Juliette Benzoni Fiora e Carlos, o Temerário

Primeira parte OS BRÉVAILLES

CAPÍTULO I A TUMBA ABANDONADA.

Fiora olhou para o cadafalso.

Com o olhar duro e seco e as mãos apertadas com tanta força uma contra a outra que os nós dos dedos lhe ficaram brancos, observou em pormenor a velha construção de pedra e madeira. Despojado do irrisório hábito negro que o envolvia para as execuções importantes, mostrava a sua carcaça de traves e pranchas cobertas de sangue seco que nenhuma lavagem conseguiria apagar, manchadas e queimadas pelo contacto do ferro em brasa ou do azeite a ferver, testemunhando assim a crueldade humana...

Sob a plataforma, a jovem pôde mesmo ver as arcas onde o ”carniceiro” guardava os seus utensílios de trabalho e o grande caldeirão onde, por vezes, em água a ferver, se metiam os moedeiros falsos, enquanto no sobrado se erguia o patíbulo, a roda e, junto de uma grande cruz, sinal da última misericórdia, o cepo de madeira rugosa, polida, enegrecida, revelando vestígios de golpes de espada ou de machado. Era, na verdade, uma imagem perfeita do inferno, aquela que aquele cadafalso oferecia, do prebostado de Dijon e, no entanto, fora ali que, numa manhã de Inverno, tinham caído as cabeças de Marie e de Jean de Brévailles, os jovens pais de Fiora, executados pelos crimes de incesto e adultério cinco dias após o seu nascimento... No mês de Dezembro seguinte, o dramático epílogo desse amor condenado faria dezoito anos. Tal como Fiora...

O desgosto, o horror e a cólera inchavam-lhe o peito face àquela máquina de suplícios onde tinham morrido os seus pais, cuja imagem só lhe podia ser dada por um espelho. Gostaria de o poder queimar com um fogo purificador. Porém, o velho cadafalso exercia sobre ela uma atracção mórbida, uma espécie de fascínio do qual não conseguia desprender-se. O seu espírito recriou a cena atroz. Ouviu crescer em si o toque a finados e os murmúrios da multidão. O céu azulado daquele belo dia de Junho apagou-se diante de um outro carregado de neve, cinzento como o vestido de Marie e o gibão de Jean, cinzento como os seus olhos e apenas o frio sol desse dia maldito brilhava, então, nos cabelos louros da condenada... A um canto da praça estava também um jovem vindo de Florença, cujo coração se apaixonara por aquela bela jovem que ia morrer e que nunca mais se recompusera. Francesco Beltrami, naquele instante supremo, votara a sua vida àquela que ia morrer e que nunca o conhecera e à filha que ela acabava de dar ao mundo. A pequena abandonada fora salva por ele do assassinato, recolhida, adoptada e educada como se tivesse nascido nos degraus de um trono, não nos de um cadafalso...

Naquele mesmo canto da praça de Morimont havia mulas carregadas com ricos tecidos, criados que cuidavam delas e o seu chefe, Marino Betti, que, a despeito de um voto de silêncio jurado sobre um altar, tinha, naquele começo de Primavera de 1475, traído o seu juramento, matado o seu patrão que confiara nele e arrancado Fiora ao doce paraíso da sua juventude, forçando-a, proscrita e privada da sua fortuna, a fugir da cidade da sua infância. Marino Betti, massacrado por ordem de Lourenço de Médicis, pagara o justo preço pelo seu perjúrio e pelo seu crime, mas a sua cúmplice, aquela por quem ele se tinha condenado, Hieronyma Pazzi, continuava viva, escondida não se sabia onde...

Forçada ao exílio, Fiora tivera que deixar desaparecer essa mulher, mas sem perder a esperança de a encontrar um dia e de a fazer pagar pelos seus crimes.

Entretanto, naquela Borgonha onde acabava de chegar, tinha uma tarefa sagrada para cumprir: vingar-se daqueles que tinham conduzido os seus pais àquele cadafalso. E eles eram três: primeiro Regnault du Hamel, o marido de Marie, que, devido aos maus tratos, a forçara a fugir para junto do irmão que tanto amava e que perseguira depois o casal com um ódio impiedoso. Em seguida, Pierre de Brévailles, o pai, que por uma sórdida questão de dinheiro obrigara a sua filha a um casamento que a horrorizava e que, chegado o drama, nada fizera para tentar salvar os seus filhos. Por fim, o duque Carlos da Borgonha, do qual Jean de Brévailles fora escudeiro no tempo em que ele era apenas o conde de Charolais que, por orgulho ferido e porque o jovem abandonara o serviço sem autorização, não foi capaz da clemência própria de um príncipe, sobretudo para com um companheiro de armas...

Fiora condenara esses três homens à morte, a meias no que respeitava ao Temerário com o seu velho amigo Demétrios Lascaris, o mago-médico de Bizâncio que queria, por sua vez, vingar a morte do seu jovem irmão Teodósio, executado pelos Turcos por ter acreditado ingenuamente no juramento desse príncipe... E chegara a hora de meter mãos à obra.

Arrancando-se subitamente às suas amargas reflexões, a jovem girou nos calcanhares e virou-se para o trio silencioso formado por Demétrios, pelo seu servidor Esteban e por dame Léonarde Mercet, a velha solteirona que Francesco Beltrami levara daquela mesma cidade de Dijon para servir de segunda mãe ao bebé abandonado. Foi a ela que Fiora se dirigiu:

Onde é a casa do carrasco?

Porquê essa pergunta?

Não me dissestes que o meu pai, antes de deixar esta cidade, deu ouro a esse homem para que ele desse uma sepultura decente à minha mãe e... ao seu irmão?

Esse irmão era o vosso verdadeiro pai reprovou-a docemente Léonarde.

Nunca o considerarei como tal. Ele deu-me apenas a vida. O meu verdadeiro pai será sempre aquele que repousa sob as lajes da igreja de Or San Michele, em Florença. De qualquer maneira, quero ver essa tumba.

Isso talvez seja difícil, senão impossível. O executor da época, Arny Signart, era um homem de idade. Talvez já não seja deste mundo e, de qualquer maneira, já não deve exercer...

Muito bem, o seu sucessor dir-nos-á onde ele está. Vamos vê-lo!

Sem esperar qualquer resposta, a jovem dirigia-se para os cavalos que Esteban prendera ao anel de ferro de uma casa, mas Demétrios deteve-a:

Eu vou lá! O teu lugar não é num local desses. Esse homem, o algoz que maneja os instrumentos acrescentou ele apontando para o cadafalso e seus acessórios é mantido à parte por toda a gente. É uma espécie de leproso que todos evitam...

E quando vai ao mercado, porque também ele tem de viver desdenhou Léonarde vai munido de uma varinha, com a qual designa o que quer comprar.

E o dinheiro dele? Ninguém o quer? perguntou Fiora, sarcástica.

É obrigado a usar luvas. Mas muitos preferem dar-lhe os produtos a aceitar dinheiro ganho com sangue. Há muito tempo, o duque João de Borgonha, a quem chamavam o Sem Medo, provocou um escândalo em Paris, por ocasião dos tumultos de 1413, ao apertar a mão de Capeluche, o carrasco da cidade.

Nada disso me diz respeito cortou Fiora. Obrigado pela tua solicitude, Demétrios, mas esta visita faz parte da tarefa que me impus e devo cumpri-la, tal como cumprirei muitas outras coisas desagradáveis. Onde mora esse homem?

Como queirais! suspirou Léonarde, sabendo que era inútil insistir. Segui-me! Não é longe daqui. É inútil levar os cavalos...

Deixando as montadas à guarda de Esteban, Léonarde guiou a sua companheira e o médico grego até ao fundo da praça, onde corria um ribeiro, o Suzon e perto do qual se erguia o moinho das Carmelitas. Uma casa aparecia nas traseiras deste, apoiada na muralha e sem que mais nenhuma lhe fizesse frente ou estivesse a seu lado; uma casa sólida e solitária, cuja porta vermelha estava pintada de fresco. Um postigo gradeado permitia aos habitantes reconhecer o visitante antes de lhe abrirem a porta.

Ao apelo da aldraba apareceu um rosto barbudo por trás das barras delgadas:

Que quereis? perguntou uma voz seca.

Sois o carrasco da cidade? perguntou Fiora. Gostaria de vos falar.

Quem sois?

Uma viajante estrangeira. O meu nome não vos diria nada. Mas, pagar-vos-ei, se responderdes às minhas perguntas.

Aqui, pagam antes para que eu não as faça.

O postigo fechou-se, mas a porta abriu-se. Um homem vestido de couro e que devia ter uma força pouco comum, apareceu. Devia ter uns quarenta anos, mas do seu rosto invadido por bigodes e uma barba trigueira só se via um nariz curto e uns olhos escuros profundamente encovados sob umas espessas sobrancelhas que se juntavam a meio. Segurava um livro numa mão.

Sem convidar os visitantes a entrarem para além do corredor para onde abria a porta, o carrasco cruzou os braços:

Escutemos as vossas perguntas enquanto vemos o vosso dinheiro.

Queria falar-vos do vosso antecessor, mestre...

Arny Signart soprou Léonarde.

Mestre Signart não foi o meu antecessor. Esse chamava-se Jean Larmite e antes desse era Étienne Poisson. E eu chamo-me Jehan du Poix. Há dez anos que Signart depôs a espada da justiça. Depois de trinta e cinco anos de serviço!

Morreu?

Ainda não, que eu saiba, mas está muito velho...

Sabeis dizer-me onde posso encontrá-lo? inquiriu Fiora levando a mão à bolsa presa por uma corrente à sua cintura.

Os olhos do homem seguiram o seu gesto com interesse:

Ele amealhou uns dinheiros que lhe permitiram comprar uma casita fora das muralhas, perto do priorado de Larrey. Dizem que se dá com os monges, que seriam os seus herdeiros... Se quereis vê-lo, é aí que o encontrareis... a menos que tenha morrido esta noite.

Deus queira que não! Obrigada por terdes respondido... A jovem estendeu três moedas de prata e ele avançou a mão para as receber sem afastar os olhos daquela jovem vestida de tecido cinzento fino, cujo rosto se escondia por trás de um véu que lhe cobria a cabeça. Era bela e, pelo porte, poderia supor-se que era uma dama nobre. Ele esperava que ela procurasse com os olhos um móvel qualquer para nele depositar o dinheiro, mas, sem hesitar, ela colocou-o na palma aberta da mão dele.

Não receais tocar a mão de um carrasco?

Porquê? Vós fazeis à luz do dia e debaixo de ordens o que outros fazem em segredo e a coberto da noite. Muitos de nós somos executores e não sabemos... Adeus, Jehan du Poix. Deus vos guarde!

O carrasco abriu-lhe a porta e, desta vez, inclinou-se quando a jovem a transpôs:

Se Ele é capaz de ouvir a oração de um miserável, é a vós que Ele guardará, nobre dama...

Em silêncio e sem prestar atenção a uma comadre que os viu passar, os três viajantes foram ter com os seus cavalos. Léonarde, que entrara em casa do executor com uma certa repugnância, apressara-se a dizer uma oração assim que saíra. Estava a terminá-la quando Fiora, com um pé no estribo, lhe perguntou: Vós sabeis, imagino, onde é esse priorado?

Mais ou menos a meia légua da porta de Ouche. Quereis lá ir agora?

Claro. O dia ainda não acabou. Isso contraria-vos?

Não, meu cordeirinho. Aliás, sou a única a poder mostrar-vos o caminho. De qualquer maneira, temos de apressar-nos, se queremos regressar antes do fecho das portas.

Já no exterior da cidade transpuseram o Ouche, um belo rio sombreado por amieiros e salgueiros. Na margem, lavadeiras batiam a roupa com grandes golpes de pás sem pararem, por um só instante, de rir e conversar, porque o tempo estava bom, doce e incitava aos gracejos. Ao longo do outeiro, no topo do qual se perfilavam os edifícios e a torre de um velho convento, algumas jeiras de vinha aqueciam-se ao sol...

Quem diria suspirou Demétrios que este país está em guerra? Tudo aqui respira paz e prosperidade...

Há meses, com efeito, que o duque Carlos de Borgonha, sempre na perseguição do sonho que o atormentava de reconstruir o antigo reino da Lotaríngia, anexando, por meio de novas terras, os seus domínios flamengos ao seu ducado propriamente dito e ao Franco Condado, cercava, perto de Colónia, a forte cidade de Neuss, sem conseguir o seu objectivo. E isso independentemente do facto de ter marcado encontro, nesse mesmo Verão de 1475, com o Rei de Inglaterra, Eduardo IV, para o ajudar a conquistar a França, essa França cujo rei, Luís, décimo primeiro do nome, odiava e com a qual a trégua, estabelecida há três anos, acabava de terminar sem esperança de prorrogação. O Temerário merecia bem o seu cognome...

A guerra está longe disse Léonarde e o duque só pode tirar das suas províncias o que lhe concedem, em homens e dinheiro, os Estados da Borgonha e os Estados da Flandres... E esta terra precisa de braços...

Mas, diz-se que o duque começa a ter falta de ouro

continuou o grego com uma alegria secreta. E era o príncipe mais rico da cristandade... Se anda à procura de empréstimos...

Bruscamente, calou-se, consciente do que ia dizer. Recordar as necessidades de dinheiro fresco do Temerário no momento em que Fiora se obrigava àquela penosa peregrinação só podia ser doloroso para a jovem. Era trazer à superfície a recordação pungente do casamento concluído em três dias, no Inverno precedente, entre a herdeira do rico Francesco Beltrami e o conde Philippe de Selongey, embaixador enviado pelo Temerário a Lourenço de Médicis para tentar negociar um empréstimo. Empréstimo esse que o Magnífico recusara por fidelidade à sua aliança com o Rei de França. O dote real de Fiora entrara, então, nos cofres do duque de Borgonha, ao mesmo tempo que a sua vida de esposa se reduzira a uma única noite de núpcias. Em seguida Philippe voltara a partir, de madrugada, para se ir deixar matar, já que, pensava ele, sujara o seu nome com aquela união com a filha de um incesto. Fiora, que o amava, chorara muito, mas agora seria difícil adivinhar quais eram, ao certo, os seus sentimentos para com o marido fugitivo. Amá-lo-ia ainda ou tê-lo-ia acrescentado ao número daqueles de quem se queria vingar? Era verdade que Selongey reaparecera discretamente em Florença no momento em que a fortuna dos Beltrami se afundava, mas também era verdade que voltara a partir ainda mais depressa sem procurar saber o que acontecera à sua jovem mulher. Quereria ele revê-la, ou fora em busca de novos subsídios para o seu senhor?

Consciente do silêncio que se seguiu às suas últimas palavras, Demétrios, após um breve olhar a Fiora, que cavalgava impávida a seu lado, retomou a palavra, contentando-se em gabar o encanto da paisagem e a beleza opulenta daquela cidade de Dijon, onde os duques da Borgonha tinham acumulado obras de arte e belos edifícios. Exemplo disso era a Santa Capela coroada de ouro, onde estavam os trechos das escrituras do Tosão de Ouro, a ordem de cavalaria fundada pelo pai do Temerário e da qual Selongey era cavaleiro.

De facto, Fiora não o escutava. A violência dos dramas por que passara na última Primavera atenuava-se para dar lugar à recordação daquilo por que tinham passado os seus jovens e imprudentes pais. Seria a magia própria daquela terra da Borgonha, pela qual se sentira atraída mal pusera nela os pés? A verdade é que Jean e Marie de Brévailles se aproximavam cada vez mais dela à medida que a jovem recuava no tempo para se juntar ao drama de ambos. Junto do priorado de Larrey havia uma pequena casa cujas paredes baixas confinavam com as do convento. Era uma propriedade minúscula, composta por uma vinha, uma horta com algumas árvores frutíferas e uma casa baixa, abrigada sob um telhado de duas águas. Um homem, usando um avental de tela e os longos cabelos saindo de um gorro de lã, trabalhava, curvado sobre as cepas cobertas de folhas verdes. Era um homem idoso, mas, quando se endireitou, apoiando as mãos nos rins que lhe deviam doer, puderam ver que era grande e ainda vigoroso.

É ele disse Léonarde. Quereis que lhe fale?

Não, obrigada respondeu Fiora. Prefiro lá ir eu mesma. Não vos importais de esperar um momento?

A jovem saltou para terra, caminhou na direcção da cancela feita de grossos ramos que fechava a pequena propriedade, empurrou-a e dirigiu-se ao velho que, com uma mão em frente dos olhos, a viu avançar de costas para o sol.

Perdoai-me por entrar assim em vossa casa sem ser convidada disse ela. Vós sois mestre Arny Signart, não é verdade?

Pouco habituado a visitas daquela qualidade, o antigo carrasco saudou desajeitadamente:

Se sabeis o meu nome, também sabeis quem eu era?

Sei. E é a esse título que desejo ver-vos...

Eu não gosto de me recordar desses anos, mas... ao vosso serviço, madame! Quereis sentar-vos um pouco defronte da minha casa?

Não poderemos, antes, caminhar um pouco? Tendes aqui uma bela vinha...

Sob a barba branca que dava àquele solitário o ar de um patriarca, nasceu um sorriso tímido:

E que dá bom vinho... Caminhemos, então, se é esse o vosso desejo...

Ambos deram alguns passos por entre as fileiras regulares de plantas que o ancião acariciava à passagem com um gesto afectuoso.

Vai fazer dezoito anos em Dezembro próximo disse Fiora um desconhecido, um rico mercador florentino, deu-vos algum ouro para que cumprísseis uma missão à qual ele dava muito valor. É dessa missão que vos venho falar...

Mestre Signart deteve-se e Fiora, que caminhava na frente dele, virou-se. A jovem viu que o rosto do ancião empalidecera:

Quem sois vós perguntou ele com uma voz subitamente rouca para evocar esse dia terrível, pelo qual eu imploro, todos os dias ao Todo-Poderoso, o esquecimento?

Lentamente, Fiora fez deslizar o véu branco que lhe cobria a cabeça e pôs a descoberto o seu rosto:

Olhai bem para mim!... Eu sou a ”filha” deles, aquela que o mercador florentino adoptou...

Vivamente, o ancião benzeu-se como se estivesse diante de uma aparição e depois escondeu o rosto nas mãos, que a jovem pôde ver tremer.

Que... que quereis? balbuciou o antigo carrasco. Que vingança quereis exercer sobre este velho?

Pareço-me com eles a esse ponto?

A ponto de acordar os meus pesadelos. Não imaginais quantas vezes os vi, aos dois! Eles eram jovens... belos, sorriam... e eu tive que os matar...

Talvez tenha sido o melhor serviço que lhes poderíeis ter prestado, porque partiram juntos. Eu odeio os que os conduziram ao cadafalso, mas se os tivessem fechado, separados um do outro até que a morte os levasse, creio que teriam sido infinitamente infelizes. Quando se ama, deve haver uma grande doçura quando se parte em conjunto, mesmo para essa viagem...

O ancião deixara cair as mãos e contemplava aquela bela jovem que, com toda a evidência, o tinha esquecido e falava para si própria em voz alta. O antigo carrasco olhou para ela com espanto, mas também com um certo alívio...

Acreditais, sinceramente, no que dizeis?

Ela sorriu-lhe sem qualquer pensamento preconcebido. Aquele ancião, ao lamentar um crime que não fora seu e ao sentir-se, até, incomodado com ele, emocionou-a. Ele, o infeliz, não passara de um instrumento, mas continuava atormentado pela recordação daqueles dois seres que tivera de decapitar. Aqueles que tinham querido e ordenado aquela dupla morte teriam também conhecido pesadelos e obsessões? Fiora duvidava muito. Regnault du Hamel era um homem sem coração e Pierre de Brévailles não devia ser melhor. Quanto ao duque de Borgonha, a recordação de um jovem irmão de armas assassinado não devia pesar muito em comparação com as suas ambições reais.

Eu acredito em cada uma das palavras que digo continuou Fiora e não vim aqui para vos atormentar, antes para vos perguntar onde se encontra a tumba que o meu pai desejou para ambos. Gostaria de poder ir lá rezar...

Ao dizer aquelas palavras e lembrando-se do que se passara em casa de Jehan du Poix, a jovem levou a mão à sua bolsa, mas o ancião deteve-a:

Sobretudo, não me deis nada! O vosso pai pagou principescamente a tarefa que me confiou: é a ele que eu devo esta casa que me aproxima do céu, a mim, que vivi na lama. A tumba que procurais está perto daqui...

Podeis conduzir-me lá, nesse caso?

Não, porque é melhor não nos verem juntos. Mas, encontrá-la-eis com facilidade: ao sairdes daqui, por aquele caminho da esquerda, vereis, perto do pequeno bosque no alto daquele outeiro, uma fonte. Essa fonte pertence ao priorado, tal como as terras que a cercam e chama-se fonte de Sainte-Anne. O seu solo é sagrado. Foi ao lado que os enterrei e por cima plantei um espinheiro-alvar, que floresce mais cedo e permanece em flor mais tempo do que as outras árvores. As pessoas da região viram, na sua floração, uma espécie de milagre e, na Primavera, as raparigas vão lá colher alguns ramos para dar sorte...

Quando fizestes isso?

Três dias depois da execução. Já não havia neve e era preciso que a terra não estivesse muito dura. Estava lua nova e estava muito escuro, mas eu sou como os gatos e vejo na escuridão. E depois, tive ajuda...

Quem? Um dos vossos ajudantes?

Oh não! Eu não tinha confiança neles! Foi o velho padre

que me deu uma mão! Ele não quis voltar para Brévailles sem ter cumprido comigo o que ele considerava como um dever piedoso. Pobre homem, e que corajoso! Não era muito sólido, mas foi-me bem útil. E, pelo menos, pôde abençoar a terra... Vede vós, madame, para mim é uma doçura saber que aquelas duas crianças infelizes repousam ali, na paz de um solo abençoado e perto de mim. Mesmo se as minhas noites continuam penosas. A minha paz, só a encontrei quando abandonei a profissão e vim para aqui, de onde nunca mais saí. E foi por isso que, há pouco, tive tanto medo ao reconhecer-vos...

Como vedes, não havia qualquer razão para isso. Estou certa que eles vos perdoaram há muito tempo. Sem dúvida desde o instante em que destes o golpe. Adeus, mestre Signart! Nunca mais nos veremos, sem dúvida. No entanto, ficai a saber que vos agradeço do fundo do coração...

Deixando-o regressar a sua casa, talvez para rezar, mas mais certamente para beber um copo do seu vinho a fim de se recompor, Fiora juntou-se aos seus companheiros.

Sabê-los em paz e numa terra sagrada altera alguma coisa os teus projectos de vingança? perguntou Demétrios.

Isso não atenua, em nada, as faltas dos culpados. Irei até ao fim...

Fora o duque Carlos, os outros já estão, talvez, mortos?

É isso que vamos descobrir. Apenas a justiça de Deus pode evitar a minha. Mas, eis aqui, creio, a fonte.

A descrição do antigo carrasco fora perfeita e o local parecia encantador. Na orla de um belo bosque de pinheiros, um filete de água corria para uma pequena tina feita de grandes pedras cheias de musgo e, junto dela, um grande arbusto de espinheiro-alvar estendia os seus ramos vigorosos, as suas folhas finamente recortadas e a neve perfumada das suas flores delicadas, que polvilhavam o solo e tremiam sobre a água da fonte. Mas o velho Signart não tinha previsto uma coisa: alguém rezava junto do espinheiro-alvar.

Era um jovem pobremente vestido, e tão grande era o seu fervor que não ouviu o passo dos cavalos. Com o olhar, Fiora interrogou Demétrios. O médico encolheu os ombros:

Se vos disseram que este arbusto passava por miraculoso, está tudo explicado. Basta deixar que esse rapaz acabe a sua prece...

O que não durou muito. Sentindo, talvez, que era observado, o camponês porque tudo indicava que era um terminou a sua oração com um amplo sinal da cruz e depois, inclinando-se profundamente, beijou a terra, endireitou-se, partiu um pequeno ramo que meteu na camisa, virando-se pôs o gorro na cabeça com um gesto raivoso e atirou aos recém-chegados:

Que vindes procurar aqui? Se é para dar de beber aos cavalos, sabei que esta fonte é sagrada.

Os nossos cavalos não têm sede respondeu Fiora e nós só desejamos fazer o que vós próprio acabais de fazer: rezar. Vedes nisso algum impedimento?

O jovem não respondeu, mas avançou lentamente na direcção dos cavaleiros que, aliás, tinham posto pé em terra. Era um rapaz que podia ter entre vinte e cinco e trinta anos, bastante grande, mas, a despeito do seu traje grosseiro, de uma compleição mais delicada e, para dizer tudo, mais elegante do que seria de esperar. O seu rosto sem beleza tinha traços rudes e pouco harmoniosos, mas que, no entanto, pareceram curiosamente familiares a Fiora. Pela sua parte, o camponês fixara nela o seu olhar sem se preocupar com as outras personagens. O jovem aproximou-se dela:

Marie! murmurou ele, enganado pelo véu branco que escondia a cabeleira negra da jovem Marie! Não és tu? Não podes ser tu?... e no entanto...

Não disse Fiora eu não sou Marie. Mas sou a sua filha. E vós, quem sois vós? Conheceste-la, portanto, para reconhecerdes o seu rosto ao fim de tantos anos?

Sou o irmão mais novo dela, Christophe. Tinha dezasseis anos quando... e gostava tanto deles, dos dois! Não podeis saber quanto: eles eram a única luz da minha vida e há dezoito anos que essa luz se extinguiu. Desde então, tenho sido um infeliz...

Um soluço apertou-lhe a garganta. Então, virou-se e, arrancando o gorro, correu a ajoelhar-se de novo sob o espinheiro-alvar, como se corresse para um refúgio:

Repara murmurou Demétrios. É padre.

Com efeito, na massa emaranhada dos seus cabelos castanhos, uma tonsura recortava-se na rodela esbranquiçada que era o signo do sacerdócio.

Não deve ter tido outra alternativa! disse Léonarde com um olhar cheio de compaixão para a magra silhueta agitada pelo desgosto. Fiora juntou-se a ele e recitou uma curta oração. Em seguida, segurando no jovem pelos ombros, ajudou-o a levantar-se, oferecendo-lhe o seu lenço para que ele enxugasse o rosto cheio de lágrimas.

Eu pensava que não tinha família disse ela docemente e eis que encontro um tio jovem! Talvez vos possa ajudar a ser menos infeliz. Chamo-me Fiora e venho de Florença... E vós, vós sois da Igreja, não é verdade?

O jovem teve um gesto violento de negação, mas depois, compreendendo que a sua tonsura o traíra, enfiou raivosamente o seu gorro até às sobrancelhas:

Já não sou... Ontem fugi do mosteiro de Cíteauz, onde sufocava desde os dezassete anos e ainda não sei para onde vou, mas terá de ser para longe, para o mais longe possível!... Mas, antes, quis vir aqui rezar, ver a sua tumba pelo menos uma vez...

Quem vo-la indicou?

O nosso velho capelão, o padre Antoine Charruet, que os acompanhou até ao fim e que veio morrer no meu convento depois de o meu pai o ter expulso, como um criado desonesto, por aquilo que ele fez. O meu pai é um monstro. Não tem, nem coração, nem entranhas... Eu fui conduzido a Cíteaux três dias depois da execução, ao mesmo tempo que levavam a minha irmã mais nova, Marguerite, para as Bernardines de Tart... onde morreu durante o último Inverno...

E... a vossa mãe? Ela ainda é viva?

Infelizmente, porque a sua vida é um inferno. Vive praticamente reclusa no nosso castelo, fechada com aquele velho demónio, a quem nunca chegam as injúrias para os maldizer, a ela e aos frutos do seu ventre. Ela, tão boa e tão doce, ela, que tanto sofreu e que continua a suportar aquele calvário que Deus parece comprazer-se em prolongar. Oh, se eu pudesse libertá-la!...

Por que não procurarmos juntos o meio de o conseguir? disse Fiora, emocionada pela profunda dor daquele rapaz de olhos ferozes, de animal acossado...

Que quereis dizer? E, primeiro, por que regressastes aqui? Não éreis feliz junto desse mercador florentino cuja generosidade me foi tão gabada pelo padre Charruet?

Oh sim... mas o meu pai morreu e eu vim para ajustar velhas contas. Se vós não sabeis para onde ir, vinde connosco! Eu tomarei conta de vós...

Sois boa... mas o que eu quero é fazer a guerra, bater-me. É o único meio de acabar honrosamente com uma vida que me provoca repulsa...

Demétríos avançou e pousou a sua grande mão no ombro de Christophe:

Não achais que já chega de mortes na vossa família? Por que não procurar antes uma vida mais conforme com os vossos gostos e digna de um fidalgo?

De um fidalgo? Eu já não tenho nome, nem sequer nome próprio. Em Cíteaux era apenas o irmão Anthime, mais nada. O meu pai acha que não resta nada da nossa família...

Muito bem, arranjai outro nome! Passai a ser um antepassado, em vez de um descendente! De qualquer maneira, a vossa partida para a guerra pode esperar até amanhã? E eu creio que, até lá, ainda tendes muita coisa a dizer à... vossa sobrinha? Vinde connosco! É tarde e as portas da cidade vão, em breve, fechar-se...

Pela luz que se acendeu nos olhos do ex-monge aqueles olhos cinzentos dos Brévailles, tão parecidos com os seus! Fiora compreendeu que ele estava morto por aceitar e insistiu gentilmente:

Vinde, peço-vos! Não imaginais como fico feliz por o destino ter feito com que nos encontrássemos...

Eu também me sinto feliz pela primeira vez desde há muito tempo! Já me tinha esquecido do que isso era!

E sem se fazer rogado, mas recusando o cavalo que Fiora lhe oferecia na intenção de partilhar o de Léonarde, saltou alegremente para a garupa do de Esteban.

A jovem, entretanto, regressou à tumba e, ajoelhando-se:

Eu vim aqui para me vingar daqueles que vos puseram aqui murmurou ela. Quando a minha tarefa terminar, regressarei aqui para vos prestar contas, mas, entretanto, farei com que as outras vítimas, a vossa mãe e a vossa irmã, encontrem, pelo menos, a paz. Eu sou a vossa filha e amo-vos...

Curvando-se, a jovem beijou a terra sob a erva verde e levantou-se, trazendo nos cabelos uma série de pétalas brancas. Tal como fizera Christophe, partiu um pequeno ramo e regressou para junto dos seus companheiros:

Podemos ir disse ela com um sorriso.

Após um último sinal da cruz, os cavaleiros abandonaram a fonte de Sainte-Anne, para a água límpida da qual o Sol lançava centelhas. E regressaram em silêncio à cidade.

Era a vez de Léonarde ir em busca das suas recordações...

Quando transpôs a porta Guillaume, que abria a cidade para noroeste, o coração da solteirona batia um pouco mais depressa do que de costume, a despeito do seu feitio imperturbável. Vivera perto de dez anos naquele albergue da Cruz de Ouro, do qual já podiam ver a bela insígnia pintada e recortada e há dezoito anos que não o via. Viera para ali pouco tempo depois da morte da sua mãe, quando a sua prima Bertille, a dona do estabelecimento, lhe propusera que a ajudasse nas tarefas quotidianas. E, na verdade, Léonarde dera-se bem naquele opulento albergue, reputado em todo o ducado e mesmo no estrangeiro pelo conforto dos seus quartos e perfeição da sua cozinha. Ia lá muita gente, muitos viajantes ricos e também grandes personagens. Acontecera até o duque Filipe, em pessoa, ir jantar à Cruz de Ouro com alguns fidalgos do seu séquito. Inútil será dizer que, nessa noite, o dono, o senhor Huguet, o proprietário, esvaziara o seu albergue, para o consagrar unicamente ao seu senhor.

Sim, Léonarde Mercet gostava de estar em casa dos seus primos. Porém, bastara que uma noite tivessem posto nos seus braços um pequeno bebé, uma pequenita abandonada, para que sentisse acordar em si o que nunca pensara sentir: o instinto maternal, a necessidade de se devotar, apertar e dar todo o seu ser, sem sequer pensar numa recompensa futura. E, a partir do dia seguinte, virava deliberadamente as costas a tudo o que fora a sua vida até ali para partir à aventura com um desconhecido que ela pressentia ser tão generoso como ela. E na liteira que Francesco Beltrami comprara de propósito para aquela viagem, a pequena Fiora, baptizada na véspera no quarto do negociante, repousava nos braços de uma Léonarde infinitamente feliz...

Regressando assim ao seu ponto de partida e enquanto a sua montada descia a rua Porte-Guillaume, Léonarde pensava que fizera uma boa escolha, apesar do drama que acabara com a sua estadia em Florença e que, se tivesse de escolher de novo, faria exactamente a mesma coisa sem hesitar, porque vivera dezassete anos de verdadeira felicidade no palácio das margens do Arno. Dessa felicidade não restava nada, senão o que conhecera ao deixar Dijon: a sua ternura por Fiora e o dever de velar por ela.

Evidentemente, agora era mais fácil. Fiora era uma mulher e uma mulher que conhecia o sofrimento, uma mulher sequiosa de vingança, que encontrara o seu semelhante em Demétrios e que não teria tréguas nem descanso enquanto tudo não estivesse acabado. Léonarde entregara-se, então, à tarefa de velar para que a criança do seu coração não saísse daquele perigoso caminho ainda mais ferida do que quando o encetara.

Quando os cavaleiros chegaram defronte do albergue, Léonarde achou que nada mudara, pelo menos aparentemente. Continuava a mesma limpeza, os mesmos cobres e estanhes rutilantes, areados à força de farelo e de braços como o mostravam as janelas abertas, cujos pequenos vidros brilhavam como antigamente, os mesmos eflúvios glutões que chegavam à rua e as mesmas lajes de belas pedras brancas da região, que todos os dias eram lavadas com grandes quantidades de água. Pelo contrário, a barriga do senhor Huguet, o proprietário que veio ao seu encontro, estava maior do que antigamente e o seu alto gorro branco, bem engomado, deixava passar umas mechas de cabelo grisalho...

Impressionado pelo porte de Fiora e de Demétrios, que cavalgavam à cabeça do grupo, o digno homem fez todos os esforços para se dobrar em dois sem grande resultado, aliás e informou os ”nobres viajantes” que a sua casa, tal como ele,

estavam ao seu inteiro serviço se tivessem a amabilidade de lhe dizer o que desejavam dele.

Saber se a casa continua tão boa como antigamente, meu bom primo declarou alegremente Léonarde, que avançara para se colocar ao lado da jovem. Nós somos viajantes cansados e... esfomeados!

O espanto fez arregalar os olhos e abrir a boca de Donatien Huguet, e o estalajadeiro teve de fazer apelo às suas lunetas para se assegurar de que não estava a ver mal:

Por todos os santos do paraíso! Léonarde! Sois mesmo vós?

Eu mesma, em carne e osso! Mais osso do que carne, aliás, tal como noutros tempos, mas vós, como estais gordo e rosado! A imagem da prosperidade! Para não dizer da abundância!

Não me queixo, não me queixo! A casa corre bem e nós mantemos a nossa reputação...

Após o que os dois primos se abraçaram com toda a efusão que se põe quando duas pessoas não se vêem há muito tempo. Os beijos estalavam sem qualquer cerimónia. Léonarde, entretanto, interrompeu-os para perguntar:

E a minha prima Bertille? Onde está ela? Quero abraçá-la. O rosto alegre de mestre Huguet pareceu cobrir-se de bruma

e até uma lágrima lhe subiu aos olhos:

-A minha pobre mulher deixou-nos há quatro anos, no dia de Saint-Fiacre e eu ainda não me consolei. Agora, é a minha irmã mais nova, Magdeleine, que me ajuda, mas, embora tenha muito boa vontade, não é tão boa como Bertille...

Abraçaram-se ambos com lágrimas, porque Léonarde era daquelas que guardam a afeição sem que a passagem dos anos mude seja o que for. Ela gostava muito de Bertille e agora chorava-a com sinceridade. Mas, desta vez, foi o estalajadeiro que rompeu o abraço:

Mas, estamos para aqui a falar da família, comovidos, e esquecemo-nos destas nobres pessoas que vos acompanham...

Há uma que vós conheceis disse Léonarde metendo o braço no de Fiora. Lembrais-vos de messire Beltrami, meu primo? Como poderia esquecê-lo? Um senhor tão generoso, tão amável... e que gostava tanto do meu coqau vin de Beaune. Há muito tempo que não o vemos...

Nem voltareis a vê-lo, infelizmente, porque também ele deixou este mundo, mas eis aqui donna Fiora, sua filha, da qual continuo a ser a governanta...

Perante aquela bela jovem cujos grandes olhos cinzentos lhe sorriam, mestre Huguet juntou as mãos com um espanto pleno de fervor, mas que, contudo, não parecia legítimo.

A... pequenita que foi baptizada aqui? Doce Jesus! Como é bela!... como a minha Bertille teria adorado vê-la!

Quanto a este senhor acrescentou Léonarde é messire Demétrios Lascaris, médico pessoal de monsenhor Lourenço de Médicis, que este envia ao Rei de França. Aquele é o seu escudeiro e este um... amigo. E agora alojai-nos bem e alimentai-nos melhor!...

Escoltados pelo estalajadeiro, que reencontrara o seu bom humor, entraram no albergue onde Magdeleine, que se parecia com o irmão no físico e no rosto bom e alegre, abraçou Léonarde e ofereceu a Fiora a sua melhor reverência. Em seguida, precedeu-as na escada para as conduzir ao mais belo quarto da casa, uma grande divisão caiada de branco e aquecida por uma tapeçaria de lã com figuras, mobilado com uma grande cama de cortinas de veludo verde e alguns bons móveis borgonheses luzindo de boa saúde e cera fina cujo perfume aromatizava ainda mais do que o ramo de giesta que punha salpicos de sol em cima de uma arca de carvalho esculpido.

Léonarde reconheceu-o de imediato, porque, a despeito dos anos, aquele quarto, graças a uma manutenção extremamente cuidada, era o mesmo para onde Francesco Beltrami levara o bebé arrancado ao furor odiento de Regnault du Hamel, o marido da sua mãe, e onde a pequena Fiora recebera o baptismo

A governanta informou a Fiora crescida disso mesmo, e olhou em volta com os olhos cheios de emoção, e deixou só por um momento para descer à cozinha, onde tinha a certeza de encontrar o senhor Huguet. Com efeito, notara na sua voz um tom bizarro quando dissera que Francesco Beltrami não vinha à Cruz de Ouro há muito tempo, um pouco como se sentisse alguma satisfação com isso. Poderia, até, ter acrescentado: ”Graças a Deus!” E a velha solteirona queria saber porquê. Léonarde surpreendeu o seu primo ocupado a medir as preciosas especiarias que destinava a um patê de vitela, cuja confecção fora já começada por um dos seus moços de cozinha. Sabedora da importância de uma tal operação, ela esperou que ele terminasse e depois puxou-o à parte para a pequena divisão onde o estalajadeiro fazia habitualmente as suas contas:

Tirai-me uma dúvida, meu primo! Há pouco, quando dissestes que não víeis messire Beltrami há muito tempo, pareceu-me que não estáveis muito desolado por isso?

Como podeis pensar assim, Léonarde? Era um cliente tão bom...

... e que, da última vez, vos deixou uma bela soma como pagamento das pequenas coisas pouco habituais que vos pediu. As... loucuras desse bom homem renderam-vos algum ouro. Isso devia justificar alguma pena, ao menos?

As faces brilhantes do senhor Huguet ficaram vermelhas como um pimentão e ele atirou um olhar rápido para a cozinha em plena actividade, para se assegurar de que ninguém o ouvia:

Algum ouro, realmente, mas também muitos sarilhos. Tendes intenção de ficar aqui muito tempo?

Bem disse Léonarde, pasmada podeis gabar-vos de ter uma curiosa maneira de compreender a hospitalidade, sem falar do vosso sentido comercial! Podemos pagar, sabeis?

Não duvido, mas compreendereis melhor quando vos disser que não penso apenas em mim, mas também em vós e naquela bela jovem. Quem diria, ao ver aquele porte de rainha, que ela era a mesma que aquele pobre pequeno ser...

Cantareis a beleza de donna Fiora mais tarde! Dizei-me antes o que se passou aqui depois da nossa partida!

A voz do estalajadeiro baixou vários tons, a ponto de a sua companheira ter de se inclinar para o ouvir melhor:

Uma verdadeira catástrofe! Esqueceram-se de nos dizer que aquela pequenita ”encontrada” era, na realidade, a filha daqueles dois infelizes executados naquele mesmo dia... E também não sabíamos que messire Beltrami tinha abandonado sire du Hamel, atado e amordaçado, no antigo hospital dos empestados, onde quase morreu de frio...

Só quase? É pena! Quanto ao resto, não sei porque havíamos de vo-lo dizer. Messire Francesco era um homem que sabia o que fazia e não achava necessário tornar públicos os seus actos. Assim, du Hamel escapou? Quem ffoi o autor desse belo golpe?

Um camponês que passava por lá a caminho das fábricas de curtumes e que ouviu uns gemidos. Foi ele que pediu ajuda. Mas vós já tínheis partido há mais de vinte e quatro horas...

Ainda bem! E depois, o que aconteceu?

Foi terrível. Messire Regnault, uma vez aquecido e reconfortado, pintou a manta. Vasculharam esta casa, apesar dos meus protestos, para tentar encontrar o homem que ”tinha ousado opor-se à justiça do príncipe” e, claro, não o encontraram.

Teria sido espantoso! disse Léonarde com um meio sorriso.

Eu disse unicamente aquilo que era suposto dizer: o mercador florentino tinha deixado Dijon na véspera de madrugada, sem dúvida para se dirigir a Paris, onde ia em negócios. Da criança, nem eu, nem a minha mulher dissemos nada, ainda que sire du Hamel se tenha encarniçado a procurá-la. Também não soubemos dizer o que acontecera ao padre Charruet, senão que partira ao mesmo tempo que o seu novo amigo. Com esse ainda foi mais fácil, porque não sabíamos absolutamente nada das suas intenções.

E o vosso parente, o cónego de Saint-Bénigne, que vos vendeu a peso de ouro a sua velha liteira? Ele não disse nada?

Seria preciso que tivessem sabido do negócio. Ninguém sonhou, sequer, com ele...

E o vosso pessoal, que viu algumas coisas, a começar pela minha partida, não foi interrogado?

Claro, mas acrescentou o senhor Huguet com um ar de dignidade ofendida vós devíeis saber, minha prima, que aqui não entra qualquer um. Eu sou muito difícil na escolha do meu pessoal e, uma vez que fazem parte da casa, prefeririam deixar cortar o pescoço a arriscarem-se a ser despedidos. Devem ter pensado que eram todos surdos, cegos e mudos. Juraram que messire Beltrami partira por Paris, onde contava confiar a um convento qualquer a criança que tinha encontrado...

Não foram atrás de nós?

Foram. O preboste da cidade enviou uns homens nos vossos calcanhares... mas na direcção oposta...

Bem, nesse caso, correu tudo bem! Por que razão, então, tendes tanta pressa de nos ver pelas costas? Ainda por cima porque a história não é de ontem nem sequer de antes de ontem?...

Para alguns, como messire Regnault, continua actual e se ele soubesse que uma jovem de nome Beltrami está na Cruz de Ouro...

Não vejo como o poderá ele saber? Ele mora em Autun, que não é aqui ao lado...

Ele morava em Autun quando era conselheiro nessa jurisdição. Agora é conselheiro do duque e ”tenente” do chanceler, com sede em Dijon. É uma personalidade importante!

Diabo! Foi para o consolarem por ter sido cornudo que o honraram dessa maneira? Na verdade, até parece um sonho! E, se bem compreendi, mora aqui, portanto?

Não na mesma casa, mas não é muito longe. Comprou, na rua du Lacet, perto da velha Peixaria, a casa de um antigo cavaleiro do duque Filipe o Ousado. É lá que vive há coisa de dez anos e, salvo para se dirigir à chancelaria, nunca sai, por assim dizer...

Nesse caso, por que vos preocupais?

Porque está muito ligado ao funcionário encarregado dos albergues e dos estrangeiros. Não é a vós que vou ensinar que temos de registar os viajantes? Não me estou a ver inscrever o nome Beltrami.

Bem, não o façais! respondeu vivamente Léonarde.

como o meu, por mais modesto que seja, vos pode, também,

comprometer... inscrevei antes o do doutor Lascaris!... Sim, é isso: recebestes esta noite Demétrios Lascaris, médico grego ao serviço de monsenhor Lourenço de Médícis, a sua sobrinha, a governanta desta, que sou eu, o seu escudeiro e... o seu secretário! Convém-vos assim?

O secretário é aquele que vinha na garupa do Outro e que parece um camponês?

Podeis ter a certeza de que, a partir de amanhã, ele terá o aspecto do cargo disse Léonarde, zombeteira. Por agora, evidentemente...

Quem é ele? Tem um ar esquisito...

Não vos preocupeis com isso! Se vo-lo dissesse, seríeis capaz de desmaiar para dentro do vosso caldeirão e isso estragaria a sopa. De facto, estão a chamar-vos, pelos sons que estou a ouvir.

Já vou, já vou! gritou o senhor Huguet, que acrescentou em voz mais baixa: Que decidistes?

Dir-vo-lo-ei amanhã. Dissestes-me coisas muito interessantes, que eu vou discutir com donna Fiora e os meus companheiros... Ah! outra coisa: servi-nos no nosso quarto, a todos. Vós receais demasiado a curiosidade. Além disso, estaremos mais tranquilos!

E eu também aprovou o senhor Huguet, que não evitou resmungar, como homem que desconfia por instinto do exotismo, contra um médico grego, coisa pouco séria. De imediato, Léonarde zangou-se:

O Rei de França apresta-se para o levar a sério! Por que não vós? Mas, se dais muita importância às honrarias, podeis chamar-lhe monsenhor, porque me esqueci de vos dizer que ele também é príncipe, descendente de um imperador de Bizâncio.

E com aquele tiro, que deixou o seu primo sem voz, Léonarde, abandonando a cozinha onde reinava, juntamente com os odores agradáveis, uma alegre algazarra, foi juntar-se a Fiora, mas não lhe contou logo o que acabava de saber, preferindo conceder a si própria um certo tempo para reflectir. Com efeito, sabia que, na lista dos que a jovem tencionava purgar da superfície da terra, Hamel vinha em primeiro lugar. Como iria ela reagir ao saber que o seu inimigo se encontrava tão perto dela, Quando pensava ter de procurá-lo em Autun? A tentação de nada dizer era grande para a velha solteirona, que temia ver o seu ”cordeirinho” enveredar pelo caminho do crime, mas, por outro lado, se a deixasse fazer a viagem a Autun, para ali saber, finalmente, que Hamel se encontrava em Dijon, só retardaria o inevitável. Conhecia demasiado bem a jovem para ter a menor ilusão: Fiora iria até ao fim da tarefa de que se incumbira, fossem quais fossem as consequências.

Léonarde limitou-se, portanto, a dizer que pedira que os servissem a todos no grande quarto e foi informar os outros companheiros.

A refeição que tomaram em conjunto foi excelente, porque Mestre Huguet cuidara dela muito particularmente e desenrolou-se numa atmosfera agradável. Fiora sentia-se feliz por ter cumprido a peregrinação que desejara e mais ainda por ter encontrado aquele jovem tio, para o qual se inclinava instintivamente o seu coração compadecido. A jovem via naquele acaso feliz um sinal do destino. Sentado na sua frente, Christophe julgava-se não muito longe do paraíso. As duas noites precedentes tinha-as passado, a primeira num bosque e a segunda no buraco de uma cerca, comendo o pão que trouxera do convento, alguns frutos selvagens e bebendo a água dos regatos. Não se sentira infeliz porque o tempo estava bom e porque se sentia apoiado por um desejo velho de anos: ver a tumba perto da fonte Sainte-Anne e rezar nela, porque, apesar de ter fugido do convento, não perdera a fé. E eis que no momento em que teria de decidir o seu futuro e escolher um caminho mas em que direcção? o céu lhe trouxera aquela bela jovem que era a imagem daqueles que tanto chorara. E nas suas veias corria o mesmo sangue. Graças a ela, a sua vida miserável dera uma volta e ele achava aquilo divertido, ele, que nunca tinha conhecido outra gente que não a da sua terra, partilhar a mesma mesa com um médico vindo de Bizâncio e um espanhol de Castela, sem contar com aquela encantadora sobrinha que se dizia florentina, apesar de ter visto o seu primeiro dia de dor na palha de uma prisão borgonhesa...

Na verdade, tinha os mais belos olhos do mundo e como aquele nome, Fiora, era bonito!... E sem contar com aquela refeição, que era a melhor que ele já devorara em toda a sua vida!

Pelo seu lado, como verdadeiro filósofo e epicurista da boa vontade, Demétrios limitava-se a saborear aquele instante de quente cordialidade em redor de uma refeição agradável. Sentia-se satisfeito por Fiora ter começado a sua busca trágica com um sucesso e extraía dele os maiores augúrios para o que lhes restava cumprir, mesmo se o objectivo final, dali, parecesse desmedido: matar Carlos, o Temerário, talvez o homem mais poderoso da Europa e isso, segundo todas as probabilidades, no meio do exército que ele nunca abandonava desde que metera na cabeça tornar-se rei. Mas Demétrios acreditava firmemente em milagres e mais ainda na sua vontade inflexível...

De facto, em redor daquela mesa, Esteban era, talvez, o único a achar, realmente, que a vida era bela. Adorara, como amante dos grandes horizontes, a viagem desde Florença ao longo das margens do Mediterrâneo e depois através da Provença, chegando finalmente aos vales do Ródano e do Sona. Por fim, descobrira, após mais algumas libações pelo caminho, a magnificência dos vinhos da Borgonha... encontrando nisso um prazer extremo. Com os olhos meio fechados e a expressão alegre, nada via para além da sua taça cheia de um caloroso vinho de Chambertin...

Léonarde não se meteu na conversa que Demétrios fazia, feliz, as despesas, como homem que muito vira e muito aprendera. Esperou que o último prato fosse levado e a mesa levantada, com excepção de uma última garrafa. Tinha consciência, com efeito, da importância daquela reunião com o jovem Brévailles. Fiora sorria e isso significava muito para a sua governanta.

Contudo, quando a porta se fechou à saída do último criado, levantou-se, encaminhou-se para a chaminé onde tinham acendido um fogo de acordo com a frescura da noite e estendeu para ele as mãos, que esfregou uma na outra. Em seguida, virando-se, fez frente aos seus companheiros. Esteban estava precisamente em vias de constatar que o Cruz de Ouro era, sem dúvida, o melhor albergue da cristandade:

Isso é, certamente, verdade cortou ela. Infelizmente, não podemos cá ficar muito tempo. Tenho umas coisas para vos dizer...

Todos ficaram hirtos: Fiora sentada perto da cama, Demétrios no banco perto da chaminé, Christophe num escabelo. Apenas Esteban foi encher a sua taça uma última vez, mas já não sorria. Todos tinham consciência de que o instante privilegiado chegara ao fim...

CAPÍTULO II A CASA NO SUZON

A decisão de Fiora foi instantânea: já que Regnault du Hamel morava em Dijon, ela ficaria na cidade o tempo que fosse necessário para livrar aquela terra do homem que martirizara a sua mãe e tentara massacrar um bebé. Mas a preocupação justificada, que o senhor Huguet demonstrara por ter em sua casa viajantes comprometedores, levantava um caso de consciência, porque o medo é mau conselheiro. Num outro albergue, aliás, o risco seria o mesmo:

A melhor solução sugeriu Demétrios parece-me que é alugar, se for possível, uma casa não muito afastada da que vos interessa. Para um assunto destes é preciso tempo para estudar os hábitos do inimigo, espiar... e ter paciência.

Paciência! Era essa a arma preferida do médico grego e ele esforçava-se por inculcar aquela rara virtude naquela que, dia-a-dia, com a ajuda de uma infinidade de pequenas lições, se ia transformando no melhor dos alunos... O que não era o caso de Esteban.

Vamo-nos instalar aqui? protestou ele. Não vamos a Paris?

Cada coisa a seu tempo. Havemos de ir ter com o Rei, que, aliás, não está em Paris. Por agora, temos assuntos a tratar aqui. Será possível arranjarmos um alojamento decente por algumas semanas, dame Léonarde?

É sempre possível. Resta saber se encontraremos um bem situado!

Foi aquele o problema que ela foi pôr, no dia seguinte, a Magdeleine, a irmã mais nova do senhor Huguet, que a governanta conhecera quando tinha a idade de Fiora e cuja alegria, ao revê-la, achara verdadeira. Desse lado teria uma ajuda segura, sem que fossem precisas, talvez, grandes explicações.

Magdeleine, com efeito, era uma alma simples. Escutou Léonarde com atenção enquanto esta lhe explicava que os seus ”patrões”, seduzidos pela beleza da cidade e da região, desejavam permanecer algum tempo em Dijon, necessitando, assim, de descobrir uma casa agradável, no centro se possível, para não estarem muito afastados dos mercados, etc. A irmã do senhor Huguet mostrou-se encantada com a ideia que lhe ia permitir ver durante algum tempo aquela querida Léonarde, mas fez-lhe notar, com um tudo-nada de amor-próprio ferido, que o albergue do seu irmão era, apesar de tudo e sem contestação, o mais agradável para qualquer estadia, fosse ela longa.

Na condição de se estar de boa saúde ripostou Léonarde. Ora, donna Fiora está doente. A longa viagem desde Florença fatigou-a. Precisa de repouso e tranquilidade. Por outro lado, messire Lascaris, que é um sábio, não gosta de ficar muito tempo numa hospedaria, mesmo que seja tão boa como esta. Ele tem em curso trabalhos importantes e precisa do silêncio de um quarto só para ele...

Mas objectou Magdelaine que, apesar de ser uma alma simples, não deixava de ter lógica nem memória eu pensava que esse grande médico ia para a corte de França?

Demétrios previra aquela objecção quando notara a Léonarde que falara de mais...

O Rei está com os exércitos neste momento e só nos espera no Outono. Nós vamos ter com ele ao castelo de Plessis-lès-Tours, nas margens do Loire...

Esclarecida, Magdelaine declarou-se satisfeita e acrescentou, até, que talvez pudesse contentar rapidamente a sua amiga de outrora:

Lembrais-vos disse-lhe ela da nobre dama Symonne Sauvegrain, viúva do antigo governador da Chancelaria, messire Jehan Morei?

A que foi ama-de-leite do Temerário e que, em troca do leite, recebeu um título de nobreza?

Mais recentemente ainda, prestou, durante perto de três anos os seus cuidados à jovem princesa Marie, filha única do nosso duque, pelo que monsenhor lhe está muito reconhecido.

§e bem me lembro, o falecido Jehan Morei mandou construir uma grande e bela residência na rua dês Forges?

Uma residência que se tornou demasiado grande para madame Symonne. Ela vive lá sozinha com o seu filho Pierre desde o casamento da sua filha Ysabeau e eu suponho que ela alugaria de boa vontade o edifício na margem do Suzon. Quereis que eu vá falar com o intendente dela?

Vamos lá as duas! É só o tempo de me vestir para sair e perguntar a donna Fiora se está de acordo...

Era, aliás, apenas uma questão de puro respeito, porque Fiora não tinha qualquer razão para recusar uma casa situada praticamente em frente da do seu inimigo, portanto numa posição estratégica inesperada.

A casa que Jehan Morei construíra quarenta anos antes para a sua mulher, pela qual tinha uma verdadeira devoção, era, com as suas janelas de portada dupla, os vitrais de cor e o elegante balaústre esculpido que sublinhava o telhado de telhas brilhantes, uma das mais belas da cidade. Construída em U, a sua ala traseira tinha vista para o Suzon e possuía instalações independentes, que lhe permitia estar isolada do resto da residência. Esse pavilhão compunha-se de uma sala comum, uma cozinha e quatro pequenos quartos. Não era imensa, mas era cómoda, bem mobilada e, sobretudo, a orientação de algumas das janelas permitia observar as idas e vindas da casa pertencente a du Hamel. Apenas a largura do Suzon, que naquele local desaparecia sob a rua du Lacet, separava as duas casas. Quanto à entrada, dava para a rua dês Forges, o que a punha fora de vista, porque, para chegar à porta, era preciso atravessar um corredor que tinha o comprimento da residência Morel-Souvegrain e um pátio que se transpunha por baixo de uma galeria.

Achando que aquilo era um presente do céu, Léonarde apressou-se a concluir o aluguer e entregou três meses de renda a Jacquemin Hurtault, o intendente dos Morei, que fornecia, alem disso, uma criada... O preço era razoável, tendo em contaque à casa, confortável, não faltava nada.

Enquanto isso, no seu quarto, Fiora conversava com Christophe, que desejara falar-lhe. Graças a Esteban, que percorrera a cidade de manhã à noite para lhe encontrar roupas que lhe servissem, o jovem apresentava agora um aspecto mais conveniente com o seu traje cinzento-baço, as botas negras e o capuz pregueado, que lhe escondia a tonsura. Esteban, para quem um homem sem uma arma era um homem incompleto, acrescentara um punhal de feitura um pouco arcaica, mas de bom aço de Toledo, o que fizera sorrir o antigo monge:

Nunca aprendi a servir-me disto. Não se usa uma coisa destas num mosteiro...

A espada exige uma longa aprendizagem, mas, em caso de perigo, servimo-nos do punhal quase instintivamente respondeu-lhe o castelhano. Além disso, não dissestes que queríeis ser soldado? O exército ensinar-vos-á...

Christophe vinha, portanto, agradecer a Fiora todos os favores e despedir-se antes de se afastar, porque não queria estar a seu cargo mais tempo.

Já nos ides deixar? perguntou ela. Asseguro-vos que, se há algum encargo, é bem ligeiro e eu sentia-me bem feliz por ter, junto de mim, alguém da minha família. Mas compreendo que tenhais pressa de encontrar um novo destino. Que caminho contais tomar? Ontem parecíeis hesitar?

Já não hesito. Reflecti muito esta noite e creio que me vou juntar ao exército do duque Carlos! Fiora teve um sobressalto:

Parece-vos um senhor desejável quando a vossa mãe, em tempos, implorou em vão a sua piedade?

Eu sei, mas o vosso amigo grego, ontem, disse-me uma coisa que me fez reflectir. Eu procurava a morte e ele aconselhou-me a procurar antes a vida e tentar conquistar um nome. Ora, eu sou borgonhês, diga-se o que se disser e, esse nome, gostaria que fosse da Borgonha. Ontem, depois do jantar, fui com Esteban até à sala do albergue e ouvi os mercadores a conversar. Eles diziam que um embaixador do Papa intrometeu-se para fazer cessar o longo cerco a Neuss. O duque estaria a pensar em trazer o seu exército para a Lorena, a fim de punir o jovem duque Renato II, que rompeu a aliança. Também se diz que o Rei de França fez marchar as suas tropas sobre o Artois e sobre o Franco Condado. Vai ser preciso defender o país. Eu quero estar lá. Vós ides partir para França, não é verdade, porque uma permanência muito longa aqui poderá pôr-vos em perigo?

Christophe ignorava, com efeito, que Fiora decidira ficar em Dijon. Na véspera, à noite, o jovem retirara-se com Esteban para irem beber um último copo na sala. Fora então que a jovem informara Léonarde e Demétrios do que pensava fazer. Se bem que lhe inspirasse uma simpatia instintiva, achava que não conhecia suficientemente bem Christophe para lhe dar parte de todos os seus projectos. Mas como pensou ver alguma inquietação no seu olhar, sorriu-lhe gentilmente:

- Eu não gosto de abandonar um local com o pretexto de que poderei recear qualquer coisa. Além de que quero conhecer melhor esta cidade, de que o meu pai tanto gostava. Pode ser que fique ainda mais alguns dias.

- Isso é uma loucura! Ouvistes dame Léonarde ontem à noite? Esse miserável Regnault du Hamel vive aqui e continua tão mau como antes. E se ele vos vê? Vós pareceis-vos tanto com a minha doce Marie!...

- Talvez esteja aí a grande diferença entre a minha mãe e eu. Ela era infinitamente doce, terna e vulnerável - coisa que eu não sou... ou antes, já não sou! Se sire du Hamel quiser alguma coisa de mim - e eu não vejo sob que pretexto ele me poderia atacar - podeis ter a certeza de que estarei prevenida. Aliás, tenho bons defensores. Parti tranquilo! Talvez um dia nos voltemos a ver...

A entrada tumultuosa de Léonarde cortou-lhe a palavra. A velha solteirona vinha radiante de satisfação e, não tendo visto Christophe, lançou de chofre:

- Arranjei o que precisamos! Uma casa mesmo em frente daquela que nos interessa...

Apercebendo-se de que a jovem não estava só, parou imediatamente e ficou muito corada, o que divertiu Fiora: Era a primeira vez que via a sua velha Léonarde confusa. Mas estabelecera-se um silêncio incómodo. Christophe olhou à vez para as duas mulheres. As suas espessas sobrancelhas tinham-se franzido e ele estava pálido:

e para melhor visitar Dijon articulou ele lentamente precisais de uma casa perto da de du Hamel? É isso, não é?

Fiora levantou-se e avançou para o jovem, nos olhos do qual pousou o seu olhar:

É isso, mas peço-vos que não vos preocupeis.

Pedis-me demasiado. Que tendes na ideia?

Poderia responder-vos que não tendes nada com isso, mas, no fim de contas, tendes, talvez, o direito de saber. Ontem, creio ter-vos dito que vinha pagar velhas dívidas? Regnault du Hamel é a mais pequena. Eu ia a Au tun para o procurar, mas o céu ou o inferno decidiu poupar-me o trabalho, porque ele está aqui. E não sairei desta cidade senão depois de a ter purificado da sua presença...

Quereis... matá-lo?

Traduzis na perfeição a minha intenção.

Isso é insensato.

Não creio. De qualquer maneira, e por mais que possais objectar, não me fareis mudar de opinião.

Arrepiado, Christophe olhou para a jovem, direita e orgulhosa na sua frente, tão delgada naquele vestido negro que a fazia ainda mais alta, com os seus grandes olhos cinzentos onde pareciam viajar nuvens e o seu porte de princesa... Parecia mais inflexível do que a lâmina de uma espada e o jovem compreendeu que não conseguiria demovê-la. Então, desesperado e sem compreender bem por que razão aquela jovem representava, agora, tanto para si, virou-se para Léonarde e procurou-lhe o olhar, esperando uma ajuda desse lado, mas ela abanou a cabeça...

Podeis ter a certeza de que já tentei...

Nesse caso decidiu Christophe fico. Ajudar-vos-ei e só partirei quando a coisa estiver feita. E se alguém tiver que desferir o golpe, serei eu!

Sem lhe responder, Fiora segurou as mãos do jovem e virou-as para lhes ver as palmas, como se tentasse decifrar as linhas. Em seguida ergueu os olhos:

Fostes ordenado? perguntou ela docemente.

Sob aquele olhar que o interrogava sem dureza, Christophe corou.

Fui... mas eu não queria.

Contudo, está feito! Essas mãos foram consagradas. Não podeis sujá-las com sangue...

E que farei eu na guerra, nesse caso?

A guerra é diferente. Sempre houve, e haverá, monges-

-soldados. Além disso, empenhareis a vossa vida nos combates.

Mas eu já não quero ser monge, nem soldado, nem outra coisa qualquer. Eu quero ser um homem livre de escolher o seu destino...

Que seja como quiserdes, meu amigo, mas, pelo menos, não vos sujareis com um crime friamente premeditado. Além disso, não darei a ninguém o prazer de dar o golpe em meu lugar... Enfim, depois deste assassínio, haverá outros, que me conduzirão um dia, talvez, ao cadafalso. Recuso arrastar-vos para semelhante destino, porque há dezassete anos que sofreis. Tendes o direito de viver como quiserdes e eu sentir-me-ei feliz por isso. Não me tireis essa consolação, que talvez seja a minha última boa acção!

Suplico-vos, deixai-me ficar! Velarei por vós, proteger-vos-ei...

Nós estamos aqui para isso interveio a voz grave de Demétrios, que acabava de entrar. Donna Fiora tem razão: vós deveis ir ao encontro do vosso destino e deixar-nos decidir o nosso. Parti sem pensamentos preconcebidos!

Achais que isso é possível, agora?

Tenho a certeza. Até é necessário, porque tereis um dia de estar num determinado lugar, a uma determinada hora, para Pagar a dívida que contraístes hoje.

- Que quereis dizer?

Por vezes, o véu do futuro ergue-se, por momentos, para mim. Há-de vir o dia em que vos será pedido que devolvais o que recebestes hoje.

Tendes de acreditar! assegurou-lhe Fiora. Ele nunca se engana... E agora separemo-nos... e rezai por nós!

Sem uma palavra, Léonarde pegou no manto negro que Christophe tinha depositado sobre um escabelo ao entrar no quarto e colocou-lho nos ombros. Ele não fez qualquer movimento, ao mesmo tempo que fixava Fiora, como se não conseguisse desviar o olhar. Mas estremeceu quando Demétrios lha meteu na bolsa algumas moedas de ouro e o empurrou na direcção da jovem: Ide abraçá-la! São horas. Esteban espera-vos no pátio! com um cavalo. Dirigi-vos à Lorena, onde as tropas borgonhesas começam a reagrupar-se. Fala-se de Thionville...

Fiora percorreu metade da distância na direcção do jovem que, subitamente, a tomou nos braços. Ela afastou-o suavemente, mas beijou-o nas duas faces com uma ternura fraternal:

Deus vos guarde, meu querido tio! Para onde quer que vades, pertencer-Lhe-eis sempre... Ele beijou-a na fronte e depois, virando-se bruscamente, partiu a correr, seguido por Demétrios. Ouviram-no galgar as escadas. As duas mulheres saíram para a varanda de madeira que dominava o pátio para assistir à sua partida. Elas viram-no saltar para a sela como se não tivesse feito outra coisa durante toda a sua vida em vez de gastar os joelhos nas lajes de um convento, apertar as mãos de Demétrios e de Esteban e em seguida, tirando o capuz com um gesto cheio de elegância natural, saudar as damas antes de incitar o seu cavalo e desaparecer sob a entrada coberta do albergue.

Fizestes bem em afastá-lo disse Léonarde.

Porquê? Ele não vos inspirava confiança?

Pobre rapaz! É claro que sim... mas ele estava quase a apaixonar-se por vós, meu cordeiro... e os vossos assuntos de família já estão complicados quanto baste. E agora vinde preparar-vos para vos mudardes para a vossa nova casa. Espero que vos agrade.

Não tem importância. Se as janelas permitem ver o que eu | espero, o resto pode estar tudo arruinado, que eu não me importo... Felizmente não é assim. Vejam bem o egoísmo da juventude! Pensai um pouco em mim, Fiora, que passei desta bela hospedaria para a elegância do palácio Beltrami, Tenho maus hábitos, que quereis?...

Léonarde, de comum acordo com os seus companheiros, tinha alugado a casa em nome do médico Demétrios Lascaris, viajando com a sua sobrinha Fiora, o seu secretário e a governanta da jovem. Foi, portanto, como a princesa Lascaris que Fiora cuidadosamente velada e nos braços de Esteban, como a doente que pretendia ser, entrou na bela residência dos Morel-Sauvegrain e foi para o quarto que lhe estava reservado, um dos dois que dava para a parte de trás da casa.

Aquele quarto, que lhe foi cortesmente aberto pelo intendente Hurtault, estava iluminado por um grande ramo de peónias, metidas num vaso de estanho perto de uma caixa de frutos de compota.

A minha senhora disse ele deseja as boas-vindas a Vossa Senhoria e espera, quando a vossa saúde o permitir, ter o prazer de vos vir cumprimentar...

Fiora respondeu alguns agradecimentos em voz fraca, aos quais Demétrios acrescentou que se sentiria feliz, pela sua parte, por ter a honra de ser admitido para apresentar os seus respeitos a uma anfitriã cujo nome e mérito tinham chegado até ele...

Não faltarei confiou ele a Léonarde uma vez a porta fechada nas costas do intendente. Certamente, ela poderá ensinar-nos muita coisa útil...

Pela minha parte, encarrego-me de interrogar os criados respondeu esta. É nas cozinhas que se sabem as maiores coscuvilhices...

Fiora não os ouvia, tendo já saltado da cama onde Esteban a tinha estendido para correr para a janela. A casa de Regnault du Hamel estava mesmo ali, onde Léonarde tinha dito que estaria... E era tal qual a jovem a imaginava: escura e sinistra, como o devia ser a casa de Autun, onde Marie de Brévailles sofrera O seu calvário antes de conseguir fugir.

Era uma casa quase tão solitária como a do carrasco. Enquadrada por três lados pela rua de la Tonnellerie, rua du Lacet e o Suzon, um pequeno jardim maltratado mantinha o quarto lado longe das habitações vizinhas. Um rodapé de pedra, que não tinha outra abertura senão uma porta de madeira escura armada com dobradiças de ferro, sustinha dois andares de sacada com transeptos enegrecidos pelo tempo, tudo sob um grande telhado abrigando a empena pontiaguda. Duas janelas no andar nobre, uma abertura fechada por persianas de madeira e uma lucerna que dava para o ribeiro não deviam deixar entrar muita luz do dia. Era verdade que, do seu observatório, Fiora não podia ver a fachada do lado do jardim, mas, tal como a via, aquela casa era tão triste como uma prisão... ou uma tumba, porque, a despeito do bom tempo, nenhuma vidraça estava aberta nem se via vivalma... -i

Demétrios, que escolhera o outro quarto que dava para as traseiras, o que fazia ângulo com a casa, a pique nesse local sobre o Suzon e que tinha a melhor vista para a entrada, foi ter com Fiora: Precisamos de saber como é a casa no lado do jardim. Esta noite enviarei Esteban em missão de reconhecimento...

É muito cedo observou Fiora. A nossa chegada, saudada com tanta amabilidade pela nossa anfitriã, deve ter feito algum barulho no bairro. Mais vale não nos arriscarmos a dar já nas vistas...

Com um sorriso divertido, o grego aplaudiu silenciosamente:

Bravo! Estou a ver que as minhas lições deram frutos. Esperava que me respondesses isso, mas não tinha a certeza. E tens razão. Tu és uma jovem doente e eu um velho que não se afasta muito dos seus livros e temos de dar essa imagem tranquila. Entretanto, Esteban não tem qualquer razão para não percorrer as tabernas. Não tem igual no que toca a arranjar amigos e desatar línguas. E dame Léonarde talvez consiga tirar alguma coisa da criada que nos deram...

A criada em questão chamava-se Chrétiennotte Yvon. Era uma sólida comadre de uns trinta anos, de olhos redondos mas vivos, de figura alegre e graciosa, a quem não metiam medo o trabalho e as longas conversas. Tal como as outras criadas da ama-de-leite ducal, era, na sua pessoa, assim como no seu trabalho, de uma limpeza tipicamente flamenga. Mas o que lhe pertencia a ela unicamente era o carácter feliz, que a levava a cantar de manhã à noite. Fazia lembrar um pouco a Léonarde a gorda Colomba, a sua amiga florentina, que era sempre a mulher mais bem informada da cidade. A governanta reteve-se, porém, de testemunhar demasiada simpatia a Chrétiennotte, pensando que dameMorel-Sauvegrain talvez lhes tivesse despachado uma criada tão loquaz com um segundo sentido: o de estar sempre informada acerca dos movimentos e gestos dos seus novos locatários.

Falai-lhe o menos possível aconselhou ela a Fiora e deixai-me trabalhar. Eu saberei tirar-lhe os nabos da púcara!

A vida, na casa à beira do Suzon, organizou-se, tranquila e silenciosa, ritmada pelos golpes de macete que ”Jacquemart e a sua mulher Jacqueline” davam no sino da igreja de Nossa Senhora vizinha para anunciar as horas. Fiel aos seus hábitos antigos, Léonarde ia todos os dias à primeira missa, velando o resto do tempo pela manutenção da casa. Demétrios compilava as obras trazidas de Florença e redigia o tratado sobre a circulação sanguínea que começara. Esteban percorria a cidade. Quanto a Fiora, ao cabo de dois dias suportava muito dificilmente aquele papel de pessoa doente tão contrário à sua natureza, mas ao qual se via forçada devido à sua extrema parecença com os seus pais: arriscava-se a ser descoberta. A sua única distracção, para além dos bordados que Léonarde lhe colocara nas mãos e de um livro grego emprestado por Demétrios, era espiar a casa em frente.

Sentada durante horas na cadeira cheia de almofadas que só abandonava para ir para a cama, observava obstinadamente o que se passava na outra margem do rio. E, na verdade, não via grande coisa: por duas vezes viu sair ou entrar, com cabazes, um ou outro dos dois criados que, a acreditar em Esteban, constituíam todo o pessoal do conselheiro ducal. Mas a ele a jovem ainda não avistara, porque se deslocara por alguns dias a uma propriedade que possuía perto de Vergy, no interior.

A jovem estava tão farta que na manhã do terceiro dia não resistiu ao desejo de interrogar Chrétiennotte:

Aquela casa, do outro lado da ponte, que nunca abre as janelas e raramente a porta, a quem pertence?

A criada esbugalhou os olhos mais redondos do que nunca, benzeu-se precipitadamente duas ou três vezes e, como Fiora se espantasse, suspirou:

Menina mais valia que vos mudassem de quarto, se vos ides interessar por aquela baiúca...

Uma baiúca? Parece-me, antes, uma bela casa, sólida, bem construída...

Sim, claro, mas mal habitada. Eu, que estou a falar convosco, não gosto nada de passar diante dela depois de cair a noite.

Quereis dizer que... é um lugar mau?

Na verdade, não, mas o proprietário é má pessoa. É rico, no entanto, e de boa posição, mas sovina como um judeu. E detesta as mulheres, para as quais tem sempre um olhar mau, ou até uma palavra malcriada. Não tem criadas, aliás, antes dois criados, dois pacóvios que rosnam como cãeS raivosos e que mordem quando é preciso. Infeliz do mendigo que ouse bater à sua porta: só levará pauladas...

Ele não é casado?

Messiredu Hamel? Casado? Por mais rico que seja nenhuma mulher, ou rapariga, por mais miserável que seja, o quer. É preciso dizer que já teve uma esposa em tempos, quando morava por aqui. Uma jovem menina, da qual se diz que era bela como os anjos e que foi tão maltratada que fugiu de casa dele para ir ter com o irmão. A infelicidade quis que esse irmão e ela se amassem mais do que deviam e tudo acabou mal. O marido encontrou-os e mandou-os executar pelo carrasco... vede lá se isso dá vontade a outros!... Olhai! Eis um dos criados que sai para ir às compras...

Um homem de forte corpulência, de rosto inexpressivo sob os cabelos cinzentos cortados em quadrado, vestido com uma libré cinzenta e negra suficientemente limpa e transportando uma grande canastra, saía da casa, da qual fechava cuidadosamente a porta antes de meter a chave no bolso.

Aquele é o Claude, o mais velho. O outro, o Mathieu, irmão dele, é um pouco mais novo. Nunca saem juntos. Quando há um que sai, podemos ter a certeza que o outro está em casa. É o patrão que quer assim...

Em todo o caso, se o patrão é sovina, o criado não tem ar de mal alimentado...

O patrão não é burro. Sabe muito bem que é preciso dar de comer aos molossos, se quer que eles nos devorem. Diz-se que os dois irmãos lhe são muito dedicados. Falam pouco... O que não impede que eu ache que se devem passar coisas bem pouco católicas naquela casa tão bem guardada!

Porquê?

Chrétiennotte pareceu hesitar e olhou para Fiora como se perguntasse a si própria até que ponto podia confiar na jovem. Depois, finalmente, decidiu-se:

Bem, conto-vos mais isto e depois vou à minha vida. Senão, a vossa dame Léonarde ralha-me. Foi há dois anos, mais ou menos, no tempo em que o meu defunto Janet ainda estava neste mundo. Uma noite em que ele regressava um pouco tarde do trabalho ele era pedreiro chegou a casa todo virado do avesso, porque, ao passar pela rua du Lacei ouvira alguém chorar e gemer e que esse alguém era uma mulher que tinha o ar de sofrer muito... Como o meu Janet era um homem corajoso, bateu à porta e perguntou se precisavam de ajuda, mas ninguém respondeu...

Talvez houvesse uma mulher lá dentro?

Isso saber-se-ia! Aliás, o meu pobre Janet não foi o único a ouvir sons do mesmo género, mas no bairro pensa-se que talvez fosse a alma da pobre mulher dele, que regressou para o atormentar: foi na praça de Morimont que ela morreu... e a praça de Morimont não fica longe.

Se compreendi bem concluiu Fiora esse... du Hamel... dá-se a tanto trabalho para guardar uma casa onde ninguém tem vontade de entrar?

É isso mesmo! disse Chrétiennotte com satisfação. A mim, sei muito bem quanto tinham de me pagar para que fosse lá. E, mesmo assim, não sei se iria!

Tendo dado assim a sua opinião categórica, a viúva de Janet Pegou na vassoura, nos esfregões e com uma espécie de reverência a Léonarde, que transpunha a porta no mesmo instante, desapareceu no corredor trauteando uma cantiga.

Mas a história que ela contara deixou Fiora pensativa. Que a casa tivesse má reputação e que passasse por estar assombrada, convinha-lhe o que até lhe dava uma ideia de como atacar Regnault du Hamel. Desde a sua chegada a Dijon, que recusava a proposição radical de Esteban:

Quereis a morte desse homem? perguntara-lhe o castelhano. É a coisa mais fácil deste mundo. Eu espero por ele uma noite à entrada da porta e estrangulo-o.

Era simples, de facto, demasiado simples até, mas, sobretudo, demasiado rápido. Ela não queria que o carrasco da sua mãe morresse subitamente de um golpe que ele não veria de onde tinha vindo e sem saber quem o ordenara. Fiora queria ser o instrumento da vingança; pretendia saborear a morte do seu inimigo. Como digna filha da subtil e cruel Florença, estava decidida a gastar o tempo e o ouro que fosse preciso para que essa morte atingisse a perfeição de uma obra de arte...

Naquela tarde pensou nela durante muito tempo, os olhos perdidos no azul-pálido do céu onde os bandos de aves se perseguiam e escutando os barulhos daquela cidade onde nascera, mas que, no entanto, não conhecia. Ao contrário de Florença, sempre muito animada ao pôr do Sol, Dijon parecia adormecer ao fim do dia nas suas casas de telhados amarelos, vermelhos ou negros, cujas sombras desenhavam tapeçarias por entre os verdes jardins... Em cada bairro, o burguês mais considerado ia ter com o presidente da câmara para lhe entregar as chaves da porta que estava à sua guarda. Esses homens, para quem esse cargo era vitalício, tinham a responsabilidade dessas portas, de cuja defesa eram responsáveis com a ajuda de uma parte das portagens e das mercadorias. Dirigiam-se sempre em cortejo à câmara municipal, conservando esse uso um pouco solene e fazendo dele ponto de honra, numa cidade que era abandonada com frequência pelos seus duques. E Fiora sabia que Pierre Morel tinha uma dessas chaves a seu cargo.

Quando o ouviu entrar e depois de os sacristãos de Saint-Jean terem tocado o ”crève-feux” (últimas Ave-Marias), após o qual as ruas ficavam desertas salvo para os amantes da aventura, Fiora desceu à sala onde Léonarde acabava de arrumar as coisas após o jantar, no qual a jovem não quisera participar. Demétrios e Esteban, sentados a uma janela, aproveitavam os últimos instantes de luz para disputar uma partida de xadrez e todos ergueram os olhos, surpreendidos por constatarem que Fiora trazia o fato de rapaz com que abandonara Florença e segurava na mão um capuz de homem, destinado a esconder os cabelos.

- Santo Deus! - exclamou Léonarde. - Onde ides a esta hora, meu cordeirinho?

- Não muito longe. Quero ir ver de perto a casa de du Hamel quando escurecer. Se Esteban não se importar de me acompanhar...

- Naturalmente - disse o castelhano, que se levantou de imediato. - Mas, para fazer o quê? O dono ainda não regressou...

- É por isso que quero lá ir. Quando ele vier talvez não seja possível...

- Que tens tu na cabeça? - perguntou Demétrios, que pegara no rei de marfim e o examinava, como se se tratasse de um objecto raro.

- Dir-te-ei mais tarde. Por agora., quero ver o jardim e, se possível, entrar nele.

Demétrios pousou a peça de xadrez e franziu o sobrolho:

- Isso é uma loucura! Que ganhas tu com isso?

Sem responder, Fiora foi até um armário onde havia um cesto de cerejas, tirou um punhado e começou a comê-las, ao mesmo tempo que olhava para o céu que escurecia lentamente.

- Nesse caso, também vou - suspirou Demétrios.

- Prefiro que fiques aqui com Léonarde. Eu não me demoro muito e, além disso, repara-se menos em duas pessoas do que em três...

O grego não insistiu. Sabia que era inútil discutir com a jovem quando ela empregava um determinado tom. Para atenuar esse tom peremptório, a jovem acrescentou gentilmente:

- Não te preocupes, saberás tudo. Explicar-te-ei quando regressar.

Quando a noite ficou completa, Fiora e Esteban abandonaram a residência evitando fazer qualquer ruído e foram até à rua du Lacet, onde ficaram por momentos escondidos na sombra espessa fornecida pela sacada de uma casa, observando a de du Hamel. Esteban aconselhara aquela pausa:

- É melhor esperar. Os criados saem muitas vezes, por turnos, quando as ruas estão desertas.

Onde vão eles?

À rua du Griffon, a uma casa de raparigas. Resta saber se também lá vão quando o patrão cá está! Olhai! Lá vem um a sair.

De facto, o mesmo homem que Fiora observara de tarde acabava de aparecer e fechava cuidadosamente a porta, cuja chave metia no bolso antes de se afastar num passo tranquilo.

Pergunto a mim própria por que razão não saem os dois

observou Fiora. Se a casa está vazia!

Se o patrão é sovina, deve ser rico. Quer, sem dúvida, que a sua casa esteja guardada. Vamos!

Sem fazerem mais barulho do que dois gatos, os dois companheiros de aventuras avançaram pela pequena ponte que atravessava o rio. Tinham os dois a ligeireza da juventude e os seus pés, calçados com couro suave, não acordava qualquer eco. Chegada à porta, Fiora examinou-a cuidadosamente. A noite de Verão estava iluminada e a jovem tinha bons olhos, mas adquiriu rapidamente a certeza de que, a menos que a atacasse com um pé-de-cabra, aquela porta seria impossível de forçar. Como era a única abertura para o rés-do-chão, a casa era, portanto, inviolável daquele lado.

Vamos ver o jardim! sussurrou Fiora.

Este estendia-se pelas traseiras do edifício, entre o Suzon e a rua de la Vieille-Poissonnerie. O quarto lado dava para uma ruela estreita e escura, mas uns muros bastante altos protegiam-no.

Se compreendi bem disse Esteban quereis entrar lá dentro? Eu passo primeiro...

A longa vida de mercenário treinara o castelhano em todos os exercícios do corpo. Escalar o muro foi, para ele, uma brincadeira de crianças. Instalou-se no alto escarranchado e inclinou-se para ajudar Fiora. Agarrou as mãos que ela lhe estendeu e içou-a. Após o que ambos examinaram o local.

Vale bem a pena ter um jardim para o deixar neste estado!

resmungou Esteban. De facto, do seu observatório, os visitantes só viam uma massa confusa de arbustos e ervas selvagens, no meio da qual não era possível ver qualquer carreiro. A própria casa tinha um pequeno torreão perfurado por pequenas aberturas, que devia encerrar a escadaria, mas as janelas eram tão raras como na fachada que dava para a rua: duas no andar de cima, das quais uma estava aberta para as trevas interiores e outra por baixo do telhado, fechada por persianas.

Esperai aqui! ordenou Fiora. Eu volto já...

E antes que o seu companheiro a pudesse reter já ela tinha deslizado para o outro lado do muro, onde permaneceu agachada por um instante para deixar morrer o ruído da folhagem. A voz abafada de Esteban chegou-lhe como se viesse de muito longe:

Tende cuidado, peço-vos! Nem sequer tendes uma arma!

Tenho uma faca. Deve chegar em caso de necessidade respondeu ela pousando a mão na bainha de couro que pendia da sua cintura. Em seguida, sem esperar mais e tomando a casa como ponto de referência, insinuou-se, sempre dobrada, pela vegetação selvagem do jardim. Prosseguia lentamente, um passo depois do outro, afastando os ramos com as mãos enluvadas de couro espesso e as pernas bem protegidas por botas macias, que lhe subiam até aos joelhos. Um som de fuga na erva imobilizou-a, o coração parado, mas um miado agudo tranquilizou-a quase de imediato: era um gato, que a aproximação da lua cheia punha em desassossego.

Por fim, chegou junto da casa e tocou com a mão na madeira de uma porta talhada no torreão, mas era tão sólida e benfeita como a outra. A única possibilidade de entrar era por aquela janela aberta no andar de cima, mas a sacada tornava o acesso impossível, a menos que se possuísse uma escada.

Desiludida, Fiora ia arrepiar caminho quando um novo ruído lhe suspendeu o movimento. Desta vez não era o grito de um gato, mas sim uns soluços que pareciam vir do solo. Afastando suavemente as grandes ervas que enchiam o rodapé, a jovem viu subitamente um estreito respiradouro protegido por uma grade de ferro. Lá dentro devia ser uma cave, certamente e nessa cave alguém chorava...

Ajoelhando-se, Fiora curvou-se para tentar ver qualquer coisa, mas os seus olhos não conseguiram perfurar a escuridão.

Quem chora? murmurou ela, perturbada por aquela dor invisível que evocava a de uma alma sofredora. Posso ajudar-vos?

Os soluços cessaram com uma funga dela. Fiora ia renovar o seu apelo quando uma algazarra de ferrolhos lhe chegou aos ouvidos, seguida de uma voz rude que rugiu:

Chega de chorar! Nem consigo beber!... Não te quero ouvir mais, compreendido?

O silêncio voltou a cair, cortado apenas por um pequeno gemido. A criatura ali fechada esforçava-se, sem dúvida, por conter os soluços. O homem, que devia ser o segundo criado, não se mexeu. E, subitamente, Fiora ouviu:

Não consegues dormir?... Não admira, com esse chavascal todo!... Toma! Bebe um pouco... e, se te portares bem, dou-te mais...

Ouviu-se um som de correntes e depois um som, como que de um animal a beber. O homem desatou a rir:

Pronto! Estás a ver? Assim já está melhor!... Vamos, deixa-te ir! Mais vale divertirmo-nos um pouco, não achas? Enquanto o velho não chega!

Fiora, espantada, não teve qualquer dificuldade em identificar os sons que se seguiram. Lentamente, evitando até respirar, a jovem afastou-se do respiradouro e recuou até ao muro, sobre o qual Esteban enregelava. De novo, ele ajudou-a a subir.

Então? Vistes alguma coisa?

Ela apoiou vivamente a mão sobre a boca do companheiro.

Vi, mas este não é o local para falarmos disso. Voltemos para casa! sussurrou ela.

Alguns minutos mais tarde estavam de regresso e Fiora fazia o relato da sua aventura com a paixão que punha sempre que estava emocionada:

Há uma mulher naquela cave, uma mulher acorrentada, sem dúvida, e que serve de brinquedo àqueles miseráveis. É preciso fazer qualquer coisa!

Também acho disse Demétrios mas o quê? Entrar na casa à força? Tu mesma constataste que era impossível. Denunciar sire du Hamel às autoridades? Nós não passamos de estrangeiros: nem sequer nos ouviriam e antes que um inquérito, se o conseguíssemos, se iniciasse, aquela desgraçada desapareceria, sem dúvida. De qualquer maneira, se a história que Chrétiennotte te contou é verdadeira, é uma situação que dura haja algum tempo...

E isso é razão para que se eternize? Tenho de entrar naquela casa, custe o que custar. Senão, como havemos de chegar a du Hamel?

Quando ele chegar, pensaremos nisso...

Temos de pensar antes e prepararmo-nos. Aliás, tenho uma ideia, arriscada, sem dúvida, mas é a nossa única hipótese.

E que ideia é essa?

Explicar-ta-ei. Entretanto, preciso de três objectos.

Que são?

Um vestido de veludo cinzento, cujo modelo fornecerei, uma cabeleira loura... e a chave da casa de du Hamel. Deve ser possível roubá-la a um dos criados quando ele sai à noite para ir ter com as raparigas.

Isso deve ser possível de arranjar aprovou Esteban. Arranjarei essa chave... mas será preciso agir logo que a tenhamos.

Uma hora deve chegar disse Fiora mas talvez, depois, sejamos obrigados a abandonar a cidade...

No dia seguinte, como fora combinado, dame Morel-Sauvegrain apresentou-se em casa da sua jovem locatária para travar conhecimento e saber notícias da sua saúde. Fiel ao seu papel, Fiora recebeu-a com uma solicitude a que não era estranha uma certa curiosidade, porque aquela dama conhecia bem o homem contra o qual Demétrios e ela própria se tinham unido por um laço de sangue.

A antiga ama-de-leite ducal era uma mulher grande, de mais de sessenta anos, mas que conservava uma certa frescura e cujos cabelos prateados faziam lembrar que tinham sido louros. Usava o luto, jamais abandonado por um marido morto há trinta e sete anos, com elegância, mas esse luto era de seda bordada e a sua coifa era de renda preciosa.

Uma simpatia imediata aproximou as duas mulheres. Fiora agradeceu à sua anfitriã as atenções que tivera por ela e dame Symonne deplorou que uma criatura tão jovem estivesse forÇada ao repouso.

O campo não seria melhor para vós? perguntou-lhe ela. Possuo lá várias casas e podia, facilmente, pôr uma delas à vossa disposição?...

Sois infinitamente boa respondeu Fiora e tenho vergonha de vos confessar que... o campo me aborrece. -Gosto de sentir, à minha volta, a animação de uma cidade e esta agrada-me...

A nossa cidade é bela, sem dúvida suspirou dame Symonne mas há muito tempo já que não tem qualquer animação. Pensai só que nunca vê os seus príncipes! O duque Carlos veio cá o ano passado, em Fevereiro e não via Dijon desde os doze anos. E foi em circunstâncias fúnebres...

Fúnebres? Morreu alguém da família?

Não. Veio receber os corpos do seu pai e da sua mãe, o duque Filipe e a duquesa Isabel, sepultados anteriormente em Bruges e em Gosnay, nos países de cá, para que repousem junto dos seus pais no convento de Champmol, que é a necrópole dos duques da Borgonha... O dia estava muito frio, sob um céu pesado de neve, mas eu fiquei muito feliz porque a minha querida duquesa, a quem eu era muito dedicada, veio para aqui, para o pé de mim, para esperar a ressurreição...

Por ela própria, mais ainda, talvez, do que pela sua silenciosa auditora, dame Symonne deixou sair da sua memória o longo e faustoso cortejo que entrou em Dijon naquele dia, conduzido pelo senhor de Ravenstein e pelo condestável de Saint-Pol, montados em cavalos cobertos de veludo negro, com a pomposa procissão das insígnias do duque defunto: o pendão armoriado, o cavalo de guerra conduzido pelos irmãos Toulongeon, a espada com punho resplandecente de pedrarias, depois o escudo, o elmo e o estandarte transportados pelos mais altos senhores, por fim a cota de malha com os símbolos do Tosão de Ouro, que o Grão-Mestre da Ordem transportava aberta nos braços e toda a nobreza dos diferentes países do grande duque do Ocidente vestida de luto seguindo o duque Carlos todo vestido de negro, que acolheu as duas urnas na presença dos arcebispos de Colónia, de Besançon e de Autun, dos embaixadores de Aragão, da Bretanha, de Veneza e de Roma. E depois todos os cavaleiros do Tosão de Ouro, levando ao pescoço os pesados colares da Ordem...

Naquele instante o coração de Fiora teve um sobressalto. Docemente, a jovem interrompeu a narradora:

No Inverno passado, em Florença, vimos chegar um desses cavaleiros, enviado como embaixador a monsenhor Lourenço de Médicis. Chamava-se... conde de Selongey. Conhecei-lo, talvez?

A emoção que fizera vibrar a voz de dame Symonne deu lugar a um riso divertido:

Messire Philippe? Quem não o conhece na corte de Borgonha? Monsenhor Carlos, a quem ele é devotado de corpo e alma, gosta muito dele. E não apenas ele!

Que quereis dizer?

Que ele é muito apreciado pelos seus companheiros de combate, porque é de uma grande bravura, mas também por muitas damas e donzelas. Ele tem muito encanto e aposto que as damas florentinas lhe sorriram muito?...

Não tiveram tempo, porque ele só ficou alguns dias disse Fiora, furiosa por sentir que a sua voz tremia e que conseguia esconder a cólera com dificuldade. Ele tem, então, muitas amantes?

Dizem que sim, mas não vos poderei responder com certeza, porque vivo afastada de uma corte que nos despreza e nos reduz ao estatuto de cidade de província, nós, que somos, no entanto, a capital. Os boatos chegam aqui de muito longe e tudo aquilo que sei é que, onde está o duque Carlos, está também o senhor de Selongey. Ora, o duque está sempre em guerra, o que não deixa muito tempo para os amores. Mas, e vós, minha querida, como achastes esse embaixador?

Pareceu-me... sedutor, se bem que mal o tenha conhecido. Mas, deixemos esse assunto e, se não vos importais, falai-me do duque! Que espécie de homem é ele?

Fiora esperava uma explosão de entusiasmo, o que não aconteceu. Dame Symonne permaneceu silenciosa por um momento, contemplando os anéis de ouro, pérolas e ametistas que lhe ornavam os dedos:

Como descrever-vos, sem fugir muito à verdade, essa mesma verdade que muda segundo os olhares? O meu é, sem dúvida, o da ternura, porque o alimentei com o meu leite e é verdade que o amo infinitamente, mas confesso que agora me mete um certo medo por causa daquele orgulho desmedido, ao qual se junta uma estranha propensão para a melancolia. Senti-o quando o vi o ano passado e atribuo-o, penso, ao seu sangue português...

Português?

Sim. A sua mãe chegou-nos de Portugal. Ela era irmã do príncipe Henrique, o Navegador, que pretendia conquistar os mares e foi ela que lhe transmitiu os seus sonhos de glória e de infinito. Monsenhor Carlos só está feliz quando entra em acção, mas, no entanto, desde sempre que teme a morte e a brevidade da vida é-lhe insuportável. Porém, nunca recua perante o perigo e até gosta de o procurar. Quando era jovem e vivia em Gorcum, gostava de embarcar sozinho num barco à vela e afrontar, assim, uma tempestade. Aliás, a tempestade, para ele, assim como a guerra, é o seu elemento natural. Encontra nele ressonâncias, porque tem acessos terríveis de furor. Temo que aquele velho sonho que ele persegue de reconstituir o antigo reino borgonhês o leve longe de mais. Ele procura unir, pela conquista, os países de cá aos países de lá, onde nos encontramos e talvez fosse melhor, sem dúvida, que ele sonhasse em proteger o que possui. O Rei de França não é um inimigo qualquer e ele espreita o nosso duque como a aranha espreita a sua presa no fundo da teia...

Como é ele fisicamente?

Eis uma pergunta bem feminina! disse dame Symonne rindo. Sabei, portanto, bela curiosa, que é um belo homem, mais baixo do que o seu pai mas de bela estatura e bem proporcionado... e muito vigoroso, o que o torna resistente à fadiga e às privações. Tem um rosto grande e corado, queixo poderoso, olhos escuros e dominadores. Os cabelos são negros e espessos. Raramente sorri, muito menos do que antigamente e é pena, porque isso dar-lhe-ia um grande encanto...

Diz-se que o pai dele gostava muito de mulheres. Ele assemelha-se, nesse aspecto?

De maneira nenhuma, porque está muito apegado à sua mãe e passa a vida, aliás, a dizer: ”Nós, os Portugueses...”, o que enlouquecia o duque Filipe, no seu tempo. Esse teve inúmeras amantes e a sua mulher sofreu muito para que o filho não fosse apanhado pelo deboche e pelo horror. Carlos amou profundamente Isabel de Borgonha, sua defunta esposa, que lhe deu a princesa Marie e creio que está muito ligado a Marguerite de Iorque, a duquesa actual, mas o seu coração ficou por aí e não se deixa levar pelos sentidos. Desconfia das mulheres, prefere de longe os companheiros de armas com a melhor das intenções, porque é casto. Como prefere a guerra às festas, ele, o príncipe mais faustoso da Europa, detesta os grandes banquetes e os bailes, de que o seu pai tanto gostava...

Ele não gosta, então, de se distrair?

Gosta, mas à sua maneira. Gosta de ler e, sobretudo, adora a música e passa horas a escutar os cantores da sua capela, dirigidos pelo mestre Antoine Busnois. Segue-os por toda a parte e chega a cantar com eles... É um príncipe estranho, não é verdade, aquele que vos descrevi?

Isso deve-se, creio, ao facto de que os príncipes não são como as outras pessoas. O duque é amado pelo seu povo?

Não tenho a certeza. Temem-no e, aliás, ele disse um dia aos Flamengos: ”Prefiro o vosso ódio ao vosso desprezo.” Mas desdenha tudo o que é burguês ou popular. Além disso, pode ser de uma crueldade impiedosa. As populações de Dinant e de Liège, cujas cidades arrasou, sabem-no, pelo menos aqueles que ainda estão vivos para se lembrarem...

No seu torreão, Jacquemart e a sua mulher deram quatro toques e dame Symonne levantou-se de imediato.

Ides-vos já embora? exclamou Fiora.

Sim, é tarde e tenho que fazer... Então, dizei-me, preferis ficar aqui a contemplar as águas do Suzon e aquela casa de persianas corridas?

Ela é um pouco melancólica, sem dúvida...

Dizei antes que é sinistra. E antigamente era tão encantadora e alegre! O jardim, no Verão, parecia um ramo de flores. A dona era aia da duquesa Marguerite da Baviera, avó do nosso duque e adorava todas aquelas plantas. Cresciam ao longo dos muros todos...

Dizem que o dono está ausente?

Tanto faz, quer esteja ausente, ou não. Se a minha tagarelice não vos fatiga, falar-vos-ei dele na minha próxima visita. Mas é má-rés...

Sempre a falar, dame Symonne aproximara-se da janela para deitar uma olhadela maquinal à casa em questão e, subitamente, o seu olhar animou-se:

Ides poder julgar por vós mesma, minha querida, porque aí está ele, que regressa.

Fiora saltou das suas almofadas com uma vivacidade que teria surpreendido, sem dúvida, a sua visitante, se o olhar desta não estivesse retido noutro lugar. Um homem, descia penosamente de uma mula em frente da porta da casa de onde acabava de surgir um dos criados.

Esforçando-se por ficar ao abrigo do lancil da janela, Fiora devorou com os olhos o recém-chegado com um ódio cuja violência a surpreendeu. Era um velho magro, que parecia curvado pelo peso do rico manto orlado de pele que usava apesar do calor. Por entre os cabelos grisalhos e baços que pendiam do espesso capuz de veludo, a jovem viu um longo rosto cor de marfim velho, um nariz pontiagudo e uma barba mal semeada, mas não lhe conseguiu ver os olhos sob o emaranhado saliente das espessas sobrancelhas...

Meu Deus, como ele é feio! disse ela, sincera.

E a alma não é mais bela, podeis acreditar!

E... ele vive sozinho naquela casa?

Com dois criados, dois irmãos, que mais parecem dois soldados alemães do que dois honestos criados.

Nenhuma mulher? No entanto, disseram-me que, uma noite, ouviram lá queixumes e gemidos...

Dame Symonne desatou a rir:

Isso é típico de Chrétiennotte! Ela está convencida que a casa du Hamel está assombrada e conta histórias a quem quer ouvi-la. Mas ela é como muitas raparigas do campo, que vêem coisas assombrosas por toda a parte...

No entanto, está persuadida de que há um fantasma naquela triste casa... O de...

Da infeliz que foi casada com aquela triste personagem?

perguntou dame Symonne, que deixara de rir. No fim de contas, talvez seja verdade, porque ela teria todas as razões para isso... Mas chega de conversa! O sacristão de Nossa Senhora já deve estar à minha espera para me falar da procissão de domingo. Desejo-vos uma boa tarde!

A dama eclipsou-se no meio de um grande frufru de sedas, deixando atrás de si um odor agradável a íris. A rua du Lacet estava vazia. Du Hamel, a sua mula e o seu criado tinham desaparecido. Fiora voltou a sentar-se nas suas almofadas e ficou um longo momento a reflectir, o queixo apoiado na mão. A hora de agir estava a chegar...

CAPÍTULO III MARGUERITE

Acabava de soar a meia-noite e o coração de Fiora batia-lhe no peito com força, dando-lhe a impressão, por vezes, de sufocar. O calor fora muito durante todo o dia, sem que o crepúsculo anunciasse qualquer frescura. A noite estava pesada, tempestuosa, opaca, mas o ribombar de um trovão, ao longe, deixava prever chuva antes da madrugada. No entanto, Fiora esperava que a tempestade ainda demorasse: aquelas trevas vagamente ameaçadoras convinham-lhe para levar a cabo o que tinha decidido: chegara a hora de Regnault du Hamel pagar as suas perversidades...

De pé diante do espelho que dame Symonne mandara instalar no seu quarto, Fiora olhava para a sua imagem e não se reconhecia: o rosto artificialmente empalidecido com a ajuda de um creme e os cabelos louros que um barbeiro havia arranjado a Demétrios. A única coisa familiar era o pequeno chapéu de renda manchado de sangue que Léonarde conseguira salvar, com mais alguns objectos preciosos, do desastre do palácio Beltrami e que ela colocara, com a ajuda de um alfinete e com as mãos trémulas, na cabeça do ”seu cordeirinho”. O vestido cinzento de veludo mosqueado de dourado era pesado e difícil de usar com aquela temperatura, mas Fiora nem sequer transpirava. Essa manifestação humana era-lhe recusada, como se a alma de Marie de Brévailles tivesse entrado nela para assumir a vingança e a tivesse desencarnado. Como se fosse apenas uma aparência...

Atrás de si, Fiora ouviu Léonarde gemer. A velha solteirona estava aterrorizada pelo que via e mais ainda, talvez, pelo que se ia passar. Lutara com todas as suas forças para que a jovem se afastasse daquele perigoso projecto...

O ódio daquele homem não se extinguiu, meu cordeiro. E se ele vos matar, ou ferir?

Não se mata ou se fere um fantasma! E eu não estarei só. Demétrios vai comigo para tratar do criado de guarda...

Desejais assim tanto essa vingança? O homem está velho, não viverá muito mais tempo...

Demasiado tempo, de qualquer maneira, para a infeliz que ele mantém cativa. Vou acabar com uma vida e libertar outra...

Demétrios bateu à porta e entrou sem esperar uma resposta, mas estacou à entrada do quarto, olhando para a jovem que se virara para ele.

Como é que estou?

Impressionante... mesmo para mim! Não te esqueças do véu branco, mas deixa-me primeiro, acabar a nossa obra de arte!

Aproximando-se da jovem, o médico passou-lhe, em redor do pescoço, uma delgada fita vermelha e depois, retirando das mãos de Léonarde uma grande peça de tecido de musselina branca, atirou-a por cima da cabeça de Fiora, cuja personagem ficou enevoada sem deixar de ser reconhecível...

Tenho que ter liberdade de movimentos disse ela apontando para o punhal que levava preso à cintura, dissimulado sob as pregas do vestido...

O grito de uma ave nocturna, repetido três vezes, fez-se ouvir através da janela aberta:

É Esteban disse Demétrios está à nossa espera. Vamos, se continuas decidida!

Mais do que nunca!

A jovem envolveu-se num manto amplo e leve de seda negra destinado a torná-la invisível na noite e seguiu Demétrios. Bem oleada, a porta da residência abriu-se sem ruído e um instante mais tarde Fiora e Demétrios juntavam-se a Esteban.

Tens a chave? perguntou o grego.

Se não tivesse, não tinha assobiado, mas despachai-vos de qualquer maneira, porque o grande Claude, que bebeu, como uma esponja e dorme nos braços de uma rapariga da mme du Griffon, pode acordar a qualquer momento.

De qualquer modo disse Fiora se ele não encontrar a chave, não tem importância. A casa estará aberta...

Mas eu quero levar-lha, mesmo assim. Para que fique tudo em ordem e os homens do preboste não façam muitas perguntas quando encontrarem, amanhã, o cadáver.

Com dois saltos ligeiros, o castelhano chegou à porta, que se abriu sem o menor rangido. A obscuridade da casa engoliu os três amigos, que ficaram imóveis por um momento, para habituar os olhos às trevas envolventes. A ausência de janelas não tornava as coisas mais fáceis, mas aperceberam, finalmente, umas brasas avermelhadas, provavelmente numa chaminé e Esteban acendeu nelas a vela que trazia no bolso. Então, viram que estavam numa cozinha, ao fundo da qual se via a espiral de uma escadaria e a porta que dava para o jardim. Não havia ninguém à vista.

Fiora abandonou o seu manto negro e colocou o véu branco, de maneira a poder utilizar a mão direita. Com Esteban a caminhar à frente, dirigiram-se para a escadaria, que subiram o mais silenciosamente possível, e chegaram à grande sala, que estava perfeitamente vazia.

Devem estar lá em cima sussurrou Esteban. Efectivamente, quando a sua cabeça chegou ao nível do segundo andar, viu Mathieu, o segundo criado, que dormia profundamente, estendido em frente de uma porta em cima de um simples cobertor. Não era difícil adivinhar quem estava por trás da porta...

Espera aqui! sussurrou Demétrios ao ouvido de Fiora. Temos de nos desembaraçar dele...

Esteban, ágil e silencioso como um gato, já deslizava na direcção do dorminhoco que, das profundezas do seu sono, deve ter adivinhado a sua aproximação, porque se mexeu, grunhiu e mudou de posição. De joelhos, a dois passos dele, o castelhano retinha a respiração. Mas, com um suspiro de contentamento, Mathieu voltou a adormecer. Então, com um soco magistral, assestado com a rapidez e a força de um raio, Esteban Deixou-o inanimado. Em seguida, ajudado por Demétrios, puxou o cobertor para afastar o homem da porta. O caminho estava livre para Fiora, que viu um delgado raio de luz filtrar-se pelo local onde o criado tinha estado deitado.

Deixando o seu servidor a atar e a amordaçar Mathieu, Demétríos regressou para o pé de Fiora e muito suavemente, abriu a porta cujo fecho se mexeu sem ruído. A zona luminosa alargou-se e a jovem pôde ver, enfim, o seu inimigo. Mais sentado do que deitado na cama, como todos os asmáticos, Regnault du Hamel lia à luz de uma vela pousada em cima da mesinha-de-cabeceira. Um gorro de noite estava-lhe enfiado até às orelhas e o seu busto desaparecia por baixo de uma camisola de lã cinzenta. Umas lunetas estavam-lhe penduradas no nariz. Parecia uma gárgula de catedral, tão feio, que Fiora teve vontade de saltar sobre ele e matá-lo de imediato. Mas conteve-se. O que ela queria ver, naquela figura, era o medo. Muito lentamente, a jovem avançou pelo quarto, deslizando mais do que caminhando e esperando que o soalho não rangesse, mas os seus pés encontraram um tapete e sentiu-se mais descansada. Du Hamel ainda não se apercebera da sua presença. Continuava a ler.

Então, a jovem fez ouvir um leve queixume e depois um outro... O velho ergueu os olhos e viu, a alguns passos do seu leito, uma sombra branca. O livro escapou-lhe das mãos e caiu por terra com um som surdo, mas a sombra continuava a aproximar-se... Agora, Regnault já podia distinguir um rosto, uns cabelos louros e um pescoço que parecia ter a marca sangrenta da espada do carrasco... Um pavor incrível invadiu-lhe o rosto. Tentou recuar no leito e quis gritar, mas, tal como nos pesadelos, nenhum som lhe saiu da boca de lábios violeta. Estendeu os dois braços para repelir a aparição e conseguiu sussurrar:

Não... não!

Vais morrer cochichou a voz baixa do fantasma. Vais morrer às minhas mãos...

Fiora já esboçava o gesto de tirar o punhal para desferir o golpe quando, subitamente, du Hamel levou as duas mãos à garganta. A sua boca, que buscava desesperadamente ar, abriu-se num estertor e os seus olhos pareceram sair das órbitas. Um espasmo sacudiu todo o seu corpo magro, que deslizou de lado e deixou de mexer-se. O rosto ficara violeta, como se uma mão invisível o tivesse estrangulado.

Estupefacta, Fiora ficou imóvel por um momento e depois, tirando o véu, inclinou-se sobre o homem inerte e chamou:

Demétrios! Vem ver!

O médico grego acorreu, segurou na mão abandonada sobre o lençol, encostou o ouvido ao local do coração e depois, vendo a boca aberta para um grito que nunca seria lançado e uns olhos que não veriam mais nada deste mundo, suspirou:

Está morto, Fiora... morto de pavor.

Isso é possível?

A prova! De qualquer maneira, o seu coração não devia ser muito sólido... Mas agora vamos e, sobretudo, não toquemos em nada. Dir-se-ia que o céu quis evitar que fizesses correr sangue. É preciso que encontrem o corpo tal qual está... Esteban vai libertar o criado e levar a chave ao outro.

O médico tinha-lhe segurado o braço para a levar, mas ela resistiu:

Estás a esquecer-te de uma coisa, Demétrios. Este homem está morto e eu sinto-me satisfeita, mas há uma pessoa que é preciso libertar, aquela mulher que eu ouvi chorar e não partirei sem ela...

Pegando na aba do vestido que lhe restringia os movimentos, Fiora lançou-se pelas escadas abaixo depois de ter tirado a vela das mãos do grego. A jovem foi abrir a porta que dava para o jardim na esperança de ver melhor, mas fechou-a de imediato, porque estava a levantar-se vento. Aliás, a tempestade aproximara-se e já rugia sobre a sua cabeça. Ela procurava uma porta que descesse à cave quando Esteban e Demétrios se lhe juntaram.

Não é uma porta que temos de procurar disse o castelhano é um alçapão... e vós tendes os pés em cima dele.

De facto, naquele local, as lajes davam lugar a umas pranchas espessas, mas havia ali tanta poeira que Fiora não vira a diferença. Os músculos sólidos de Esteban tiveram pouca dificuldade em erguer a tampa, que revelou uma escada de pedra mergulhando nas entranhas da casa. Uma lufada de ar infecto esbofeteou o rosto de Fiora quando ela pôs o pé no primeiro degrau. Demétrios puxou-a para trás:

Deixa-me passar primeiro. Eu alumio-te...

O médico começou a descer e depois estendeu a mão a Fiora:

Atenção! Os degraus são escorregadios. Isto está cheio de humidade...

Mas, pelo menos, não sufocamos declarou Esteban, que os seguia. Está muito menos calor aqui do que no resto da casa.

No fundo das escadas encontraram uma espécie de cave abobadada com duas portas feitas de velhas pranchas carcomidas.

É aquela que é preciso abrir indicou Fiora. O respiradouro do jardim deve ser desse lado. Mas não temos a chave...

Não é preciso chave para abrir isto! disse Esteban. E com um pontapé magistral despedaçou o batente, que só estava seguro por uma fechadura em mau estado. Um gemido piedoso fez eco com o tumulto que se desencadeara. A prisioneira devia temer novas sevícias. Mas Fiora já se precipitara pela abertura, baixando-se para não se magoar. O que viu graças à vela de Demétrios, que a seguira, arrancou-lhe um grito de horror: ao fundo de uma espécie de in pace, onde era impossível permanecer de pé, uma mulher, com um vestido em farrapos, estava estendida em cima de uma enxerga de palha meio apodrecida. Umas pulseiras de ferro e umas correntes do mesmo material prendiam-na a um grosso anel na parede. Fiora não lhe via o rosto, apenas uma longa e imensa cabeleira loura, tão suja como os farrapos da infeliz.

Ouvindo alguém penetrar no seu calabouço, a mulher virou-se penosamente, revelando um pequeno rosto magro, cheio de arranhões e vestígios de golpes, tal como os membros miúdos e, sem dúvida, o resto do corpo. Com as lágrimas nos olhos, Fiora caiu de joelhos junto dela sem receio de sujar o vestido, procurando já um meio de lhe tirar as correntes:

Não tenhais medo disse ela docemente. Nós vimos libertar-vos. O vosso carrasco está morto... Dizei-nos, apenas, quem sois.

A prisioneira abriu a boca, mas só conseguiu produzir sons inarticulados, a despeito do esforço patético que lhe fez chegar as lágrimas aos olhos pálidos, sem cor definida.

Meu Deus! suspirou Fiora. Ela será muda?

Talvez disse Demétrios mas, afasta-te e deixa-me ver. Não tenteis falar! acrescentou ele para a prisioneira. Nós vamos levar-vos daqui, tratar de vós... Nós somos amigos. É preciso partir estes ferros, ou abri-los acrescentou ele para Esteban, que partiu a correr. A chave deve estar em qualquer parte...

O castelhano regressou, felizmente, pouco depois, segurando na mão a chave que encontrara, juntamente com outras, à câmara da morte. As pulseiras de ferro caíram, revelando cruéis equimoses.

Vamos levá-la para nossa casa, não vamos? pediu Fiora, que num gesto pleno de doçura envolvera a jovem, que não devia ter mais de quinze ou dezasseis anos, com o grande véu branco que usara pouco antes.

Em resposta, Esteban curvou-se, ergueu-a nos braços e dirigiu-se para a porta, sem se preocupar em curvar-se para a transpor. Fiora e Demétrios seguiram-no e subiram para a cozinha, onde o grego deixou cair a tampa do alçapão. O barulho confundiu-se com um violento trovão. Entretanto, Demétrios abria a porta com precaução, para ver se a rua estava vazia. Os relâmpagos que se sucediam sem interrupção mostravam que não havia vivalma. Fiora pegou na manta negra que abandonara e cobriu-se com ela. Iam já a sair quando Demétrios se virou para Esteban, que não parecia muito incomodado com o seu fardo:

Dá-ma! disse ele. Vai antes ver se o criado continua a dormir...

Não tem importância, ele está amarrado e não viu nada...

Como queiras... Quanto ao irmão dele, no fim de contas, não vale a pena restituir-lhe a chave. Dá-ma. Vou atirá-la ao rio...

Quando chegaram à esquina da rua dês Forges, a chuva abateu-se sobre eles com tal violência que ficaram instantaneamente ensopados, se bem que não tivessem dado mais de três passos. As comportas do céu tinham-se aberto, precipitando trombas de água que em alguns segundos transformaram as ruas em outros tantos rios e deram ao tranquilo e modesto Suzon a importância de uma torrente...

Os trovões e os relâmpagos sucediam-se sem interrupção e a sua algazarra cobriu o barulho, se bem que ligeiro, da reentrada do grupo.

Fiora decretou logo que se desse o seu leito à desconhecida, mas como Demétrios decidiu delicadamente partilhar o seu com o seu ”secretário”, foi finalmente para o quarto de Esteban que levaram a evadida, para junto da qual Léonarde já se apressava. A governanta mandou Esteban aquecer água à cozinha, enquanto, ajudada por Fiora, desembaraçava a infeliz dos seus trapos infectos. O corpo que lhes apareceu estava magro e coberto de marcas penosas, mas mais cheio do que Fiora pensava, que, até ali, não atribuíra mais de quinze anos à prisioneira.

Ela deve ter uns vinte anos apreciou Léonarde, que acrescentou, examinando o ventre ligeiramente inchado: Pergunto a mim própria se ela não estará grávida...

Não me espantaria muito depois do que me apercebi através do respiradouro disse Fiora. Um daqueles brutos divertia-se com ela e, se calhar, os dois...

Demétrios, que fora ao seu quarto buscar aquilo de que poderia ter necessidade, entrou naquele instante e anulou o diagnóstico de Léonarde...

Não creio. Mas eu é que pergunto a mim próprio quem poderá ser ela e por que a manteriam sequestrada aqueles miseráveis?

A desconhecida continuava sem dizer nada. Mantinha os olhos fechados e deixava que cuidassem dela como se já não tivesse força para fazer o menor dos gestos. Entre as mãos de Demétrios, que a examinava, parecia tão mole como uma boneca de trapos.

Devem ter-lhe batido muito, porque algumas destas marcas são antigas e, sem dúvida, passou fome, mas parece estar de boa saúde...

Já te esqueceste que ela parece muda? disse Fiora. Talvez lhe tenham cortado a língua?

Demétrios assegurou-se de imediato que não era o caso e declarou que o terror e os maus tratos podiam privar qualquer pessoa da fala, às vezes durante algum tempo e outras para sempre.

Quando ela estiver em melhor estado faremos uma experiência acrescentou ele. Por agora, é demasiado cedo...

Léonarde e Fiora lavaram o melhor que puderam a evadida antes de lhe vestir uma das camisas de Fiora, puseram-lhe pomada nos punhos, que as pulseiras tinham posto em carne viva, e ligaram-nos com pano fino. Em seguida atacaram-lhe o rosto, que tinham deixado para o fim. Tiraram-lhe a porcaria e o sangue seco, mas não conseguiram ocultar as nódoas azuladas que denunciavam os golpes recebidos..

Que belos cabelos! suspirou Fiora, segurando a longa cabeleira loura. Que pena estarem tão sujos! Vai ser preciso lavá-los!

Podeis estar certa que nos encarregaremos disso quando ela estiver suficientemente forte para isso... Oh! reparai, meu cordeiro, ela está a abrir os olhos!

As duas mulheres e o grego inclinaram-se para o leito onde a desconhecida acabava, de facto, de erguer as pálpebras, revelando umas pupilas de um azul-pálido a atirar ligeiramente para o verde. A jovem olhou para os três rostos e esforçou-se por sorrir sem, realmente, o conseguir.

Estais em segurança, aqui disse docemente Fiora. Ninguém mais vos fará mal e nós velaremos por vós...

Vamos começar por vos dar qualquer coisa de comer disse Léonarde e um pouco de leite...

Com este tempo tempestuoso o vosso leite deve ter azedado disse Demétrios. Fazei-lhe antes um chá de tília com muito açúcar e mel, ao qual deveis acrescentar uma pitada disto acrescentou ele estendendo-lhe uma pequena caixa de madeira pintada.

Tendo ficado só com Fiora, Demétrios regressou para junto do leito e olhou para aquele rosto jovem e doloroso que sobressaía na brancura da almofada. Subitamente, o médico inclinou-se e pegou no candelabro que ardia em cima da mesinha-de-cabeceira para o erguer por cima do leito.

Sabias murmurou ele que esta infeliz se parece contigo?

Comigo?

Sim... mas mesmo muito, aliás. De facto, é sobretudo Parecida com aquele rapaz, aquele jovem monge fugido, que nós enviámos para a guerra.

Christophe? Achas que ela é da família?

Léonarde regressara com o chá e enquanto este arrefecia ° suficiente para que pudesse ser bebido, Fiora deu-lhe parte da ideia de Demétrios, acrescentando que não via muito bem quem poderia ser a jovem. Mas Léonarde, essa, via. Depois de ter olhado mais de perto para o rosto de olhos fechados, lembrou a Fiora o relato em forma de confissão que, numa noite de Primavera, Francesco Beltrami fizera à sua filha:

Lembrai-vos! Ele disse-nos que a tua mãe tinha dado uma filha a Regnault du Hamel. Juraria que é esta. Se for o caso, ela deve ter vinte anos, como eu pensava...

Filha dele? Ele teria tratado a filha desta maneira ignóbil? E isso durante estes anos todos? É impossível: já estaria morta!...

Não disse Demétrios nada disso é impossível. Já houve prisioneiros, mesmo mulheres, que se obstinaram em viver em condições terríveis. A resistência humana pode ser incrível, sobretudo quando se trata de seres jovens e, agora, tenho a certeza que tenho razão: esta jovem é tua irmã, Fiora!

Minha... irmã?

A palavra, e ainda mais a ideia, entraram lentamente no espírito da jovem, no entanto bem vivo. Nunca pensara muito naquela peripécia do relato do seu pai e nunca pensara, sobretudo como irmã, na criança que Marie de Brévailles tivera do seu casamento. Nem sequer fizera, perguntas acerca daquele assunto, porque não imaginava que um pai, fosse ele um du Hamel e extremamente abjecto, pudesse ser carrasco da própria filha. Segundo ela, a filha do conselheiro devia ter sido confiada, depois da fuga da mãe, a um convento qualquer, a menos que a sua avó a tivesse reclamado, o que teria sido normal. Mas, agora, descobria que a infame personagem transferira para a criança o ódio que votava a Marie. Fizera dela o bode expiatório, infligindo-lhe um longo martírio que se devia comprazer em observar. Matá-la teria sido demasiado rápido, menos agradável, sem dúvida, mas que tivesse levado a ignomínia a ponto de a entregar aos prazeres dos seus criados... ultrapassava qualquer entendimento e toda a tolerância! Tremendo de cólera, Fiora pensou que fora lamentável du Hamel ter morrido tão depressa. Uns poucos segundos de terror puro, ao passo que teria merecido uma agonia lenta, sujeito às torturas mais cruéis!

Lentamente, a jovem regressou para junto do leito onde Léonarde dava de beber àquela irmã, da qual ainda nem sequer sabia o nome e sentiu-se invadida por uma imensa piedade, pegou docemente numa das mãos magríssimas, que mais pareciam garras e conservou-a na sua. Léonarde lançou-lhe uma rápida olhadela:

Achais, não é verdade, que aquele miserável não pagou suficientemente caro? Neste mundo, sem dúvida. Enquanto eu continuo a agradecer a Deus por ter evitado que sujásseis as mãos naquele sangue podre! Mas, não creio que o inferno seja um lugar muito agradável e podeis estar certa que a esta hora messire du Hamel já transpôs a soleira a arder.

Espontaneamente, Fiora rodeou com os braços o pescoço da sua velha governanta e beijou-a:

Vós tendes sempre as palavras certas para me dizer, não é verdade, minha querida Léonarde? Lembrai-me mais vezes que vos recorde que vos amo muito!

Isso é muito agradável de ouvir. E já que achais que os meus discursos têm sempre um propósito, escutai isto: é terrivelmente tarde e vós caís de sono! Ide dormir! Amanhã também é dia e teremos tempo de pôr ordem nas nossas ideias. Em todo o caso, sei que as minhas têm muita necessidade!...

No dia seguinte de manhã o bairro estava em revolução e a algazarra assaltava as nobres mansões e as oficinas dos armeiros da rua dês Forges. Tendo encontrado a porta da casa de du Hamel aberta de par em par, uma vizinha, levada por uma curiosidade antiga, tinha-se aventurado, não sem ter, apesar de tudo, chamado para o vazio. Saíra de lá pouco depois lançando gritos assustadores que tinham acordado em sobressalto todos aqueles que ainda dormiam e atraído para o local uma multidão excitada, na primeira fila da qual se podia ver Chrétiennotte, pronunciando grandes discursos com ar soberbo e contando a quem a quisesse ouvir a aventura nocturna do seu defunto Janet, enfeitada com algumas descobertas da sua lavra.

Daqui a nada está a meter-nos nas suas histórias! grunhiu Demétrios ao constatar que, pela terceira vez, a tagarela apontava para as suas janelas. E mandou Esteban em busca de Chrétiennotte, para tentar inculcar-lhe uma melhor compreensão dos seus deveres domésticos. Esta deixou-se arrastar sem resistência, mas não se ocupou, todavia, da lida da casa. Debruçada da janela de Fiora, limitou-se a mudar de posto de observação. De facto, não queria perder por nada a chegada do preboste e da sua gente, que vinha constatar os estragos. Ao vê-la, Léonarde encolheu os ombros, pegou num cesto e foi às compras depois de ter tomado a precaução de fechar à chave o quarto onde repousava a infeliz que Fiora tirara do inferno.

Naturalmente generosa, Léonarde não gostava muito daqueles regressos sucessivos, na vida de Fiora, a um passado que ela desejava vê-la esquecer. Christophe de Brévailles tomara, graças a Deus, o seu próprio caminho e, na noite anterior, Fiora evitara sujar as mãos de sangue para grande alívio da solteirona. Du Hamel morrera de medo, morto pela sua própria consciência e pronto, mas, agora, havia aquela rapariga, muda e talvez idiota, que era preciso esconder, o que não era fácil e representava um fardo bem pesado para uns ombros de apenas dezoito anos...

No regresso das compras, Léonarde parecia ainda mais inquieta do que quando partira. Só se falava da morte do conselheiro ducal e da do seu criado Mathieu, que tinham encontrado apunhalado a alguns passos do seu quarto. Quanto ao segundo criado, Claude, desaparecera e várias vozes já o acusavam de duplo crime, se bem que o corpo de du Hamel não tivesse quaisquer marcas de sevícias. Pelo contrário, os seus cofres e armários tinham sido escrupulosamente vasculhados e esvaziados...

O que se passara não era difícil de imaginar. Regressando tarde e sem dúvida aliviado por encontrar a porta aberta, Claude, temendo, talvez, ser acusado da morte do patrão, achara mais simples fugir com tudo o que pudesse levar, depois de ter assassinado o seu próprio irmão para evitar ter de partilhar com ele. Quanto à prisioneira, ninguém falava dela, já que a sua presença era ignorada por todos, mas não deixava de constituir um perigo permanente, pela tagarelice que o seu salvamento e alojamento em casa do médico estrangeiro poderia suscitar. As bisbilhotices, os mexericos... a grande especialidade de Chretien-notte Evidentemente, Esteban proibira expressamente a honrada mulher de entrar no seu quarto, pretextando um trabalho delicado que tinha começado, mas durante quanto tempo conseguiriam mantê-la à distância?

Assim, mal entrou em casa, Léonarde pousou o cesto na cozinha, foi tirar Chrétiennotte do seu observatório onde, aliás, não havia mais nada para ver e intimou-a a ir descascar os legumes para a sopa. Em seguida foi expor as suas angústias a Demétrios, que encontrou no seu quarto a escrever.

O grego escutou-a sem dizer nada segundo o seu hábito, mas, quando ela acabou, levantou-se e pôs-se a andar de um lado para o outro, de uma ponta do tapete à outra.

Que fazemos? perguntou Léonarde. Deus é testemunha de que tenho pena daquela pobre rapariga, mas não podemos escondê-la eternamente, ainda por cima porque não vamos ficar aqui muito mais tempo. Portanto?...

Honestamente, eu próprio não sei que fazer. A melhor solução seria confiar esta infeliz, uma vez curada, a um convento da vizinhança. Mas um convento exige um dote e isso representa uma grande despesa! Não nos podemos permitir isso. Acabar-se-nos-ia o ouro dado por Lourenço de Médicis e teríamos de pensar em nos juntarmos já ao Rei Luís. Por outro lado, se esta rapariga é filha do triste sire que morreu a noite passada, também deve ser herdeira dele?

E como reclamar a herança sem nos arriscarmos a ser acusados de assassínio?

Isso é rigorosamente possível, mas teríamos de ter a certeza de que ela é quem pensamos!

E como havemos de saber? Ela é muda.

Isso não é certo, porque ela emite sons. Em tempos, no Egipto, vi uma mulher que tinha perdido o uso da fala no seguimento de um grande susto. Um imã, com quem eu aprendia então, restituiu-lha. Se pensarmos no que ela suportou, pode ser o caso da nossa evadida. Desde que ela a possa suportar, tentarei uma experiência. Em todo o caso, dame Léonarde, farei tudo para que possamos partir daqui o mais cedo possível. Não é bom, para Fiora, mergulhar na atmosfera doentia destes dramas antigos...

No entanto, vós encorajai-la a prosseguir estas vinganças que lhe envenenam o coração?

A impunidade dos culpados ainda a envenenaria mais. Além disso, eu não tenho poder nenhum sobre a sua vontade, que é inflexível. Tenho a sensação de ver reviver nela as princesas da Grécia antiga, Antígona, Hermíone ou Medeia, que iam implacavelmente até ao fim dos seus desígnios, fosse qual fosse o preço a pagar...

Essa é a vossa opinião! Eu preferia rever nela a criança que era, a adolescente terna e alegre que corria no jardim de Fiesole..

Em todo o caso e mesmo que o drama não tivesse acontecido, essa criança de que falais não podia vingar. Chega sempre o momento em que a rapariga dá lugar à mulher. Fiora é uma mulher, agora, e uma mulher robusta, forjada no fogo da infelicidade: são as melhores... ou as piores! Mas é esse o seu segredo!

Tentai, ao menos, não a empurrar demasiado para essa segunda categoria!

Tendo dito o que pretendia, Léonarde foi ver se Chrétiennotte já se decidira a regressar ao trabalho. Demétrios não era o único a querer descobrir com certeza a identidade da prisioneira. Fiora, que se instituíra sua enfermeira, tentava, pelo menos, descobrir-lhe o nome e, dois dias após a sua chegada, vendo que a saúde voltava e que a sua protegida fazia progressos quase à vista desarmada, meteu-lhe nas mãos um papel e uma pena previamente mergulhada em tinta:

Como não me podeis dizer o vosso nome, propôs-lhe ela docemente escrevei-o.

Mas a jovem doente, subitamente muito corada, restituiu-lhe os objectos abanando a cabeça com um ar tão desolado que Fiora, comovida, passou-lhe um braço pelos ombros e beijou-a:

Não sabeis escrever? Não tem importância, aprendereis depressa. Mas vamos tentar, ao menos, saber o vosso nome de baptismo. Eu vou dizer uns nomes e vós parar-me-eis quando disser o vosso...

A desconhecida aprovou com um sorriso. O jogo devia diverti-la, mas Fiora rapidamente se apercebeu de que necessitava de ajuda, porque conhecia, sobretudo, nomes florentinos, que tinha de traduzir. Assim, achou mais fácil ir buscar Leonard” mais a par dos nomes usados na Borgonha. Isso não deve ser muito complicado disse esta. Nas famílias nobres, dá-se frequentemente às filhas o nome de duquesas, presentes ou passadas. Quando esta criança nasceu a duquesa chamava-se Isabel. Vós chamais-vos Isabel? Não. Fiora emitiu a hipótese de que talvez fosse Marie? Mas também não era Marie...

Continuemos com as princesas continuou Léonarde.

É muito simples: a mãe, a avó e a esposa do duque Carlos têm as três o mesmo nome: Marguerite...

Léonarde acertara em cheio. A jovem bateu as palmas, ao mesmo tempo que um sorriso lhe iluminava o rosto.

Marguerite... repetiu Fiora. É uma flor muito bonita, muito branca e com o coração dourado. Fica-vos muito bem: vós sois muito branca e tendes os cabelos da cor do sol...

Demétrios felicitou vivamente a jovem pela sua iniciativa e acrescentou que talvez pudessem ir mais longe. Quando chegou a noite todos se reuniram no quarto de Marguerite, cujas janelas e persianas, apesar do calor, fecharam cuidadosamente. A divisão ficou apenas iluminada por um candelabro pousado em cima de uma arca bastante longe do leito e por uma vela em cima da mesinha-de-cabeceira.

O grego pegou em Fiora pela mão e conduziu-a até à cabeceira, para que Marguerite se sentisse mais confiante. Em seguida, inclinou-se para a jovem:

Primeiro, gostaria que me respondêsseis a uma pergunta, para que eu saiba se me é possível ajudar-vos. Sempre fostes muda?

Marguerite abanou a cabeça negativamente.

Portanto, houve um momento, na vossa vida, em que pudestes falar?

Sim...

Perdestes a fala no seguimento de um acidente?

Não...

No seguimento de um grande medo ou de uma violenta emoção?

Sim...

Muito bem. Nesse caso, é possível que eu consiga vo-la devolver. Se tiverdes confiança em mim e me obedecerdes. Asseguro-vos que só quero o vosso bem e que não tendes absolutamente nada a recear de mim. Não vos farei qualquer mal e nem sequer vos tocarei...

Tereis de fazer o que ele diz, Marguerite murmurou fiora, segurando-lhe na mão. Ele vai tentar descobrir o mal de que vós sofrestes e de que continuais a sofrer...

Pelo olhar tranquilo que Marguerite pousou nela, Fiora compreendeu que a jovem tinha confiança nela. Demétrios foi apagar uma a uma as velas do candelabro, ficando acesa apenas a que estava na mesinha-de-cabeceira, que ele segurou na mão e levantou um pouco acima da cabeça pousada na almofada, de maneira a que Marguerite só precisasse de manter os olhos abertos para a ver.

Tendes de fixar atentamente a chama disse o médico com uma doçura firme. E foi obedecido: os olhos claros reflectiram a luz dourada e fixaram-na com uma calma absoluta. Marguerite largou a mão de Fiora, cruzou as mãos no peito e esperou sem manifestar o menor receio.

Muito bem! aprovou Demétrios que, de imediato, ordenou: E agora, olhai bem para a luz e não desvieis dela os olhos... os olhos... os olhos... os olhos...

A voz profunda e encantatória do grego transportava com ela uma espécie de paz, uma calma, à qual foram sensíveis os três espectadores. Entretanto, as pálpebras de Marguerite estremeciam, como se desejassem fechar-se e apenas a sua vontade as mantivesse abertas.

Vós tendes sono, muito sono... As vossas pálpebras estão tão pesadas... Não luteis contra o sono que vos invade. Deixai-vos ir... dormi, dormi! Todos os vossos membros estão relaxados, o vosso corpo está infinitamente cansado; reclama repouso... Abandonai-vos a esse repouso... Dormi... dormi... dormi!...

As pálpebras fecharam-se por completo. As mãos estavam estendidas, sem força, ao longo do corpo. A respiração tornou-se regular, Por um instante, o silêncio reinou no quarto tranquilo. Cada um retinha a respiração. Então, Demétrios continuou:

Eu sei que dormis, Marguerite, ouvis-me? Lentamente, esta acenou com a cabeça...

Muito bem... Agora, o vosso espírito está livre do vosso corpo e as más influências foram repelidas. Juntos, vamos regressar à vossa infância. Concentrai-vos, Marguerite. Vós tendes dez anos... Ainda falais?

Umas lágrimas subiram instantaneamente aos olhos da adormecida. Ela fez sinal que sim, mas, de imediato, fez um gesto reflexo para proteger a cabeça de golpes invisíveis. Fiora apertou as mãos uma contra a outra com tanta força que as unhas se lhe encravaram nas palmas...

Éreis uma criança infeliz, mas, no entanto, faláveis. Que se passou depois? Olhai para a vossa vida de maneira a regressar ao drama em que perdestes a voz. Recuai nos anos...

Subitamente, o corpo de Marguerite começou a agitar-se. Os lençóis foram empurrados, ao mesmo tempo que, com os dois braços, a adormecida procurava repelir qualquer coisa que a aterrorizava. A jovem fazia esforços terríveis para manter as pernas unidas, mas, apesar disso, qualquer coisa as afastava irresistivelmente. Marguerite chorava, gemia... e tudo aquilo era de uma clareza incrível:

Dios! sussurrou Esteban ela foi violada...

Em seguida tudo se acalmou e Marguerite ficou inerte, como que privada de vida. Demétrios concedeu-lhe um momento de descanso e voltou ao ataque.

Foi nesse momento terrível que perdestes o uso da fala? Marguerite abanou lentamente a cabeça da direita para a esquerda.

Portanto, foi depois. Lembrai-vos do que se passou em seguida. É preciso que regresseis ao instante em que a vossa voz se apagou... Esse instante é muito doloroso?

Marguerite, de facto, torcia-se no leito. Segurava as mãos em cima do ventre, como se este fosse demasiado grande e lançava gemidos terríveis.

Dir-se-iadisse Léonarde em voz neutra que ela está a dar à luz?

E, caindo de joelhos, pôs-se a rezar...

Não poderíamos murmurou Fiora impedi-la de reviver todo esse sofrimento?

Demétrios pousou as mãos em cima das da jovem e fez uma pressão suave...

O bebé disse ele já nasceu... já destes à luz.

Instantaneamente, Marguerite acalmou-se. Um sorriso maravilhado iluminou-lhe o rosto. Puderam vê-la estender os braços Para um bebé imaginário, encostá-lo ao peito, embalá-lo, beijá-lo. Aquela felicidade serena, espalhada naquele pequeno rosto emaciado, tinha qualquer coisa de pungente... Mas, subitamente, foi o drama! Espantados, os espectadores viram Marguerite apertar os braços contra o peito com uma expressão ao mesmo tempo aterrorizada e selvagem, como se uma ameaça terrível se abatesse sobre ela. Viram-na lutar com todas as forças, mas estava vencida à partida. E, de repente, ela gritou com uma voz rouca, como que enferrujada:

O meu filho! Dai-me o meu filho!... Não podeis levar-mo! É o meu filho... tende piedade!

A jovem abriu a boca para lançar um grito que deveria ser desumano, mas Demétrios pôs as mãos na cabeça da infeliz e ordenou:

Não griteis, Marguerite! Já passou... Não penseis mais nesse instante em que atingistes o cúmulo do sofrimento humano. Vós não lançastes esse grito... Vós ainda podeis falar... Não é verdade que ainda podeis falar?

Ainda ofegante e coberta de suor, a jovem parecia uma náufraga que acabava de atingir uma praia depois de uma luta esgotante. Fiora quis tomá-la nos braços, mas, com um gesto, Demétrios pregou-a no lugar...

Respondei-me, Marguerite! Podeis falar?... Dizei: Posso...

P... posso...

A voz era fraca, áspera, mas, no entanto, nítida.

Muito bem disse Demétrios. E agora, repousai! Fizestes um esforço terrível, mas o mal foi vencido... Dentro de instantes vou acordar-vos. Não vos lembrareis de terdes vivido esse martírio e já podeis falar à vossa vontade aos que vos rodeiam e vos amam. Compreendeis-me?

Sim... compreendo.

Então, vou chamar-vos para junto de nós. Acordareis quando eu pronunciar o vosso nome. Atenção! Marguerite, abri os olhos!

E os olhos abriram-se, de facto para um olhar um pouco ausente, que se virou, primeiro, para o rosto atento do médico e depois para os maravilhados de Fiora e de Léonarde, que a luz recortava na obscuridade do quarto. Um pouco mais longe, Esteban, com uma mão que tremia, reacendia o candelabro. Fiora aproximou-se de Marguerite e abraçou-a:

Estais curada, minha amiga. A vossa voz regressou.

A minha voz?... É verdade... Oh! que aconteceu? Parece-me que acabo de ter um sonho... um sonho terrível...

Foi só um sonho, mas as forças malditas que tinham prisioneira a vossa voz foram vencidas. Doravante sois e sereis como toda a gente e poderemos conversar as duas!

Esteban, que se ausentara por um instante, regressou com um jarro e taças.

Depois do que acabamos de presenciar, penso que precisamos todos de um pouco de vinho. Vós estais tão extenuados como a vossa paciente...

Tendo-se deixado cair sobre um banco perto do leito, Demétrios parecia, na verdade, extremamente cansado e o seu rosto estava de uma palidez de cera. Aceitou de boa vontade a taça que lhe estendia o seu servo e bebeu-a lentamente, quase voluptuosamente. Léonarde apressou-se a mudar a camisa de Marguerite, completamente ensopada, porque a jovem só pedia para dormir. Fiora aproximou-se do seu velho amigo:

Realizaste um milagre, Demétrios... Onde arranjaste essa força espantosa que já te vi usar por duas vezes, no Mulherão e naquela miserável Hieronyma? Adormeceste-as para lhes dares ordens, mas, desta vez, conseguiste que Marguerite recuperasse a fala...

Ela tinha-a perdido no seguimento de um terrível choque. Era preciso, portanto, fazer reviver essa ocasião. Por força da minha vontade consegui, mas admito que estou esgotado...

Não foi perigoso... para ela?

O médico ergueu para Fiora os seus olhos escuros, marcados por grandes olheiras e suspirou:

Foi. Ela podia ter morrido.

E, mesmo assim, fizeste-o?

- Por que não? perguntou ele rudemente. Que tinha ela a perder? A sua vida já estava destruída. Não seria possível curá-la do que sofreu estes anos todos! Ela agora já pode falar e dentro de poucos dias andará pelo seu pé. Mas, para que futuro? Pensas encarregar-te dela?

Tu, que consegues erguer o véu que nos esconde o futuro, podes ajudar-me a responder a essa pergunta?

Não... não, não vi nada. Talvez não me interesse? Não te esqueças que temos uma tarefa importante a desempenhar Juntos...

Não me esqueço disse-lhe Fiora. Quanto a Marguerite, se ela for mesmo minha irmã...

Nada o prova, senão uma vaga semelhança... disse Demétrios, irritado.

Tão vaga... que, no entanto, atingiu-vos, a Léonarde e a ti! Se, portanto, ela é mesmo a filha da minha mãe se preferes essa fórmula creio que tenho uma ideia do que podemos fazer...

Não podeis falar mais baixo? repreendeu-os Léonarde, que estava em vias de fechar as cortinas em redor do leito de Marguerite. Aliás, é tempo de irmos dormir, também nós, não? Demétrios levantou-se, espreguiçou-se e depois, com um suspiro, dirigiu-se para a porta seguido de Fiora, silenciosa. Chegados ao corredor que dava serviço aos quartos, caminharam lentamente até ao da jovem.

Não me dizes em que pensas? perguntou o grego.

Penso respondeu Fiora que em breve deixaremos esta casa. Não temos mais nada que fazer aqui...

E para irmos para onde? Para junto do Rei Luís?

Ainda não, se não te importas! Eu não esqueço o que Christophe nos contou. Ainda há, não longe daqui, uma mulher que vive, também ela, um calvário por culpa do seu marido. Regnault du Hamel pagou a sua dívida, mas nós devemos, agora, examinar a de Pierre de Brévailles... E talvez, reclamando-lha, eu consiga alguma felicidade para dois seres que têm dela a maior das necessidades...

E, sem dar mais explicações, Fiora pousou um beijo furtivo na face barbuda de Demétrios, desaparecendo depois no seu quarto, cuja porta se fechou sem ruído.

Naquele fim de tarde, Fiora, com as luzes todas apagadas, permaneceu muito tempo à janela, contemplando aquela cidade onde morava há já algum tempo, mas que ia deixar e nunca talvez conheceria melhor. A noite estava quente, sem excesso, o céu puro, cheio de estrelas e nenhuma nuvem anunciadora de tempestade perturbava aquele azul imenso: umcéu quase florentino... Negligenciando a casa muda e doravante silenciosa onde a sua vingança se cumprira em tão estranhas circunstâncias, deixou o seu olhar seguir a delgada fita ondulada do Suzon, que mergulhava por baixo da rua Musette para reaparecer na abside da igreja dos Jacobinos. O pequeno rio entrava na cidade pelo norte e era para norte que se encontrava Selongey, a propriedade de Philippe...

A jovem concedeu a si própria o ócio de pensar nele coisa que recusara a maior parte das vezes até ao presente, para não se afastar dos seus projectos mas a morte de du Hamel trouxera de volta o tempo em que, enfim, poderia ir ter com ele para tentar conhecer a verdade do seu coração. Fora por amor por ela e para a voltar a ver que ele fora secretamente a Florença, percorrendo disfarçado as suas ruas? Ou desejaria ele, junto de Francesco Beltrami, uma nova ajuda financeira para as guerras do seu senhor? Léonarde inclinava-se para a primeira hipótese, que o coração de Fiora também partilhava, mas a jovem confessava a si própria que, de facto, não conhecia o seu marido e ignorava tudo dos seus pensamentos e reacções. Um rabo-de-saias? Fora o retrato precoce traçado por dame Symonne, um rabo-de-saias que não devia precisar de correr muito para conseguir o que queria. Se estava a esse ponto rodeado e servido de mulheres, que lugar poderia ela esperar ter num coração assim tão assediado?

No entanto, perante Deus e a lei florentina na falta da dos homens e perante o amor, ela era realmente sua mulher e o pesado anel de ouro com as armas dos Selongey continuava entre os seus seios, na ponta de uma corrente de ouro. Fiora puxou o delgado fio para segurar o anel na mão. Estava pesado, quente do seu próprio calor, quase vivo... Fiora beijou-o, como teria beijado a boca de Philippe...

Onde estaria ele àquela hora? Algures no Luxemburgo, onde o grosso do exército se reunia na intenção de ocupar a Lorena? Em Bruges, onde se dizia que o duque Carlos reunia os Estados da Flandres para conseguir uma ajuda de guerra em homens e dinheiro? Estivesse onde estivesse, não estava, não podia estar em Selongey, onde, entretanto, Fiora sabia bem, nenhuma força humana a impediria de ir depois de acabar com os Brévailles...

Ao evocá-los, o seu pensamento regressou muito naturalmente a Marguerite e interrogou-se: que sentia, ao certo, por aquela meia-irmã caída do céu, ou antes, subida dos Infernos? Piedade, certamente, simpatia e toda a compaixão do mundo, mas, para dizer a verdade, não ia além disso. A voz do sangue ainda não se manifestara, ao passo que defendera a causa de Christophe espontaneamente.

Honesta consigo própria, Fiora reprovou a si mesma aquela frouxidão, que advinha, talvez, do facto de que fora impossível, até ali, comunicar realmente com a prisioneira libertada. Seria por causa daquele longo nariz pontiagudo, única semelhança com um pai que não merecia esse título? De qualquer maneira, quer a amasse, quer não, tinha pouca importância: não estava destinada a viver com Marguerite e a isso, pelo menos, Fiora estava bem determinada.

Com a aproximação da madrugada chegou a frescura. Tirando a roupa, a jovem estendeu-se sobre o leito para se deixar banhar por ela. Sentia a cabeça um pouco pesada, por ter, sem dúvida, respirado durante muito tempo o odor delicioso de uma tília que desabrochava num jardim vizinho. Descobria que aquela terra da Borgonha podia ser enebriante e que devia ser agradável viver nela, na condição de ter um par...

Por um instante, Fiora acariciou a ideia de se ir instalar em Selongey para ali esperar pacientemente o regresso de Philippe. A expressão do seu rosto quando a visse responderia, sem dúvida, a todas as suas perguntas. Mas, como subsistir até lá? Como consegui-lo, desprovida como uma mulher pobre qualquer, quando Philippe a conhecera tão rica? Demétrios não era o único a sentir-se atormentado com os dias que se iriam seguir. O ouro do Magnífico desaparecia a olhos vistos. Em breve impor-se-ia uma visita à rua dês Lombards, em Paris, à casa que Agnolo Nardi geria para o seu irmão-de-leite e onde, se Lourenço de Médicis não enganara Fiora, haveria fundos depositados em seu nome. Além disso, havia o juramento que a ligava a Demétrios, aquele juramento que ambos tinham sacralizado ao misturarem os sangues. E também não tinha razões para o transgredir, porque tinha ciúmes e odiava o Temerário quase tanto como o antigo médico de Bizâncio. Só a sua morte poderia libertar Philippe do sortilégio que o mantinha cativo, regressando assim, talvez, para junto de Fiora... se não se deixasse matar entretanto para maior glória do seu príncipe! Mas a jovem afastou aquela ideia funesta. Se Philippe já não respirasse algures sob o céu, um pressentimento tê-la-ia advertido. Teria sentido que uma parte de si própria teria deixado de viver...

Logo que Marguerite esteja recomposta decretou ela partimos para Brévailles...

E, decidida, caiu no sono, ao mesmo tempo que, ao longe, se ouvia o primeiro canto do galo...

CAPÍTULO IV A VINGANÇA PERTENCE AO SENHOR

Renuncia, Fiora! disse subitamente Demétrios, aproximando o seu cavalo do da jovem. Iam os dois à cabeça do pequeno grupo que se dirigia para Brévailles. Léonarde e Marguerite vinham a seguir montadas em mulas bem dóceis e Esteban, armado até aos dentes contra os infortúnios da estrada, fechava a marcha.

A que queres tu que eu renuncie? A levar Marguerite à sua avó?

Sabes muito bem o que quero dizer. Mesmo sem Marguerite, tu terias vindo para matar o teu avô... Não protestes! Quer queiras, quer não, é a verdade!

Não o seria se ele tivesse sido, antes de mais nada, um pai, mas, além disso, está na origem de todos os males da minha mãe. Não só a casou à força com aquele miserável du Hamel, como não fez nada para a salvar quando chegou a hora. Queres que lhe perdoe?

Não, mas gostaria que te poupasses. Deixa-me conduzir Marguerite com Léonarde e regressa com Esteban à hospedaria de Verdun, onde dormimos. É melhor não entrares naquela casa acrescentou ele, apontando com a sua chibata para o castelo cujas torres pareciam flutuar sobre o manto de nevoeiro que subia do rio.

Não era um grande castelo, mas, com as suas três torres, o torreão e as altas frontarias com as suas ameias em perfeito estado, tinha um aspecto terrível e não devia ser fácil forçar a entrada. Construído acima do Doubs, cujas águas tumultuosas lhe enchiam os fossos e o isolavam quando a ponte levadiça estava levantada, parecia-se com um guerreiro obstinado que, sem se preocupar com os pés molhados, vigiava e dominava o rio...

De que é que tens medo? perguntou Fiora com uma ponta de desdém.

Do teu rosto!

O véu esconde-o!

Mas serás obrigada a descobrir-te. Que acolhimento pensas tu que te vão reservar numa casa onde o proprietário faz reinar uma disciplina próxima do terror? Lembra-te do que te disse Christophe! Ele é um homem duro, impiedoso e que, não só não tentou salvar os filhos culpados, como ajudou o marido a conseguir o castigo. Se entras ali, receio que já não saias...

É o que veremos! Além disso, que tenho eu a temer na tua companhia? Terás perdido o poder que te permite dominar as pessoas em momentos de grande emoção? Podes exercê-lo! A visão do meu rosto tem todas as hipóteses de provocar essa reacção.

É sempre mais difícil num homem e receio que este Brévailles seja um velho duro de roer, impermeável a qualquer estado emocional.

A ocasião é óptima para tentares uma experiência interessante! Aliás, não vejo como se pode recusar uma neta que não poderia ser mais legítima? Marguerite não nasceu do pecado! acrescentou ela com uma ponta de amargura. Eu não tenho o direito de lhe recusar esta oportunidade.

Admitindo que seja uma oportunidade! Não sei se este castelo é o local ideal para esquecer os anos de sofrimento.

De facto, Marguerite conseguira contar-lhes, a pouco e pouco, o que fora a sua vida nas sucessivas casas do seu pai. Quatro anos de relativa doçura nos braços de uma ama-de-leite que a deixara por um mundo melhor, depois o quase-abandono junto de criadas indiferentes e, na maior parte do tempo, longe dos olhos de um pai que não escondia a sua aversão. As suas únicas saídas conduziam-na à igreja vizinha sob a guarda de uma criada beata, que nunca achava longas as estações que faziam, de joelhos, nas lajes frias. A jovem acabara por pensar que um convento não seria mais penoso do que a sua vida na casa paternal e, um dia, ousara pedir que lhe permitissem professar.

Du Hamel recusara secamente. Não tinha vontade nenhuma de pagar um dote por uma filha que já lhe economizava um ordenado de ajudante de cozinha. Além disso, quando Marguerite se transformara em adolescente, tivera de suportar as violências de um palafreneiro, que a forçara odiosamente na palha da estrebaria. O seguimento, os novos amigos da infeliz ela continuava a ignorar os laços de sangue que a ligavam a Fiora, porque Demétrios, prudente, o exigira já o conheciam, negro, durante o transe em que a jovem estivera mergulhada: o parto na cave onde du Hamel a sequestrara depois de a ter espancado cruelmente quando o seu estado se tornara visível e o nascimento do bebé, que lhe tinham arrancado dos braços e friamente estrangulado diante dos seus olhos...

Fora na época em que du Hamel fora nomeado para Dijon. O miserável aproveitara para reduzir o seu pessoal a dois criados; dois irmãos que tinham sabido ganhar a sua inteira confiança à custa de salários mais altos e transportara Marguerite fechada numa liteira com as cortinas hermeticamente fechadas, que continha também a maior parte das bagagens e que só se abrira de noite, diante da casa da rua du Lacet. A infeliz criança fora então acorrentada na cave, pelo menos durante a noite, porque de dia trabalhava na casa, mal alimentada e muitas vezes maltratada. Apenas o grande criado Claude lhe testemunhava alguma compaixão quando du Hamel não estava em casa. Levava-lhe alguma comida e vinho, pelo qual a jovem adquirira gosto, mas fazia-a pagar esses favores com a única moeda que a pobre criança tinha à sua disposição. Felizmente, aqueles infames e breves abraços nunca tinham tido consequências extremas.

A despeito dessa ajuda interesseira, Marguerite ia ficando cada vez mais fraca e, sobretudo, desesperada. A vontade de viver se se podia chamar àquilo viver! tinha-a abandonado e ela chegara a desejar ardentemente um fim próximo, até que, por fim, ele lhe fora levado...

Agora, estava melhor. Recuperava as forças e as faces iam ficando com alguma cor, mas parecia mais um ser mecânico animado do que uma mulher naturalmente viva. Para com os seus salvadores mostrava muito reconhecimento, mas não parecia interessar-se pelo futuro. Era doce e silenciosa, apesar de ter recuperado o uso da fala. Com ela, Fiora tinha a sensação de se encontrar na presença de uma sombra...

Receio bem disse Léonarde que a sua alma tenha desaparecido juntamente com a do filho... Talvez a recupere se alguém lhe der muito, muito amor! Nós só lhe podemos oferecer amizade.

Parada na beira do caminho que seguia o curso do rio, Fiora pensava naquilo tudo. O castelo, era verdade, não tinha um ar muito convidativo, com as suas muralhas enegrecidas pelo tempo. Marguerite não iria trocar um calabouço por um outro género de prisão? Fiora virou-se para olhar para a jovem, um pouco atrasada na companhia de Léonarde e aproveitando a paragem para se isolar. Dissera-lhe que a levava para casa da sua avó, evitando falar-lhe do avô. Como acolheria ele a filha de Marie, a rejeitada, mesmo nascida no casamento? Aquela morada sombria de acesso hostil não lhe inspirava muita confiança.

Mais por descargo de consciência do que para apaziguar essa suspeita perturbadora, Fiora mandou parar um camponês que de gadanha ao ombro se dirigia para um campo.

Aquilo é Brévailles?

O homem tirou polidamente o gorro que lhe cobria a cabeça e aprovou:

É claro que é Brévailles! Mas... é p’ra lá que quereis ir? acrescentou ele numa mistura intraduzível de inquietação e curiosidade. Não entr’ali quem quer, sabeis?

No entanto, eu queria ver Madeleine. Suponho que ela está?

Onde queríeis qu’ela fosse? Ela nunca sai e desde qu’o senhor está doente só se vê o intendente e uma rapariga da cozinha, qu’é tão faladora com’uma carpa.

Ele está doente? interveio Demétrios. Maravilhoso. Precisamente, eu sou médico. E de que sofre ele?

O camponês coçou a cabeça, fez um esforço supremo e meritório de reflexão e, finalmente, abanou a cabeça com uma careta significativa:

Acho que ninguém por aqui sabe. Quando perguntamos por novidades, respondem-nos que não está melhor. Em todo o caso, médico ou não, espantar-me-ia muito se vos abrissem a porta.

Porquê? perguntou Fiora.

Porque nunca abrem a ninguém: nem a monges, nem a mendigos, nem a saltimbancos, nem a viajantes atrasados. Má casa, aqueFonde não se dá hospitalidade cristã... É preciso dizer, de qualquer maneira, quhouve muitas infelicidades por aqui...

Visivelmente, o homem só queria dar à língua, mas Fiora sabia tanto como ele e talvez mais acerca dos sofrimentos que se tinham abatido sobre os proprietários daquele castelo. A jovem agradeceu ao camponês por meio de uma moeda e, logo que o resto do grupo se juntou a ela, guiou resolutamente o seu cavalo na direcção das torres solitárias. Demétrios alcançou-a, pretendendo prosseguir com as suas cautelas, mas Marguerite seguia-o de perto e era impossível discutir diante dela.

O nevoeiro matinal desapareceu por cima do Doubs, deixando ver os turbilhões que agitavam a água verde, Em seguida, o caminho afastou-se já perto do castelo para meter por um pequeno bosque, para lá do qual aperceberam algumas casas simples cobertas de colmo e o pequeno campanário de uma igreja... Uma vereda invadida por ervas daninhas, que não tinha sinais de qualquer passagem, abria-se à esquerda e permitia aceder à pequena fortaleza. Fiora dirigiu para ali o seu cavalo e rapidamente encontrou a ponte fixa onde deveria ligar a ponte levadiça assim que a baixassem. Mas naquele momento esta erguia-se, qual muralha intransponível, do outro lado de um grande fosso coberto de mato que a água do rio enchia quase até à borda. Em frente, fechado como um punho serrado, mudo e silencioso como um túmulo, Brévailles erguia as suas pedras sombrias e orgulhosas, que pareciam desafiar o Sol claro daquele dia de Verão...

Sem pôr pé em terra, Esteban levou à boca a trompa de corno ornada de prata que lhe pendia da cintura e lançou um som prolongado que fez voar uma família de pica-peixes. Esperaram, mas ninguém apareceu.

Será mesmo este o castelo da minha avó? perguntou Marguerite, que se mantinha ao lado de Fiora.

Pelo que sei, é respondeu esta. Por que perguntais?

- Por nada, simplesmente parece-me muito triste. A nossa casa de Au tun não o era tanto. Por que razão a minha mãe não gostava dela?

Talvez porque o marido que a levou para lá não lhe tenha sabido conquistar o coração. Uma choupana vale mais do que um castelo, se o amor a habita.

Ela poderia ter-me amado, a mim? Mas não me amava, senão não me tinha abandonado... Era a segunda vez, desde que fora salva, que Marguerite fazia alusão a Marie. A primeira fora enquanto falava com Léonarde, que parecia inspirar-lhe uma confiança muito particular, mas a velha donzela não insistira porque pensara perceber que Marguerite detestava Marie quase tanto como o seu marido. A crueldade de Regnault du Hamel não poupara à criança nenhum pormenor horrível ou sórdido e, para ela, a sua mãe não passava de uma mulher perversa e depravada, que abandonara o lar para saciar os seus baixos instintos e pelos quais fora muito justamente punida. Fiora tentara, um dia, modificar aquele julgamento sem concessões, mas Marguerite fechara os olhos, afirmando que aquilo não a interessava... Talvez fosse essa a razão primordial por que Fiora não conseguia ligar-se, realmente, à sua meia-irmã.

A jovem deteve o braço de Esteban, que se aprestava para renovar o apelo.

Preferis, antes que eu vos conduza a um convento qualquer? perguntou ela.

Mas Marguerite abanou a cabeça cujos magníficos cabelos louros, agora limpos e perfeitamente entrançados, brilhavam ao sol:

Não... Já que a minha família mora aqui, não tenho nenhuma razão para desejar viver noutro sítio. É uma casa nobre e talvez gostem de mim...

Aquilo foi pronunciado em voz baixa, tranquilamente, quase sem entoação e, no entanto, o coração de Fiora apertou-se. Com um gesto, a jovem fez sinal a Esteban para chamar e pela segunda vez a trompa lançou o seu mugido para o ar calmo da manhã.

A sua insistência foi recompensada. Uma cabeça provida de elmo apareceu nas ameias, ao mesmo tempo que uma voz rude gritava:

Quem vem lá e que quereis?

Que baixem a ponte, porque temos assuntos a tratar aí dentro lançou Esteban com uma soberba digna de um grande de Espanha, mas que não pareceu produzir o efeito desejado.

Segui o vosso caminho. Aqui ninguém entra!

Por sua vez, Demétrios tomou a palavra:

Mas terá que ser. Ide dizer a dame de Brévailles que

o seu genro, messire Regnault du Hamel, morreu e que nós lhe trazemos a donzela Marguerite, sua neta!

No alto das muralhas o homem pareceu hesitar por um ins tante sobre o que conviria fazer e, finalmente, gritou:

Eu vou ver! E desapareceu...

A espera que se seguiu pareceu interminável. Escarranchada em cima do seu cavalo, que esgravata a terra com um casco, impaciente, Fiora ia pedir a Esteban que tocasse uma terceira vez quando se ouviu, no interior do castelo, uma espécie de estrondo, e lentamente, muito lentamente, a grande ponte levadiça começou a baixar na sua direcção, enquanto a grade se erguia, rangendo.

Bem, vamos! disse Demétrios com um suspiro que parecia subir da terra, de tal maneira fora profundo. Fiora sorriu-lhe:

Vês como conseguimos entrar?

Esperemos que possamos sair com a mesma facilidade. Este castelo parece mesmo uma prisão.

O interior, no entanto, era mais agradável. Ao penetrarem no pátio, cujo centro era ocupado pelo torreão, os viajantes viram que uma habitação de dois andares, iluminada por belas janelas de caixilhos esculpidos, dos quais os mais altos estavam ornamentados com empenas floridas, estava encostada à muralha que dava para o rio. Chegava-se a ela por meio de um patamar com três degraus, no alto do qual um ancião, todo vestido de negro, se mantinha de pé numa atitude plena de dignidade.

Os recém-chegados puseram pé em terra, entregando as rédeas dos cavalos a um criado da estrebaria. Com toda a evidência, a sua chegada constituía um acontecimento importante e, perto das cozinhas, três criadas observavam-nos com caras espantadas, ao mesmo tempo que limpavam as mãos aos aventais. Um miúdo, que perseguia umas galinhas, acorreu e ficou plantado, com um dedo na boca, em contemplação muda.

Fiora puxara o véu para o rosto tanto quanto o permitia a decência, contudo foi para ela que o velho servidor olhou primeiro:

- Podemos ver a dona da casa? perguntou ela docemente. Está aqui a sua neta, a donzela Marguerite, que nós nos encarregamos de lhe trazer...

O ancião saudou como homem que sabe qual é o seu papel mas voltou a perguntar:

Podeis dizer-me, enfim, quem sois?

Os nossos nomes não vos dirão nada interveio Demétrios porque somos viajantes estrangeiros, e só o acaso nos permitiu prestar ajuda à donzela Margueritte, que está aqui connosco. Esta jovem dama acrescentou ele designando Fiora, que sentira uma emoção súbita no momento de entrar naquela casa que vira crescer os seus jovens pais e o acordar da sua paixão fatal esta jovem dama é uma nobre florentina, donna Fiora Beltrami, e esta é dame Léonarde Mercet, sua governanta. Quanto a mim, chamo-me Demétrios Lascaris, príncipe e médico e venho de Bizâncio.

O velho servidor aprovou com a cabeça e fez sinal aos recém-chegados para que o seguissem por uma bela escadaria de pedra perfeitamente conservada e que conduzia a uma grande sala, onde, entre uma chaminé apagada e uma estreita janela que dava para o rio, uma dama de luto estava sentada numa grande cadeira de braços, com um rosário entre os dedos. Devia ter sido muito bela e ainda conservava alguns reflexos dessa beleza passada, mas, sob a sua alta coifa negra os seus cabelos e o seu rosto eram de uma brancura diáfana. Os olhos estavam vermelhos devido a demasiadas lágrimas. Estas haviam descolorido as pupilas, cujo azul mal se percebia. A expressão habitual daquele rosto devia ser de permanente tristeza, mas, naquele instante, parecia animado por um raio de luz. A dama levantou-se para acolher os visitantes e Fiora apercebeu-se de que era quase tão alta como ela... e que tremia como uma folha, perturbada por uma emoção que não conseguia dominar. - Disseram-me disse ela com uma voz emocionada, cuja doçura atingiu Fiora que a minha neta Marguerite se encontra entre vós?... Mas, como é possível?... Há anos que não sei nada dela. Cheguei a acreditá-la morta...

- Era, sem dúvida, o que desejava o seu pai disse Demétrios com a sua bela voz grave mas, agora, messire du Hamel já não o é. Morreu há três semanas e nós tivemos a felicidade, como vizinhos, de recolher a donzela Marguerite, que ele mantinha em sua casa como numa prisão. Ela só vos tem a vós no mundo e nós pensámos que era nosso dever trazer-vo-la...

E fizestes bem. Como agradecer-vos?... Marguerite... não vens até mim?

Mas já a jovem se precipitava e ajoelhava diante dela. A sua estranha indiferença acabava de desaparecer de repente e ela vertia abundantes lágrimas em cima das mãos trémulas que se tinham estendido para ela e que a erguiam. Por um momento, as duas mulheres permaneceram estreitamente abraçadas. De pé, a alguns passos de distância, Fiora contemplava-as com um pouco de amargura. Sentia uma vontade súbita de, também ela, se atirar para aqueles braços afectuosos e abraçar aquele rosto pálido. Porque aquela mulher era sua avó, mais ainda, talvez, do que de Marguerite e ela agora pensava que devia ser muito bom ser a neta de Madeleine de Brévailles...

Mas esta dominou a sua emoção. Sem deixar a mão de Marguerite, ofereceu aos seus hóspedes inesperados um sorriso encantador.

Acabais de me restituir a vida e eu não vos acolho como devia! Sentai-vos, peço-vos e contai-me tudo o que sabeis desta criança. Vou mandar servir uns refrescos enquanto esperamos pela hora da refeição. Também vos mandarei preparar os quartos...

Mas Fiora emitiu vivos protestos:

Não vos deis ao incómodo, dame, peço-vos. Nós estamos em viagem, os meus companheiros e eu e não desejamos atrasar-nos, porque a estrada que se estende na nossa frente ainda é longa.

Por mais longa que seja, suporta uma paragem? Tendes tantas coisas para me contar...

Sem dúvida... mas disseram-nos que o senhor deste castelo estava doente e nós não queremos...

Fiora era incapaz de dizer por que razão, tendo chegado àquele castelo com a intenção de matar Pierre de Brévailles, desejava, agora, afastar-se o mais rapidamente possível. Pensara entrar como libertadora, mas a mulher que tinha diante de si não parecia necessitar de qualquer tipo de socorro. E teve a certeza quando dame Madeleine declarou tranquilamente:

O meu marido está doente, com efeito, mas asseguro-vos que a vossa presença não o incomodará. Não vos atormenteis por ele, portanto, e conversemos...

Enquanto Demétrios fazia para a sua anfitriã um relato um pouco arranjado do salvamento de Marguerite, Fiora, que preferira de propósito sentar-se de costas para a luz da janela, só o escutava com um ouvido. A jovem esquadrinhava aquela sala de móveis severos mas admiravelmente conservados. Olhava para a mesa que duas criadas estavam a pôr, a toalha de uma brancura deslumbrante que elas estendiam e os diferentes objectos que elas lhe punham em cima, todos resplandecentes. Olhou também para a sua anfitriã, sentada num banco comprido e estreito guarnecido de almofadas e Marguerite, cuja mão ela continuava a segurar, sentada junto dela e não tirando dela os olhos. Ambas saboreavam, era evidente, um momento de inefável felicidade. Sorriam uma para a outra e riam mesmo de vez em quando como duas raparigas, se bem que a história do grego não fosse recreativa e o seu riso soava de maneira bizarra numa atmosfera que Fiora achava cada vez mais pesada... Sentiu-o quase a ponto de sufocar e deixou deslizar ligeiramente o seu véu. Uma das criadas, a mais velha, deixou cair bruscamente as facas que segurava, que caíram nas lajes ao mesmo tempo que os seus olhos se arregalavam de estupefacção. Dame Madeleine lançou-lhe um olhar irritado, virou depois os olhos para Fiora e disse-lhe a meia-voz, em tom fútil:

As nossas criadas camponesas são muito desajeitadas. Sois mais bem servida em Florença?

dame Léonarde responder-vos-á melhor do que eu sobre esse assunto, mas nunca me queixei dos meus servidores...

Que sorte que tendes!

Em seguida, virando-se para Demétrios, cujo olhar por entre as pálpebras comprimidas se fizera subitamente agudo, encorajou-o:

Portanto, vós dizíeis que...

A visão do rosto de Fiora, que acabava de fulminar de estupor uma simples criada, não lhe causara, aparentemente, qualquer emoção. E assim foi durante toda a refeição que se seguiu. Demétrios continuava a fazer as despesas da conversação e tinha começado a contar minuciosamente algumas das suas viagens às duas interlocutoras que, encantadas, tagarelavam alegremente com ele. Marguerite parecia ter esquecido por completo as duas companheiras e nunca virava os olhos para Fiora ou para Léonarde, que, silenciosas, comiam com as pontas dos dedos. A ideia de passar a noite naquela morada era insuportável à jovem e estava um pouco zangada com Demétrios por aquela situação toda. Seria ele o mesmo que, ainda há pouco, lhe suplicava que renunciasse aos seus projectos?

Que restava, aliás, daqueles famosos projectos àquela hora, em que, sentada à mesa de um avô detestado, comia o seu pão? A morte brutal de um homem que parecia ter pouco espaço no espírito da sua mulher ela disfarçava sempre que o grego tentava saber mais acerca da doença de Brévailles seria de natureza a melhorar a situação? Ela parecia perfeitamente segura de si e daquela casa, onde todos lhe obedeciam sem hesitar...

A refeição estava a terminar com umas compotas refinadas acompanhadas de belas fatias de boichetl que cheiravam deliciosamente, quando o ancião que recebera os viajantes e devia ser o intendente, reapareceu à entrada da sala:

O senhor disse ele cerimoniosamente desejaria receber pessoalmente a jovem dama estrangeira que trouxe a donzela Marguerite...

E como todos os outros convivas se levantassem ao mesmo tempo, acrescentou:

Ele deseja vê-la só!

Mostrai-me o caminho consentiu Fiora. Sigo-vos. Sem pensar, sequer, em desculpar-se perante a sua anfitriã

e com uma espécie de alívio, a jovem deixou a mesa para se dirigir para a escadaria. Para seu espanto, em vez de a subirem para o andar de cima, desceram-na. Atrás do intendente, Fiora atravessou

1 Em italiano no original. Antigo nome das broas de mel


o pátio e penetrou no torreão. A despeito do calor exterior, uma capa de frio e de humidade caiu-lhe sobre os ombros mal transpôs a porta, mas mal deu por ela, porque o seu espírito estava cheio de perguntas... De que doença sofreria o senhor de Brévailles para que o instalassem naquele torreão antigo?

Sempre precedida pelo seu guia, subiu um andar e penetrou numa sala redonda que lhe pareceu tanto mais imensa quanto sombria e desguarnecida de móveis, à excepção de um leito isolado por entre as sombras densas e dois ou três tamboretes. Mas o espectáculo que a esperava não era menos impressionante: junto de uma abertura pouco mais larga do que uma seteira, um homem barbudo e de longos cabelos grisalhos estava sentado numa alta cadeira de espaldar de madeira negra com um cobertor sobre os joelhos e totalmente imóvel. Perto dele, quase tão rígido e quase da mesma idade, aliás, um homem de armas estava de pé, segurando numa mão um pendão coberto com um véu negro e, na outra, uma espada desembainhada. Surpreendida, Fiora parou na soleira da porta que o intendente abrira na sua frente:

Aproximai-vos! intimou uma voz que parecia emanar das profundezas das fundações.

Fiora,avançou e, por trás de si, a porta fechou-se, sem barulho. A jovem avançou como que num sonho. Então era aquele o avô cuja perda ela jurara? Não parecia nada fraco. Pelo contrário e se bem que a luz fosse incerta, o que a barba e os cabelos deixavam transparecer do seu rosto só revelavam saúde... Maquinalmente, a jovem procurou na cintura o punhal que as pregas do seu vestido dissimulavam e parou a alguns passos dos dois homens...

Aproximai-vos mais disse Brévailles. Vejo-vos mal!

Ela alcançou a mancha de sol que a estreita abertura lançava nas lajes, na ponta de um raio luminoso onde dançavam miríades de grãos de poeira. E ficou ali sem se mexer mais, consciente daquele olhar quase imóvel, que a perscrutava intensamente...

Justine tem razão disse o velho senhor como que para si mesmo é espantoso...

Em seguida, secamente, ordenou:

Aubert, sai!

A estátua armada que se encontrava a seu lado protestou:. Quereis que me afaste, senhor? Olhai que eu sou o vosso braço, a vossa força...

Espero não precisar nem de uma coisa, nem de outra. Vai! Eu chamo-te mais tarde...

Estais certo de que não precisais de nada?

Eu nunca preciso de nada e agora menos do que nunca disse o senhor sem afastar os olhos de Fiora. O ancião esperou que o seu escudeiro tivesse transposto a porta e continuou:

Então, fostes vós que conduzistes até aqui essa Marguerite, que nós julgávamos perdida? Onde a encontrastes?

Em Dijon, acorrentada na cave do homem indigno que era o seu pai, ao que parece. Pouco faltou para que ela se perdesse para sempre, de facto...

E ele? Pareceu-me compreender que tinha morrido? De quê?

De medo! Por ter visto um fantasma...

Estranho! Não o cria emotivo a esse ponto! Mas tudo depende, evidentemente, do fantasma em questão. Talvez se parecesse convosco?

Talvez...

É o que eu supunha... Vós vindes de Florença, disseram-me? Qual é o vosso nome?

Fiora... Fiora Beltrami. De facto, sou florentina... Seguiu-se um silêncio apenas perturbado pela respiração daqueles dois seres que, ao primeiro olhar, se tinham reconhecido como inimigos. Nenhuma cortesia atenuava o tom de voz agressivo de ambos. As palavras caíam, no limite da insolência, de um lado e de outro, cortantes como facas. Estabelecera-se um duelo desde o primeiro momento entre aquele ancião tão rígido como uma estátua, apoiado no braço da sua cadeira e aquela bela jovem de pé na sua frente, que refreava o melhor que podia a sua aversão instintiva.

Brévailles emitiu uma pequena risada seca e continuou, mais mordaz do que nunca:

Florentina? Ora vamos! Vós sois a filha ”deles”! Pensais que ignoro o que aconteceu depois da execução daqueles dois miseráveis? Antes de eu o expulsar daqui, o velho louco do Antoine Charruet teve tempo de contar tudo. Sei que um mercador de Florença apanhou o fruto desastroso do incesto e do adultério... Então, não dizeis nada? É isso, não é? Adivinhei?

Eu sou filha deles, efectivamente, mas sinto-me orgulhosa, vede lá, porque eles foram vítimas antes de mais: vossas vítimas! Fostes vós a causa primeira do drama de que eu sou originária...

Eu? Como ousais?

Ouso e volto a ousar! Nada teria acontecido de irremediável se, quando vos apercebestes dos laços demasiado ternos entre Marie e Jean, tivésseis escolhido para ela outro marido que não aquele du Hamel. Casada com um homem novo, amável e apaixonado, ela teria esquecido o seu irmão. Mas vós preferistes o pior e porquê? Só porque ele era rico? Infelizmente era um monstro ignóbil, que apenas soube martirizá-la, assim como martirizou a filha...

Eu apanhei o primeiro partido conveniente que apareceu. Já começavam a murmurar acerca...

De Jean e Marie? Nem sequer conseguis, ainda hoje, pronunciar os nomes deles, não é verdade? Envenenam-vos a boca? Quanto à fortuna de du Hamel, ides poder reivindicá-la, agora que tendes Marguerite! Porque ela tem direito, é a herdeira! No entanto, não creio e ainda bem! que possais gozá-la durante muito tempo...

O ancião teve uma risada de troça:

Também ledes o futuro? Em todo o caso, não sois muito lógica. Odiais-me, não é verdade? Nesse caso, por que razão trouxestes para aqui Marguerite e a sua herança?

Porque, depois de tantos anos de opressão e sofrimento, ela tem direito a uma felicidade legítima e eu espero que ela a encontre junto da avó. Quanto a vós...

Quanto a mim? lançou ele, desafiando-a com arrogância.

Não tereis oportunidade de a tornar infeliz, porque eu estou aqui para vos matar...

Matar-me? E como?

Com isto.

O punhal acabava de aparecer, firmemente seguro na sua mão. Com um movimento rápido, Fiora passou para trás da cadeira e encostou a lâmina à garganta de Brévailles...

Sobretudo, não chameis ninguém! Não teríeis tempo de terminar o grito...

Por que haveria eu de chamar? Matai-me, se assim o quereis... e se o parricídio não vos mete medo!

Não mete, porque vós, aos meus olhos, sois um homem quase tão desprezível como Regnault du Hamel. Se tendes alguma oração a dizer, despachai-vos...

A despeito da sua firme resolução, a força de ânimo daquele homem confundiu-a: nem sequer mexera um braço para tentar afastar o punhal da sua garganta. No entanto, não lhe devia faltar a força?

Eu nunca fui homem de padre-nossos. Mas, no fim de contas, talvez tenhais razão em me assassinar. A vinda inopinada dessa Marguerite não me traz qualquer alegria: não passa da filha de uma puta incestuosa e...

O ancião não terminou a frase. A porta, violentamente aberta, bateu contra a parede e Madeleine de Brévailles precipitou-se:

Não o mateis, Fiora! Dar-lhe-íeis um grande prazer! Se quereis, mesmo, vingar a vossa mãe, rezai para que ele viva ainda muitos anos!

Estupefacta, Fiora viu na sua frente aquela nova e insuspeita mulher, que se erguia ali diante deles, a boca torcida pela amargura e os olhos brilhantes de ódio. Nada parecida com a avó meiga que ainda há pouco amimava Marguerite e brincava com ela. Esta rejeitava totalmente os anos de sofrimento e rancor e, face a ela, o homem acusado encolhia-se, mudo, se bem que o seu rosto reflectisse uma raiva impotente.

Este gritou:

Mata-me! Por que detiveste o teu braço? Eu só cometi crimes e fico feliz... Mata-me, estou-te a dizer!

Imóvel entre dame Madeleine e o marido, Fiora olhou-os a ambos sem conseguir compreender. Assim, não viu Demétrios entrar, nem se apercebeu da sua presença, senão quando o viu, de repente, junto do doente, erguendo um braço e tirando o cobertor para lhe examinar as pernas...

Que significa isto? interrogou Fiora. Demétrios abanou a cabeça e encolheu os ombros:

Este homem está paralisado. É espantoso que ainda consiga falar... Como aconteceu isto?

Uma queda do cavalo há mais ou menos um ano declarou a dama em tom satisfeito, como se tivesse sido ela mesma a causa e a força que tinham provocado o acidente. Desde então, voltei a viver. Acabaram os anos de escravidão! Acabou a impiedosa tirania que durante anos aterrorizou este castelo! Agora sou eu a senhora e já que, graças a Deus, a minha pequenina me foi devolvida, a nossa velha morada vai abrir-se e animar-se de novo! Doravante temos muitos dias de alegria pela frente...

És louca! Ficaremos menos desonrados só porque recuperaste um ser do teu sangue? Olha que esta que tu impediste de me matar também é tua neta!

Eu sei perfeitamente quem ela é. Não esqueci o nome do mercador florentino, de quem me falou o padre Charruet...

E também queres ficar com ela? Ela odeia-me com todas as forças e, mais dia menos dia, há-de matar-me...

Não sou eu que não quero ficar com ela disse Madeleine com uma tristeza súbita bem pelo contrário! Ela é que não quer ficar... É demasiado bela e viva para esta morada austera... Mas espero ardentemente que ela nunca esqueça uma avó que a terá sempre no coração...

A dama abriu os braços e Fiora atirou-se a eles de lágrimas nos olhos.

Eu também nunca vos esquecerei! Há bocado... estava cheia de inveja de Marguerite...

Que cena familiar tão enternecedora! guinchou Brévailles. Que quadro encantador! E eu, fui esquecido? Ninguém me abraça, a mim? Sempre gostei que uma rapariga me acariciasse... e algumas vezes lamentei não ter tentado a minha sorte com aquela bela garça, a Marie, já que não lhe custava nada deitar-se com o irmão. Por que não também comigo?

Demétrios segurou o braço de Fiora que, levada por uma cólera selvagem, ia atirar-se sobre ele de punhal ao alto. O médico deteve-a e depois, virando-se para o enfermo e sem largar a jovem, pronunciou firmemente:

Não conseguireis, messireí Fiora tem de admitir que, no que vos diz respeito, a vingança pertence ao Senhor. A que ele exerce, por agora, é terrível, mas vós merecei-la amplamente. Que o Seu nome seja bendito! E agora vamos, são horas de partirmos...

Um após outro abandonaram a sala redonda onde o velho Aubert foi retomar, junto do enfermo, a sua guarda fiel e irrisória. A última imagem que Fiora levou dele foi a de um rosto barbudo e uns olhos cintilantes de furor impotente, mas de onde deslizavam pesadas lágrimas...

Partiram sob o calor ainda penoso daquela tarde de Julho, se bem que o dia já fosse avançado. O ar vibrava à superfície da água, sobre a qual deslizava uma cobra. Tudo era silêncio, quando, subitamente, um relâmpago listrou o céu branco...

Se, pelo menos, pudéssemos ter uma bela tempestade! suspirou Léonarde, abanando-se com um lenço. Nada me agradaria mais do que uma boa chuvada...

A vós, talvez, mas não aos camponeses! Uma chuvada, agora, pode estragar-lhes o feno exclamou Demétrios, vigiando Fiora pelo canto do olho.

Depois de se ter despedido da dama de Brévailles, a jovem não descerrara os dentes. Prosseguia o seu caminho de olhar ausente. Quando chegaram à curva do caminho de onde ainda se podia ver o castelo guardando a margem do rio, ela parou o seu cavalo e ficou ali, hirta.

Demétrios respeitou a sua meditação por alguns instantes, mas como Fiora parecia eternizar-se, o médico aproximou-se dela:

Estás arrependida de alguma coisa?

Talvez... mas não do que imaginas. Arrependo-me de ter vindo...

Não era preciso trazer Marguerite?

Podia ter-te encarregado disso e esperar por ti em Beaune, por exemplo...

Querias vingar-te, fosse a que preço fosse. Lembra-te que tentei demover-te!...

Eu sei... E reconheço que tinhas razão, porque Deus já se encarregou! O Senhor é bem ilógico, aliás! Deu o seu golpe aqui, mas deixou prosperar o monstruoso du Hamel...

Tudo isso significa que tu lamentas... abandonar este local? No fim de contas, é aqui que está a tua verdadeira família e é natural que queiras viver aqui. Se for esse o caso, podes regressar em companhia de dame Léonarde. Desligo-te do teu juramento... Não ficarei, por isso, menos teu amigo.

Não compreendes, Demétrios! É verdade que o meu coração estava pronto a entregar-se a Madeleine de Brévailles. Os braços de uma avó são... infinitamente doces. Mas, ficar aqui, nunca! Aliás, creio que Marguerite não teria gostado muito acrescentou ela com um meio sorriso.

De facto, o rosto de Marguerite ficara, subitamente, com uma expressão desgostosa quando dame Madeleine, no momento da partida, abraçara Fiora com uma grande ternura, enquanto as suas despedidas se tinham limitado a um simples beijo. Estava visivelmente aliviada por deixar aquela jovem, talvez demasiado bela, a quem devia a vida.

De qualquer maneira, ela é filha de du Hamel observou Léonarde, que se aproximara. E vós fizestes bem em pedir a dame Madeleine silêncio absoluto acerca dos vossos laços de parentesco. Creio bem que vos detestaria se soubesse que sois irmã dela. Quanto a vós, meu cordeirinho, essas penas passarão mais depressa do que pensais! O vosso destino não está aqui.

Eu sei! Mas quis olhar mais uma vez para estes lugares que nunca mais verei, certamente... Mesmo que, um dia, regresse à Borgonha... O que pode sempre acontecer.

Agora que estava desligada dos deveres de vingança que se impusera na Borgonha, Fiora podia deixar o seu coração e o seu espírito vagabundear atrás de um outro borgonhês, que era seu marido. Recordava que estava no país dele e não sem uma doce nostalgia, porque não recebera resposta à pergunta que fizera a si própria ao deixar Florença: fora para a ver, a despeito do pacto assinado com Francesco Beltrami, que Philippe voltara disfarçado à cidade dos Médícis? E aquilo era infinitamente mais importante do que o ciúme de uma meia-irmã, à qual nada a ligava...

Resolutamente, a jovem deu meia volta ao seu cavalo para retomar o caminho e não permitiu mais ao seu espírito que regressasse a Brévailles, onde desejava que a sua avó encontrasse, enfim, um pouco de verdadeira felicidade junto da filha de Regnault du Hamel... O tempo estava bom, ainda não tinha dezoito anos e amava apaixonadamente o homem cujo anel lhe pendia no peito, entre os seios, ao abrigo do vestido... Nem sequer a imagem distante e indistinta, aliás, do impiedoso duque da Borgonha, conseguia perturbar aquele minuto de paz feliz que concedia a si própria. Por que razão, portanto, o céu não haveria de se encarregar dele, como tinha feito a Pierre de Brévailles? Os rumores que ouvira, desde a sua chegada à Borgonha, podiam dar-lhe sobre aquele assunto alguma esperança, porque os inimigos encarniçados na perda do Temerário começavam a formar uma legião: os suíços, os príncipes alemães, o duque da Lorena e, sobretudo, sobretudo, aquele Rei de França, de quem se murmurava, justamente, que era o mais hábil de todos os diplomatas e talvez o mais poderoso desses inimigos. As pessoas diziam que entre ele e o Temerário o ódio não teria fim senão com a morte de um deles. E era com aquele soberano enigmático porque a sua imagem diferia segundo aqueles que falavam dele que ela e Demétrios iam ter de comum acordo... não sem um pequeno desvio que Fiora estava decidida a conseguir...

Fizeram uma pausa em Beaune, numa muda próxima do admirável Hotel-Dieu, edificado trinta e dois anos antes pelo chanceler da Borgonha, Nicolas Rollin e pela sua esposa Guigone de Salins. Sem ter o esplendor arquitectónico do seu vizinho, o albergue do Grand Saint Vincent ofereceu-lhes, com os seus lençóis cuidadosamente passados, a sua cozinha abundante e variada e a frescura da vinha que lhe revestia as muralhas, uma paragem tão repousante para o corpo como para o espírito. Após o jantar, que lhes serviram no quarto com as janelas todas abertas para os telhados escuros do mercado e partilhado por Fiora e por Léonarde, Demétrios procurou, junto do estalajadeiro, o senhor Baudot, qual seria o melhor caminho para se dirigirem a Paris.

Para acalmar as suspeitas daquele bom homem que, como digno servidor do duque Carlos, começava a olhar de viés para aquela gente que queria ir para a capital do ”infame Rei Luís XI”, Demétrios apressou-se a precisar que iam ter com um primo, mercador de tecidos na rua dês Lombards. Satisfeito, Baudot disse-lhe que o melhor caminho, sem a menor dúvida, passava por Dijon e por Troyes, em Champagne, já que aquele que depois de ter atravessado uma parte de Morvan e Auxois, passava pelo vale do Yonne, não estava praticável.

Dizem observou o senhor Baudot que as tropas do Rei Luís, depois da ruptura das tréguas, se atiraram sobre as nossas terras e chegaram até Auxerre, onde devastam, destróem pilham e queimam tudo o que encontram. É mesmo de um homem mau acrescentou ele porque esse Rei sabe bem que monsenhor Carlos que Deus o guarde e lhe dê muita saúde acaba de levantar o cerco a Neuss...

A cidade caiu, por fim? perguntou Fiora, que sabia perfeitamente bem o que se passava, mas que tencionava levar até ao fim o seu papel de estrangeira recém-chegada.

-Sim e não. Abriu-se diante do núncio de Sua Santidade o Papa Sisto, que tomou posse dela em nome da Igreja. Não houve, nem vencedor, nem vencido, mas o nosso duque, mesmo assim, perdeu muitos homens e muito ouro... Tirar proveito disso é indigno!

Achais que sim? perguntou Demétrios com ar inocente. Alguns mercadores flamengos que encontrámos junto de Lyon disseram-nos que o duque, deixando atrás de si o seu exército, se dirigiu em marcha forçada para as suas possessões da Flandres, para ali reunir os Estados e para se encontrar em Calais com o seu aliado, o Rei de Inglaterra, na companhia do qual pretende empreender a conquista de França. Pretenderia, mesmo, fazê-lo coroar em Reims...

O Rei de Inglaterra é irmão da senhora duquesa redarguiu dignamente Baudot. Ele e monsenhor podem muito bem encontrar-se sem más intenções para com a França. Mas as pessoas têm tão má-língua, que são capazes de dizer que, se o Rei Luís nos invadisse, a culpa seria unicamente nossa! Os vossos mercadores, para mim, são uns perfeitos mexeriqueiros e...

Demétrios pôs fim à indignação do bom homem pedindo um pichel do seu melhor vinho de Beaune e, quando este foi servido, virou-se para as suas companheiras.

O nosso caminho está traçado. É preciso regressar a Dijon, mas não entraremos na cidade. Contorná-la-emos para atingirmos a estrada de Troyes, que se encontra a norte...

Passaremos por... Selongey? arriscou Fiora, irritada por se sentir corar, como se fosse culpada de alguma coisa. Quando estávamos em Dijon, soube que essa terra estava para norte...

É verdade respondeu Léonarde com um olhar pleno de compaixão mas isso desviar-nos-ia. Iremos por Troyes. Selongey fica no caminho que vai dar a Langres e, dali, às planícies da Lorena...

O desvio será assim tão grande? Gostava muito de lá ir!

. continuou a jovem com a voz subitamente firme. Não é natural que eu deseje, pelo menos, ver o castelo cujo nome devia ser o meu?

Esperas encontrar lá messire Philippe? perguntou docemente Demétrios. Sabes perfeitamente que ele nunca sai do pé do duque Carlos. Deve estar na Flandres a esta hora, a menos que tenha ficado com o exército no Luxemburgo.

Pelo menos, deixou-o por duas vezes, pelo que sei: a primeira quando nos casámos e a segunda quando foi reconhecido em Florença enquanto a populaça pilhava o meu palácio! Peço-te, Demétrios: leva-me a Selongey! Juro que é a última coisa que peço...

Os grandes olhos cinzentos suplicavam e o médico pensou, até, ver neles uma lágrima. A sua longa mão pousou-se na da sua jovem amiga, compreensiva e apaziguadora:

O desvio será muito grande, dame Léonarde?

Não sei ao certo... mas, pelo menos, uma dúzia de léguas... e por caminhos incertos, que não vão sempre a direito...

Um dia a cavalo traduziu Esteban e nós estamos no Verão. É pouca coisa...

Mas também nos podemos afastar. Eu nasci nesta região, mas nunca me passeei muito...

Bem, perguntaremos o caminho! disse Demétrios com bonomia. Também, não estamos a mais de um dia de distância! Não podemos recusar à dama de Selongey uma visita ao seu domínio. E até pediremos hospitalidade, se quiseres concluiu ele beijando a mão de Fiora. Quem sabe quem encontraremos?

Fiora não respondeu, mas os seus olhos, subitamente cheios de estrelas, traíam a esperança que lhe ia no coração. Já que por agora, as armas do duque Carlos pareciam ter-se acalmado por que não haveria o conde de Selongey de aproveitar para passar alguns dias em sua casa? À ideia de o poder, talvez, rever em breve, o coração de Fiora acelerou e a jovem teve toda a dificuldade em conciliar o sono, ao mesmo tempo que a seu lado, feliz, Léonarde roncava como o fole de uma forja... No fim do segundo dia, Fiora, com o coração a bater sempre ao ritmo da sua esperança, cavalgava através do planalto cortado por bosques e massas florestais a que tinham chegado depois de Til-Châtel e que corria a direito na direcção da cidade episcopal de Langres. Um lenhador, encontrado num cruzamento, indicara o caminho de Selongey:

É a próxima aldeia: um grande burgo no vale de la Venelle, com uma grande igreja e um grande castelo, cujas torres vereis quando chegardes àquela árvore inclinada que vedes além!

Uma moeda recompensara o homenzinho pela sua preciosa informação e, alguns instantes mais tarde Fiora descobria, o castelo do seu marido. A sua emoção duplicou à vista do seu aspecto terrível: dez torres redondas, cujas ardósias brilhavam ao sol, guardadas por homens de armas; grandes muralhas sólidas e um torreão maciço, erguendo-se para o céu como o dedo estendido de um gigante. Portanto, aquela era a ”sua” casa, fora ali que ele nascera, que passara a infância e deixara os braços ternos de uma mãe para aprender a rude vida dos homens...

Mas não creio que ele esteja ali! suspirou Léonarde. E Fiora apercebeu-se, então, que acabara de pensar em voz alta...

E porquê?

Nenhum pendão flutua no torreão. O que significa, claramente, que o senhor não está no redil.

Fiora encolheu os ombros, escondendo a sua decepção com um meio sorriso.

Tanto pior! Tentemos, ao menos, que nos concedam hospitalidade por esta noite.

A esperança de encontrar Philippe era fraca e Fiora sabia-o, mas a esperança nunca morre...

Contas dar-te a conhecer como a dama destes lugares?

perguntou Demétrios.

Não. Somos apenas simples viajantes desorientados.

Quando entrar aqui como dona, será nos braços do meu marido... se chegar a encontrá-lo, porque tenho sempre tendência a esquecer-me do terrível desejo que ele tinha de se deixar matar...

. Ele era sincero, sem dúvida cortou Léonarde, que não gostava de ver o espírito de Fiora empenhado em pensamentos tristes mas, pela minha parte, nunca acreditei...

Nem eu disse Demétrios como se fosse o eco. Estou persuadido de que continua vivo.

Fiora endereçou, a um e a outra, um olhar carregado de gratidão por aquelas palavras encorajadoras e apressou um pouco o passo do seu cavalo. Agora, tinha pressa de chegar...

Tinham chegado à aldeia e a barbacã de entrada do castelo já estava à vista quando, desembocando da floresta que coroava o outeiro, apareceram alguns cavaleiros. Os falcões que traziam nos punhos enluvados de couro espesso diziam que vinham da caça e algumas aves pendiam da patilha do selim de um dos homens. Eram seis ao todo: quatro um pouco mais armados do que seria necessário para um divertimento e duas mulheres.

Aquela que ia à cabeça e que ria ao pousar um beijo na cabeça encapuçada da sua ave, devia ter uns trinta anos. Elegantemente vestida de seda azul, tinha longos cabelos louros estreitamente entrançados sob uma pequena coifa de veludo ajustada ao vestido e onde estava ligado um véu azulado. Aliás, era muito bonita e, ao constatá-lo, o coração de Fiora estremeceu.

Os caçadores, que não tinham reparado nos quatro cavaleiros, entraram no castelo com o comportamento natural de gente que regressa a sua casa.

Quem serão? perguntou Léonarde sem esconder a sua surpresa. Messire Philippe não tinha dito que não tinha família?

Podem ser convidados disse Demétrios. Mesmo na ausência do senhor, é possível... O melhor é nós entrarmos, também...

Mas Fiora franzira o sobrolho e parou. A jovem avistou uma lavadeira que, de cesto na anca, subia do rio e chamou-a:

Perdoai-me se vos pareço curiosa disse ela gentilmente mas eu pensava que o castelo estava desabitado. O conde Philippe não está, pois não?

A serva não devia ser um poço de inteligência, porque endereçou a Fiora o seu mais sereno sorriso.

Mas, é claro que está!

Nesse caso, aquela dama que acaba de entrar? Sabeis quem é?

Bem... é a dama do castelo. É dame Beatrice...

Beatrice... de Selongey?

Bem... sim.

Aquele ”sim” atingiu Fiora como uma bofetada. Subitamente, ficou muito vermelha. Sentindo que ia começar a gritar, a soluçar, ou entregar-se a qualquer outra manifestação insensata, apertou as rédeas, deu a volta ao cavalo que quase atropelou a lavadeira e, espetando os calcanhares nos flancos do animal com um grito selvagem, lançou-se a galope através da aldeia, que atravessou como se fosse uma bala de canhão. O apelo de Demétrios chegou-lhe de muito longe, como que do fundo do tempo:

Pára! Por piedade...

Piedade por quem? E para quê? Aliás, mesmo que quisesse, ser-lhe-ia impossível parar o animal. Com um olhar louco, as orelhas esticadas para trás e a boca cheia de espuma, este continuava a galopar, mas Fiora, perdida de dor e de vergonha, não via nem ouvia nada, esperando passivamente que aquela corrida para o abismo acabasse na morte. E esta não estava longe, porque o animal, enlouquecido, corria a direito na direcção de um bosque espesso cujos ramos baixos representavam outras tantas armadilhas terríveis.

Esteban lançara-se no encalço de Fiora seguido de Demétrios, que, mais pesado, não podia seguir no mesmo galope e depois de Léonarde, que, pouco familiarizada com o grande galope, soluçava perdidamente. O castelhano era um cavaleiro notável. Deitado sobre o pescoço do seu cavalo que não cessava de chicotear e fazendo com ele um só corpo, esforçava-se por ganhar terreno, na esperança de alcançar Fiora antes do bosque, porque tinha plena consciência do perigo que ela corria.

Não gritava nem chamava, porque isso só teria excitado ainda mais o animal embalado. Mas conseguiu aproximar-se até se encontrar bota com bota com a jovem, que, via-se, não resistia não se defendia... Então, metendo as rédeas na boca, Esteban inclinou-se e, agarrando Fiora pela cintura, conseguiu arrancá-la da sela e deitá-la atravessada na sua frente. Só nesse instante ele deteve a sua montada, que travou com os quatro cascos e acabou por parar, encharcado em suor. Fiora deslizou para o chão, inconsciente, enquanto o seu cavalo, liberto do peso, foi de encontro a um arbusto, de onde se levantou sem outros danos que não umas arranhadelas.

A noite estava a chegar e era preciso arranjar abrigo. Léonarde, que, já um pouco refeita do medo que sentira, se lhes juntara e se esforçava por reanimar Fiora, propôs o priorado de Til-Châtel, onde a casa de hóspedes talvez os recebesse.

Se conseguirmos lá chegar, é a melhor solução disse Demétrios. Mas, por todos os diabos do inferno, gostaria de estrangular com as minhas próprias mãos aquele Philippe de Selongey...

Eu não consigo compreender murmurou Léonarde. Se algum dia vi um homem apaixonado, foi ele... quando deixou a câmara nupcial.

Vá-se lá tentar perceber os mistérios da alma! Ele amava-a, sem dúvida, nesse momento, mas achou mais cómodo esquecer que já era casado. Julguei-o mal...

Tendo recobrado a consciência, Fiora agradeceu a Esteban e depois, sem mais comentários, voltou a subir para o seu cavalo, que já descansara um bocado. Mas quando a porta do pequeno quarto que partilhava com Léonarde no priorado se fechou, declarou com os olhos virados para aqueles campos invadidos pela noite que ela tanto desejara e onde fora tão cruelmente ferida:

Acreditei naquele homem e amei-o. Mas ele fez troça de mim e representou comigo a mais indigna, a mais triste das comédias... Mas há-de vir o dia em que se arrependerá de me ter conhecido...

Sempre a falar, retirou do pescoço o fio que sustinha o anel de Philippe e contemplou-o por um instante:

O penhor da sua fidelidade! disse ela com amargura. Em seguida, estendeu o anel a Léonarde: Tomai, amanhã entregá-lo-eis ao prior desta casa para as suas obras de caridade... E, suplico-vos, não me faleis nunca mais... nunca mais desse homem!...

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