe

resta, sua atenta servidora, morte. Duzentas e noventa e oito folhas,

duzentos e noventa e oito sobrescritos, duzentas e noventa e oito

descargas na lista, não se poderá dizer que um trabalho destes seja de

matar, mas a verdade é que a morte chegou ao fim exausta. Com o gesto

da mão direita que já lhe conhecemos fez desaparecer as duzentas e

noventa e oito cartas, depois, cruzando sobre a mesa os magros braços,

136

deixou descair a cabeça sobre eles, não para dormir, porque morte não

dorme, mas para descansar. Quando meia hora mais tarde, já refeita da

fadiga, a levantou, a carta que havia sido devolvida à procedência e

outra vez enviada, estava novamente ali, diante das suas órbitas

atónitas e vazias.

Se a morte havia sonhado com a esperança de alguma surpresa que a

viesse distrair dos aborrecimentos da rotina, estava servida. Aqui a

tinha, e das melhores. A primeira devolução poderia ter sido resultado

de um simples acidente de percurso, um rodízio fora do eixo, um

problema de lubrificação, uma carta azul-celeste que tinha pressa de

chegar e se havia metido adiante, enfim, uma dessas cousas inesperadas

que se passam no interior das máquinas que, tal como sucede com o

corpo humano, deitam a perder os cálculos mais exactos. Já o caso da

segunda devolução era diferente, mostrava com toda a clareza que

havia um obstáculo em qualquer ponto do caminho que a deveria ter

levado à morada do destinatário e que, ao chocar contra ele, a carta

fazia ricochete e voltava para trás. No primeiro caso, dado que o retorno

se havia verificado no dia seguinte ao do envio, ainda se podia

considerar a hipótese de que o carteiro, não tendo encontrado a pessoa

a quem a carta deveria ser entregue, em lugar de a meter na caixa do

correio ou debaixo da porta, a fizera regressar ao remetente esque-

cendo-se de mencionar o motivo da devolução. seriam demasiados

condicionais, mas poderia ser uma boa explicação para o sucedido.

Agora o caso mudara de figura. Entre ir e vir, a carta não havia

demorado mais que meia hora, provavelmente muito menos, dado que

já se encontrava em cima da mesa quando a morte levantou a cabeça do

duro amparo dos antebraços, isto é, do cúbito e do rádio, que para isso

137

mesmo é que são entrelaçados. uma força alheia, misteriosa,

incompreensível, parecia opor-se à morte da pessoa, apesar de a data da

sua defunção estar fixada, como para toda a gente, desde o próprio dia

do nascimento. É impossível, disse a morte à gadanha silenciosa,

ninguém no mundo ou fora dele teve alguma vez mais poder do que eu.

eu sou a morte, o resto é nada. Levantou-se da cadeira e foi ao ficheiro,

donde voltou com o verbete suspeito. Não havia qualquer dúvida, o

nome conferia com o do sobrescrito, a morada também, a profissão era a

de violoncelista, o estado civil em branco, sinal de que não era casado,

nem viúvo, nem divorciado, porque nos ficheiros da morte nunca

consta o estado de solteiro, baste pensar-se no estúpido que seria nascer

uma criança, fazer-se-lhe a ficha e escrever, não a profissão, porque ela

ainda não saberá qual vai ser a sua vocação, mas que o estado civil do

recém-nascido é o de solteiro. Quanto à idade inscrita no verbete que a

morte tem na mão, vê-se que o violoncelista tem quarenta e nove anos.

ora, se ainda é necessária uma prova do funcionamento impecável dos

arquivos da morte, agora mesmo a vamos ter, quando, numa décima de

segundo, ou ainda menos, perante os nossos olhos incrédulos, o

número quarenta e nove for substituído por cinquenta. Hoje é o dia do

aniversário do violoncelista titular do verbete, flores lhe deveriam ter

sido enviadas em vez de um anúncio de falecimento daqui a oito dias.

A morte levantou-se novamente, deu umas quantas voltas à sala, por

duas vezes parou onde se encontrava a gadanha, abriu a boca como

para falar com ela, pedir-lhe uma opinião, dar-lhe uma ordem, ou

simplesmente dizer que se sentia confusa, desconcertada, o que,

recordemo-lo, não é nada de estranhar se pensarmos no tempo que já

leva neste ofício sem haver sofrido, até hoje, a menor falta de respeito

do rebanho humano de que é soberana pastora. Foi neste momento que

138

a morte teve o funesto pressentimento de que o acidente poderia ter

sido ainda mais grave do que primeiramente lhe havia parecido.

sentou-se à mesa e começou a consultar de diante para trás as listas

mortuárias dos últimos oito dias. Logo na primeira relação de nomes, a

de ontem, e ao contrário do que esperava, viu que não constava o do

violoncelista. Continuou a folhear, uma, outra, outra, mais outra, mais

outra ainda, e só na oitava lista, enfim, o foi encontrar. Erradamente

havia pensado que o nome deveria estar na lista de ontem, e agora via-

se perante o escândalo inaudito de que alguém que já deveria estar

morto há dois dias continuava vivo. E isso não era o principal. o diabo

do violoncelista, que desde que tinha nascido estava assinalado para

morrer novo, com apenas quarenta e nove primaveras, acabara de

perfazer descaradamente os cinquenta, desacreditando assim o destino,

a fatalidade, a sorte, o horóscopo, o fado e todas as demais potências

que se dedicam a contrariar por todos os meios dignos e indignos a

nossa humaníssima vontade de viver. Era realmente um descrédito

total. E agora como vou eu rectificar um desvio que não podia ter

sucedido, se um caso assim não tem precedentes, se nada de semelhante

está previsto nos regulamentos, perguntava-se a morte, sobretudo

porque era com quarenta e nove anos que ele deveria ter morrido e não

com os cinquenta que já tem. Via-se que a pobre morte estava perplexa,

desconcertada, que pouco lhe faltava para começar a dar com a cabeça

nas paredes de pura aflição. Em tantos milhares de séculos de contínua

actividade nunca havia tido uma falha operacional, e agora, precisa-

mente quando tinha introduzido algo de novo na relação clássica dos

mortais com a sua autêntica e única causa mortis, eis que a sua

reputação, tão trabalhosamente conquistada, acabava de sofrer o mais

duro dos golpes. Que fazer, perguntou, imaginemos que o facto de ele

139

não ter morrido quando devia o colocou fora da minha alçada, como

vou eu descalçar esta bota. olhou a gadanha, companheira de tantas

aventuras e massacres, mas ela fez-se desentendida, nunca respondia, e

agora, de todo ausente, como se se tivesse enjoado do mundo, descan-

sava a lâmina desgastada e ferrugenta contra a parede branca. Foi então

que a morte deu à luz a sua grande ideia, Costuma-se dizer que não há

uma sem duas, nem duas sem três, e que às três é de vez porque foi a

conta que deus fez, vejamos se realmente é como dizem. Fez o gesto de

despedida com a mão direita e a carta duas vezes devolvida tornou a

desaparecer. Nem dois minutos andou por fora. Ali estava, no mesmo

lugar que antes. o carteiro não a metera debaixo da porta, não tocara a

campainha, mas ela ali estava.

Evidentemente não há que ter pena da morte. Inúmeras e justificadas

têm sido as nossas queixas para que nos deixemos cair agora em

sentimentos de piedade que em nenhum momento do passado ela teve

a delicadeza de nos manifestar, não obstante saber melhor que ninguém

quanto nos contrariava a obstinação com que sempre, custasse o que

custasse, levou a sua avante. No entanto, ao menos por um breve

momento, o que temos diante dos olhos mais se assemelha à estátua da

desolação do que à figura sinistra que, segundo deixaram dito alguns

moribundos de vista penetrante, se apresenta aos pés das nossas camas

na hora derradeira para nos fazer um sinal semelhante ao que envia as

cartas, mas ao contrário, isto é, o sinal não diz vai para lá, diz vem para

cá. Por qualquer estranho fenómeno óptico, real ou virtual, a morte

parece agora muito mais pequena, como se a ossatura se lhe tivesse

encolhido, ou então foi sempre assim e são os nossos olhos, arregalados

de medo, que fazem dela uma giganta. Coitada da morte. Dá-nos

140

vontade de lhe ir pôr uma mão no seu duro ombro, dizer-lhe ao ouvido,

ou melhor, ao sítio onde o tinha, por baixo do parietal, algumas

palavras de simpatia, Não se rale, senhora morte, são cousas que estão

sempre a suceder, nós aqui, os seres humanos, por exemplo, temos

grande experiência em desânimos, malogros e frustrações, e olhe que

nem por isso baixámos os braços, lembre-se dos tempos antigos quando

a senhora nos arrebatava sem dó nem piedade na flor da juventude,

pense neste tempo de agora em que, com idêntica dureza de coração,

continua a fazer o mesmo à gente mais carecida de tudo quanto é

necessário à vida, provavelmente temos andado a ver quem se cansava

primeiro, se a senhora ou nós, compreendo o seu desgosto, a primeira

derrota é a que mais custa. depois habituamo-nos, em todo o caso não

leve a mal que lhe diga oxalá não seja a última, e não é por espírito de

vingança, que bem pobre vingança seria ela, seria assim como deitar a

língua de fora ao carrasco que nos vai cortar a cabeça, a falar verdade,

nós, os humanos, não podemos fazer muito mais que deitar a língua de

fora ao carrasco que nos vai cortar a cabeça, deve ser por isso que sinto

uma enorme curiosidade em saber como irá sair da embrulhada em que

a meteram, com essa história da carta que vai e vem e desse violon-

celista que não poderá morrer aos quarenta e nove anos porque já

cumpriu os cinquenta. A morte fez um gesto impaciente, sacudiu

secamente do ombro a mão fraternal que ali tínhamos pousado e

levantou-se da cadeira. Agora parecia mais alta, com mais corpo, uma

senhora morte como se quer, capaz de fazer tremer o chão debaixo dos

pés, com a mortalha a arrastar levantando fumo a cada passo. A morte

está zangada. E a altura de lhe deitarmos a língua de fora.

141

Salvo alguns raros casos, como os daqueles citados moribundos de

olhar penetrante que a enxergaram aos pés da cama com o aspecto

clássico de um fantasma envolto em panos brancos ou, como a proust

parece ter sucedido, na figura de uma mulher gorda vestida de preto, a

morte é discreta, prefere que não se dê pela sua presença, especialmente

se as circunstâncias a obrigam a sair à rua. Em geral crê-se que a morte,

sendo, como gostam de afirmar alguns, a cara de uma moeda de que

deus, no outro lado, é a cruz, será, como ele, por sua própria natureza,

invisível. Não é bem assim. somos testemunhas fidedignas de que a

morte é um esqueleto embrulhado num lençol, mora numa sala fria em

companhia de uma velha e ferrugenta gadanha que não responde a

perguntas, rodeada de paredes caiadas ao longo das quais se arrumam,

entre teias de aranha, umas quantas dúzias de ficheiros com grandes

gavetões recheados de verbetes. Compreende-se portanto que a morte

não queira aparecer às pessoas naquele preparo, em primeiro lugar por

razões de estética pessoal, em segundo lugar para que os infelizes

transeuntes não se finem de susto ao darem de frente com aquelas

grandes órbitas vazias no virar de uma esquina. Em público, sim, a

morte torna-se invisível, mas não em privado, como o puderam

comprovar, no momento crítico, o escritor marcel proust e os mori-

bundos de vista penetrante. Já o caso de deus é diferente. Por muito que

se esforçasse nunca conseguiria tornar-se visível aos olhos humanos, e

não é porque não fosse capaz, uma vez que a ele nada é impossível, é

simplesmente porque não saberia que cara pôr para se apresentar aos

seres que se supõe ter criado, sendo o mais provável que não os

reconhecesse, ou então, talvez ainda pior, que não o reconhecessem eles

a ele. Há também quem diga que, para nós, é uma grande sorte que

deus não queira aparecer-nos por aí, porque o pavor que temos da

142

morte seria como uma brincadeira de crianças ao lado do susto que

apanharíamos se tal acontecesse. Enfim, de deus e da morte não se têm

contado senão histórias, e esta não é mais que uma delas.

Temos portanto que a morte decidiu ir à cidade. Despiu o lençol, que

era toda a roupa que levava em cima, dobrou-o cuidadosamente e

pendurou-o nas costas da cadeira onde a temos visto sentar-se.

Exceptuando esta cadeira e a mesa, exceptuando também os ficheiros e

a gadanha, não há nada mais na sala, salvo aquela porta estreita que

não sabemos para onde vai dar. Sendo aparentemente a única saída,

seria lógico pensar que por ali é que a morte irá à cidade, porém não

será assim. sem o lençol, a morte perdeu outra vez altura, terá, quando

muito, em medidas humanas, um metro e sessenta e seis ou sessenta e

sete, e, estando nua, sem um fio de roupa em cima, ainda mais pequena

nos parece, quase um esqueletozinho de adolescente. Ninguém diria

que esta é a mesma morte que com tanta violência nos sacudiu a mão

do ombro quando, movidos de uma imerecida piedade, a pretendemos

consolar do seu desgosto. Realmente, não há nada no mundo mais nu

que um esqueleto. Em vida, anda duplamente vestido, primeiro pela

carne com que se tapa, depois, se as não tirou para banhar-se ou para

actividades mais deleitosas, pelas roupas com que a dita carne gosta de

cobrir-se. Reduzido ao que em realidade é, o travejamento meio descon-

juntado de alguém que há muito tempo tinha deixado de existir, não lhe

falta mais que desaparecer. E isso é justamente o que lhe está a

acontecer, da cabeça aos pés. Perante os nossos atónitos olhos os ossos

estão a perder a consistência e a dureza, a pouco e pouco vão-se-lhes

esbatendo os contornos, o que era sólido torna-se gasoso, espalha-se em

todos os sentidos como uma neblina ténue, é como se o esqueleto

143

estivesse a evaporar-se, agora já não é mais que um esboço impreciso

através do qual se pode ver a gadanha indiferente, e de repente a morte

deixou de estar, estava e não está, ou está, mas não a vemos, ou nem

isso, atravessou simplesmente o tecto da sala subterrânea, a enorme

massa de terra que está por cima, e foi-se embora, como em seu foro

íntimo havia decidido depois de que a carta de cor violeta lhe foi

devolvida pela terceira vez. sabemos aonde vai. Não poderá matar o

violoncelista, mas quer vê-lo, tê-lo diante dos olhos, tocar-lhe sem que

ele se aperceba. Tem a certeza de que há-de descobrir a maneira de o

liquidar num dia destes sem infringir demasiado os regulamentos, mas

entretanto saberá quem é esse homem a quem os avisos de morte não

lograram alcançar, que poderes tem, se é esse o caso, ou se, como um

idiota inocente, continua a viver sem que lhe passe pela cabeça que já

deveria estar morto. Aqui encerrados, nesta fria sala sem janelas e com

uma porta estreita que não se sabe para que servirá, não tínhamos dado

por quão rápido passa o tempo. são três horas dadas da madrugada, a

morte já deve estar em casa do violoncelista.

Assim é. um das cousas que sempre mais fatigam a morte é o esforço

que tem de fazer sobre si mesma quando não quer ver tudo aquilo que

em todos os lugares, simultaneamente, se lhe apresenta diante dos

olhos. Também neste particular se parece muito a deus. Vejamos.

Embora, em realidade, o facto não se inclua entre os dados verificáveis

da experiência sensorial humana, fomos habituados a crer, desde

crianças, que deus e a morte, essas eminências supremas, estão ao

mesmo tempo em toda a parte, isto é, são omnipresentes, palavra, como

tantas outras, mestiça de latim e grego. Em verdade, porém, é bem

possível que, ao pensá-lo, e talvez mais ainda quando o expressamos,

144

considerando a ligeireza com que as palavras nos costumam sair da

boca para fora, não tenhamos uma clara consciência do que isso poderá

significar. É fácil dizer que deus está em toda a parte e que a morte em

toda a parte está, mas pelos vistos não reparamos que, se realmente

estão em toda a parte, então por força, em todas as infinitas partes em

que se encontrem, em toda a parte vêem tudo quanto lá houver para

ver. De deus, que por obrigações de cargo está ao mesmo tempo no

universo todo, porque de outro modo não teria qualquer sentido havê-

lo criado, seria uma ridícula pretensão esperar que mostrasse um

interesse especial pelo que acontece no pequeno planeta terra, o qual,

aliás, e isto talvez a ninguém tenha ocorrido, é por ele conhecido sob

um nome completamente diferente, mas a morte, esta morte que, como

já havíamos dito páginas atrás, está adstrita à espécie humana com

carácter de exclusividade, não nos tira os olhos de cima nem por um

minuto, a tal ponto que até mesmo aqueles que por enquanto ainda não

vão morrer sentem que constantemente o seu olhar os persegue. Por

aqui se poderá ter uma ideia do esforço hercúleo que a morte foi

obrigada a fazer nas raras vezes em que, por esta ou aquela razão, ao

longo da nossa história comum, necessitou rebaixar a sua capacidade

perceptiva à altura dos seres humanos, isto é, ver cada cousa de sua vez,

estar em cada momento em um só lugar. No caso concreto que hoje nos

ocupa não é outra a explicação de por que ainda não conseguiu passar

da entrada da casa do violoncelista. A cada passo que vai dando, se lhe

chamamos passo é apenas para ajudar a imaginação de quem nos leia,

não porque ela efectivamente se movimente como se dispusesse de

pernas e pés, a morte tem de pelejar muito para reprimir a tendência

expansiva que é inerente à sua natureza, a qual, se deixada em

145

liberdade, faria logo estalar e dispersar-se no espaço a precária e

instável unidade que é a sua, com tanto custo agregada.

A distribuição das divisões do apartamento onde vive o violoncelista

que não recebeu a carta de cor violeta pertence ao tipo económico

remediado, portanto mais própria de um pequeno burguês sem

horizontes que de um discípulo de euterpe. Entra-se por um corredor

onde no escuro mal se distinguem cinco portas, uma ao fundo, que,

para não termos de voltar ao assunto, fica já dito que dá acesso ao

quarto de banho, e duas de cada lado. A primeira à mão esquerda, por

onde a morte decide começar a inspecção, abre para uma pequena sala

de jantar com sinais de ser pouco usada, a qual, por sua vez, comunica

com uma cozinha ainda mais pequena, equipada com o essencial. Por aí

se sai novamente ao corredor, mesmo em frente de uma porta em que a

morte não necessitou tocar para saber que se encontra fora de serviço,

isto é, nem abre, nem fecha, modo de dizer contrário à simples demons-

tração, pois uma porta da qual se diz que não abre nem fecha, é

unicamente uma porta fechada que não se pode abrir, ou, como

também é costume dizer-se, uma porta que foi condenada. Claro que a

morte poderia atravessá-la e ao mais que por trás dela estivesse, mas se

lhe havia custado tanto trabalho a agregar-se e definir-se, embora

continue invisível a olhos vulgares, numa forma mais ou menos

humana, se bem que, como dissemos antes, não ao ponto de ter pernas e

pés, não foi para correr agora o risco de se relaxar e dispersar no interior

da madeira de uma porta ou de um armário com roupa que

seguramente estará do outro lado. A morte seguiu pois pelo corredor

até à primeira porta à direita de quem entra e por aí passou à sala de

música, que outro nome não se vê que deva ser dado à divisão de uma

casa onde se encontra um piano aberto e um violoncelo, um atril com as

146

três peças da fantasia opus setenta e três de robert schumann, conforme

a morte pôde ler graças a um candeeiro de iluminação pública cuja

esmaecida luz alaran-jada entrava pelas duas janelas, e também

algumas pilhas de cadernos aqui e além, sem esquecer as altas estantes

de livros onde a literatura tem todo o arde conviver com a música na

mais perfeita harmonia, que hoje é a ciência dos acordes depois de ter

sido a filha de ares e afrodite. A morte afagou as cordas do violoncelo,

passou suavemente as pontas dos dedos pelas teclas do piano, mas só

ela podia ter distinguido o som dos instrumentos, um longo e grave

queixume primeiro, um breve gorjeio de pássaro depois, ambos

inaudíveis para ouvidos humanos, mas claros e precisos para quem

desde há tanto tempo tinha aprendido a interpretar o sentido dos

suspiros. Ali, no quarto ao lado, será onde o homem dorme. A porta

está aberta, a penumbra, não obstante ser mais profunda que a da sala

de música, deixa ver uma cama e o vulto de alguém deitado. A morte

avança, cruza o umbral, mas detém-se, indecisa, ao sentir a presença de

dois seres vivos no quarto. Conhe-cedora de certos factos da vida,

embora, como é natural, não por expe-riência própria, a morte pensou

que o homem tivesse companhia, que ao seu lado estaria dormindo

outra pessoa, alguém a quem ela ainda não havia enviado a carta de cor

violeta, mas que nesta casa partilhava o conchego dos mesmos lençóis e

o calor da mesma manta. Aproximou-se mais, quase a roçar, se tal cousa

se pode dizer, a mesa-de-cabeceira, e viu que o homem estava só.

Porém, do outro lado da cama, enroscado sobre o tapete como um

novelo, dormia um cão mediano de tamanho, de pêlo escuro,

provavelmente negro. Ao menos que se lembrasse, foi esta a primeira

vez que a morte se surpreendeu a pensar que, não servindo ela senão

para a morte de seres humanos, aquele animal se encontrava fora do

147

alcance da sua simbólica gadanha, que o seu poder não poderia tocar-

lhe nem sequer ao deteve, e por isso aquele cão adormecido também se

tornaria imortal, logo se haveria de ver por quanto tempo, se a sua

própria morte, a outra, a que se encarrega dos outros seres vivos,

animais e vegetais, se ausentasse como esta o tinha feito e, portanto,

alguém tivesse um bom motivo para escrever no limiar de outro livro

No dia seguinte nenhum cão morreu.

o homem moveu-se, talvez sonhasse, talvez continuasse a tocar as

três peças de schumann e lhe tivesse saído uma nota falsa, um

violoncelo não é como um piano, o piano tem as notas sempre nos

mesmos sítios, debaixo de cada tecla, ao passo que o violoncelo as

dispersa a todo o comprido das cordas, é preciso ir lá buscá-las, fixá-las,

acertar no ponto exacto, mover o arco com ajusta inclinação e com a

justa pressão, nada mais fácil, por conseguinte, que errar uma ou duas

notas quando se está a dormir. A morte inclinou-se para a frente para

ver melhor a cara do homem, e nesse momento passou-lhe pela cabeça

uma ideia absolutamente genial, pensou que os verbetes do seu arquivo

deveriam ter colada a fotografia das pessoas a quem dizem respeito,

não uma fotografia qualquer, mas uma cientificamente tão avançada

que, da mesma maneira que os dados da existência dessas pessoas vão

sendo contínua e automaticamente actualizados nos respectivos

verbetes, também a imagem delas iria mudando com a passagem do

tempo, desde a criança enrugada e vermelha nos braços da mãe até este

dia de hoje, quando nos perguntamos se somos realmente aqueles que

fomos, ou se algum génio da lâmpada não nos irá substituindo por

outra pessoa a cada hora que passa. o homem tornou a mover-se, parece

que vai despertar, mas não, a respiração retomou a cadência normal, as

mesmas treze vezes por minuto, a mão esquerda repousa-lhe sobre o

148

coração como se estivesse à escuta das pulsações, uma nota aberta para

a diástole, uma nota fechada para a sístole, enquanto a mão direita, com

a palma para cima e os dedos ligeiramente curvados, parece estar à

espera de que outra mão venha cruzar-se nela. o homem mostra um ar

de mais velho que os cinquenta anos que já cumpriu, talvez não mais

velho, apenas estará cansado, e porventura triste, mas isso só o pode-

remos saber quando abrir os olhos. Não tem os cabelos todos, e muitos

dos que ainda lhe restam já estão brancos. É um homem qualquer, nem

feio nem bonito. Assim como o estamos a ver agora, deitado de costas,

com o seu casaco do pijama às riscas que a dobra do lençol não cobre

por completo, ninguém diria que é o primeiro violoncelista de uma

orquestra sinfónica da cidade, que a sua vida discorre por entre as

linhas mágicas do pentagrama, quem sabe se à procura também do

coração profundo da música, pausa, som, sístole, diástole. Ainda

ressentida pela falha nos sistemas de comunicação do estado, mas sem a

irritação que experimentava quando para aqui vinha, a morte olha a

cara adormecida e pensa vagamente que este homem já deveria estar

morto, que este brando respirar, inspirando, expirando, já deveria ter

cessado, que o coração que a mão esquerda protege já teria de estar

parado e vazio, suspenso para sempre na última contracção. Veio para

ver este homem, e agora já o viu, não há nele nada de especial que possa

explicar as três devoluções da carta de cor violeta, o melhor que terá a

fazer depois disto é regressar à fria sala subterrânea donde veio e

descobrir a maneira de acabar de vez com o maldito acaso que tornou

este serrador de violoncelos em sobrevivente de si mesmo. Foi para

esporear a sua própria e já declinante contrariedade que a morte usou

estas duas agressivas parelhas de palavras, maldito acaso, serrador de

violoncelos, mas os resultados não estiveram à altura do propósito. O

149

homem que dorme não tem nenhuma culpa do que sucedeu com a carta

de cor violeta, nem por remotas sombras poderia imaginar que está a

viver uma vida que já não deveria ser sua, que se as cousas fossem

como deveriam ser já estaria enterrado há pelo menos oito dias, e que o

cão negro andaria agora a correr a cidade como louco à procura do

dono, ou estaria sentado, sem comer nem beber, à entrada do prédios

esperando a volta dele. Por um instante a morte soltou-se a si mesma,

expandindo-se até às paredes, encheu o quarto todo e alongou-se como

um fluido até à sala contígua, aí uma parte de si deteve-se a olhar o

caderno que estava aberto sobre uma cadeira, era a suite número seis

opus mil e doze em ré maior de johann sebastian bach composta em

cöthen e não precisou de ter aprendido música para saber que ela havia

sido escrita, como a nona sinfonia de beethoven, na tonalidade da

alegria, da unidade entre os homens, da amizade e do amor. Então

aconteceu algo nunca visto, algo não imagináVel, a morte deixou-se cair

de joelhos, era toda ela, agora, um corpo refeito, por isso é que tinha

joelhos, e pernas, e pés, e braços, e mãos, e uma cara que entre as mãos

se escondia, e uns ombros que tremiam não se sabe porquê, chorai não

será, não se pode pedir tanto a quem sempre deixa um rasto de

lágrimas por onde passa, mas nenhuma delas que seja sua. Assim como

estava, nem visível, nem invisível, nem esqueleto, nem mulher,

levantou-se do chão como um sopro e entrou no quarto. O homem não

se tinha mexido. A morte pensou, Já não tenho nada que fazer aqui,

vou-me embora, nem valia a pena ter vindo só para ver um homem e

um cão a dormirem, talvez estejam a sonhar um com o outro, o homem

com o cão, o cão com o homem, o cão a sonhar que já é manhã e que

está a pousar a cabeça ao lado da cabeça do homem, o homem a sonhar

que já é manhã e que o seu braço esquerdo cinge o corpo quente e

150

macio do cão e o aperta contra o peito. Ao lado do guarda-roupa

encostado a porta que daria acesso ao corredor está um sofá pequeno

onde a morte se foi sentar.

Não o havia decidido, mas foi-se sentar ali, naquele canto, talvez por

se ter lembrado do frio que a esta hora fazia na sala subterrânea dos

arquivos. Tem os olhos à altura da cabeça do homem, distingue-lhe o

perfil nitidamente desenhado sobre o fundo de vaga luminosidade

laranja que entra pela janela e repete consigo mesma que não há

nenhum motivo razoável para que continue ali, mas imediatamente

argumenta que sim, que há um motivo, e forte, porque esta é a única

casa da cidade, do país, do mundo inteiro, em que existe uma pessoa

que está a infringir a mais severa das leis da natureza, essa que tanto

impõe a vida como a morte, que não te perguntou se querias viver, que

não te perguntara se queres morrer.

Este homem está morto, pensou, todo aquele que tiver de morrer já

vem morto de antes, só precisa que eu o empurre de leve com o polegar

ou lhe mande a carta de cor violeta que não se pode recusar. Este

homem não está morto, pensou, despertará daqui a poucas horas,

levantar-se-á como todos os outros dias, abrirá a porta do quintal para

que o cão se vá livrar do que lhe sobra no corpo, tomará a refeição da

manhã, entrará no quarto de banho donde sairá aliviado, lavado e

barbeado, talvez vá à rua levando o cão para comprarem juntos o jornal

no quiosque da esquina, talvez se sente diante do atril e toque unia vez

mais as três peças de schumann, talvez depois pense na morte como é

obrigatório fazerem-no todos os seres humanos, porém ele não sabe que

neste momento é como se fosse imortal porque esta morte que o olha

não sabe como o há-de matar. o homem mudou de postura, virou as

costas ao guarda-roupa que condenava a porta e deixou escorregar o

151

braço direito para o lado do cão. um minuto depois estava acordado.

Tinha sede. Acendeu o candeeiro da mesa-de-cabeceira, levantou-se,

enfiou nos pés os chinelos que, como sempre, estavam debaixo da

cabeça do cão, e foi à cozinha. A morte seguiu-o. o homem deitou água

para um copo e bebeu. o cão apareceu nesta altura, matou a sede no

bebedouro ao lado da porta que dá para o quintal e depois levantou a

cabeça para o dono. Queres sair, claro, disse o violoncelista. Abriu a

porta e esperou que o animal voltasse. No copo tinha ficado um pouco

de água. A morte olhou-a, fez um esforço para imaginar o que seria ter

sede, mas não o conseguiu. Também não o teria conseguido quando

teve de matar pessoas à sede no deserto, mas então nem sequer o havia

tentado. O animal já regressava, abanando o rabo. Vamos dormir, disse

o homem. Voltaram ao quarto, o cão deu duas voltas sobre si mesmo e

deitou-se enroscado. o homem tapou-se até ao pescoço, tossiu duas

vezes e daí a pouco entrou no sono. sentada no seu canto, a morte

olhava. Muito mais tarde, o cão levantou-se do tapete e subiu para o

sofá. Pela primeira vez na sua vida a morte soube o que era ter um cão

no regaço.

Momentos de fraqueza na vida qualquer um os poderá ter, e, se hoje

passámos sem eles, tenhamo-los por certos amanhã. Assim como por

detrás da brônzea couraça de aquiles se viu que pulsava um coração

sentimental, bastará que recordemos a dor de cotovelo padecida pelo

herói durante dez anos depois de que agamémnon lhe tivesse roubado

a sua bem-amada, a cativa briseida, e logo aquela terrível cólera que o

fez voltar à guerra gritando em voz estentória contra os troianos

quando o seu amigo pátroclo foi morto por heitor, também na mais

impenetrável de todas as armaduras até hoje forjadas e com promessa

152

de que assim irá continuar até à definitiva consumação dos séculos, ao

esqueleto da morte nos referimos, há sempre a possibilidade de que um

dia venha a insinuar-se na sua medonha carcaça, assim como quem não

quer a cousa, um suave acorde de violoncelo, um ingénuo trilo de

piano, ou apenas que a visão de um caderno de música aberto sobre

uma cadeira te faça lembrar aquilo em que te recusas a pensar. que não

havias vivido e que, faças o que fizeres, não poderás viver nunca. salvo

se. Tinhas observado com fria atenção o violoncelista adormecido, esse

homem a quem não conseguiste matar porque só pudeste chegar a ele

quando já era demasiado tarde, tinhas visto o cão enroscado no tapete, e

nem sequer a este animal te seria permitido tocar porque tu não és a sua

morte, e, na tépida penumbra do quarto, esses dois seres vivos que

rendidos ao sono te ignoravam só serviram para aumentar na tua

consciência o peso do malogro. Tu, que te havias habituado a poder o

que ninguém mais pode, vias-te ali impotente, de mãos e pés atados,

com a tua licença para matar zero zero sete sem validez nesta casa,

nunca, desde que és morte, reconhece-o, havias sido a esse ponto

humilhada. Foi então que saíste do quarto para a sala de música, foi

então que te ajoelhaste diante da suite número seis para violoncelo de

johann sebastian bach e fizeste com os ombros aqueles movimentos

rápidos que nos seres humanos costumam acompanhar o choro convul-

sivo, foi então, com os teus duros joelhos fincados no duro soalho, que a

tua exasperação de repente se esvaiu como a imponderável névoa em

que às vezes te transformas quando não queres ser de todo invisível.

Voltaste ao quarto, seguiste o violoncelista quando ele foi à cozinha

beber água e abrir a porta ao cão, primeiro tinha-lo visto deitado e a

dormir, agora via-lo acordado e de pé, talvez devido a uma ilusão de

óptica causada pelas riscas verticais do pijama parecia muito mais alto

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que tu, mas não podia ser, foi só um engano dos olhos, uma distorção

da perspectiva, está aí a lógica dos factos para nos dizer que a maior és

tu, morte, maior que tudo, maior que todos nós. ou talvez nem sempre

o sejas, talvez as cousas que sucedem no mundo se expliquem pela

ocasião, por exemplo, o luar deslumbrante que o músico recorda da sua

infância teria passado em vão se ele estivesse a dormir, sim, a ocasião,

porque tu já eras outra vez uma pequena morte quando regressaste ao

quarto e te foste sentar no sofá, e mais pequena ainda te fizeste quando

o cão se levantou do tapete e subiu para o teu regaço que parecia de

menina, e então tiveste um pensamento dos mais bonitos, pensaste que

não era justo que a morte, não tu, a outra, viesse um dia apagar o

brasido suave daquele macio calor animal, assim o pensaste, quem

diria, tu que estás tão habituada aos frios árctico e antárctico que fazem

na sala em que te encontras neste momento e aonde a voz do teu omi-

noso dever te chamou, o de matar aquele homem a quem, dormindo,

parecia desenhar-se-lhe na cara o ricto amargo de quem em toda a sua

vida nunca havia tido uma companhia realmente humana na cama, que

fez um acordo com o seu cão para que cada um sonhe com o outro, o

Cão com o homem, o homem com o cão, que se levanta de noite com o

seu pijama às riscas para ir à cozinha matar a sede, claro que seria mais

cómodo levar um copo de água para o quarto quando se fosse deitar,

mas não o faz, prefere o seu pequeno passeio nocturno pelo corredor até

à cozinha, no meio da paz e do silêncio da noite, com o cão que sempre

vai atrás dele e às vezes pede para ir ao quintal, outras vezes não, Este

homem tem de morrer, dizes tu.

A morte é novamente um esqueleto envolvido numa mortalha, com

o capuz meio descaído para a frente, de modo a que o pior da caveira

lhe fique tapado, mas não valia a pena tanto cuidado, se essa foi a

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preocupação, porque aqui não há ninguém para se assustar com o

macabro espectáculo, tanto mais que à vista só aparecem os extremos

dos ossos das mãos e dos pés, estes descansando nas lajes do chão, cuja

gélida frialdade não sentem, aquelas folheando, como se fossem um

raspador, as páginas do volume completo das ordenações históricas da

morte, desde o primeiro de todos os regulamentos, aquele que foi

escrito com uma só e simples palavra, matarás, até às adendas e aos

apêndices mais recentes, em que todos os modos e variantes do morrer

até agora conhecidos se encontram compilados, e deles se pode dizer

que nunca a lista se esgota. A morte não se surpreendeu com o

resultado negativo da consulta, na verdade, seria incongruente, mas

sobretudo seria supérfluo que num livro em que se determina para todo

e qualquer representante da espécie humana um ponto final, um

remate, uma condenação, a morte, aparecessem palavras como vida e

viver, como vivo e viverei. Ali só há lugar para a morte, nunca para

falar de hipóteses absurdas como ter alguém conseguido escapar a ela.

isso nunca se viu. Porventura, procurando bem, fosse possível

encontrar ainda uma vez, uma só vez, o tempo verbal eu vivi numa

desnecessária nota de rodapé, mas tal diligência nunca foi seriamente

tentada, o que leva a concluir que há mais do que fortes razões para que

nem ao menos o facto de se ter vivido mereça ser mencionado no livro

da morte. E que o outro nome do livro da morte, convém que o

saibamos, é livro do nada. o esqueleto arredou o regulamento para o

lado e levantou-se. Deu, como é seu costume quando necessita penetrar

no âmago de uma questão, duas voltas à sala, depois abriu a gaveta do

ficheiro onde se encontrava o verbete do violoncelista e retirou-o. Este

gesto acaba de fazer-nos recordar que é o momento, ou não mais o será,

por aquilo da ocasião a que nos referimos, de deixar aclarado um

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aspecto importante relacionado com o funcionamento dos arquivos que

têm vindo a ser objecto da nossa atenção e do qual, por censurável

descuido do narrador, até agora não se havia falado. Em primeiro lugar,

e ao contrário do que talvez se tivesse imaginado, os dez milhões de

verbetes que se encontram arrumados nestas gavetas não foram

preenchidos pela morte, não foram escritos por ela. Não faltaria mais, a

morte é a morte, não uma escriturária qualquer. Os verbetes aparecem

nos seus lugares, isto é, alfabeticamente arquivados, no instante exacto

em que as pessoas nascem, e desaparecem no exacto instante em que

elas morrem. Antes da invenção das cartas de cor violeta, a morte não

se dava nem ao trabalho de abrir as gavetas, a entrada e saída de

verbetes sempre se fez sem confusões, sem atropelos, não há memória

de se terem produzido cenas tão deploráveis como seriam uns a dizer

que não queriam nascer e outros a protestar que não queriam morrer. os

verbetes das pessoas que morrem vão, sem que ninguém os leve, para

uma sala que se encontra por baixo desta, ou melhor, tomam o seu

lugar numa das salas que subterraneamente se vão sucedendo em

níveis cada vez mais profundos e que já estão a caminho do centro

ígneo da terra, onde toda esta papelada algum dia acabará por arder.

Aqui, na sala da morte e da gadanha, seria impossível estabelecer um

critério parecido com o que foi adoptado por aquele conservador de

registo civil que decidiu reunir num só arquivo os nomes e os papéis,

todos eles, dos vivos e dos mortos que tinha à sua guarda, alegando que

só juntos podiam representar a humanidade como ela deveria ser

entendida, um todo absoluto, independentemente do tempo e dos

lugares, e que tê-los mantido separados havia sido um atentado contra

o espírito. Esta é a enorme diferença existente entre a morte daqui e

aquele sensato conservador dos papéis da vida e da morte, ao passo que

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ela faz gala de desprezar olimpicamente os que morreram, recordemos

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