Quarta parte A CORRIDA PARA O ABISMO

CAPÍTULO XI O DUELO

Na manhã de 30 de Novembro, dia de Santo André, padroeiro da Borgonha, o duque Carlos fazia a sua entrada em Nancy, às oito horas da manhã, pela porta da Craffe. O tempo cinzento, mas sem chuva, trazia ao povo mudo e em grande luto, que olhava, contido por uma dupla fila de soldados de infantaria ao longo da cidade e até à porta de Saint-Nicolas, pela qual, na véspera, saíra a guarnição com as honras da guerra, algum apaziguamento.

O Temerário quisera assistir em pessoa a essa partida. Passara em revista, os dois mil alemães que regressavam à Alsácia, os seiscentos gascões a França e os dois mil lorenos, dos quais alguns regressavam a casa, enquanto os outros iriam reforçar a guarnição de Bitche. O bastardo da Calábria apareceu em último lugar, unicamente escoltado pelo seu porta-estandarte. Armado com todas as peças, a cavalo mas de cabeça nua, altivo e soberbo, aproximou-se a trote do Temerário e lançou-lhe:

Se tivesse dependido de mim, terias partido os dentes nesta cidade, Carlos de Borgonha. Juro-te por Deus! Mas os burgueses têm mais amor à vida do que à honra. Que vais fazer? Passá-los todos a fio de espada?

Não. Estou decidido a manter Nancy na posse dos seus privilégios e governá-la segundo os seus antigos costumes. Farei dela a capital do meu reino. Por que é que tu, que és tão valente e de sangue real, não queres ser seu governador? Eu gosto dos homens de valor.

Também eu e é por isso que parto. Nunca se dirá, enquanto eu viver, que um príncipe loreno, mesmo que bastardo, se inclinou perante ti...

Talvez outros o façam! Sabias que o teu avô, o velho rei Renato, está a pensar doar-me a Provença em testamento, a fim de que seja restaurado o antigo reino borgonhês?

Ele que o faça. Nós não queremos saber da Provença. Apenas a Lorena nos interessa e tu ainda não te livraste de nós!

Virando o seu cavalo, o bastardo da Calábria partiu a galope pela estrada de França. Uma mancha de lama, atirada pelos cascos do corcel, maculou o manto de veludo vermelho que o Temerário usava sobre a armadura... Este franziu as sobrancelhas, mas a sombra que lhe passou pelo rosto dissipou-se rapidamente:

Nancy é nossa, meus fiéis! lançou ele a plena voz. Entremos nela alegremente! E que se saiba que quem molestar um só dos seus habitantes, ou atacar os seus bens, será punido com a morte!

Para sua surpresa, nessa mesma noite, decididamente fértil em acontecimentos, Fiora soube que o núncio do Papa conseguira que ela fosse colocada sob a sua protecção imediata e que seguisse todas as suas deslocações até que o resultado do combate entre Selongey e Campobasso permitisse resolver o seu destino. O jovem Colonna continuava ligado momentaneamente ao seu serviço e ela contava obter, do amável núncio, que lhe devolvessem Esteban.

Assim, ao nascer do dia seguinte, Battista conduziu-a até junto do pequeno grupo de padres e monges que compunham a escolta de monsenhor Nanni. Anunciada ao comum dos mortais como uma dama em peregrinação, desejosa de se recolher perante as relíquias de Santo Epvre, tomou lugar na liteira de viagem do prelado, enquanto este se encavalitava numa mula para fazer, na cidade, uma entrada mais próxima do coração dos seus habitantes. Por uma daquelas delicadezas inesperadas, da qual tinha o segredo, o Temerário decidira que Deus, na pessoa do núncio, seria o primeiro a entrar na cidade conquistada, na esperança de que esse gesto apaziguaria alguns rancores e poria à sua disposição os corações dos seus inimigos de ontem, dos quais, com toda a boa-fé, desejava fazer os súbditos leais de amanhã.

No entanto, nenhuma manifestação de alegria acolheu o prelado que precedia o vencedor, mas, diante de si, a multidão, num movimento unânime, ajoelhou-se sob a sua mão abençoadora:

Recobrai a esperança, meus filhos repetia ele com uma piedade que se parecia com alguma ternura o duque Carlos não vos quer mal e não tendes nada a temer do seu feito...

Por trás das cortinas da liteira com as armas papais Fiora observava aquela gente vestida de negro, os rostos enrugados pelas privações e as casas, algumas das quais mostravam os telhados destruídos pelas balas de canhão e outras com prejuízos ainda maiores. O odor da morte e dos incêndios parecia agarrado às muralhas e ela teve vergonha de entrar assim, escondida, sem dúvida, mas presente, naquele cortejo que precedia o do vencedor. Felizmente, a liteira penetrou directamente no palácio ducal, que se compunha, então, de quatro construções ordenadas em redor de um pátio central e parou no dito pátio, ao mesmo tempo que o núncio ia tomar lugar na igreja de Saint-Georges, vizinha imediata do palácio, para ali acolher o novo senhor. Battista Colonna apareceu diante de Fiora:

Os furriéis de monsenhor Carlos trabalharam toda a noite para preparar os alojamentos. Há um para vós, Quereis que vo-lo mostrem imediatamente, ou preferis observar a ”alegre entrada”?

Pelo que vi até agora não augura grande satisfação, mas prefiro assistir à chegada do duque...

A jovem mal teve tempo de chegar, numa grande sala deserta, a uma janela do primeiro andar: as seis trombetas de prata, que abriam a marcha, soaram na porta da Craffe. A seguir a elas vinha uma centena de homens de armas precedendo uma companhia de cavaleiros emplumados sob as flâmulas brilhantes dos seus pendões diversamente coloridos. O Temerário apareceu alguns passos atrás deles e o seu esplendor cortou o fôlego dos assistentes: montando o seu cavalo favorito, Moro, arreado com uma carapaça dourada, trazia um amplo manto

1 Não resta nada. O duque Renato mandou-o reconstruir em parte e foi completado mais tarde pelos seus sucessores.


inteiramente bordado a ouro, que se estendia pela garupa do cavalo, o grande colar do Tosão de Ouro e, na cabeça, o mais fabuloso ornamento que se possa imaginar: um gorro alto de veludo coberto de pérolas, rodeado por uma grinalda de rubis e diamantes e encimado por uma fivela composta por três grandes rubis, aliás célebres, chamados os ”Três Irmãos”, quatro enormes pérolas e um diamante piramidal que captava o menor reflexo luminoso. Sob aquele chapéu de parada mais precioso, sem dúvida, do que a coroa imperial, o grande duque do Ocidente destilava de orgulho, gozando visivelmente o estupor maravilhado da multidão, esperando as aclamações que não vinham: nada, senão um sussurro que percorria a multidão como uma brisa sobre água calma... No espelho da sua memória Fiora reviu a silhueta cinzenta do Rei de França e pensou que, na verdade, a comparação não lhe era nada favorável; mas não era certo que uma inteligência semelhante e um espírito igualmente agudo estivessem escondidos sob aquela aparência esplendorosa de príncipe lendário...

A seguir ao duque, em cavalos de parada com magníficas couraças, vinham o duque Engelbert de Nassau, o grande bastardo Antoine, o conde de Chimay Philippe de Croy, o duque Jean de Clèves, o príncipe de Tarente, o conde de Marle, filho do Condestável de Saint-Pol, que ignorava ainda que o seu pai, entregue pelo tratado de Soleuvre ao Rei de França que, aliás, traíra várias vezes estava detido na Bastilha e esperava o julgamento que o levaria ao cadafalso, Jean de Rubemprè, senhor de Bièvres e muitos outros, entre os quais, com um aperto no coração, Fiora reconheceu Philippe...

O senhor de Selongey não se tinha sacrificado à mesma elegância dos outros senhores. Sob a túnica com as suas armas águias prateadas sobre fundo azul que também vestiam o seu corcel, vestia o arnês de guerra. Apenas a viseira erguida do seu capacete, cingido por uma coroa de conde, permitia reconhecer o seu perfil arrogante. Segurando com mão firme o seu cavalo, que escouceava, seguia o seu caminho com ar ausente,

1 Esse fantástico ornamento, guardado pelos suíços em Granson, foi vendido por eles aos Fugger de Augsburgo.


não olhando para nada nem ninguém, mas o seu rosto estava muito pálido e Fiora recordou-se que fora ferido na antevéspera... o seu olhar fixou-se naquela silhueta orgulhosa que se afastava e não viu, pouco depois, Campobasso, rutilante e coberto de ouro, cavalgando na companhia do marquês de Hochberg, do conde de Rothelin e de Jacopo Galeotto. Mas ele viu-a e, para que ela olhasse para si, agitou-se de tal modo na sela que o seu cavalo fez um safanão e caiu para cima dos dos seus vizinhos, do que resultou alguma desordem e Fiora, maquinalmente, virou os olhos para aquele lado. Então, quando reconheceu Campobasso, recuou rapidamente e abandonou a janela. A visão daquele homem, que possuíra o seu corpo, repugnava-lhe, porque era a medida da sua própria vergonha. Teria dado tudo para que não tivesse havido uma Thionville na sua existência.

Estou farta disse ela a Battista, que entrara com ela gostaria de ir para o meu apartamento.

Tendes assim tanta pressa? Sabíeis que vão ser colocados à vossa porta dois guardas, tal como diante da tenda?

Não tenho ilusões acerca do meu destino, Battista. O duque detesta-me e só quer uma coisa: que eu desapareça do seu horizonte, quer seja pela morte, quer seja pela anulação...

É possível... mas vós, que desejais vós? Não sois muito mais velha do que eu e é um pouco prematuro desejar a morte...

Eu não a desejo, mas estou cansada de lutar contra um destino que não cessa de me oprimir. Tinha um pai e já não tenho; tinha um marido e perdi-o, tanto por sua culpa como por minha e apercebi-me que, por me querer vingar, perdi tudo. Agora, o que pode vir a acontecer tem pouca importância. Creio, vede vós, Battista, que estou, sobretudo, muito, muito cansada... Gostaria de adormecer e nunca mais acordar...

Isso não é muito razoável. Dois homens vão bater-se por vós, pelo vosso amor...

Não: pelo seu amor-próprio. Não é a mesma coisa... Entretanto, chegado à igreja de Saint-Georges, o duque Carlos pôs pé em terra e confiou, segundo o costume do país, o seu

1 Já não existe


cavalo a um cónego, após o que o preboste do capítulo, Jean d’Haraucourt, o conduziu à igreja, para ali ouvir missa e prestar o juramento que, no dia da coroação, todos os duques da Lorena prestavam. Ele podia dispensá-lo, mas não queria, para tranquilizar as populações, negligenciar nenhum dos costumes locais, pensando que seria do agrado de todos.

Ajoelhado diante do altar cintilante, saboreava plenamente a sua hora de glória, porque, pela primeira vez, os países de cá e os países de lá estavam unidos graças àquele elo que faltava, a Lorena. Em breve o Imperador, com cujo filho esperava casar a sua filha, colocaria na sua cabeça uma coroa real e a Borgonha, enfim desligada do velho tronco dos Capetos, assim como de qualquer obediência imperial, vogaria livremente na direcção de um destino prodigioso, ao qual a sua força e riqueza tinham direito... Em breve... mas ainda não. Faltava apresentar a conta aos cantões suíços, esse amontoado de vaqueiros e camponeses, por terem tido a audácia de lhe tirar o condado de Ferrette, por atacarem o seu Franco Condado e por se terem aventurado nas terras da duquesa Yolanda de Sabóia, sua fiel aliada. E não tardaria muito. Em seguida, depois de algum tempo de repouso, que permitiria ao novo Rei reunir o maior exército do mundo, deitaria do trono de flores-de-lis abaixo o muito subtil Luís XI e a França teria, enfim, um soberano digno do seu passado grandioso...

Assim sonhava o Temerário naquela igreja, onde, ainda no dia anterior, se erguiam as orações para que Deus afastasse, do velho país loreno, o invasor e o seu exército, mas Carlos não teve pejo, por um segundo sequer, de levar os seus novos súbditos a agradecer ao céu por lhes ter dado por senhor um príncipe tão faustoso, magnânimo e valente. O que seria bem melhor do que o Menino, esse pobre Renato II, que, em vez de morrer em combate, preferira ir a correr para debaixo das saias da mãe para ali chorar a sua impotência...

Enquanto era ordenado um grande banquete e uma festa pública para tentar fazer esquecer passageiramente aos habitantes de Nancy os seus mortos e as muitas casas destruídas, piora, no quarto que lhe haviam dado e que se situava numa das torres de frente para o Meurthe, recebia a visita de monsenhor Nanni. A jovem agradeceu-lhe a protecção, graças à qual, certamente, lhe tinham dado aquele alojamento, em vez de uma prisão.

Não mereço tanto, minha filha. Mesmo que lhe desagrade soberanamente, o duque nada pode contra o facto de vós serdes a legítima condessa de Selongey. Ele deve-vos respeito.

Mas acalenta a ideia de me mandar executar, o que teria a vantagem de libertar Philippe e apagar a história deste dote, que, evidentemente, ele não aprecia.

Podeis estar certa de que tereis direito a todas as honras devidas à vossa categoria disse o prelado com um sorriso mas ainda não chegámos lá. Direi mesmo que a vossa melhor hipótese de escapar ao carrasco reside nessa dívida que o duque tem para convosco. Cem mil florins são uma soma enorme... e ele é incapaz de a restituir. O seu sentido cavalheiresco opõe-se ao que seria uma maneira pouco elegante de se desembaraçar de um credor. É por isso que vos digo que não estejais muito preocupada... e também que o duelo entre o conde de Selongey e Cammpobasso terá lugar amanhã à noite, à meia-noite, no recinto do castelo, sem outras testemunhas senão o próprio duque, vós, eu e dois assistentes, que serão Galeotto pelo napolitano e messire Mathieu de Frame pelo vosso marido. O grande bastardo Antoine fará o papel de juiz de armas. O combate será... a todo o transe.

Que quer dizer isso?

Que só a morte de um dos adversários lhe porá fim. Um fio gelado percorreu o dorso de Fiora, que estremeceu

como se o vento do Inverno tivesse entrado no seu quarto, enchendo-o de frio:

É terrível articulou ela. Não é possível! O duque não pode aceitar tal coisa?... Não acredito. É monstruoso!

No entanto, será assim. Vós ignorais tudo das leis feudais deste país. Aliás, admito que os costumes das nossas gentes do lado de lá dos Alpes não são melhores, senão piores: entre nós alugamos espadachins para nos desembaraçarmos de um inimigo...

Quer sejam melhores, ou piores, não quero saber.

E, virando as costas ao núncio, caminhou rapidamente na direcção da porta do seu quarto, abriu-a e empurrou violentamente os alabardeiros que se cruzavam diante dela:

Quero ver o duque! disse ela com altivez. E se tentardes impedir-me, gritarei com tanta força que alguém há-de vir. Direi, então, que me tentastes matar!

Minha filha suplicou Alessandro Nanni, alarmado não estais a pensar...?

Não penso noutra coisa! Conduzi-me a ele, senão saberei encontrar eu mesma o caminho.

O pequeno bispo trotou a seu lado, tentando” detê-la, mas era impossível: Fiora estava decidida a ver o Temerário e assim, uma correndo e o outro quase a perder o fôlego, chegaram à antecâmara guardada por meia dúzia de soldados. Olivier de La Marche passeava na companhia do camareiro do duque, Carlos de Visen. A entrada tumultuosa da jovem deteve-os:

Anunciai-me a monsenhor! ordenou ela tão secamente como se estivesse a falar com um criado. Quero vê-lo!

Impossível disse La Marche. monsenhor está em conferência com o embaixador de Milão e vós não tendes nada que estar aqui! Guardas, conduzi esta mulher ao seu quarto!

Não me toqueis! gritou Fiora. É urgente vê-lo: trata-se da vida de um homem!

E eu digo-vos...

O que é que se passa? Que barulho é este?

A porta acabava de se abrir pela mão do Temerário. O duque abarcou a cena com um olhar, viu Fiora debatendo-se nas mãos dos soldados e o núncio, que fazia esforços inúteis para a trazer à razão:

Vós, outra vez? disse ele. Agora forçais-me a porta? Eu pensava, Eminência, que respondíeis por esta louca?

Eu não posso responder pelos arrebatamentos do seu coração disse Nanni com um suspiro. E donna Fiora está muito, muito comovida...

Muito bem, vejamos essa emoção! Entrai, os dois!

Sem um olhar para a vasta divisão, da qual os criados de Carlos tinham feito um esplendor de ouro e púrpura, disposto em redor de uma admirável tapeçaria onde milhares de flores circundavam as armas da Borgonha, nem para a elegante personagem que estava de pé junto de um aparador ornamentado com duas estátuas douradas, Fiora, da soleira, ofereceu ao duque uma profunda reverência:

Monsenhor rogou ela acabo de saber que o duelo terá lugar amanhã. Suplico a Vossa Senhoria que o impeça...

Um recontro onde a honra de dois cavaleiros está em jogo? Tínheis de ser mesmo filha de mercadores, para sonhar, apenas, isso...

Sobretudo, sou uma mulher sedenta de justiça... e uma mulher que ama. Messire de Selongey está ferido: o combate será desigual.

Também sabeis isso? Para uma pessoa que tem estado presa, sabeis tudo o que se passa no meu exército! disse o duque com a sombra de um sorriso que encheu de esperança o coração da jovem. Ficai descansada, o ferimento de Selongey é ligeiro.

Mas, é um combate a todo o transe!

E então?

As pernas de Fiora dobraram-se; a jovem caiu de joelhos e escondeu o rosto nas mãos:

Por piedade, monsenhor!... Fazei de mim o que quiserdes, atirai-me para a prisão, entregai-me ao carrasco, mas impedi esse horror! Eu não quero vê-lo morrer!

Seguiu-se um grande silêncio, apenas perturbado pelo som da respiração da jovem. Monsenhor Nanni inclinou-se para ela, para a reconfortar, mas o duque deteve-o com um gesto e, lentamente, aproximou-se de Fiora:

Amai-lo a esse ponto?... Nesse caso, por que Campobasso?

Por vingança... e para o afastar de vós... de vós, por quem Philippe está sempre pronto a tudo sacrificar. De mim só quis uma fortuna para as vossas armas... e uma única noite.

Ele inclinou-se, pegou nas duas mãos que ela apertava contra o rosto obstinadamente e obrigou-a, docemente, a levantar-se:

Detestais-me, não é verdade?

Ela hesitou apenas um momento e respondeu, os olhos cinzentos nos olhos negros do príncipe:

Sim... Sem vós, seria feliz!

Sem mim, não o teríeis conhecido. Que foi ele fazer a Florença? Regressai ao vosso quarto e rezai a Deus! Eu sei que estais decidida a passar sem a Sua ajuda, mas talvez monsenhor Nanni consiga convencer-vos a virar-vos para Ele. Deus ouve as nossas orações... Quanto ao duelo, nem sequer tenho possibilidade de o retardar: nenhum dos adversários consentiria...

Guiada pelo núncio, que lhe dava o braço, a jovem dirigiu-se para a porta, mas, antes de a transpor, virou-se:

Posso, ao menos... falar-lhe?

Se ele consentir, não me oponho. Também devo dar permissão a Campobasso, que não cessa de reclamar um instante convosco?

Por favor, monsenhor... nunca! Gostaria... de não o ver nunca mais. Mas agradeço-vos por me permitirdes encontrar-me com Philippe...

Estavam os dois face-a-face no que fora o oratório das duquesas da Lorena, um pequeno santuário de pedra cinzenta que o fausto borgonhês já tinha vestido de azul e prata, com uma bela estátua da Virgem e alguns relicários, diante dos quais, quando Fiora entrou, Philippe rezava, de joelhos.

Ao ouvir a porta a ranger ligeiramente, ele levantara-se e, com uma mão pousada na mesa da comunhão, olhava para a jovem que se aproximava, mas esta parou a alguns passos de distância.

Não desejava voltar a ver-vos disse Selongey em voz baixa, na qual Fiora percebeu algum cansaço. Mas o duque insistiu, sem, aliás, me dizer a razão.

Fui eu que lhe pedi. Queria ver-vos antes de... oh, Philippe, vós estais ferido!

A têmpora direita, com efeito, mostrava um arranhão ainda mal fechado, em redor do qual a pele estava azulada, mas Philippe encolheu os ombros:

Se é por causa desta esfoladela que me quereis falar...

Um pouco, sim... mas, sobretudo, desse duelo que me apavora. É indispensável que vos batais...

Com o vosso amante? Espero matá-lo! Tenho menos quinze meses do que ele e não é este arranhão que me impedirá. Tendes medo, dizeis? Nesse caso, deveríeis saber que vindo aqui pedir por ele só faz com que a minha vontade de o matar aumente.

Pedir por ele? Esse pensamento nem sequer me passou pela cabeça. É por vós que temo...

É muita bondade da vossa parte, mas devíeis antes preocupar-vos com esse bandido de estrada, porque não o pouparei e ele vai achar isso muito desagradável. Sobretudo, pouco habitual: um condottiere, todos sabem, prefere conservar a vida para poder gozar à-vontade, na velhice, o fruto dos seus serviços mercenários...

Eu supliquei ao duque que impedisse o combate.

Ele riu-se de vós, imagino? Achais que eu permitiria que um homem fosse ter com o meu príncipe para reclamar a minha mulher como um bem seu?

Vossa mulher? disse Fiora com amargura. No vosso espírito só o fui durante algumas horas, mas nunca pensastes em viver comigo, em fazer de mim a companheira de todos os instantes. Pensais que ignoro os termos desse contrato insensato que vós arrancastes à fraqueza do meu pai e por que meio, indigno de um cavaleiro, conseguistes a vitória? Isso, em qualquer país do mundo, chama-se chantagem!

Eu desejava-vos a qualquer preço e teria empregado todos os meios, mesmo os piores...

Não foi o que fizestes?

Ele virou a cabeça para não voltar a encontrar aquele olhar brilhante de cólera, onde só lia a sua condenação.

Confesso a minha vergonha, mas vós enlouquecestes-me...

Eu, ou a minha fortuna?

Pensava que já vos tinha provado que vos amava?

Provastes-me? Aquela noite, em que fizestes de mim uma mulher, foi prova suficiente, após o que fugistes como um ladrão sem perguntardes a vós próprio, nem sequer por um instante, se não me deixaríeis irremediavelmente ferida? Leváveis uma letra de câmbio e uma mecha de cabelos, disseram-me. Foi essa a vossa vitória...

Eu regressei a Florença.

Já o dissestes e isso também não prova nada. Escutastes, vendo arder o meu palácio, os primeiros mexericos e voltastes a partir com grandes suspiros, sem dúvida, que eu não estou certa se não seriam de alívio. Estáveis viúvo, com o futuro pela frente..

Isso não é verdade. Eu voltei porque vos amava, porque queria voltar a ver-vos...

É isso que pensais? Se me tivésseis amado... como eu vos amei, teríeis destruído Florença, pedra por pedra, teríeis escavado a terra com as vossas unhas até encontrar, pelo menos, o meu cadáver, mas partistes tranquilamente. A história acabara, já não havia nenhum Beltrami no mundo para os lembrar de que, por amor ao vosso senhor, tínheis sujado as águias de prata das vossas armas ao casar com a filha do incesto e do adultério, a filha de Marie de Brévailles. Já não precisaríeis de morrer, como anunciastes enfaticamente ao meu pai... aliás, sou obrigada a constatar que não estais morto!

E reprovais-me por isso? Odiais-me a esse ponto?

Decididamente, não compreendestes nada...

Um dos panos bordados a dourado que estavam suspensos das paredes do oratório acabava de se erguer pela mão do Temerário, que avançou para Fiora, demasiado surpreendida com aquela súbita aparição para se lembrar de qualquer saudação. Philippe, esse, ficou muito corado e fez tenção de se aproximar do seu senhor, mas este afastou-o com um gesto.

Vai, Philippe! E confessa-te antes de defrontares Campobasso! Vejo-te mais tarde...

Monsenhor! Tenho de vos dizer... tenho de vos explicar...

Não há nada a explicar. Eu compreendi tudo. Deixa-me com ela!

Com um último olhar para Fiora, Philippe baixou a cabeça e abandonou a capela, cujas lajes ressoaram sob os seus sapatos de aço sem que o duque virasse, sequer, os olhos para ele. Carlos fixava a jovem com a expressão de quem acaba de encontrar a solução para um problema difícil. Aproximou-se dela e com gestos de grande ternura tirou os longos alfinetes que lhe seguravam o penteado. Quando os pesados cabelos caíram ao longo do delgado pescoço da jovem, ele recuou alguns passos:

Jean de Brévailles! Eu sabia que esse rosto pertencia ao meu passado, mas não o pensava tão longínquo! Foi há quantos anos?

Que recusastes as suas vidas a uma mãe desesperada? Dezoito e alguns dias. Eu nasci pouco tempo antes da sua morte. O que me espanta é que vós tenhais guardado a recordação?

No entanto, é verdade. Eu amava-o muito, antes de a imagem pura desse rapaz altivo e belo se ter afundado na vergonha e na desonra...

Por que razão, monsenhor, não acrescentais apenas a esses crimes o sangue que os vossos carrascos fizeram correr no velho cadafalso que eu vi em Dijon? Mas não: era preciso também a lama, a porcaria e a tumba ignóbil para onde, por vossa ordem, foram atirados e onde eu quase morri...

A ordem vinha do meu pai, não de mim.

Mas não fizestes nada para mudar fosse o que fosse! Se um homem, um daqueles mercadores que Vossa Senhoria desdenha com tanta altivez não estivesse presente para exercer uma piedade que devia ser prerrogativa do príncipe, eu teria ficado desfeita no fundo da mesma cloaca. Esse homem recolheu-me, alimentou-me, educou-me, amou-me... Quis fazer de mim sua filha e na última Primavera morreu depois de ser obrigado a casar-me com messire de Selongey, que soube do seu segredo...

O rosto moreno do príncipe ficou da cor do barro e o seu olhar inflamou-se:

Não me digais que Philippe, a lealdade, a rectidão e a honra em pessoa, que Philippe, cavaleiro do Tosão de Ouro ousou empregar tal meio?...

Para vos trazer o dinheiro que Lourenço de Médicis lhe recusou, teria sido capaz de pior ainda. Ele está ligado a vós de corpo e alma, apesar de isso me despedaçar o coração. E agora já sabeis por que razão ele só quis de mim uma noite, por que razão eu devia ficar a minha vida inteira em Florença sem nunca aparecer na Borgonha, para que ninguém soubesse que ele sujara o seu nome ao casar com a filha dos Brévailles, e vós menos do que ninguém... vós, o seu verdadeiro deus!

Calai-vos! Por São Jorge, ordeno-vos que vos caleis! Com as mãos nas orelhas, o duque foi afundar-se numa das duas cadeiras armoreadas que estavam de frente uma para a outra no coro. Ficou ali por um momento, respirando com dificuldade como um homem que sufoca e abrindo com um gesto brusco o colarinho do seu longo traje forrado de marta. Fechou os olhos e quando a respiração se tornou mais regular dardejou o seu olhar negro sobre Fiora:

Admitistes, ainda há pouco, que me detestáveis. A palavra é fraca, não é? Odiais-me?... e foi para me prejudicar que seduzistes Campobasso?

Ao ponto a que chegámos, monsenhor, seria absurdo mentir: eu só tenho uma palavra. Além disso, na verdade, não tenho grande vontade de viver.

Quereis morrer?

Isso resolveria muitas coisas...

Cabe-me a mim julgar... E agora, por favor, saí e deixai-me rezar! Preciso muito de rezar pela minha honra...

Após uma genuflexão que se destinava tanto ao duque como a Deus, Fiora abandonou o oratório, cuja porta fechou lentamente. Com lentidão suficiente para ver que o Temerário se deixara cair de joelhos no degrau do altar e metera a cabeça nas mãos. Pelo movimento dos ombros poder-se-ia supor que chorava...

Era quase meia-noite, no dia seguinte, quando Battista Colonna foi buscar Fiora ao seu quarto. Silenciosamente, iluminados pela lanterna que o pajem balançava numa mão, a jovem e o seu guia percorreram salas, galerias, desceram escadas com corrimão que pareciam intermináveis e, finalmente, desembocaram no recinto do palácio, no qual as árvores, despidas pelo Inverno, mostravam os seus ramos nus e retorcidos, acentuados por um ligeiro debrum branco. Caíra neve durante a noite, cobrindo o recinto com um manto delgado e sedoso.

Em redor do que era, na Primavera, um suave tapete de erva pintalgada de flores, onde as damas gostavam de se sentar para conversar, ouvir poesia ou dançar, estavam alguns homens envoltos em longos mantos negros, como a própria Fiora, que os faziam parecer fantasmas. Dois de entre eles estavam sentados em escabelos que para ali tinham sido trazidos: eram o duque Carlos e o núncio. Um terceiro banco, junto deste último, esperava Fiora, que tomou lugar nele após ter saudado silenciosamente o prelado, o príncipe e um homem de uns cinquenta anos, de porte altivo, que se mantinha de pé junto do Temerário e que ela sabia ser o seu meio-irmão, o grande bastardo Antoine, que, pelos seus feitos, elevara o seu nascimento ilegítimo à altura de uma lenda. Ninguém dizia nada...

No círculo de luz produzido pelos archotes transportados por três criados negros e talvez mudos apareceram os dois adversários. As suas armaduras caneladas, forjadas ambas pelos célebres Missaglia de Milão, tornavam-nos semelhantes e, à primeira vista, só eram reconhecíveis pelos que os acompanhavam: Mathieu de Frame para Selongey e Galeotto para Campobasso. Eram sensivelmente da mesma estatura. Cada um deles estava armado com uma espada e uma adaga...

Ao mesmo tempo, ambos se ajoelharam diante do duque e do núncio. O primeiro não se mexeu, mas quando o segundo ergueu a mão num gesto de bênção, Philippe tirou o grande elmo que lhe prendia a cabeça e atirou-o por terra, afirmando assim a sua intenção de combater sem protecção...

Quereis mesmo deixar-vos matar? perguntou o Temerário com uma voz surda onde se adivinhava uma certa angústia. Ponde o elmo!...

Com vossa permissão, monsenhor, não farei tal. Nós não estamos aqui para amolgar aço. Um de nós não sairá daqui vivo. Assim é mais fácil...

Como queirais, mas ficais em desvantagem... a menos que o vosso adversário demonstre o mesmo desdém pela vida?

Todos os olhares se viraram para Campobasso, que parecia uma estátua. A sua hesitação era palpável, mas ele virou os olhos para Fiora e leu no seu olhar tanto desprezo implacável que se decidiu e libertou, igualmente, a cabeça:

No fim de contas, por que não? disse ele com um encolher de ombros.

Em seguida, ambos se levantaram e se puseram às ordens do grande bastardo, que destinou um lugar para cada um, recuando depois e virando-se para o duque. Este fez um sinal de assentimento:

Em frente, meus senhores e que Deus decida qual das vossas causas é a melhor.

Como numa figura de dança bem ensaiada, as duas pesadas espadas ergueram-se ao mesmo tempo e Fiora enterrou as unhas nas palmas das mãos, o coração pequenino, numa angústia mortal. Fora das suas carapaças de ferro, as duas cabeças pareciam estranhamente frágeis. Se uma das espadas se abatesse sobre uma delas, era a morte certa, já que os dois homens se batiam com uma violência que estava na razão directa do ódio que votavam um ao outro. O choque das armas ecoava no jardim fechado, provocando, por vezes, faíscas. A sua habilidade era sensivelmente igual e o duelo arriscava-se a durar muito tempo. Selongey era, talvez, mais rápido e mais suave, mas Campobasso possuía mais experiência, porque não era a primeira vez que defrontava um homem em combate singular e, assim, era impossível prever qual dos dois, no final, venceria...

Fiora queria fechar os olhos, não ver nada, mas era-lhe impossível: tinha que olhar... Por vezes o seu olhar deslizava, cheio de apreensão, para o rosto imóvel do Temerário, no qual apenas os olhos pareciam estar vivos. Esses olhos brilhavam, seguindo as fases da luta que, para a sua alma guerreira, devia ser um espectáculo de eleição, e um rancor amargo apoderou-se de Fiora. Como pudera ser tão estúpida, pedindo-lhe que impedisse um duelo que lhe dava tanto prazer e que apreciava como conhecedor? A emoção daquela mulher transtornada devia diverti-lo, assim como a ansiedade que adivinhava no seu rosto... De qualquer maneira, e fosse qual fosse o resultado do combate, Fiora perdera toda a esperança no futuro. A sua vida estava definitivamente devastada, porque nunca aceitaria ser o preço de uma vitória do condottiere sobre o homem que amava e, se Philippe ganhasse, rejeitá-la-ia para sempre.

Que ele viva, meu Deus! implorou ela, reencontrando subitamente, naquele instante de perigo extremo, o recurso desesperado à oração que ele viva, e eu libertá-lo-ei. Pedirei a anulação deste casamento insensato!...

A jovem tinha frio até na alma. A neve que cobria o recinto e que, sob os passos dos duelistas, se transformara em lama, gelava-lhe os pés e fazia-a tremer. Era como se todo aquele frio se insinuasse nas suas veias e lhe chegasse ao coração...

A respiração dos dois homens era cada vez mais curta e ruidosa. O combate durava, durava e, de tanto ferir, as pesadas espadas deviam pesar dez vezes mais sob os músculos fatigados. Os golpes pareciam menos violentos e nenhum ferimento aparecia em qualquer dos contendores. Fiora recobrou a esperança. Iria o duque parar aquela luta por demasiado igual? Subitamente, ao querer evitar um ataque do seu adversário, Philippe recuou, escorregou e caiu pesadamente de costas. Campobasso já se precipitava sobre ele, a espada pronta para lhe abrir a cabeça, quando a jovem, com um grito de terror, se atirou para o meio dos dois homens empurrando Campobasso, cuja espada se abateu sobre o seu ombro, ao mesmo tempo que o braço vestido de ferro lhe atingiu a cabeça. A jovem sentiu uma dor lancinante e desmaiou, levando consigo para as profundezas apaziguantes da inconsciência o eco dos clamores que se elevavam em seu redor; deixou de ter qualquer conhecimento daquele mundo impiedoso de homens, contra a crueldade do qual acabava de se ferir voluntariamente...

Ao recobrar a consciência, reencontrou a dor. O seu ombro, que umas mãos suaves ligavam lentamente, fazia-a sofrer terrivelmente, como se lho fossem arrancar. A cabeça também lhe doía e os sons ressoavam dentro dela como os sons de um sino... A jovem abriu penosamente os olhos e viu que a tinham levado para o seu quarto do palácio, enquanto um homem, no qual reconheceu Matteio de Clerici, o médico ducal, se inclinava sobre ela e lhe prestava cuidados:

Nenhum osso parece quebrado comentou ele em italiano. A espessura do manto e do vestido amorteceram o golpe, desferido, aliás, com uma arma cuja lâmina estava embotada, mas foi um verdadeiro milagre o ombro não ter sido arrancado... Ah! parece que regressa a si!

Tendes a certeza que a sua vida não corre perigo? perguntou a voz do duque Carlos e Fiora, a despeito das brumas que lhe obscureciam o cérebro, descobriu que ele falava o italiano com facilidade. A menos que haja complicações, certamente que não. Esfreguei o ferimento com uma pomada que o ajudará a cicatrizar e lhe deve apaziguar a dor. Quanto ao golpe recebido na cabeça, é pouca coisa: um galo que já está um pouco azul...

Philippe sussurrou Fiora... Philippe está vivo?

A poderosa silhueta negra do Temerário emergiu da sombra e apareceu à claridade das velas acesas na cabeceira da cama:

São e salvo... assim como o seu adversário, aliás. Mas que gesto louco! Acreditais, sinceramente, que eu teria deixado Campobasso degolar Selongey? A expressão do rosto de Fiora indicava, claramente, que tinha dúvidas e murmurou:

O combate não foi até à morte?

Eu tenho sempre o direito de parar um duelo quando muito bem me parece. Sabia que, tanto um, como o outro, teria muita dificuldade em derrotar o seu inimigo e esperava que a fadiga acabasse por vencer. Confesso que, entretanto, teria preferido que tivessem mantido os elmos nas respectivas cabeças...

Não... podíeis... ter ordenado que... os voltassem a pôr?

Não, isso não. Cada um tem o direito de combater como lhe convém...

Monsenhor! censurou-o o médico a minha paciente perdeu muito sangue e precisa de repouso. Vou-lhe dar uma poção que a fará dormir e veremos, amanhã, como está o ferimento...

Só mais um momento, por favor disse Fiora Queria pedir-vos... monsenhor... que falásseis por mim a Sua Eminência, o núncio. Eu... eu quero pedir a anulação... do meu casamento...

Quereis?

Sim... e quanto mais cedo melhor. Dizei a messire de Selongey... que está livre de qualquer compromisso... para comigo. Assim como... vós próprio. O meu pai... sabia que esse ouro vos estava destinado... Não contestarei uma doação... que ele fez livremente!

Esgotada pelo esforço que acabava de impor a si própria, a jovem fechou os olhos e não viu o duque inclinar-se sobre si, mas sentiu o calor da sua mão quente, que ele prendeu na sua.

Não tenhais pressa, suplico-vos! Neste momento não estais em vós...

Porque perdi... toda a minha agressividade? perguntou a jovem com um sorriso pálido.

Talvez. Voltaremos a falar de tudo isto quando estiverdes restabelecida. Devo dizer-vos que Selongey está ali fora. Dais licença que ele entre?

Não... não! Nem ele... nem o outro! Por piedade!

Vós tendes direito a muito mais do que piedade, mas seja como desejais. Repousai!

Já não é sem tempo disse asperamente o médico. Mas, seria conveniente encontrar uma mulher para velar por donna Fiora. Para além das raparigas da cozinha, este palácio está cheio de homens, sem contar com as duas mil prostitutas que seguem o nosso exército. Os cuidados de uma mulher de bem seriam...

Desejáveis? Partilho da vossa opinião e vou tratar disso logo de manhã. Entretanto, continuai com os vossos cuidados...

Após a sua partida, Matteo de Clerici fez a paciente absorver uma tisana que ele acabava de preparar na lareira da chaminé, na qual deitou umas gotas de um frasco que trouxera consigo.

A droga devia ser eficaz, porque, mal bebeu o último gole, Fiora adormeceu profundamente...

Por trás da porta do quarto, o duque reencontrara Philippe, que media nervosamente as lajes do chão: era visível que tinha chorado:

Como está ela? interrogou-o ele. Posso vê-la?

Ela está livre de perigo, mas tu não podes entrar, Philippe.

Porquê?

Porque ela não quer.

Está à espera do outro? exclamou o jovem, furioso. Ele não está longe: Olivier de La Marche está ao fundo da escada com ele...

Ela não quer ver nenhum dos dois... e pediu-me expressamente que solicite ao núncio a anulação do vosso casamento. Encarregou-me de te dizer que estás livre de qualquer compromisso para com ela. Foram estas as suas palavras e eu creio que ela tem razão.

Monsenhor! protestou Selongey. E eu, não tenho o direito de falar? Parece-me que também me diz respeito?

Baixa o tom, por favor! Estás a falar com o duque da Borgonha. Com o duque da Borgonha, que tem o direito de te pedir contas da tua conduta: primeiro casaste-te sem a minha autorização e depois usaste a chantagem para conseguir a mão de uma infeliz nascida na vergonha e que o mais miserável dos meus súbditos teria recusado como esposa. Merecias que te obrigasse a devolver o Tosão de Ouro. E agora, proíbo-te de tentar vê-la, ou sequer de te aproximares. Contenta-te em saber que ela te salvou a vida e vai-te! Esquece-a!

Se pensais que isso é fácil! exclamou Selomgey com amargura. Há meses que o tento, pensando que estivesse morta. E depois, vi-a e senti...

Os vossos sentimentos não me interessam para nada. Eu, o vosso príncipe, ordeno-vos, sob pena de desonra pública, que vos afasteis de uma mulher adúltera, nascida do incesto e, ainda por cima, espia do nosso querido primo de França.

Que ides fazer dela? Não ides fazer-lhe mal? Ela é tão jovem e já sofreu tanto!

Isso depende da vossa obediência. Daqui a pouco vou falar com o núncio, mas vós, preparai-vos para partir para a Sabóia, onde a duquesa Yolanda, invadida pela gente dos Cantões, pede por socorro. Anunciar-lhe-eis a nossa chegada próxima e ficareis junto dela até que eu vos chame. É preciso que antes do meio-dia tenhais abandonado Nancy com cinquenta lanças!

Monsenhor, por favor! Ela está inocente e vós não o ignorais.

Ignoro menos do que pensais. De qualquer maneira, este casamento deve ser dissolvido. Não me obrigueis, com a vossa obstinação, a fazê-la desaparecer! Sabei que a terei debaixo de olho para me assegurar da vossa obediência.

Alguma vez ela vos enganou? Deixai-me, ao menos, dizer-lhe adeus? Devo-lhe a vida!

Não... deixaríeis de poder partir e eu dei-vos uma ordem. Com a morte na alma, Philippe fez uma saudação e retirou-se com um último olhar para a parede de madeira por trás da qual repousava a única mulher que amara.. Dirigiu-se para a escadaria, mas, quando ia começar a descer, virou-se:

Uma palavra ainda, monsenhor. Desejo que todos os meus bens sejam vendidos. Fiora não tem nada e eu não suporto isso. Ao menos, fazei isso por mim!

A sério? E como vivereis, porque passais a ser vós que ficais sem nada?

Quando a vossa vitória for definitiva, meu príncipe, irei oferecer a minha espada ao duque de Veneza. Uma fortuna pode refazer-se nos azares da guerra... a menos que tudo acabe.

Saudando novamente com uma rigidez que traduzia bem a sua cólera contida, Selongey desapareceu, por fim, nas profundezas da escadaria, seguido pelos olhos do Temerário, que sorriu:

Isso é o que veremos... disse ele.

A casa do almotacé Georges Marqueiz, na rua Ville-Vieille, junto da igreja de Saint-Epvre, era uma das mais belas de Nancy e não sofrera os efeitos dos bombardeamentos. Foi para ali que nessa manhã transportaram Fiora ainda semi-inconsciente, para que pudesse receber os cuidados femininos impossíveis de assegurar no palácio transformado em caserna. Dame Nicole, a amável esposa do magistrado, aceitara dar ao novo senhor essa demonstração de boa vontade. Era uma mulher grande, cujos cabelos louros embranqueciam harmoniosamente e não era bela, mas tinha uns olhos castanhos calorosos e um sorriso encantador. A paciente não teve qualquer problema em lhe conquistar o coração e foi, também, conquistada de imediato.

Entretanto, o novo duque empregava todos os seus encantos e, quando queria, tinha muitos para seduzir os seus novos súbditos. Só se viam festas e divertimentos. Carlos desdobrava-se em liberdades, magnificências e carícias. Convocou, no seu novo palácio, os estados da Lorena, onde pronunciou um discurso memorável:

... Em breve vos apercebereis que eu procurava, por meio das armas, mais a vossa felicidade do que a minha disse ele àquela gente que tinha reduzido à fome e alguns a dormir em escombros. A Providência, que vos submeteu às minhas leis, reservou-vos, sem dúvida, a felicidade de viver sob a minha governação; com efeito, doravante, a vossa nação voltará a ser opulenta, feliz e tranquila e esta cidade, agora o centro dos meus estados, será o local da minha residência. Vou embelezá-la com um soberbo palácio, aumentá-la com um grande número de edifícios, estender as muralhas até Tombelaine e dar-lhe o mesmo brilho, sob o meu reinado, que Roma teve, outrora, sob o Império de Augusto...

Terminou exigindo uma fidelidade inviolável à sua pessoa e a assembleia, entusiasmada, nem sequer esperou que ele terminasse para lhe prestar vassalagem.

É qualquer coisa, ser a capital de um grande reino disse Nicole Marqueiz à sua pensionária. Quando vemos a riqueza de Bruges, Lille e Dijon, sonhamos...

Não gostais do vosso jovem duque?

É encantador, mas é uma criança, como diz monsenhor Carlos. Não se pode comparar com tal príncipe. Temos de viver com os tempos, que quereis?

Aliás, uma parte da nobreza Lorena congregou-se em redor do novo senhor. Aquilo chocou um pouco Fiora, que se restabelecia docemente e que começava a perguntar a si própria o que lhe aconteceria. Battista Colonna vinha todos os dias saber notícias dela e conversar. Fora ele que lhe dissera da partida de Philippe para a Sabóia e também a cena violenta que, por sua causa, opusera Campobasso ao duque Carlos. O condottiere, ao saber que Fiora pedira a anulação do seu casamento, ficou cheio de esperança e exigiu que lhe concedessem o título de noivo, reclamando ao mesmo tempo autorização para visitar todos os dias aquela que considerava como futura condessa de Campobasso.

Monsenhor contou Battista declarou-lhe que estava fora de questão o vosso casamento com ele, que, no que lhe dizia respeito, se opunha formalmente e que, aliás, tencionava conservar-vos como refém...

Como refém? Mas de quê? E porquê?

. Não sei dizer-vos, madonna. Foi o termo que monsenhor Carlos empregou. Campobasso bateu com a porta, jurando que nunca mais serviria um príncipe que não reconhecia o valor dos serviços prestados.

Partiu? Para onde?

Não ides acreditar: para Santiago de Compostela, em peregrinação!

Fiora desatou a rir. Campobasso de burel e chapéu de peregrino parecia-lhe uma imagem extremamente cómica.

E ele vai para Santiago com a sua tropa de mercenários? Vai ser um belo cortejo!

Creio que vai deixar a condotta no seu castelo de Pierrefort, o que o dispensará de a pagar. Dizem que já há algum tempo que reserva para si mesmo o dinheiro que tem a receber do duque. Também anunciou que conta visitar o duque da Bretanha, que seria um seu parente...

Seja o que for! suspirou Fiora, mas, intimamente, estava satisfeita.

Por um lado, desembaraçara-se de um homem que, agora, achava mais do que incómodo e por outro, no fim de contas, cumprira a sua missão na perfeição. Com efeito, conhecendo o condottierecomo o conhecia, o grande Santiago e o duque da Bretanha resumiam-se a uma única personagem: o Rei de França, junto do qual, certamente, Campobasso iria derramar as suas lágrimas. E fora esse o objectivo da sua missão. O que lhe permitia regozijar-se com o fim de uma aventura que achava pouco gloriosa...

Em contrapartida, aquela excelente notícia vinha acompanhada por outra... que o era menos. Pouco depois da sua entrada em Nancy, a jovem pedira ao núncio que lhe encontrassem Esteban, para que pudesse continuar ao seu serviço. Ora, o jovem Colonna disse-lhe que o castelhano não se encontrava em lado nenhum. Parecia que no dia seguinte à noite em que salvara Fiora do punhal de Virgínio, Esteban volatilizara-se. Nem o chefe da companhia onde fora alistado, nem os outros soldados, sabiam o que lhe acontecera... E Fiora, pela sua inquietação, compreendeu que, no seu humilde lugar, o castelhano ganhara uma pequena parte do seu coração, como Demétrios e todos aqueles que se tinham comportado com ela como verdadeiros amigos.

Aquele desaparecimento fazia com que se sentisse ainda mais desenraizada e a jovem não compreendia por que razão o duque a queria manter perto de si. Dissera-o apenas para se desembaraçar de Campobasso, ou aquela história de a manter como refém era a sério? Naquela cama estrangeira, naquela casa estrangeira, no coração de uma cidade e de um país estrangeiro, a jovem só desejava regressar a Paris para se juntar à sua querida Léonarde, cuja ausência lhe era cada vez mais penosa. O Natal aproximava-se e ela sentia-se apreensiva quanto a essa doce festa, na qual se reúnem aqueles que se amam. Para ela seria o Natal da solidão, o primeiro que iria viver sem o seu pai e sem Léonarde. Mesmo Philippe, essa sombra de marido, estava longe, perdido para sempre... Aos dezoito anos, o coração ainda não esqueceu as alegres ternuras da infância nem a doçura do lar paterno e Fiora chorou durante toda a noite, ela, cujo orgulho detestava as lágrimas, as cinzas ainda quentes do seu palácio incendiado e a sua felicidade destruída.

Eu também fui separado dos meus confiou-lhe na manhã seguinte Battista, ao reparar nos seus olhos vermelhos e se vós não desejardes misturar-vos aos vossos anfitriões na festa, posso vir ter convosco e cantar-vos belas canções da nossa terra...

O que teve por consequência imediata fazê-la chorar mais ainda. Na verdade, estava de uma sensibilidade aflitiva! Beijou o rapaz nas duas faces para lhe agradecer a amizade.

Ora, na véspera do Natal, três cavaleiros, que não se pareciam em nada com os reis magos, surgiram dos caminhos nevados e transpuseram a porta da Craffe: um homem, uma mulher e um rapaz. Eram, por ordem: Douglas Mortimer, soberbo no seu arnês da Guarda Escocesa mas de péssimo humor por se apresentar em semelhante companhia, Léonarde, montada numa mula e meio abafada entre lãs e peles, tão serena quanto o seu companheiro resmungava e, por fim, o jovem Florent, o aprendiz de banqueiro, vencido pelo demónio da aventura, que se pendurara nas saias da velha solteirona, recusando-se furiosamente a separar-se dela e com a esperança, claro, no fundo do seu coração inocente, de rever a bela dama dos seus pensamentos...

Toda aquela gente se viu diante de Olivier de La Marche, um pouco desconcertado com aquela chegada pitoresca:

Devo entregar a monsenhor o duque uma carta do Rei de França e esperar a resposta disse Mortimer no tom rouco que lhe era habitual.

Sereis conduzido à sua presença dentro de instantes... mas, que pessoas são estas? Viajais em família?

Antes que o escocês, que ficara vermelho como um tomate, deixasse sair as palavras que a cólera mantinha presas na sua garganta, Léonarde encarregou-se da resposta.

Eu, da família deste urso malcheiroso? Ficai a saber, sire capitão, que ele foi apenas encarregado por Sua majestade, o rei, de nos proteger, a mim e a este jovem, ao longo da viagem desde Paris. Ficai a saber também que desejo ver o vosso senhor. Eu sou a governanta de donna Fiora Beltrami, que ele retém como prisioneira e eu vim ter com ela, porque não convém que uma jovem senhora da sua qualidade tenha apenas soldados por companhia!

Estou a ver disse la Marche. E este? acrescentou ele apontando para Florent.

Este é o meu jovem criado, ou pajem, como quiserdes. Eu sou dame Léonarde Mercet declarou ela com o tom altivo que teria empregado para dizer: eu sou a rainha de Espanha.

A sério? disse o capitão, meio a sério meio a brincar. O vosso nome, messire?

Douglas Mortimer, dos Mortimer de Glen Livet, oficial da Guarda Escocesa do Mui Cristão Rei Luís, décimo primeiro do nome lançou este, como homem que sabe quem representa...

Aliás, La Marche inclinou-se:

Segui-me!

Alguns instantes mais tarde, o escocês e a velha solteirona dobravam o joelho diante do Temerário, que, soberbo como era seu hábito, dava as suas audiências das terças-feiras na sala dos estados da Lorena. Se Léonarde ficou impressionada com o fausto que a rodeava não o deu a entender e foi com um olhar tranquilo que olhou para o homem que se dizia fazia tremer metade de Europa.

Com todo o cerimonial requerido pelo protocolo, Mortimer, familiar com os usos de corte, entregou ao duque da Borgonha uma carta, nos termos da qual Luís XI, após felicitá-lo pela sua vitória em Nancy e assegurando-lhe a sua fraternal afeição, pedia que fosse entregue ao seu enviado ”a mui nobre e graciosa dama Fiora Beltrami, cujo defunto pai tínhamos em particular estima e amizade e sobre a qual soubemos, com inquietação, que se aventurara na Lorena para ali procurar um seu primo. Deploraríamos que a essa jovem dama, cara ao nosso coração paternal, acontecesse qualquer dano e consideraríamos como um sinal particular de amizade que ela fosse confiada ao nosso mensageiro e à dama que o acompanha, para que seja trazida para cá da cidade fronteiriça de Neufchâteau, onde o senhor conde de Roussillon se encarregará dela e a mandará conduzir até nós...” Seguiam-se as efusões rituais, mas o Temerário percorreu a epístola real com um ar manifestamente carrancudo. Neufchâteau, que aliás se tinha rendido a si, estava a quinze léguas de Nancy e o conde de Roussillon, um dos melhores capitães do Rei, tinha por costume comandar apenas um punhado de homens.

Carlos deixou que a carta se enrolasse por si própria antes de a entregar ao seu secretário, olhando depois por um instante para os dois personagens que esperavam pacientemente:

Sentimo-nos felizes por saber disse ele, por fim que as fronteiras de França estão bem guardadas, mas, na verdade, nunca duvidámos. Quanto a donna Fiora, acreditamos perfeitamente que ela seja cara ao coração do nosso primo o Rei Luís. Infelizmente, não a temos detida...

O duque deixou passar uns segundos sem parecer aperceber-se da palidez súbita de Léonarde, da angústia que lhe enchia os olhos e das sobrancelhas franzidas de Mortimer.

Além disso continuou ele nem sequer a conhecemos como tal. Aqui, temos apenas a condessa de Selongey esposa de um dos nossos melhores capitães e espanta-nos que o Rei ignore esse pormenor. Mas, é certo que não enviaríamos ao Rei de França uma grande dama da Borgonha. Escreveremos nesse sentido ao nosso caro e amado primo. Entretanto, sire Mortimer, sois nosso hóspede até depois do Natal, já que não deveis passá-lo na frialdade dos caminhos. Quanto a vós, madame, sereis conduzida, dentro em pouco, até junto da vossa educanda, obrigada a ficar no seu quarto no seguimento de um... ligeiro acidente.

Quando, uns momentos mais tarde, Nicole Marqueiz introduziu Léonarde no quarto, Fiora, incrédula, fechou os olhos com força, como quando se está em presença de uma luz muito violenta, mas já aquela se lançava para a jovem e a tomava nos braços:

Meu cordeiro! Até que enfim vos encontro!

Os quatro meses de separação que acabavam de suportar pareciam-lhes, agora, quatro séculos e durante um longo momento foi um festival de perguntas e abraços. Cada uma tinha tanto que dizer que não sabia por onde começar...

Nunca conseguiremos disse Fiora se não pusermos um pouco de ordem nos nossos propósitos. Como soubestes que eu estava aqui?

A resposta tem um só nome: Esteban.

Léonarde explicou como, expulsos por Campobasso, o castelhano e o escocês tinham resolvido separar-se: um para regressar e dar conta ao Rei do resultado da sua missão e o outro para ficar nos arredores de Thionville, ou mesmo na cidade, para ver o que se passava no castelo. Quando Fiora partira para Pierrefort, ele seguira, de longe, a escolta da jovem e graças a um pouco de dinheiro encontrara asilo em casa de um dos camponeses que forneciam o castelo com madeira e comida. A entrada em cena de Olivier de La marche não lhe escapara e, tal como na vinda, seguira Fiora até ao acampamento borgonhês, onde se alistara numa companhia franca a fim de poder circular pelo campo.

A chegada da jovem suscitara uma certa curiosidade e Esteban descobrira rapidamente o sítio onde ela estava detida. O que lhe permitira salvá-la do punhal de Virgínio, mas, depois da tomada de Nancy e compreendendo que não poderia fazer nada apenas com as suas próprias forças, fugira em plena noite e fora ter a Paris, de onde Agnolo Nardi o enviara... com Léonarde, que insistira firmemente em acompanhá-lo, para junto do Rei, no castelo de Plessis-lez-Tours.

Estando doravante em paz com a Borgonha prosseguiu Léonarde o nosso sire pensou que nada se opunha a que vos reclamasse. Creio que o Rei tem muita estima por vós e estávamos todos muito aflitos com a vossa sorte.

No entanto, não havia razão para isso. Mas, não me falais de Demétrios? Ele continua junto do Rei Luís?

Não. Está no castelo de Joinville, não muito longe daqui, com o duque Renato II da Lorena. O Rei ”emprestou-o” ao jovem duque para que ele tratasse da velha princesa Vaudémont, sua avó, que está muito doente. Além disso, Demétrios fez o horóscopo do príncipe e o que leu deixou-o tão interessado que já não o quer abandonar. E o Rei consentiu. Quanto a Esteban, foi ter com o patrão e fizemos a viagem juntos até Saint-Dizier... Assim, Demétrios abandona-me? disse Fiora um pouco triste. Pensava que tínhamos concluído um pacto? Mas, aparentemente, a minha sorte interessa-o menos do que a do Menino...

Menino?

É assim que o duque Carlos chama àquele cujas terras e coroa acaba de conquistar.

Podeis ter a certeza que não é nenhum menino. É um homem impressionante. Mas, não achais que é tempo de me dizerdes o que fizestes este tempo todo sem a vossa velha Léonarde?

O relato de Fiora foi mais longo. Fê-lo honestamente, sem concessões por si própria ou por pudor e, por vezes, Léonarde corou ao escutar, mas quando a história acabou a velha solteirona contentou-se em assoar-se vigorosamente, o que, nela, era sinal de grande emoção, e beijou Fiora na fronte.

Gostaria muito de vos ver esquecer tudo isso rapidamente, meu cordeirinho, mas parece-me difícil com este duque Carlos, que insiste em manter-vos aqui.

Ele disse a Campobasso que eu era uma refém.

Foi o que eu ouvi. Mas então, por que disse ele tão altivamente àquele insuportável Mortimer que o lugar da senhora de Selongey era perto dele? Até porque, se bem compreendi, vós acabais de renunciar a essa honra, ao pedir a anulação do vosso casamento?

É estranho, na realidade, mas eu não vos consigo explicar a pessoa do Temerário. Ninguém consegue, creio... talvez nem ele próprio!...

Chegada a noite, as duas mulheres, deixando os Marqueiz seguirem para a igreja de Saint-Epvre para ouvirem a missa da meia-noite, seguiram Battista Colonna que viera, em nome do duque Carlos, convidá-las para a missa na colegial de Saint-Georges.

Era a primeira vez, depois de Notre-Dame de Paris, que Fiora assistia a uma missa. Mas a sua paz com Deus estava feita, porque Ele permitira que Philippe não sucumbisse sob a espada de Campobasso e naquela igreja iluminada, que com os seus grandes braçados de azevinho e visco mais parecia uma floresta encantada, a jovem deixou-se embalar pelas vozes angélicas dos jovens cantores da Borgonha... Cintilante, com as suas mais belas jóias, o Temerário resplandecia no coro fabuloso de esplendor com um manto bordado a ouro e semeado de pedrarias. À sua volta, os seus oficiais, se bem que vestidos com os seus mais ricos trajes, passavam despercebidos...

Será permitido um homem nascido da mulher glorificar-se a si mesmo a este ponto? murmurou Léonarde.

Creio respondeu Fiora que ele considera tudo isto com a maior das naturalidades. Não é ele o grande duque do Ocidente e, a acreditar nos rumores, não poderá ser, dentro em breve, rei? Mas as festas desta noite não constituem, para ele, senão uma etapa. Battista disse-me que, daqui a pouco, vai pegar outra vez em armas para libertar as terras da duquesa de Sabóia e vingar-se dos suíços, que se apoderaram do seu condado de Ferrette e puseram o Franco Condado em maus lençóis...

Que vai ele fazer de nós, nesse caso? Pensa arrastar-nos consigo, como as rainhas da Antiguidade, que eram amarradas ao carro do vencedor?

Ninguém se separa de um refém e ele pretende que eu sou um. Aliás, penso que não será mais penoso para nós do que para os embaixadores estrangeiros que vedes junto dele e que devem segui-lo por toda a parte...

Alguns chh!” enérgicos lembraram às duas mulheres que uma igreja não era um local para conversar. Ambas se calaram e juntaram as suas vozes às dos fiéis que entoavam um cântico de Natal.

1 O Landgraviat da Alta-Alsácia


Passada a festa, tiveram de fazer face a um problema quando, no momento da partida, Mortimer lhes foi dizer adeus e reclamar Florent, que devia levar consigo: o duque não permitia que nenhum francês permanecesse no seu séquito. O rapaz chorou, pediu, suplicou, mas nada feito, até que o escocês lhe declarou com a sua voz tranquila:

Honram-vos muito ao tratar-vos como um homem. No fim de contas, talvez eu consiga obter do duque que deixe o miúdo choramingas que vós sois debaixo das saias das damas!

Foi remédio santo. Florent ficou muito pálido e foi arrumar as suas coisas. Quando regressou em silêncio para se despedir de Fiora e de Léonarde, lançou-lhes um olhar tão desesperado que a velha solteirona, após a partida do rapaz, exclamou:

Este Mortimer é maçador, mas, pelo menos, não está apaixonado por vós, contrariamente a muitos outros e vós nem imaginais como acho isso repousante...

CAPÍTULO XII AS TROMPAS DA MORTE

Os turbilhões de neve varriam a passagem de Jougne, onde não se conseguia ver o caminho. Depois de deixarem Pontarlier e o poderoso castelo de Joux, onde sire d’Arbon, que o ocupava por conta do duque, recebera o seu senhor, entregando a sua cave e despensa à pilhagem, o vento levantara-se até se transformar em tempestade, enquanto o exército subia penosamente para a linha de cumeada entre o Ródano e o Reno.

O exército? De facto, era uma multidão, que se espalhava interminavelmente pela estrada jurassiana. Aquilo evocava o êxodo, porque, para além dos vinte mil homens sob o comando de diversos capitães, havia centenas de carroças transportando as tendas e os pavilhões de cerimónia, as tapeçarias, as arcas das jóias, os trajes sumptuosos, os manuscritos, as pratas, o dinheiro, o fabuloso tesouro que compunha a capela ducal, com as estátuas de ouro dos doze apóstolos, os relicários e objectos de culto preciosíssimos, sem contar com os padres e os cantores e, enfim, todo o aparato da Chancelaria, com os seus escrevinhadores e o seu chanceler Hugonet, móveis e muitas outras coisas... Tudo aquilo destinado a demonstrar, não apenas aos Suíços, mas também à Europa inteira que a autoridade, a força e organização borgonhesas eram sem rival no mundo. Aliás, no espírito do duque Carlos, aquela guerra que ia começar seria rápida e sem quartel: uma simples expedição definitiva, destinada a estabelecer a sua definitiva autoridade.

No alto da passagem, com os pés na neve, o Temerário via desfilar aquele comboio imenso que o enchia de orgulho. Já não era o duque da Borgonha, era Aníbal atravessando os Alpes em pleno Inverno e pouco lhe importava que aquilo fosse o Jura! A sua única pena residia no facto de não possuir nenhum elefante...

Estava ali há duas horas, insensível à borrasca de neve e ao vento cortante, contemplando com avidez aquela afirmação de soberania traduzida em bandeiras, pendões e estandartes. Os que passavam por ele esforçavam-se em mantê-los bem erguidos e endireitar a espinha, apesar da tormenta. E, aparentemente, não fazia tenções de abandonar o lugar...

A seu lado, o seu irmão Antoine e, um pouco mais atrás, envoltos em cobertores até aos olhos, aqueles que estavam mais próximos dele desde que tinham saído de Nancy: o embaixador milanês Jean-Pierre Panigarola e, envolto num grande manto duplo de marta, os cabelos completamente escondidos por um enorme capuz de veludo cor de rubi, um jovem magro, que não era outro senão Fiora. Olivier de La Marche ficara em Salins, sofrendo de disenteria.

Na véspera do dia em que deveriam abandonar Nancy, no dia 10 de Janeiro, o Temerário chamara para junto de si a jovem, completamente curada do seu ferimento. Recebera-a a sós no seu gabinete de guerra, onde examinava um novo tipo de besta que um armeiro alemão lhe fizera chegar às mãos.

Donna Fiora disse ele sem se virar já sabeis, penso, que partimos amanhã para castigar os ladrões e invasores Suíços? Decidi que viajaríeis na companhia de messire Panigarola, embaixador de monsenhor o duque de Milão, que é um dos homens mais sábios e mais amáveis que me foi dado conhecer e como ele nunca está longe de mim, quer dizer que marcharemos em boa companhia.

Monsenhor cortou Fiora perdoai-me por vos interromper, mas por que razão insistis em me levar... e sob que nome? Sou uma refém, e nesse caso porquê? Dissestes a Douglas Mortimer que eu era a condessa de Selongey, mas, no entanto, Vossa Senhoria sabe muito bem que eu pedi a anulação. Uma anulação que vós desejais, aliás, tanto como eu.

Segurando sempre na sua besta, o duque virou-se e olhou para a jovem com um olhar divertido:

No entanto, vós fostes muito bem-educada, donna Fiora! Não vos ensinaram que nunca se questiona um soberano? E eis que me fazeis uma série de perguntas?... Mas, excepcionalmente, vou responder-vos... na condição de me fazerdes um favor...

Um favor? O poderoso duque da Borgonha pede-me um favor?

Evidentemente que peço. Dir-vos-ei daqui a pouco o que desejo. Por agora, vejamos o que me pedistes... Sois uma refém? Num certo sentido, sim. Saber-vos em meu poder... e talvez em perigo, assegura-vos uma certa tranquilidade e a mim a obediência de dois homens...

Dois? Mas, Campobasso partiu, segundo me disseram.

Ele voltará. O importante é que Selongey e ele não passem o tempo a tentarem matar-se um ao outro e a procurar-vos aos quatro ventos. E agora falemos dessa anulação! O núncio foi ter com o imperador Frederico para me assegurar a sua neutralidade durante a guerra que vou empreender. Regulará essa questão quando voltar. Portanto, neste momento ainda tendes direito ao título de condessa de Selongey

Esse não é o meu sentimento e não quero usá-lo.

Como queirais. Nesse caso, será sob o vosso nome fiorentino que sereis amanhã apresentada ao embaixador. A vossa governanta viajará na mais confortável das suas carroças. Quanto a vós... e é aqui que entra o favor que vos quero pedir, seguireis a cavalo... se sabeis montar.

Ainda agora admitistes que eu tinha sido bem-educada, monsenhor.

Perfeito, mas, melhor ainda será se aceitardes vestir o traje que já deve estar no vosso quarto. Um traje... de rapaz.

Fiora desatou a rir:

Se é isso que desejais, monsenhor, é pouca coisa. Eu já possuo um traje masculino, graças ao qual viajei muito comodamente desde Florença.

Se estais acostumada, ainda melhor, mas desejo verdadeiramente ver-vos usar o que vos enviei. É essa... a razão profunda do desejo que tenho de vos manter junto de mim durante esta campanha...

Ao regressar a casa dos Marqueiz, Fiora encontrou, com efeito, alinhados em cima da sua cama, calções justos de seda negra, camisas finas bordadas e uma túnica de veludo de um belo vermelho-escuro, sobre a manga da qual estavam bordadas as armas de Borgonha e um lambel de prata com três pingentes, que a deixaram perplexa. Um capuz do mesmo veludo, com uma medalha de ouro representando São Jorge, uma pesada corrente de ouro, uma soberba manta de cavalo de fino tecido negro forrado com pele de marta e umas botas negras de gamo, forradas, acompanhavam aquele traje, mas a jovem só lhes prestou uma atenção distraída. Contemplava a túnica quando Léonarde entrou com os braços carregados de roupa que ia meter numa arca e Fiora pensou que talvez ela a pudesse esclarecer:

Vós sois borgonhesa disse ela. Deveis saber, portanto, que escudo é este? Monsenhor Carlos mandou-me estas roupas há pouco. Devo vesti-las e cavalgar perto dele.

Léonarde pegou na túnica, mas não respondeu de imediato. Com um dedo sonhador, seguiu o desenho complicado do bordado e, quando a deixou cair, Fiora teve a impressão que tinha empalidecido:

Então? disse ela com impaciência.

Já ninguém usa estas armas. Eram as de monsenhor Carlos quando ele era o conde de Charolais. O lambei de prata é a marca do filho mais velho... Suponho que, como seu escudeiro, Jean de Brévailles devia usá-las...

Ah!

Então era isso! No dia seguinte, quando pararam em Neufchâteau, onde o Temerário devia assumir o comando do exército, Fiora aproximou-se do príncipe enquanto ele mandava verificar os cascos do seu cavalo:

Eu obedeci-vos, monsenhor disse ela mas confesso que não compreendo o porquê este traje. Será... para acentuar uma semelhança?

É respondeu o duque em italiano. É-me muito caro, nesta guerra, ter a meu lado a imagem de um companheiro de outrora... de um companheiro de quem eu gostava muito.

De quem gostáveis? protestou Fiora indignada. Ousais dizer isso quando não fizestes nada para o salvar?

Eu não podia fazer nada. O crime não tinha perdão possível, porque ofendia a Deus, tanto como a humanidade. Era mil vezes preferível que a sua cabeça rolasse no cadafalso, do que enfiá-lo numa enxovia qualquer. Jean era meu amigo. Lemos Plutarco juntos, navegámos juntos ao largo de Gorcum, justámos juntos, bebemos e rimos juntos. Ele podia esperar da minha amizade uma grande posição, uma bela aliança e no entanto... no entanto continuou ele com um brusco lampejo de cólera partiu sem uma palavra sequer, rejeitou tudo, renegou a tudo pelo corpo de uma mulher que era sua irmã. Quando eu o cria puro, era como os outros, como o meu pai, que mal via uma saia ficava louco... pior do que os outros!

Não disse Fiora docemente. Ele foi apenas vítima de um amor impossível, proibido... mas que era, mesmo assim, amor.

Ele olhou-a com uma espécie de desvario nos olhos.

Achais?

Tenho a certeza. E vós também, monsenhor... senão, por que estaria eu junto de vós com estes trajes?

É verdade. Ele fez-me... muita falta. Vós dais-me a ilusão da sua presença, ainda por cima porque tendes mais ou menos a mesma idade que ele tinha então... Bem acrescentou ele em francês acabámos?

O ferrador-mor tinha terminado o seu trabalho. O duque subiu para a sela e juntou-se a trote ao grande bastardo, que o chamava. Fiora viu-o afastar-se sem conseguir compreender de onde lhe vinha aquele bizarro sentimento, tão próximo da piedade, que sentira subitamente...

A partir daí, ele mostrou-se pleno de gentileza, sobretudo durante os quinze dias que passaram em Besançon para que se juntassem ao exército algumas companhias do Franco Condado. Era, até, espantoso constatar que, a partir do dia em que soubera a verdade acerca do nascimento de Fiora, o duque mudara completamente de atitude para com ela. De impertinente e desdenhoso passara a ser quase amigável, quando o contrário teria sido normal. Por vezes, à noite, convidava-a a ir escutar os seus cantores e mesmo, tendo descoberto que ela sabia tocar alaúde e possuía uma bela voz, fazia-a cantar em dueto com Battista Colonna e chegava, até, a cantar com eles. Os únicos beneficiários daqueles concertos íntimos eram Antoine de Borgonha e o embaixador milanês. Fiora tornou-se rapidamente amiga de Jean-Pierre Paniga-rola. Era um homem de quarenta anos, com aquele rosto açanhado e meditativo que se vê em certas estátuas de santos mas deles só tinha a aparência. Fino, culto, sabendo jogar com o humor, era um observador atento da natureza humana e um! excelente diplomata. Escrevia quase todos os dias longas cartas ao duque de Milão, Galeazzo-Maria Sforza, seu senhor e Fiora (( descobriu rapidamente que ele conhecia o Temerário melhor; do que os seus próprios irmãos. Assim como parecia reconhecer-se na política sinuosa de Luís XI, junto do qual” desempenhara com sucesso funções de embaixador antes de a morte de Francesco Sforza, pai do actual duque, grande chefe de Estado e amigo do Rei de França, ter deitado por terra as alianças e virar Milão para Borgonha.,|

O rapaz falso, empanturrado de Platão, Sófocles e Hesíodo, encantava-o, ainda mais porque sabia perfeitamente que era uma mulher encantadora e apreciava as filhas de Eva como, amador esclarecido da beleza sob todas as suas formas. Mais pareceis um florentino disse-lhe Fiora uma noite, | rindo. Creio que tendes as suas qualidades e talvez os seus defeitos... Sinto-me bem como milanês, se bem que a nossa cidade não se possa comparar com a cidade da Flor-de-Lis Vermelha. No entanto, confesso que vos invejo o senhor Lourenço! Que inteligência! Que profundeza de visão! Não vejo que o Rei de França se lhe possa comparar...

Não admirais, portanto, monsenhor Carlos? Panigarola abanou a cabeça e pôs-se a contemplar com ar sonhador a taça de vidro precioso de Veneza cheia de vinho, através da qual as velas de um candelabro faziam cintilar os rubis:!|

Ele fascina-me e assusta-me. É o último representante de uma época, de uma raça em vias de extinção. O último senhor feudal, talvez o último cavaleiro, o aluno de Jacques de Lalaing, sempre cativo dos feitos desse paladino errante que passou a vida a percorrer a Europa quebrando lanças em justas e torneios e medindo-se com as melhores espadas. A vida de todos os dias, com os seus constrangimentos e fraquezas, escapa-lhe por completo. Ficou demasiado cedo muito rico e poderoso... Nunca se preocupou com o seu povo, destinado apenas, segundo ele, a produzir riqueza e poderio guerreiro e é triste ver que da enorme fortuna legada pelo seu pai, o duque Filipe, não resta nada, à excepção das jóias e dos objectos preciosos...

Nada? Eu sei que ele faz apelo a bancos estrangeiros, mas nunca pensei...?

Que tivesse chegado a esse ponto? Infelizmente é verdade. Ele vive num sonho de glória e hegemonia quase europeia, porque se acha o maior capitão do seu tempo. Infelizmente para ele, está confrontado com um Rei que é, talvez, o homem mais inteligente e mais escrupuloso de todos. O soberbo ceptro dourado pode muito bem ser apanhado na teia que a ”aranha universal” tece pacientemente...

Mas o Rei Luís não assinou a trégua de Soleuvre?

Assinou, mas não imaginais que ele fica quieto? É certo que as suas tropas estão imóveis nas fronteiras e que ele se recusou a ajudar o duque da Lorena para não renegar a assinatura de maneira demasiado evidente, mas faz a guerra de outra maneira.

Como?

A filha de Francesco Beltrami... que eu tive o prazer de conhecer, deveria compreender-me, porque a guerra do Rei Luís é uma guerra económica. Ele tem, é certo, um poderoso exército, mas é o seu ouro que ele faz marchar e podeis estar certa que os Suíços, que nós vamos atacar levianamente, receberam uma boa parte. Além disso, Luís enfraquece o comércio flamengo e as feiras borgonhesas com uma concorrência sistemática. Os seus navios desviam os barcos genoveses e venezianos dos portos borgonheses de Anvers e do Dique, que abastecem Bruges, o que enraivece os Flamengos. Proíbe as expedições de trigo... A sua mão está em toda a parte... Conseguiu reconciliar Sigismundo de Áustria e os Cantões, até então inimigos ferozes. Expulsou, sempre com a ajuda do ouro, os Ingleses de França...

Não havia só ouro. Também havia vinho e provisões...

Eu sei. Os parisienses até fizeram uma canção.

É inútil acrescentar que monsenhor Carlos achou escandalosas, não só a canção, como a maneira como o Rei se desembaraçou de um inimigo acrescentou Panigarola, rindo...

Graças a ele, nessa noite, Fiora não se abandonou demasiado às penas e desencantos que a assaltavam: há um ano que pusera a sua mão na de Philippe e se unira a ele, acreditando que seria para sempre. Mas o fim da noite foi mais penoso, porque, a despeito da fadiga de uma jornada a cavalo com um tempo terrível, não conseguiu dormir nem um pouco...

No dia 11 de Fevereiro de 1476 o Temerário conseguiu, aliás sem luta, a sua primeira vitória. O interminável cortejo das suas tropas transpôs a passagem de Jougne e instalou-se em Orbe, que estava a uma distância de três léguas e meia da passagem e a uma distância igual de Grandson, primeiro objectivo da expedição. Ao mesmo tempo, as lanças italianas de Pierre de Lignana, que constituíam a guarda avançada e se tinham dirigido para o lago Léman, recuperaram Romont aos confederados. Mas o mais importante era Grandson, uma cidade com um poderoso castelo, situada na extremidade sul do lago de Neuchâtel.

De facto, e na ocorrência, o Temerário não quis senão reconquistar o que, um ano antes, lhe pertencia. Em 1475, as gentes dos cantões de Berna, Basileia e Lucerna, decididas a conquistar a região de Vaud, pertencente à Sabóia, fizeram saltar esse ferrolho borgonhês cujo senhor, Hughes de Chalon-Orange, se aborrecia então em frente de Neuss com o resto do exército do duque Carlos. Gandson, solidamente defendida pelo bailio Pierre de Jougne, mas invadida pelos camponeses fugidos dos campos, não resistiu durante muito tempo à fome e à artilharia pesada dos Suíços. No Outono, a região de Vaud caiu nas suas mãos. Apenas Genebra escapou à devastação ao pagar um resgate de 26 000 florins de ouro, provenientes das jóias das damas da cidade e dos sinos das suas igrejas...

No dia 19 chegam, por fim, diante de Grandson com um tempo verdadeiramente terrível: chove, neva e está muito frio:

Não se pode dizer que a França e a Borgonha vos tenham reservado os seus melhores sorrisos disse Léonarde, a quem Fiora se juntara na carroça, enquanto as tendas e os pavilhões se erguiam. À parte a canícula só tendes conhecido a chuva, o vento e as piores intempéries... Já se viram semelhantes Outonos e Invernos?

Se calhar já vos esquecestes da vossa juventude respondeu Fiora. Em Florença o clima é tão doce!... É verdade que, quando perdemos alguma coisa, ou alguém, só nos lembramos das suas qualidades.

O Temerário escolhera estabelecer o seu acampamento perto de Giez. Os seus pavilhões púrpura e dourados coroaram soberbamente uma colina, ao mesmo tempo que outras quinhentas tendas de uma grande riqueza e centenas de estandartes multicores estendiam, sobre os arredores, o mais fabuloso dos tapetes. O resto do acampamento, em ”campo raso”, cobria a planície em semicírculo entre a cidade e a montanha e estendia-se até ao Arnon, um rio estreito que desaguava no lago cerca de uma légua mais longe.

Grandson não nos vai dar muito trabalho confiou o duque Carlos a Panigarola e a Fiora, enquanto, juntos, viam a noite cair sobre o lago, cujas margens distantes se perdiam numa bruma gelada e sobre a cidade escondida por trás das cinco torres do seu castelo. Há três semanas, os burgueses apoderaram-se do chefe da guarnição de Berna, Brandolphe de Stein e entregaram-no-lo... Está prisioneiro na Borgonha.

Nesse caso, por que é que as portas não se abriram e nenhuma delegação veio ter connosco, monsenhor? disse o embaixador. Eu acho que eles vão defender-se com muita garra. Os Suíços são bons soldados...

Esses vaqueiros, esses camponeses? disse o duque, desdenhoso. Não vamos ter qualquer dificuldade em varrê-los. Que tenham cuidado com a minha cólera, porque sou capaz de levar a guerra aos cantões da Liga Alta.

1 Tão soberbamente que a recordação ficou e a colina chama-se, ainda hoje, -Duque de Borgonha”.

2 Berna, Friburgo, Basileia, Zurique, Lucerna, Uri, Schwyz, Soleure e Unterwalden compunham a Liga Alta, enquanto dez cidades alsacianas formavam a Liga Baixa, também ela inimiga do Temerário depois das exigências de tributo do seu bailio, Pierre de Hagenbach.


O que eu não aconselho a Vossa Senhoria, porque em alguns deles a rudeza das montanhas duplica-lhes a coragem...

Veremos!

O cerco de Grandson durou nove dias, durante os quais as bombardas, as colubrinas e os falconetes dirigiram, mesmo de noite, um fogo mortífero sobre a pequena cidade. No interior do castelo produziam-se incêndios, acesos por archotes e pela explosão do paiol, que destruiu uma parte da bela residência senhorial... Aliás, o fim era previsível, já que era impossível quinhentos homens lutarem contra quinze mil. Em breve, bloqueada por todos os lados e desmoralizada pela ausência do seu chefe, a guarnição rendia-se. Então, começou o horror... De pé, por trás do duque no meio dos senhores que compunham o seu estado-maior, Fiora, Panigarola e Battista Colonna, petrificados, assistiam à carnificina. Do alto da torre Pierre, os Borgonheses precipitaram os setenta defensores do caminho de ronda no meio de risos e piadas grosseiras, gritando que era tempo de aprenderem a voar sem asas... Entretanto, na base das muralhas, os outros quatrocentos soldados da guarnição eram enforcados, em grupos de três ou quatro, nas árvores em redor do castelo, ou atirados ao lago com uma pedra ao pescoço...

O embaixador milanês não conseguiu reter um protesto indignado:

Isto é maneira de tratar soldados, monsenhor? Eles bateram-se porque era o seu dever. Perdoai-me, mas isto é indigno de um grande chefe de guerra.

Ora, ora! Esta gente não merece outro tratamento. Lembrai-vos que outros como eles devastaram várias cidades da região de Vaud... E há-de acontecer o mesmo a todos os Suíços que me caírem nas mãos.

Mais uma vez, monsenhor, são soldados! E renderam-se...

Acho-vos muito sensível, Panigarola! Isto servirá de lição a esta cambada de mercadores, condutores de bois e caçadores...

Alguns desses caçadores perseguem a águia e o urso.

E eu digo que é uma infâmia! gritou Fiora, que já não conseguia conter a indignação. Matar homens desarmados é uma cobardia, à qual me recuso assistir por mais tempo!

Girando nos calcanhares e empurrando os que estavam perto de si, a jovem correu na direcção do acampamento e entrou na sua tenda de rompante, onde Léonarde lia o seu livro das horas:

Vinde, Léonarde! Vamos partir. Vou procurar dois cavalos. Embalai depressa o pouco que possuímos!

O que é que se passa?

O duque Carlos está a assassinar os infelizes que se renderam esta manhã. Aconteça o que acontecer, não fico nem mais um minuto com este carrasco!

Até que enfim! suspirou a velha solteirona, precipitando-se para um saco de couro que começou a encher. Há dias que esperava por isto!

Estais contente por partir? Com este tempo e sem que eu saiba para onde vamos?

Mesmo que chovessem alabardas e granizo da grossura de um punho. Quanto a saber para onde vamos, dir-vo-lo-ei dentro de uma hora. Ide buscar os cavalos!

Um momento mais tarde, as duas mulheres galopavam pela estrada de Montagny na intenção de refazer o caminho percorrido à vinda e transpor de novo a passagem de Jougne, que era o único itinerário que conheciam. O caminho aberto pela passagem do exército e da artilharia seria, pelo menos, mais fácil de seguir...

Subitamente, numa curva do caminho, viram erguer-se na sua frente o que lhes pareceu uma parede de ferro: cinquenta cavaleiros armados até aos dentes, à cabeça dos quais Fiora, cujo coração parou, reconheceu as águias de prata sobre fundo azul. Aliás, a viseira erguida do elmo não deixava qualquer dúvida sobre a identidade do seu proprietário. Fiora hesitou um instante, mas constatou rapidamente que qualquer escapatória era impossível e decidiu fazer-lhe frente...

A despeito do seu traje, Philippe reconheceu-a imediatamente.

Vós?... E vestida dessa maneira? Mas, aonde ides? E antes que Fiora pudesse responder acrescentou: Sinto-me feliz por vos voltar a ver, dame Léonarde, mas pensava que tínheis mais juízo.

Selongey fez avançar o seu cavalo até tocar no de Fiora e não conteve um sorriso:

Que rapaz encantador! Mas, dizei-me, por amor de Deus, que fazeis aqui?

É evidente, parece-me? Parto, fujo, salvo-me! A refém tem carta branca! lançou ela com cólera. Nem por todo o ouro do mundo ficarei aqui mais um instante, aconteça o que acontecer, junto do monstro do vosso duque!

O duque, um monstro? Mas, que vos fez ele?

A mim? Nada... ainda que isso possa ser discutido, mas a questão não é essa. Acabo de ver como ele trata os soldados de Granson, cuja única falta foi terem ousado resistir-lhe. Renderam-se à sua mercê e agora estão a ser massacrados, às dezenas. Atiram-nos do alto das muralhas, enforcam-nos ou afogam-nos, para que nem um possa pedir, para o vosso senhor, a vingança do céu. O que não o impede de, um dia, a ter!

O silêncio que se seguiu traduzia o constrangimento de Philippe, que empalidecera:

Quando a cólera o atinge pode ser medonho, eu sei e...

Em cólera, ele? Nem por sombras. Sorri e chega a rir, de tal maneira lhe agrada o espectáculo...

Aliás, é useiro e vezeiro neste tipo de coisas disse calmamente Léonarde. Ouvi falar dos seus feitos em Dinant e em Liège, onde só os gatos se salvaram!

Deixai, querida Léonarde! Não conseguireis convencer messire de Selongey O Temerário é um deus... mas eu, que prefiro servir um mais clemente, peço-vos que nos deixeis passar, para que possamos continuar a nossa viagem.

Estais assim tão apressadas? contemporizou Philippe. Confesso que esperava ver-vos quando chegasse ao acampamento...

Não temos muita coisa a dizer a nós próprios, Philippe. Pedi a anulação do nosso casamento. Assim, sereis livre e o vosso querido duque ficará contente. Creio que ele vos reserva uma grande dama qualquer...

Que quereis vós que eu faça? gritou Selongey, aborrecido com o tom de troça da jovem. Quanto à anulação, não a quero. Não amei nem nunca amarei outra, Fiora, por mais que tenhais feito...

Que ”eu” tenha feito? Nesse caso, vós é que tendes algo a reprovar-me?

Parece-me que sim! Já vos esquecestes de Thionville?

É inútil gritar, alegrando os vossos companheiros com as nossas querelas. Vejo mais de um a sorrir. É verdade que as distracções anódinas são raras neste país. Mas dentro de alguns instantes podereis oferecer-lhes uma coisa muito melhor: as árvores têm frutos humanos. O duque explicar-vos-á esse cúmulo da comicidade. Agora, quero passar!

Não vos deixarei partir! disse Philippe, agarrando nas rédeas do cavalo de Fiora.

Aliás, nesse instante, um novo cavaleiro, a galope, desembocava na curva do caminho, que teve de dar provas de uma grande habilidade para deter a sua montada antes de uma colisão.

Donna Fiora! exclamou Battista Colonna. Deus seja louvado! Encontrei-vos!

- Andáveis à minha procura?

Monsenhor é que anda à vossa procura. Ordenou que regressásseis imediatamente ao acampamento. Tenho ordens para vos levar, custe o que custar.

Não, Battista. Regressai e dizei-lhe que me recuso a regressar. Ele exigiu que eu o seguisse nesta guerra, mas já não tenho coragem. Vi mais do que posso suportar. Dizei-lhe!...

Ali!

O jovem corou e virou a cabeça.

É a vossa última palavra? murmurou ele.

Absolutamente... Perdoai-me, Battista! Sei que vos confio uma missão desagradável, mas...

Creio que ainda é pior do que imaginais interveio Philippe. Que acontecerá se donna Fiora não regressar connosco, Colonna? Juraria que respondereis... com a vossa vida?

- Não é possível! protestou Fiora. Ele não pode responsabilizar este rapaz pela minha conduta?

Pelo contrário, é muito possível. Quando o duque Carlos se enfurece, deixa de ser razoável, não se controla... e talvez vós o tenhais ofendido com gravidade? Que lhe dissestes?

Não sei exactamente, mas creio que falei em infâmia... em cobardia. Battista, peço-vos, dizei-me a verdade! Messire de Selongey tem razão?

Como única resposta, o jovem Colonna baixou a cabeça...

É indigno! disse Fiora com mágoa. Como é possível abusar-se assim do poder? E vós, Philippe, como é possível servirdes um tal senhor?

Conhheço os seus defeitos, mas também as suas qualidades. Além disso, recebeu o meu juramento de fidelidade quando me armou cavaleiro e quando me conferiu o Tosão de Ouro...

Eu também recebi o vosso juramento disse Fiora docemente.

Estão ambos ligados. Eu regresso para junto dele para me bater a seu lado contra os Suíços, cujo exército se reúne. Por outro lado, trago uma mensagem da duquesa de Sabóia, que deixou Turim e vai para Genebra. Tenho de vê-lo... mas vós, se tudo isto vos é demasiado penoso, parti! Regressai à Borgonha! Esperai-me em Selongey! Eu levo Battista e, podeis acreditar-me, não lhe acontecerá nada! Respondo por ele!

Ambos se olharam por um instante de olhos nos olhos e qualquer coisa no coração de Fiora se abriu, se iluminou. Talvez os tempos dolorosos estivessem a chegar ao fim e talvez a felicidade pudesse renascer? O olhar de Philippe ardia de amor, como na noite de Fiesole e, por aquele olhar, Fiora sabia que estava pronta a todos os sofrimentos... A jovem sorriu-lhe com uma ternura infinita.

A menos que os mate, aos dois! É um risco que eu não quero correr... Regressemos, Battista! E vós, Philippe, continuai o vosso caminho, mas... por favor... tende cuidado!

A jovem pousou a mão na manopla de ferro e uma faísca de alegria acendeu-se nos olhos cor de avelã do jovem:

Como é possível falar de amor à dama dos nossos pensamentos com este ferro todo em cima! murmurou ele. Não penseis mais nessa estúpida anulação, minha querida! Vós sois a minha esposa bem-amada... e é bom que o Temerário se habitue à ideia!

Um quarto de hora mais tarde, Fiora e Léonarde estavam de regresso ao acampamento dos borgonheses. Battista Colonna deixou-as na sua tenda e antes de ir dar conta da sua missão pôs um joelho em terra diante da jovem:

Nunca esquecerei o que acabais de fazer por mim, madonna. Podeis pedir-me a vida, se um dia tiverdes necessidade dela...

Esse dia nunca chegará, Battista, mas agradeço-vos! Quando ele se afastou, a jovem virou-se para Léonarde que,

com a grande filosofia que a caracterizava, tirava as roupas dos sacos para as meter de novo nas arcas:

Que queríeis dizer há pouco quando me dissestes que falaríamos mais tarde do local para onde poderíamos ir?

Léonarde não respondeu de imediato, como se hesitasse e depois, tirando de um estojo de veludo um rolo de pergaminho, segurou-o nas mãos:

Pensava dar-vos isto apenas depois de recuperarmos a nossa liberdade, mas, no fundo, posso entregar-vo-lo agora: o Rei Luís doou-vos um pequeno castelo no Loire, não muito longe da sua residência de Plessis-lez-Tours, para vos agradecer os sofrimentos passados ao seu serviço. Aqui está o título de propriedade... e uma mensagem do Rei...

Ela estendeu-lhe o rolo, que Fiora repeliu:

Creio que nunca o habitarei. A minha vida, no fim de contas, talvez se fixe na Borgonha. Oh, Léonarde, não imaginais como me sinto feliz! Nunca imaginei que isto fosse possível. Parece-me que regresso à vida depois de uma longa, longa doença... Devolveremos isto ao Rei com um grande agradecimento.

Sem dúvida, sem dúvida... mas, não nos apressemos! Algo me diz que ainda não acabastes com monsenhor Carlos. Ele é um homem com quem é sempre preciso contar...

E Léonarde arrumou cuidadosamente o estojo de veludo vermelho.

Para grande surpresa de Fiora, o Temerário, quando a viu na manhã seguinte, não fez qualquer alusão ao que se passara, mas disse ao jovem Colonna, suficientemente alto para ser ouvido pela jovem:

O que eu disse ontem também é válido para amanhã. Confiei-te uma pessoa que tenciono manter comigo, Battista! Vela para que ela não se volte a afastar...

O sorriso da jovem reconfortou o rapaz. Por nada deste mundo Fiora se afastaria do acampamento borgonhês, já que Philippe regressara...

Que alegria ao vê-lo aproximar-se do pavilhão ducal com o grande bastardo para receber ordens! Estiveram frente-a-frente por um instante e a multidão enfeitada que se comprimia em redor do Temerário desapareceu. Mas esse instante foi muito curto e tiveram de regressar à terra. Philippe ia voltar a partir com Antoine e a guarda avançada do exército, que o duque encarregava, para preparar o seu próximo avanço para Neuchâtel, de se apoderar do castelo de Vaumarcus, chave da passagem ao longo do lago.

Com efeito, a longa planície acidentada, que se estendia entre os montes do Jura e o imenso lençol de água, tinha meia légua de extensão junto de Grandson, mas ia-se retraindo até se ver cortada, por fim, por um esporão arborizado que, da montanha, descia até à margem do lago. Duas estradas, apenas, permitiam transpor aquele obstáculo: uma, a ”Via Detra”, que subia ao longo do flanco da montanha o traçado de uma antiga via romana e a outra, que costeava o lago e cuja extensão se perdia para norte. Vaumarcus impedia essa segunda via...

O duque explicou:

A nossa bela prima, a senhora duquesa de Sabóia, avisou-nos contra os rumores que correm na região de Vaud. Alguns milhares de homens dos Cantões, comandados pelos de Berna, estariam reunidos em Neuchâtel, preparando-se para marchar contra nós. Não são grande coisa contra os nossos guerreiros, mas, mesmo assim, vamos passar-lhes à frente...

Por que não esperá-los aqui? disse o grande bastardo. O acampamento está bem protegido, tanto pelo leito do Arnon, como pelos fossos e armadilhas que montámos e os nossos canhões. Além disso, esses montanheses têm pouca cavalaria. A nossa, na planície, pode estender-se à vontade...

Talvez, mas eu creio que o nosso melhor aliado é a rapidez. Tomai Vaumarcus e apoiai-nos. Em seguida, porei o exército em marcha. O efeito de surpresa jogará a nosso favor e cairemos em Neuchâtel antes que eles tenham tempo de se organizar.

Ides, nesse caso, levantar o acampamento?

Não. Não há pressa. Já vos disse, a rapidez é a nossa melhor arma, e as carroças, os registos da Chancelaria e as mulheres todas que arrastamos connosco são um empecilho.

Podeis crer, vamos fazer um passeio militar e chegaremos a Neuchâtel sem sequer desembainharmos as nossas espadas.

Levais os embaixadores convosco?

No que me diz respeito disse Panigarola seguirei monsenhor, a menos que ele mo proíba. Não sou os olhos e os ouvidos do meu nobre senhor? E, por vezes, a sua voz...

Vós sois mais do que um embaixador, porque vos temos amizade disse o duque amavelmente. Ireis a nosso lado...

Espero que sejais o único? perguntou audaciosamente Philippe com os olhos postos em Fiora. Alguns pajens parecem-me um pouco frágeis para o tamanho da armadura...

O milanês surpreendeu o seu olhar e sorriu:

O senhor duque deixa os seus tesouros no acampamento. Com a sua permissão, farei o mesmo ao que ele me confiou.

Na madrugada de dia 1 de Maio o castelo de Vaumarcus caía nas mãos dos Borgonheses, que nele deixaram uma guarnição e na madrugada do dia 2 de Maio o exército agitava-se para o que o duque apelidara de ”um passeio militar”...

A recordação dessa manhã friorenta permaneceria durante muito tempo na memória de Fiora. De pé à entrada da tenda, envolta num manto forrado que o duque Carlos lhe dera, a jovem viu-o afastar-se na planície, qual estátua de ferro coroada com um leão de ouro, sobre o possante Moro, o seu cavalo favorito, cuja carapaça de aço o transformava num animal mitológico, e sob a flâmula ondulante do seu estandarte, seguro por um cavaleiro porta-bandeira. À sua volta, os cavaleiros do Tosão de Ouro, que se distinguiam apenas pelos seus escudos: um mundo fantástico de grifos, leopardos, águias, touros, quimeras e sereias... Uma flor-de-lis dourada, cujas pontas eram pedras preciosas, dançava sobre a cabeça do cavalo ducal, símbolo irrisório e jamais abandonado do sangue real francês, que, entretanto, o Temerário detestava...

O dia que nasce está cinzento, o céu descorado... À esquerda, os montes Aubert e Chasseron estão ainda cheios de neve e o

1 Inquieto, o duque de Milão tinha enviado, três embaixadores extraordinários, Palavicini, Visconti e Grimaldi, para estar ainda mais bem informado. O Temerário recusou ficar com eles e devolveu-os a Orbe.


lago tem reflexos de mercúrio... Ao longe, a guarda avançada, de regresso de Vaumarcus, serpenteia através das vinhas na ”via Detra”, ao mesmo tempo que o grosso do exército contorna Grandson para seguir o caminho da margem e acabar por desaparecer. Mas aquele exército tem um ar bizarro para quem o observa: o duque não tomou o cuidado de o preparar para a batalha: progride sem disciplina e mesmo numa espécie de deixa-andar. É verdade que, em princípio, não vai combater, antes percorrer uma certa distância para surpreender os Suíços na sua própria casa... Como se esperasse encontrá-los à mesa.

O que o Temerário nem sequer imagina é que em Neuchâtel está um exército composto por soldados de elite, os melhores do país, que tem quase tantos guerreiros como habitantes machos. Os de Basileia, vindos com um contingente de Estrasburgo, os de de Friburgo, de Soleure, de Bienne, de Baden e de Turgóvia. O magistrado Hassfiirter trouxe de Lucerna mil e novecentos homens. Heinrich Gõldly e Hans Waldmann comandam os de Zurique, enquanto Schachnachthal e Hallwyll estão à cabeça de sete mil homens de Berna. Schwyz enviou um terço da sua população sob o comando de Rudolph Reding, ou seja, mil e duzentos homens e os pequenos cantões montanheses de Uri e de Unterwalden mandaram cada um quinhentos. Ao todo quinze a vinte mil homens, que também eles, ao mesmo tempo que os Borgonheses, se puseram em marcha para Grandson para vingar os seus irmãos massacrados... Carlos vai encontrar a mais temível infantaria da Europa, mas ainda não o sabe e cavaqueia agradavelmente ao longo do caminho com o seu outro meio-irmão Baudoin, com o príncipe de Orange, com Jean de Lalaing e Olivier de La Baume...

Por volta do meio-dia, Fiora e Battista, que jogavam xadrez, pararam e viraram-se simultaneamente para norte. Ouvia-se, ao longe, um barulho estranho: uma espécie de mugido longo que a distância atenuava, mas que, no local, devia ser assustador. Aquilo parou, começou de novo e a jovem sentiu um arrepio gelado percorrer-lhe a espinha:

O que é aquilo?

Por minha fé, não sei disse Léonarde, que cosia sentada a uma mesa e que fez o sinal da cruz.

Ouvi dizer disse o pajem com a voz alterada que os montanheses suíços têm grandes trompas, que se podem ouvir a várias léguas de distância... Se é isso, quer dizer que...

Que o duque, que não esperava, encontrou os Suíços acabou Fiora... Meu Deus! Este barulho terrível gela-me o sangue.

Juntos, a jovem e o rapaz saíram da tenda. O mugido calara-se e o silêncio era, agora, total. Em Grandson, onde, na margem, os cadáveres dos supliciados ainda permaneciam nas árvores, não havia qualquer movimento. Nos caminhos de ronda, os guardas estavam igualmente imóveis, escutando também eles... Então, elevou-se um grande rumor...

É demasiado longe para se ver qualquer coisa disse Battista mas está a haver um combate, além!...

Mais ninguém, a partir dali, falou. Com o coração apertado, Fiora pensou em Philippe. A sua valentia era conhecida. Devia estar no coração da batalha, sempre pronto a dar a vida pelo seu duque... Então, a jovem foi ajoelhar-se junto de Léonarde que orava, e partilhou a oração com todo o seu coração...

Foi a meio da tarde que aconteceu a catástrofe. Subitamente viram o exército borgonhês, parecido com uma enorme vaga, refluir espalhado pela planície, em desordem, homens, cavalos e carros, numa terrível confusão, ao mesmo tempo que se ouviam de novo e cada vez mais próximas as terríveis trompas de Uri e de Lucerna e que um enorme ”Salve-se quem puder!” conseguia abafar.

Em fuga! articulou Battista, espantado. O exército está em fuga!...

O que se seguiu foi, para Fiora, como um pesadelo. Panigarola surgiu coberto de poeira e manchas de sangue:

Depressa! Aos cavalos! Temos de nos juntar ao duque!...

Alguns instantes mais tarde, Fiora viu-se a galopar na direcção de Orbe com Léonarde, Battista e o embaixador, ao qual se tinham reunido o seu secretário, servidores e cavalos. Aliás, não iam sós: todos aqueles que guardavam o acampamento fugiam, a pé, a cavalo ou de carroça, sem saber para onde iam, aterrorizados com os mugidos que se aproximavam cada vez mais...

Que se passou? perguntou Fiora.

- Uma coisa incrível: quando algumas das nossas tropas se desdobravam, as outras, que seguiam em linha, tomaram aquela manobra por uma íxiga. Ainda por cima porque os bandos de suíços, saindo da floresta, aprestavam-se para atacar de flanco. Foi o pânico... uma derrota sem precedentes, impensável e absurda. Dois terços do exército fugiram sem terem combatido...

- Nesse caso, confrontastes-vos com os Suíços?

- Sim. E, confesso, foi terrível. Vi surgir, de repente, uma falange enorme: uns oito mil homens marchando encostados uns aos outros, erguendo na frente uns chuços duas vezes mais longos do que as nossas lanças, um ouriço-cacheiro gigantesco, sobre o qual flutuavam trinta bandeiras verdes e um estandarte branco. Aquela gente combate de braços nus, vestidos com umas meias couraças por cima de jaquetas de couro e a cabeça coberta com chapéus de ferro. Têm o rosto barbeado e anéis de ouro nas orelhas. Parecem saídos de um conto fantástico...

e semearam o terror...

Virando-se na sela, Fiora conseguiu ver o imenso acampamento abandonado com as suas tendas magníficas, o seu imenso material e os seus canhões. Um raio de sol vermelho, aparecido subitamente por entre duas nuvens cinzentas, fez brilhar a esfera de ouro sobre os grandes pavilhões púrpura do Temerário:

- O... duque Carlos vai mesmo abandonar tudo aquilo? Panigarola encolheu os ombros:

- É insensato, não é? Mas nós tivemos muita dificuldade em impedir que ele se atirasse para o meio do inimigo. Arrastámo-lo à força... Quanto ao acampamento, os Suíços vão ficar com o mais fabuloso saque da História...

1 Fabuloso, de facto. Para além da totalidade do acampamento com os seus pavilhões, víveres, cavalos, armas, canhões e todo um material suficiente para equipar um exército, os Suíços apoderaram-se das estátuas de ouro, dos relicários e outros objectos preciosos da Capela ducal, do rosário de Filipe, o Bom, feito de pedras preciosas, do serviço de prata, do Grande Selo de Estado e do do grande bastardo Antoine, centenas de trajes bordados a ouro, tapeçarias admiráveis, a cadeira dourada do duque e o seu fabuloso gorro de cerimónia e, enfim, das suas jóias, únicas no mundo: o Grande Diamante de Borgonha, que nunca mais foi encontrado, outro que ficará conhecido como -Sanc-y, um grande diamante em forma de junquilho a que se chamará «o Florentino-, a Rosa de Iorque-, a Plumette» feita de pérolas, rubis e diamantes, os Três Irmãos» já citados, três pérolas enormes: o Peregrino- e o Sem igual-, a ordem da Jarreteira do duque ornamentada com diamantes e pérolas, o seu colar da Grande Ordem do Tosão de Ouro, uma jóia fabulosa que pesava vários quilos e outras jóias ainda que compunham um tesouro digno das Mil e Uma noites, os mais ricos trajes do Temerário, as suas arcas de ouro e prata em moeda e cem outras coisas. Em resumo, uma chuva de riquezas que se abateu sobre a Suíça, podendo dizer-se que foi o começo da fortuna dos Cantões. É preciso acrescentar que os Fugger puderam comprar a preços mais do que razoáveis, a gente que não conhecia o seu valor, jóias que se cifrariam, hoje, em milhões de euros. Digamos, enfim, que os museus helvéticos possuem numerosos objectos provenientes de Gandson. Outras peças encontram-se no tesouro de Viena e certas jóias fizeram parte da Coroa de França, de Inglaterra, da Áustria e da Toscânia. O -Sanc-y-, comprado pelo presidente Giscard d’Estaing, regressou a França.


- Creio - acrescentou ele refreando o seu cavalo - que podemos abrandar o passo. Ninguém nos persegue... Os Suíços têm pouca cavalaria. Além disso, a pilhagem vai mantê-los ocupados durante muito tempo.

- Onde está o senhor duque? - perguntou Battísta.

- À nossa frente. Juntar-nos-emos a ele em Nozeroy, no Franco Condado. Mas repousaremos um pouco no albergue de Jougne. Creio - disse ele com um meio sorriso - que donna Léonarde vai gostar.

- Gostaria antes, messire embaixador, que me poupásseis às alegrias do galope, se bem que seja sempre interessante uma experiência nova...

Um punhado de homens em redor de um príncipe desvairado de mágoa e furor impotente, foi tudo o que, nessa noite, atingiu a pequena cidade de Nozeroy, erguida sobre uma colina varrida pelos ventos, como uma mão estendida para o céu. O exército, o grande exército do duque Carlos, já só era uma recordação. Não que tivesse havido muitos mortos, mas no seguimento das tropas italianas, que se tinham amedrontado, todas as outras se tinham espalhado, dispersado em todas as direcções. Ao abandonar ele próprio o campo de batalha, o duque dera ordens para que se tentasse impedir um pouco aquele pânico, mas fora impossível. Os soldados, surdos e cegos, tinham fugido como uma horda de cervos diante de um incêndio na floresta.

Na manhã descorada, os bravos habitantes da pequena cidade viram passar, sempre magnífico com as suas armas esplêndidas, um homem pálido, praticamente sem qualquer sinal de vida e cujo olhar, fixo no horizonte, não olhava para ninguém.

Prosseguia o seu caminho na neve que abafava o passo dos cavalos, marchando na direcção do castelo que o ia acolher e todos se inclinavam. Mas ouviam-se alguns sussurros, que acompanhavam o vento da manhã, porque entre os cavaleiros que escoltavam o duque não ia o senhor de Nozeroy, Hughes de Calon-Orange. Para não estar ali, a fim de abrir o seu castelo ao senhor que amava, era porque lhe acontecera alguma infelicidade e a tristeza caiu sobre Nozeroy, para além das sombrias nuvens no céu. As pessoas saudavam, mas quase escondendo-se e benzendo-se como diante de um funeral. E o castelo fechou-se sobre o príncipe que acabava de olhar de frente e pela primeira vez o rosto da derrota... Parecia ferido de morte.

Porém, quando Panigarola e os seus companheiros se lhe juntaram um pouco mais tarde, encontraram um homem fervilhante de actividade. Enviava homens por todas as estradas, para que lhe trouxessem o maior número possível de fugitivos, expedia mensageiros para a Lorena e para o Luxemburgo para que lhe preparassem artilharia, para a Borgonha e para Besançon para conseguir víveres e dinheiro. E, sobretudo, falava, falava, ele que era tão silencioso. E explicava: aquela batalha de Grandson não fora senão um acidente devido à cobardia dos seus soldados italianos, antes de mais, mas também dos picardos, dos ingleses e dos valões. Quando conseguisse reconstituir novas tropas, com autênticos bravos, regressaria para combater os Suíços:

Dentro de oito dias, mais ou menos declarou ele a Panigarola, siderado reformaremos o acampamento em Salins, a duas léguas daqui. Olivier de La Marche, a quem escrevi e que já deve estar restabelecido, tomará todas as providências necessárias...

Em seguida, virando-se para Fiora, que o olhava com uns grandes olhos incrédulos:

Não tivestes muita sorte na vossa primeira guerra, mas prometo-vos que tereis mais em breve... muito em breve.

Monsenhor murmurou ela perdoai-me por ousar questionar-vos, mas... tendes notícias de... do conde de Selongey?

1 Os Suíços enviariam, mais tarde, o seu corpo ao duque Carlos.


A chama de alegria fictícia apagou-se nos olhos sombrios do duque Carlos.

Não... e do meu irmão Antoine, com o qual ele combateu, também não. Espero sinceramente que nenhum mal lhes tenha acontecido, porque vi desaparecer no combate o príncipe de Orange, que também tinha a seu cargo uma parte da guarda avançada... Talvez tenhamos em breve notícias.

Tiveram-nas no fim do dia, quando o grande bastardo Antoine fez a sua entrada na cidade, trazendo com ele um forte esquadrão. A seu lado cavalgava Mathieu de Frame, lívido e com os olhos ainda inchados de tanto chorar, que foi rojar-se, mais do que ajoelhar-se, aos pés do duque. O que ele tinha a dizer resume-se em poucas palavras: vira Philippe de Selongey cair, submergido pelo que parecia uma lâmina, mas, levado pelo fluxo irresistível suscitado pelo pânico, fora-lhe impossível socorrê-lo e depois procurar o seu corpo.

Por trás de si, Carlos ouviu um grito fraco, quase um queixume. Virando-se, o seu olhar encontrou o de Fiora, dilatado pela dor. Ela não chorava nem vacilava, como quando se desmaia; parecia uma estátua e apenas o ligeiro tremor dos seus lábios dizia que estava viva. Então, passando-lhe um braço paternal pelos ombros rígidos:

Vem, minha filha disse ele com muita doçura vem! Vamos chorar juntos...

E saiu com ela...

CAPÍTULO XIII NUMA TENDA ABANDONADA.

Uma estranha amizade nasceu, então, entre aquele soberano consumido pelos demónios do orgulho e da vergonha, ao qual a pesada derrota ensinara o que é a dúvida e aquela jovem, que perdera a sua única razão de viver. Ninguém, nunca, saberá o que disseram um ao outro durante as longas horas que passaram juntos na pequena capela do castelo sob a guarda de Battista Colonna, impante de orgulho apesar da fadiga que o devastava...

De manhã, Fiora, com os olhos secos e resoluta, estendeu a Léonarde um par de tesouras e ordenou-lhe que lhe cortasse os cabelos à altura do pescoço, à moda italiana:

O duque Carlos declarou ela para pôr fim aos protestos da sua velha amiga jurou não fazer a barba enquanto não tiver vingado a sua honra e vingar-se dos Suíços. E eu não tirarei o traje de rapaz, porque decidi seguir monsenhor por toda a parte até que...

Até que a morte vos leve, como levou messire Philippe? disse Léonarde, aflita. Oh, meu cordeirinho, não haverá outro caminho para vós? Sois tão jovem!

Que caminho quereis que eu siga? O do convento, como fazem todas aquelas cuja dor não sara? Nunca me atraiu e agora ainda menos.

Quem vos disse que a vossa dor nunca sarará? Lembrai-vos: quando conhecestes o conde de Selongey, estáveis apaixonada por Giuliano de Médícis e cheia de ciúmes de donna Simonetta!

Eu amava tudo o que brilhava e Giuliano brilhava mais do que mil fogos! Mas esses fogos apagaram-se quando Philippe apareceu e eu compreendi que não amava Giuliano...

Quanto não teria eu dado para que nunca o tivésseis compreendido! suspirou Léonarde! Mas, regressando ao duque, não tínheis jurado vingança?

Não o esqueci, mas... como hei-de dizer-vos? Ele parece-me em vias de se destruir a si próprio e eu tive a mesma impressão quando vi Pierre de Brévailles sentado na sua cadeira, um morto-vivo. Só pedia para morrer. Viver era uma punição mais cruel. Demétrios, que consegue ver o futuro, pensaria, talvez, o mesmo que eu... É possível, mas não é certo. Demétrios é mais duro do que pensais. Dito isto, não penseis que eu procuro lançar-vos de novo na perseguição de uma vingança que sempre temi. Se compreendestes que mais vale deixar que Deus...

Deus? Deus acaba de me levar o homem que amo, no instante em que nos reencontrávamos. Decididamente, creio que não me tem muita amizade. Não, não digais nada e, sobretudo, deixai-me fazer o que decidi! E, para começar, cortais-me os cabelos, ou preferis que eu própria o faça?

Certamente que não! Pelo menos não serão massacrados. Com decisão, Léonarde pegou nas tesouras e num pente

e depois, com uma careta feroz, começou a cortar a espessa cabeleira, pensando, para impedir que a sua mão tremesse, que os cabelos, no fim de contas, voltam a crescer...

Quando, na manhã seguinte, Fiora se juntou ao duque, vestida com a túnica de veludo negro que ele lhe tinha enviado e ele a viu pôr o joelho em terra como qualquer rapaz, sorriu-lhe:

Que pena não vos poder armar cavaleiro! Mas, pelo menos, posso fazer isto...

O duque foi buscar a uma arca aberta um punhal ricamente marxetado, cujo punho estava ornamentado com ametistas e, fazendo Fiora erguer-se, cingiu-lhe a arma à cintura:

Dois dos meus servidores, ao verem o desastre, conseguiram salvar uma carroça, na qual meteram tudo o que lhes passava ao alcance. Isto fazia parte desse tudo. Quando partir-mos para o combate, dar-vos-ei outras armas...

Eu não quero outras armas, monsenhor. Não saberia o que fazer delas. Apenas quero seguir-vos como o embaixador de Milão, que está sempre perto de vós.

Ele diz que é o melhor lugar para poder descrever os acontecimentos ao seu senhor. Para além disso, gosto de conversar com ele. Mas - acrescentou ele com uma voz de onde transparecia uma certa emoção confesso que a vossa presença me vai ser muito agradável. Mesmo que com isso prove que sou um egoísta insuportável... creio que vou precisar de amizade...

Os dias que se seguiram foram, de facto, muito sombrios. As consequências da derrota começaram a manifestar-se por meio de uma espécie de arrefecimento das relações diplomáticas. Apesar das cartas de Panigarola, o duque de Milão, ao qual se pediam novos mercenários, respondeu com vagas desculpas e não enviou nada. O velho Renato, que devia legar ao Temerário o seu condado da Provença e a sua coroa de Rei da Sicília e Jerusalém, fez volte-face e, pressionado pelos agentes de Luís XI, começou a interessar-se pelo neto, aquele jovem duque Renato, a quem tinham tirado a Lorena.

Entretanto, o duque Carlos sofria o contragolpe moral do que ele apelidava a sua vergonha e, após um curto período de agitação febril, caiu numa crise de melancolia. Fechou-se, não tolerando ninguém a seu lado. Permaneceu deitado, recusando comer, mas bebendo muito vinho, ele, que bebia tão pouco. Deixou de se lavar e no seu rosto vincado, onde a barba a crescer punha a sua sombra negra, os olhos sombrios ardiam com um fogo desesperado...

Ele é muito sujeito a estas crises de depressão confiou o milanês à jovem. É o seu sangue português. Em Portugal chamam a isto ”saudade”, mas confesso que esta é mais grave do que as outras. Temos de fazer qualquer coisa, mas o quê?

Ele gosta tanto de música! Por que não havemos de lhe levar os cantores da sua capela?

1 O papel de um embaixador era, então, exactamente o mesmo do correspondente de guerra de um jornal


Perdoai-me a imagem ousada, querida Fiora, mas só o diabo sabe onde esses estão!

Achais que será possível encontrar um alaúde, ou uma guitarra nesta cidade ventosa?

O castelo do defunto Hughes de Chalon estava mais bem provido do que Fiora pensava e nessa mesma noite, levando numa mão um alaúde e na outra Battista Colonna, instalou-se num canto, sentada numa arca, na pequena divisão que servia de antecâmara e após um curto conciliábulo com o seu jovem companheiro iniciou o prelúdio de uma canção francesa antiga, mas que se cantava um pouco por toda a Europa. Mantendo um olho inquieto na porta fechada, Battista começou a cantar:

O Rei Loys está sobre aponte Segurando afilha no regaço Ela pede-lhe um cavaleiro Que não valha seis dinheiros

Mas ainda aquela estrofe não tinha acabado e já a porta voava, mais do que se abria, pela mão furiosa do Temerário, que apareceu, titubeante, a boca retorcida e o olhar infectado de sangue:

Quem ousa aqui cantar um Rei Luís, seja ele qual for?

Fui eu, monsenhor, que pedi a Battista que cantasse essa melodia disse Fiora tranquilamente.

Aparentemente, pensais que tudo vos é permitido? Demonstrei-vos demasiada indulgência, muita fraqueza e...

É a vós mesmo que demonstrais demasiada fraqueza, monsenhor Quis apenas lembrar-vos que, enquanto vos deixais afundar numa extrema melancolia, o Rei de França, esse, continua a trabalhar.

A mão erguida, para bater, caiu sem força ao longo do corpo e, pouco a pouco, a ira abandonou o olhar perturbado que a jovem ousava fixar. O duque virou-se, por fim, para voltar para o seu quarto.

Que vão buscar os meus criados e que me preparem um banho! ordenou ele. Quanto a vós dois, continuai a cantar, mas outra coisa qualquer!

O concerto improvisado continuou até que Charles de Visen, o camareiro do duque, veio dizer aos jovens músicos que o seu senhor acabava de adormecer e que podiam parar. Já passava da meia-noite.

Fizestes um bom trabalho disse-lhes Panigarola, que viera instalar-se junto deles para os escutar. Aposto que a crise já passou e que amanhã monsenhor já terá reencontrado toda a sua actividade.

Na manhã seguinte, de facto, depois de ter emitido alguns despachos, dos quais um ordenava que se tirassem os sinos das igrejas da Borgonha e os levassem aos fundidores de canhões, o duque decidiu abandonar imediatamente Nozeroy e dirigir-se a Lausana, onde queria reunir um novo exército para cercar Berna, cavilha-mestra do seu desastre, Berna, onde o magistrado mais influente da cidade, Nicolas de Diesbach, liderava a facção francesa com o seu compadre Jost de Silinen, ambos amigos pessoais de Luís XI.

Enquanto não destruir Berna, as armas de Borgonha não reencontrarão o seu brilho declarou o Temerário e lançou-se na preparação minuciosa daquela nova campanha, na qual esperava restaurar a sua glória ofuscada.

O grande bastardo Antoine e o príncipe de Tarente, que tinham conseguido reagrupar uma parte dos fugitivos, instalaram o acampamento num grande planalto dominando o lago Léman, entre Romanet e Lê Mont. Ali erigiram a grande casa de madeira que abrigara o duque Carlos diante de Neuss e que, menos sumptuosa, sem dúvida, do que os pavilhões perdidos, oferecia o mesmo conforto. Em torno dessa construção acamparam as novas tropas que tinham conseguido: vinte e três mil vindos de Inglaterra, seis mil de Bolonha, seis mil de Liège e do Luxemburgo e, por fim, seis mil ”Saboianos”, que a própria duquesa Yolanda trouxe de Genebra ao seu aliado o duque de Borgonha.

A visão daquela bela mulher loura, que tinha mais ou menos a mesma idade do Temerário, espantou Fiora. Não se parecia nada com o seu irmão Luís XI e demonstrava uma feminilidade alegre e radiosa, que não era sem encanto. Ao vê-la avançar, sorridente e com as duas mãos estendidas para o seu aliado preferido, Fiora compreendeu, subitamente, por que razão aquela princesa francesa juntara as suas armas às do pior inimigo do seu irmão.

Ela ama-o, não ama? perguntou ela a Panigarola.

Nunca tive dúvidas, mas acho-a muito imprudente. O Rei Luís está em Lyon e está a reunir um exército junto dos seus fiéis do Delfinado, em Grenoble. Quanto ao meu senhor, o duque de Milão, sei que enviou mensageiros a Luís para lhe propor um acordo... e tentar apropriar-se da Sabóia.

Não deveríeis prevenir o duque Carlos?

Eu não recebi qualquer mandato oficial. Para além disso, se a questão é tomar a Sabóia, espantar-me-ia muito se o Rei nos deixasse fazê-lo. O que não impede, repito, que ache a bela duquesa pouco sensata...

Todavia, ela trouxe consigo a Primavera, que eclodiu subitamente com o irresistível ardor da natureza ao longo dos caminhos abertos pelas carroças de guerra e naquelas terras onde mais de uma aldeia fora arrasada. A erva voltava a nascer, verde e tenra, sobre as feridas da terra e no meio das ruínas. O lago, gigantesco espelho de um céu azul-claro, tinha ondas prateadas e nas suas margens as amendoeiras e as macieiras floresciam. O ar era leve, como, em pleno dia, as doçuras acariciantes de um sol talvez decidido a fazer esquecer o desastroso Outono e o rude Inverno. Em Lausana, que os males tinham poupado, a vida fervilhava nas ruas, assim como nos jardins, onde tudo desabrochava. Os embaixadores estrangeiros amontoavam-se com os seus séquitos, porque era impossível alojá-los no acampamento. Panigarola e os seus confrades venezianos, napolitanos, genoveses e outras gentes de Itália tinham eleito o albergue do Leão de Ouro como domicílio, o mais belo da cidade. As outras hospedarias e conventos estavam cheios e os mercadores afluíam, atraídos por tantas personagens nobres.

O ponto culminante foi a chegada normal do núncio Alessandro Nanni e do protonotário apostólico Hessler, ambos enviados do imperador para concluir o casamento do príncipe Maximiliano com a jovem Maria de Borgonha, herdeira dos Grandes Duques do Ocidente. A missa de Páscoa, celebrada na catedral de Lausana, no dia 14 de Abril, revestiu-se de um brilho excepcional.

Fiora assistiu a ela com trajes femininos, desta vez, os cabelos curtos escondidos numa coifa de tela prateada e velada de negro, como convinha ao seu grande luto. Na véspera, e na presença do núncio, o duque Carlos tinha-a, para fazer calar, talvez, os inevitáveis rumores que a sua presença junto dele provocava, reconhecido solenemente como ”mui nobre e mui alta senhora condessa de Selongey, viúva de messire Philippe de Selongey, cavaleiro do Tosão de Ouro, morto valentemente, vencido pelo número no campo desastroso de Grandson pela honra das nossas armas. E acrescentara:

”Doravante só no mundo, Mme. de Selongey fez voto de nos seguir no combate, a fim de nele tomar parte, em nome do seu defunto esposo, na grande vingança que, com a ajuda de Deus, iremos tirar de um inimigo indigno do sangue que derramou.”

Durante todo o ofício pascal, Fiora teve consciência, como tivera na véspera, dos numerosos olhares fixos em si, mais por curiosidade, sem dúvida, do que por simpatia, mas não ligou muito. Que importância tinha tudo aquilo, agora que Philippe deixara este mundo, que os seus olhos já não a olhavam, que as suas mãos nunca mais a tocariam? Que a julgassem bem ou mal, não lhe interessava. Para além do jovem Battista e de Panigarola, nenhuma daquelas pessoas lhe interessava. Para além do duque, claro, mas a jovem não conseguia analisar o sentimento que a ligava a ele. Era uma espécie de fascínio onde entrava a piedade e aquela atracção que exercem aqueles, muito raros, cujo destino parece prometedor de grandes catástrofes. Era o único a perseguir um sonho quimérico e desmesurado no meio de uma Europa positiva, onde a força, desertando das velhas leis cavaleirescas, pertencia aos mais hábeis e aos mais ricos... Uma voz secreta sussurrava à jovem que o anjo da morte seguia os passos do Temerário e que, sem ter consciência, era à sombra das suas asas negras que ele tentava fugir, era contra ela que se debatia.

Depois de Nozeroy, a sua saúde tornou-se vacilante. Sofria de uma febre constante e de males de estômago, passava as noites no meio dos seus homens sem despir a armadura e, de manhã, bebia as tisanas que Matteo de Clerici e um outro médico enviado pela duquesa de Sabóia lhe preparavam, mas não eram esses males, nascidos sobretudo de um sistema nervoso desequilibrado, que ameaçavam a vida do príncipe. O mal residia na sua alma, que já não acreditava na sua estrela..,.

Ao sair da catedral, Fiora, seguida de Léonarde, tão hirta e altaneira como uma duena espanhola, dirigiu-se ao albergue do Leão de Ouro, onde Panigarola lhe encontrara um quarto. O duque não queria que ela permanecesse no acampamento, onde reinava muitas vezes a indisciplina e as rixas eram numerosas. Subitamente, a jovem teve a impressão de que alguém lhe seguia os passos. Apressou o andamento e percebeu que corriam atrás de si. Então, parando bruscamente, virou-se. Um homem de armas estava na sua frente, no qual ela reconheceu Christophe de Brévailles. Tinha os olhos rasos de água.

Por que razão disse ele numa mistura de cólera e dor me escondestes o vosso casamento? Quando nos encontrámos, mentistes-me! Com que propósito?

Isso tinha importância? Lembrai-vos: vós acabáveis de fugir do vosso mosteiro e queríeis ser soldado. Que importância tinha a minha vida passada?

Nenhuma, claro... mas foi por vos ver, creio, que desejei tanto uma outra vida. Procurar a glória, a fortuna e, depois, procurar-vos, para...

Não digais mais nada! Sabíeis muito bem que nada seria possível entre nós. Vós sois meu tio, quer isso vos agrade, quer não e eu, agora que tudo chegou ao fim, nem sequer me quero lembrar que ainda existem Brévailles no mundo.

Tudo chegou ao fim? Que quereis dizer?

Que Regnault du Hamel morreu de medo ao ver-me aparecer uma noite na sua cabeceira. Quanto ao vosso pai...

Em algumas palavras Fiora contou o regresso de Marguerite ao castelo dos seus antepassados e o que as duas tinham encontrado:

A vossa mãe está em paz acrescentou ela e creio que reencontrou algo que se parece com a felicidade...

E vós cortou Léonarde, que observava o jovem com atenção vós, que esperáveis tanto da vida militar, sois mais feliz do que no convento?

Sou, porque sofri demasiado em Cíteaux, mas confesso de boa vontade que não gosto muito do que faço. Quando vos deixei, alistei-me, como filho de um artesão de Dole, nas tropas do conde de Chimay. E compreendi rapidamente o meu erro: eu invejava a vida brilhante dos cavaleiros, mas, como não tinha direito ao meu próprio nome, não podia esperar nada senão envelhecer com o arnês vestido no meio dos soldados e com o direito de chamar uma prostituta para apaziguar as minhas necessidades de amor. Além disso, a guerra horroriza-me... Vi demasiadas atrocidades...

Nesse caso, ide-vos embora! disse Fiora com voz insistente. Regressai a casa! A vossa mãe ficará feliz por vos ver e não tendes nada a recear do vosso pai...

Christophe sacudiu os ombros como que para afastar a pesada tristeza que o atormentava:

Esqueceis os meus votos renegados! Eu sou um monge que rompeu com o seu mosteiro. Se apareço na Borgonha levam-me para o convento e condenam-me imediatamente à morte. Prefiro que ela me leve no campo de batalha, de frente para o céu, do que no fundo de uma masmorra...

Talvez eu vos possa ajudar mais uma vez. O núncio do Papa está aqui e eu conheço-o. Se conseguir que sejais desligado dos vossos votos, regressareis a Brévailles?

Christophe desviou a cabeça para que a sua interlocutora não lhe pudesse ler o olhar:

Talvez... mas não agora! O duque vai atacar os Suíços e dizem que vós estareis junto dele. Também quero lá estar.

Christophe! suspirou Fiora é preciso que deixeis, para sempre, de pensar em mim. Isso não me dá nenhuma alegria e até me aborrece. Além disso, já que sabeis do meu casamento, também sabeis que sou viúva...

Podeis dizer o que vos apetecer. Eu não posso dar ordens ao meu coração...

Eu sei isso melhor do que vós, porque tenho um único amor, que a morte me levou e enquanto for viva nunca deixarei de o amar. A única coisa que desejo é juntar-me a ele... E agora, digamos adeus...

Um momento disse Léonarde. Não esqueçais a vossa promessa de falar ao núncio!

É verdade. Sob que nome estais alistado nas tropas do conde de Chimay? Christophe Laíné. Um grande nome, como vedes disse amargamente o jovem.

Todos os grandes nomes saíram de um outro, mais pequeno disse Fiora com severidade. Mesmo os dos reis. Talvez devêsseis ter feito algo por esse, mas, como tendes saudades do vosso, vou tentar que ele vos seja devolvido, para que possais regressar a casa com toda a tranquilidade...

Desprezais-me, não é verdade? murmurou Christophe, corado. Mme. de Selongey só tem desdém por mim?

Não, mas confesso que estou desiludida convosco! Já é tempo de vos comportardes como um homem...

Nesse caso guardai a vossa ajuda e não vos preocupeis mais comigo! gritou ele, subitamente furioso e, antes que ela o pudesse reter, virou-se e desapareceu a correr. Fiora fez um movimento para o seguir, mas Léonarde reteve-a...

O que é isso? disse ela ides pôr-vos a correr pelas ruas com um vestido de cauda e uma coifa alta como uma catedral? Deixai o rapaz, apesar de ele não saber muito bem o que quer... para além de estar apaixonado por vós e não vos querer abandonar, de dia ou de noite.

Coisa que eu não quero. O melhor é falar com monsenhor Nanni...

Não façais nada, por enquanto! Se o jovem Brévailles decidir, finalmente, regressar a casa, saberá vir ter convosco.

No entanto, aquele encontro perturbou Fiora. A ideia de que a sua boa acção do Verão anterior pudesse ter resultado mal, era-lhe insuportável e sentiu, mais do que nunca, a ausência de Demétrios, que sabia sempre em que direcção era necessário seguir, mas Demétrios parecia tê-la abandonado para se ligar àquele jovem duque da Lorena, que acumulava catástrofes. Fiora não estava muito certa de não lhe querer mal.

Nos dias que se seguiram, o duque Carlos caiu seriamente doente e Christophe saiu do pensamento de Fiora. Sofrendo de uma gastrite aguda e de hidropisia, com as pernas inchadas e desfigurado pela dor, o príncipe foi levado de urgência para Lausana, onde a duquesa de Sabóia lhe arranjou um apartamento no castelo. Durante três dias e três noites temeu-se seriamente pela sua vida e os médicos não abandonavam a sua cabeceira. A cidade, suspensa daquela respiração ofegante que não se sabia se pararia a qualquer momento, caiu em silêncio.

Se, ao menos, tivéssemos alguma boa notícia para lhe dar suspirou Panigarola ele reanimaria um pouco, mas as que chegam são detestáveis. Na Lorena, as tropas do duque Renato, sob as ordens do bastardo de Vaudémont, reconquistaram Épinal, Vezelise, Thenod e a Pont-Saint-Vincent. Ninguém, claro, tem coragem para lhe dizer. Seria, certamente, envenenar-lhe as últimas horas.

Ele chegou a esse ponto?

Pelo menos, é o que sabemos. A duquesa Yolanda está à cabeceira dele e faz orelhas moucas se ele reclama um de nós, ou os dois. Mas, parece que está inconsciente. Só o grande bastardo se pode aproximar e ontem à noite vi-o sair com lágrimas nos olhos...

Que pena! Em Florença eu tinha um amigo, um grande médico de Bizâncio, capaz de fazer milagres...

Em Florença? Deve ter perdido o seu talento, porque a vossa cidade está de luto, minha querida Fiora.

De luto? Não foi... Monsenhor Lourenço?

Não. Foi uma jovem belíssima, ao que se diz, e talvez a conheçais? Chamavam-lhe a Estrela de Génova...

Simonetta! murmurou Fiora, aterrada. Simonetta morreu?

Há poucos dias, na villa dos Médicis, em Piombino, para onde a tinham levado na esperança de que o ar do mar a curasse, mas não serviu de nada. Foi sepultada dois dias depois na igreja de Ognissanti, no meio do povo em lágrimas...

Portanto, a previsão de Demétrios confirmara-se! A jovem pensou ouvir a voz profunda do grego na noite do baile, enquanto ambos viam Simonetta e Giuliano sorrirem um para o outro e falando em voz baixa: ”Ela só tem quinze meses de vida. Então, Florença viverá na aflição, mas vós não estareis presente...” Sinceramente desolada, Fiora pensou que Giuliano de Médicis devia sentir-se muito infeliz... E também que o mundo frágil e encantador da sua juventude continuava a afundar-se, talvez a destruir-se. Florença tivera as suas mais belas festas e as suas mais doces horas, porque era o sorriso de Simonetta que as inspirava.

Quem quer ser feliz que se apresse Porque o amanhã nunca é certo dizia a canção profética de Lourenço. Fiora pensou que a felicidade passara, por duas vezes, junto dela, sem que a pudesse ter agarrado. Certamente não passaria uma terceira vez...

Contrariamente ao que se temia, o Temerário recompôs-se, fez a barba e regressou aos seus negócios. No dia 6 de Maio, ainda convalescente, assinou em privado, no seu quarto, com o protonotário Hessler e na presença de monsenhor Nanni, o acordo de casamento entre a sua filha e o filho do imperador. Este teria lugar em Novembro, em Colónia, ou em Aix-la-Chapelle.

Foi a única boa notícia.

Pelo contrário, as más continuavam a chegar. Os Suíços prosseguiam os combates contra a Sabóia. Os de Valais seguravam os altos vales do Ródano e no Val de Aoste as tropas venezianas e lombardas, recrutadas para o Temerário, não podiam transpor a passagem do Grande São Bernardo. Enviado contra os Valesianos, o cunhado de Yolanda, o valente conde de Romont, tivera de bater em retirada e os Suíços tinham invadido o leste e o sul do lago Léman. De Lausana era possível ver os incêndios que tinham provocado... Enfim, era preciso informar o duque do que se passara na Lorena.

Carlos estava ainda demasiado fraco para poder experimentar uma das suas cóleras devastadoras, mas apressava os preparativos. Três dias depois do acordo de casamento montava a cavalo, vestido com uma túnica de seda bordada a ouro e forrada de pele de marta o peso da armadura era ainda demasiado pesado para os seus ombros magros e durante quatro longas horas passou em revista as suas tropas, cujo armamento modificara. Assim, os seus homens tinham recebido chuços tão compridos como os dos Suíços e reduzira a cavalaria. Os efectivos eram de cerca de vinte mil combatentes, dos quais um terço era constituído por mercenários pouco seguros e um quarto por Saboianos firmemente decididos, esses, a baterem-se até ao último. Ficou decidido que no dia 27 de Maio se poriam a caminho para Berna. O exército, esse, tomaria posição em Morrens, mais ou menos uma légua a norte de Lausana. Na véspera da partida, Fiora, que se juntara ao duque com Panigarola, despediu-se de Léonarde, que deveria permanecer no albergue do Leão de Ouro na companhia de Battista. Porque, claro, a velha solteirona não podia ir naquela expedição militar.

Foram umas despedidas mudas. Sabendo que qualquer insistência era inútil perante a feroz determinação da jovem, Léonarde beijou Fiora sem dizer nada, mas apertou-a com força e as lágrimas correram-lhe lentamente pelo rosto.

Não tenhais medo, donna Léonarde tranquilizou-a Panigarola, que viera despedir-se dela após a saída de Fiora. Eu velarei por ela. Raramente matam um embaixador...

Mas diz-se... que os Suíços juraram não fazer prisioneiros! Era exacto. Tinham-se alistado, em todos os cantões, um em cada dois homens, o que representava um exército poderoso e todos tinham jurado matar no local os cativos.

Sem dúvida. E monsenhor disse o mesmo, mas, mesmo assim, eu não serei feito prisioneiro e donna Fiora ficará junto de mim. A bandeira de Milão é conhecida. A sua víbora será, para nós dois, uma boa protecção...

Eu sei que vós sois bom e que gostais muito dela, messireembaixador... mas ela quer morrer... e é a filha do meu coração.

Ele agarrou nas duas mãos da velha solteirona e apertou-as:

Eu saberei impedi-la. E depois... ela não sabe o que é estar no centro de uma batalha. Por mais corajosa que seja, o instinto de conservação será mais forte.

Já não a compreendo. Ainda deve amar Philippe de Selongey para chegar a este ponto!...

Só acontece aquilo que Deus quer. Rezai por ela... mas não vos atormenteis demasiado!

No entanto, o embaixador estava inquieto. Aquela campanha era uma loucura ainda mais grave do que a de Grandson. Vencer os Suíços não traria nada a Carlos, ou traria muito pouco, ao passo que uma derrota seria irremediável. Teria sido tão mais simples sentar-se em redor de uma mesa e discutir... mas, como fazer com que um homem obcecado com o seu orgulho ferido oiça a voz da razão? ”Antes morrer do que aceitar a vergonha!...” O duque não cessava de o repetir e tudo o que Panigarola conseguiu obter dele foi que o exército avançaria lentamente. Mas foi impossível impedi-lo de cercar a pequena cidade fortaleza de Morat, nas margens do mesmo lago, em vez de se dirigir para Berna.

Como é que ele não compreende confiou o milanês a Fiora que faz mal ao usar as suas forças contra aquele pardieiro, em vez de marchar a direito sobre o inimigo? Em Grandson não soube esperar no acampamento entrincheirado e desta vez vai parar, o que dará aos Suíços todo o tempo para o atacar pelas costas...

Mas o duque estava para além de qualquer raciocínio lógico. Queria abater tudo o que se encontrasse no seu caminho e que tivesse o nome de Suíça. No dia 11 de Junho mandava Morat investir e instalar o seu acampamento nas margens do pequeno lago, separado do de Neuchâtel por uma estreita aresta montanhosa...

Na manhã de sábado do dia 22 de Junho, Panigarola e Fiora, num trote tranquilo dos seus cavalos, efectuavam um passeio nas traseiras do acampamento. O tempo não estava bom e até chovia, mas nenhum deles suportava mais as tendas, onde reinava um calor insuportável. Houvera uma ligeira escaramuça na noite de 20 para 21, nada de sério, e estava tudo tranquilo. Os campos verdes e arborizados estavam belos e frescos e, virando as costas ao acampamento, era possível esquecer, por uns instantes, que se estava em guerra. Fiora tirara, até, o chapéu de ferro que o duque a obrigara a usar. Teria feito, de boa vontade, o mesmo com a cota de malha que ele lhe dera quando ela se recusara a meter-se numa armadura, dizendo que ficaria incapaz de se mexer por baixo de uma tal carapaça. Mas Panigarola não lho teria permitido.

Os dois cavaleiros tinham atravessado o acampamento, respondendo alegremente às saudações e sorrisos que recebiam. A jovem era popular no exército. Não porque fosse a única do seu sexo o Temerário, expulsara as prostitutas antes da partida de Lausana mas porque lhe admiravam a coragem, a gentileza e o voto que fizera de levar para o combate as armas do seu marido defunto, para que as águias de prata de Selongey pudessem continuar ao vento numa batalha.

Fiora e o seu companheiro, apesar dos avisos das sentinelas, tinham transposto a linha de defesa e chegavam a uma pequena elevação quando, subitamente, a chuva parou e o céu pareceu limpar. Sacudindo a cabeça molhada, a jovem, sorrindo, ia dizer qualquer coisa quando o embaixador exclamou:

Além! Por Deus... vamos ser varridos!

Os Suíços saíam das florestas vizinhas às centenas, aos milhares, os arcabuzes à frente e os chuços atrás. Corriam para o campo inimigo, que não os esperava. Simultaneamente, os dois amigos deram meia volta e galoparam na direcção das paliçadas gritando a plenos pulmões:

Alerta!... Estamos a ser atacados, alerta! O campo fechou-se por trás deles e antes mesmo que tivessem tido tempo de chegar à tenda ducal os canhões e os arcabuzes começaram a disparar, abafando o apelo lúgubre das trompas montanhesas que se fazia ouvir.

O Temerário estava com o seu médico quando Fiora e Panigarola irromperam pela tenda dentro.

Depressa! As minhas armas ordenou ele. E enquanto um escudeiro ia buscar o seu cavalo, o embaixador e Matteo de Clerici vestiram-lhe a armadura. Em seguida saíram todos da tenda, saltaram para as selas e correram sobre o inimigo à sombra do estandarte transportado por Jacques van der Maes. A batalha já estava no auge, as paliçadas destruídas e as linhas borgonhesas desfeitas. E de imediato, Fiora, espantada, viu-se no centro de um combate furioso, no qual, de repente, viu cair o estandarte de Borgonha e aquele que o transportava. A jovem fez recuar o seu cavalo para escapar àquela armadilha, sem sequer pensar em pegar na acha de armas que lhe pendia da sela. O animal, assustado, correu para o lago, para onde fugiam as tropas lombardas. Os mercenários sabiam determinar, infalivelmente, quando uma batalha estava perdida e esforçavam-se por preservar as suas vidas. O leão de ouro do elmo ducal estava invisível e até o próprio Panigarola desaparecera, levado, sem dúvida, pela vaga...

Atingido por uma flecha de besta, o cavalo de Fiora caiu. A jovem afastava-se penosamente quando viu um enorme suíço carregando sobre ela com um longo chuço. A morte estava ali, na sua frente e ela ficou horrorizada. Para não a ver, fechou os olhos e, subitamente, sentiu-se empurrada e atirada por terra. Um corpo caiu sobre o seu, que ela repeliu com um grito. Foi então que viu o suíço correr para uma outra vítima brandindo o seu chuço manchado de sangue... e reconheceu aquele que ele tinha perfurado no seu lugar:

Christopher. Oh! meu Deus, é Christophe!...

O peito do jovem estava coberto de sangue e um fio escuro começava a escorrer-lhe pelo canto dos lábios, mas male abriu os olhos e conseguiu sorrir.

Como vedes... tinha de me deixar matar... que era o que eu queria disse ele penosamente. Salvai-vos, Fiora! O exército... está em fuga, mas... a tenda do duque está próxima... Escondei-vos lá... e se vos encontrarem... dizei que sois uma mulher... É preciso ganhar tempo.

Não faleis! Eu vou-vos tirar daqui, arranjar qualquer coisa para vos tratar. Dir-se-ia que os Suíços estão a afastar-se...

Vão na perseguição do duque e eu... já não... preciso... de nada. A... a... amo-vos...

Foram as suas últimas palavras. A cabeça de Christophe descaiu-lhe sobre o ombro. Fiora, desolada, fechou docemente os olhos cinzentos, semelhantes aos seus, que a morte não tinha fechado e em seguida pousou um beijo ligeiro na boca entreaberta.

Querendo ver como estavam as coisas, ela viu tudo embaciado e reparou que chorava. A jovem enxugou os olhos com as costas da mão, avistou uma espada abandonada na erva e agarrou-a. A grande tenda vermelha o duque mandara fazer uma quase tão bela como a que perdera em Grandson não estava longe, de facto e o caminho parecia livre. Levantando-se, ia começar a correr na direcção daquele abrigo quando um homem se ergueu na sua frente, brandindo uma maça de armas. A jovem esquivou-se ao golpe baixando-se e, quase por instinto, o seu braço armado estendeu-se com uma força duplicada pelo medo e pela raiva. A espada afundou-se no ventre do soldado, que caiu com um estertor de dor. Então, abandonando a arma, Fiora correu até ao pavilhão ducal, enfiou-se lá dentro e deixou-se cair, soluçando, sobre a cama de lençóis amarrotados que mais ninguém faria.

Quanto tempo durou aquela espécie de crise que a sacudiu dos pés à cabeça quando percebeu que tinha morto um homem? Uma hora, ou alguns minutos? Sentia-se incapaz de analisar e aquilo teria durado ainda mais tempo se uma mão, que se pousou no seu ombro e a sacudiu sem qualquer cerimónia, não a tivesse arrancado à sua prostração:

Chega de choro! disse uma voz rude. Levantai-vos e dizei quem sois...

Ao ouvir o som daquela voz a jovem sobressaltou-se e pôs-se de pé num salto, ficando de frente para Demétrios que olhou para ela, espantado.

Não é possível! exalou ela, hesitando em reconhecer o grego naquele guerreiro de capacete e coberto por uma túnica de couro reforçada com placas de metal. Não podes ser... tu?

Por que não? disse ele com dureza. Será mais espantoso do que encontrar-te nesta tenda? Assim como os rumores que ouvimos, serão eles verdadeiros? Como é possível acreditar em semelhante coisa?

Por favor... De que estás a falar? exclamou ela, a alegria do reencontro cortada pela severidade do tom e mais ainda pela do olhar. Que coisa é essa impossível de acreditar?

Que tu sejas a amante do Temerário! Mas tenho de me render à evidência, já que te encontro a chorar na sua cama...

Eu? Amante do duque Carlos? Quem disse isso?

Toda a gente. Fala-se muito, nesta região da Europa, de uma rapariga disfarçada de rapaz que segue o borgonhês por toda a parte, sem a qual ele não pode passar e que tem acesso à sua tenda, tanto de dia como de noite e que...

Chega! Conheces-me assim tão mal que acredites em tal vilania? Os que espalham esses boatos demonstram, em todo o caso, o seguinte: Não conhecem, absolutamente, o duque. Ele nunca, com excepção da sua duquesa, toca numa mulher. Nunca teve qualquer amante. Os deboches do seu pai inspiram-lhe horror.

Nesse caso, que fazes tu junto dele?

Não achas que fazes demasiadas perguntas? É a minha vez de te perguntar o que fazes aqui! As últimas notícias, que me foram dadas por Léonarde, diziam que tu tinhas ganho uma enorme amizade por Renato da Lorena, a ponto de não te afastares dele. E agora, eis-te na Suíça?

Por uma excelente razão: o duque Renato está aqui. Ele acaba de carregar sobre os Borgonheses em fuga à cabeça de um corpo de cavalaria alsaciana e, como habitualmente, eu estava com ele. Estará aqui dentro de instantes.

O que é que tu queres que eu pense? Ah, já sei! Parece que é um rapaz com muito futuro? Pressentiste nele, talvez, um grande capitão? O menos que se pode dizer é que não parece. Quando pressente a derrota corre para debaixo das saias da mãe com o pretexto de que vai em busca de reforços... e nunca mais ninguém o vê. Entretanto, os Lorenos suportaram o peso da guerra... O duque Carlos, que o apelida de Menino, tem razão no que diz e, se bem compreendo, tu tornaste-te na sua ama?

Demétrios desatou a rir com um riso que tinha algo de feroz.

É fácil acusar quando não temos defesa, não é? Já te esqueceste do nosso juramento de sangue?

Não, não esqueci e cumpri a missão que o Rei Luís me confiou. Afastei Campobasso da facção borgonhesa e Deus sabe o que isso me custou! Deus e Esteban, aliás, porque suponho que ele se juntou a ti?

Sim. Ele falou-me, de facto, no que tu tiveste de suportar...

Sem ele eu estaria morta, mas os perigos que corri não te impediram de dormir. Estive quase a ser executada pelo duque e quase morri trespassada pela espada de Campobasso... e, enfim, perdi... Philippe... que acabava de encontrar e é para tentar juntar-me a ele e também para que as suas cores flutuem ao vento em volta do estandarte de Borgonha, que estou aqui.

As lágrimas que lhe enrouqueciam a voz aumentaram a sua cólera, porque lhe custava mostrar a sua fraqueza àquele homem. Acreditara-o seu amigo, mas bastara aquele miserável duquesinho loreno passar entre eles para o transformar num inimigo impiedoso.

Bravo! Vejo que te transformaste numa boa borgonhesa, numa amiga verdadeira desse príncipe cuja morte juraste!

Eu não sou amiga dele, mas ele portou-se muito bem comigo. Tentou apaziguar-me a dor e até me confessou por que razão não salvou Jean de Brévailles, de quem, entretanto, gostava muito...

E tu acreditaste nele, claro. É tão fácil quando queremos acreditar!

E também é fácil negar a evidência quando queremos permanecer cegos! Ainda estou à espera de saber o que fizeste, tu, para manter o juramento?

Mais do que pensas. Sei que Renato II foi designado pelo destino para vencer o Temerário e é isso que ele acaba de fazer hoje... O teu duque está em fuga e faço-te notar que te abandonou.

Se o teu venceu, não foi o único. Direi mesmo que todo o mérito cabe aos Suíços. Mas, Demétrios, se queres tanto a morte de Carlos de Borgonha, por que não procuras aproximar-te dele? Como médico estrangeiro ainda seria mais fácil, já que ele está doente. Vai lá e mata-o!... Não? Isso não te diz nada? Evidentemente, não sairias de lá vivo e algo me diz que queres muito à tua vida.

Não mais do que antes, mas ainda tenho coisas a fazer. Pelo contrário, a ti ser-te-ia fácil livrar esta terra de um homem que a esmaga com o seu orgulho e loucura. Com isto, por exemplo...

Do saco que lhe pendia da cintura, Demétrios tirou um pequeno frasco que fez cintilar à luz de um candelabro:

Três gotas e o Temerário deixará de poder massacrar o seu povo, a começar pelos seus soldados! Estás a ouvir estes gritos? Os Suíços cumpriram a sua palavra e degolam os que lhes passam pelas mãos. Ele teria feito o mesmo se tivesse vencido. Não passa de um monstro sedento de sangue...

Poderia continuar a falar daquele modo durante muito tempo, mas Fiora não o escutava. Olhava para o pequeno frasco na ponta dos dedos do grego com repugnância.

Não. Nunca farás de mim uma envenenadora! Disse-to em Florença, o veneno é uma arma ignóbil.

Seja! suspirou Demétrios, pousando o minúsculo frasco sobre uma mesa. Emprega o meio que te agradar, mas fica sabendo: só te devolverei o teu marido quando o Temerário tiver deixado de viver.

O meu marido?... Philippe? Philippe está vivo?

Sim. Eu também estava em Grandson sem o duque Renato, porém. Encontrei Selongey no campo de batalha. Tratei-o... e escondi-o num lugar que tu não serás capaz de encontrar sem a minha ajuda.

Philippe vivo!... Meu Deus! Também és capaz, por vezes, de ouvir uma oração e de a satisfazer?

Deixa Deus fora disto! O tempo urge. É preciso que o Temerário desapareça, entendes?... Podes pensar de mim o que quiseres, mas és a única que pode aproximar-se dele. Portanto, age! Ele tem de morrer...

Bruscamente, Fiora recuperou todo o seu sangue-frio. Levantou-se, altiva e olhou de alto a baixo aquele que acreditara, durante tanto tempo, ser seu amigo:

Que homem és tu, Demétrios Lascaris, para ousar empregar um tal meio? O teu ódio cego não te permite julgar com sensatez e agora eu tenho horror ao sangue que misturaste com o meu...

Esse Selongey é-te muito querido, apesar de saberes muito bem que te abandonou. Recorda-te da jovem...

A viúva do irmão mais velho, morto há dez anos. Se bem que isso não te diga respeito. Prossegue o teu caminho e deixa-me seguir o meu.

Nesse instante entraram na tenda dois homens. Um era Panigarola, coberto de lama e sangue e o outro era um jovem louro e esguio, de olhos azuis, trajando sobre a armadura uma túnica dourada com uma dupla cruz branca e cujas mangas eram brancas e vermelhas. Ao ver Demétrios pôr um joelho em terra, Fiora compreendeu que era o duque Renato...

Ela está aqui! exclamou o milanês, correndo para segurar na mão de Fiora. Monsenhor, é esta a jovem de quem vos falei e, graças a Deus, está viva!

Como vedes, estou encantado, messire Panigarola. Na verdade, seria uma pena se tivesse acontecido alguma infelicidade a esta dama tão bela... e compreendo por que razão correstes tantos riscos para a encontrar...

Os riscos não foram assim tão grandes, monsenhor, a partir do momento em que reconheci a vossa bandeira. Eu sabia que respeitaríeis a minha.

Onde iríamos parar se nos puséssemos a exterminar os diplomatas? Ide em paz. O meu porta-bandeira e mais quatro cavaleiros vão levar-vos daqui... Saúdo-vos, madame e espero sinceramente voltar a encontrar-vos... em circunstâncias menos trágicas...

Sem responder, Fiora dobrou o joelho diante de Renato e saiu sem um único olhar para Demétrios...

Mas o que teve de atravessar em seguida fez com que quase vomitasse o próprio coração. Os infelizes que tentavam fugir para o lago eram degolados, espancados, atravessados por flechas. Era uma visão terrível, um inferno abominável e a jovem acabou por fechar os olhos com força e tapar as orelhas com as mãos para não ouvir os gritos e os estertores de agonia, deixando que Pannigarola, que agarrara as rédeas do seu cavalo, a conduzisse. Só quando sentiu enfraquecerem aqueles queixumes assustadores é que compreendeu que se tinham afastado do campo de morte.

Já podeis abrir os olhos disse calmamente o milanês estamos sós...

A jovem obedeceu e esforçou-se por lhe sorrir, mas esse esforço meritório não teve grande resultado.

Como hei-de agradecer-vos? Voltastes a este inferno para me vir buscar?

Era o único a poder fazê-lo. O duque conseguiu fugir com algumas lanças. Nunca o vi tão perdido, quase desvairado... Creio que se teria deixado matar se vários cavaleiros não o tivessem arrastado... Mas, pensemos em vós! Se vos sentis melhor, Fiora, vamos para Lausana rapidamente. A acreditar nos rumores que me chegaram, os Suíços, depois desta vitória, vão cair sobre a cidade para a porem a saque... É preciso ir buscar donna Léonarde e o jovem Battista.

Fiora lançou-lhe um olhar aterrorizado e lançou o seu cavalo a galope. Era o que faltava, matarem-lhe a sua querida Léonarde!...

CAPÍTULO XIV O PÂNTANO GELADO.

Três dias mais tarde, após uma viagem movimentada que os obrigara a seguir primeiro na direcção de Orbe para evitar os bandos descontrolados e ferozes que se dirigiam para Lausana, Panigarola, Fiora, Léonarde e Battista chegaram à cidade montanhesa de Saint-Claude, pitorescamente agarrada a escarpas rochosas sobre a confluência do Bienne e do Tacon. A cidade, composta sobretudo por artistas e canteiros agrupados em torno de uma sólida corporação, comprimia-se em volta dos dois rios e da grande abadia beneditina, da qual fora abade, no século xii, Saint Claude, fazedor de milagres. Foram as portas desse mosteiro que se abriram para o embaixador de Milão e os seus companheiros.

Ali encontraram o grande bastardo Antoine, que acabava de descer do seu cavalo e que, sem qualquer cerimónia, se atirou ao pescoço de Panigarola para o abraçar:

Sire embaixador, direis ao vosso senhor que lhe estou muito reconhecido. Sem o magnífico corcel que me deu teria deixado a minha vida em Morat. A sua rapidez salvou-me...

Assim como o vosso valor, monsenhor. Estais só? Pensava que o duque tinha decidido vir para aqui?

De facto, a ideia era essa, mas não. Ao saber que a duquesa de Sabóia se tinha refugiado com os filhos no seu castelo de Gex, foi para lá com sire de Givry e messire Olivier de La Marche, para tentar convencer Mme. Yolanda a ir com ele para a Borgonha.

Para a Borgonha? Para fazer o quê?

Creio que quer assegurar a sua fidelidade.

Ah!... E... como está ele?

Furioso. Não há meio de acalmar. Jura que há-de, dentro de pouco tempo, reunir um exército de cento e cinquenta mil homens para atacar os Cantões e devastá-los de uma ponta à outra... Receio bem acrescentou Antoine de Borgonha com tristeza que não esteja bom da cabeça...

Não, monsenhor... sonha! Nunca pára de sonhar. Primeiro com o império e depois com o antigo reino de Lotário. É esse o sonho que ele persegue, com o ódio que os Suíços lhe inspiram. Queira Deus que o despertar final não seja demasiado cruel! Sabe-se quantos homens se perderam?

Quereis dizer quantos foram massacrados? Vários milhares, entre os quais Jean do Luxemburgo, Somerset e a maior parte dos arqueiros ingleses. Galeotto, que resistiu o mais que pôde diante da tenda ducal, conseguiu furar as linhas inimigas e fugir com duas companhias. Juntai a isso que, mais uma vez, os Suíços roubaram quase tudo do nosso campo e a nossa artilharia nova, tal como em Grandson. Foi um desastre, pior ainda do que o primeiro...

Posso perguntar-vos quais são as vossas ordens, monsenhor? Esperais aqui pelo duque?

Não. Parto amanhã para Salins, para me encontrar com os sobreviventes de Morat. Se houver alguns!... Ele vai lá ter comigo. Quereis ir connosco?

Com prazer, se os meus companheiros não estiverem muito cansados.

Enquanto isso, na casa de hóspedes para onde tinham sido conduzidas, já que não podiam ficar na abadia, Léonarde, com a ajuda de vela derretida, tratava o seu traseiro, pouco habituado àquelas loucas cavalgadas, sem deixar de rabujar e condenar Demétrios ao fogo do inferno. Ainda não se acalmara desde que Fiora lhe contara a sua entrevista com o grego.

Aquele velho louco deve ter perdido o juízo! Nunca vos escondi o que penso da vingança e, apesar disso, deixei que a perseguísseis. Mas Deus não permitiu que sujásseis as mãos...

As minhas mãos estão sujas, Léonarde. Matei um homem.

Era ele ou vós e a diferença é essa. Mas envenenar friamente, apunhalar ou estrangular um ser vivo, estava certa que nunca o faríeis.

Teria apunhalado du Hamel sem hesitar e, no que respeita ao duque, poderia tê-lo morto em Nancy, quando, soberbo e arrogante, me oprimiu com o seu desprezo e dispôs de mim como de um móvel. Não o fiz porque, ao reencontrar Philippe, não tive a... coragem de me condenar a mim própria à morte assassinando o Temerário. O meu amor foi mais forte do que o ódio e, depois, compreendi muitas coisas, a ponto de perdoar o duque por não ter agraciado os meus pais. Agora, a ideia de matar esse homem doente, enfraquecido, atingido no seu orgulho, faz-me horror. No entanto...

No entanto o quê? Não ides fazê-lo?

Fiora desatou a túnica, tirou-a, atirou-a para cima de um dos catres monacais que mobilavam o seu quarto e foi buscar, à arca de couro que seguia Léonarde para toda a parte e em quaisquer circunstâncias, um espelho para se mirar:

Os meus cabelos estão a crescer. Vai ser preciso...

Voltar a cortá-los? Não conteis comigo para isso e, aliás, proíbo-vos. O vosso marido está vivo. Que diria ele se vos visse assim? É tempo de voltardes a ser mulher, Fiora!

Para quê? Só voltarei a ver Philippe se...

A jovem tirara da cintura o precioso punhal que o Temerário lhe dera e, com um ar ausente, acariciava suavemente a lâmina brilhante. Léonarde empalideceu:

Deixo-vos já, Fiora, se não me jurardes abandonar essa ideia insensata. Matai o duque e sereis imediatamente enforcada: eu não quero ver isso! Quanto a Demétrios...

Já sei o que estais a pensar! disse Fiora com um meio sorriso. Não parais de pensar nele desde que deixámos Lausana...

Talvez, mas devo dizer ainda o seguinte: vós não tendes que lhe obedecer. A ignomínia da sua troca cobarde desliga-vos de qualquer laço para com ele.

Mas... e Philippe?

Não lhe acontecerá nada enquanto o seu carcereiro tiver esperança de que a sua chantagem funciona. O que é preciso é tentar saber onde se encontra o duque da Lorena: Demétrios não andará longe e, nessa altura, saberei o que fazer. Tendes razão, sem dúvida, mas, como saber onde está Renato II? Segundo Panigarola, anda de um lado para o outro... Nesse caso, é preciso ficar perto do duque Carlos... e desse querido embaixador, que sabe sempre tudo. Eles têm, ambos, os seus espiões e será através deles que conseguiremos as nossas informações. Por que não irmos ter com o Rei a Lyon e pedir-lhe que chame Demétrios? Ele é o seu médico e... |

E nada nos diz que ele lhe obedeça. Além disso, lembrai-vos | que o jovem Colonna responde com a vida pela vossa presença? Depois de tantas catástrofes, pensais que o duque ainda pensa nisso? Mais vale prevenir do que remediar com um homem como ele. E, infelizmente, gosta de vós... o suficiente para ter ordenado a um filho de príncipes que velasse por uma velha borgonhesa como eu Se ele vir Battista sem vós..,

Panigarola confirmou o ponto de vista da velha solteirona.; Segundo o grande bastardo, Carlos preocupara-se com ”Madame de Selongey” em termos que não deixavam qualquer dúvida quanto ao preço que lhe atribuía. Fiora pensou que não havia mais nada a acrescentar e que tinha todo o interesse em seguir os conselhos de Léonarde.

Vítima das suas próprias opiniões, esta viu-se forçada a derreter o dobro da cera: no dia seguinte voltaram a partir para Salins na companhia do grande bastardo. A despeito das ameaças de Demétrios, Fiora, desde há muito tempo, sentia-se feliz. O mais importante não era que Philippe estivesse vivo, que respirasse algures sob o mesmo céu que ela? A noite sombria do seu futuro iluminava-se com um luar quente de esperança. Enfim, tinha uma enorme confiança na sabedoria de Léonarde... Com a sua ajuda, começava a acreditar que seria possível vencer Demétrios, talvez utilizando as suas armas favoritas: a paciência e a astúcia.

Quando a 2 de Julho o Temerário, à cabeça de alguns cavaleiros fez a sua entrada em Salins, Fiora mal o reconheceu. Como mudara em tão poucos dias! Aquele rosto inchado, os olhos cheios de olheiras, a boca amarga, o olhar vítreo... Seria o mesmo homem? Sem a armadura dourada e o elmo com o leão de ouro, a jovem teria duvidado estar perante o duque de Borgonha. No entanto, ele sorriu e saudou com a mão o povo da sua cidade, que o aclamava deslumbrado com aquela imagem sumptuosa, à qual o Sol arrancava cintilações.

Ao ver aproximarem-se Fiora e Panigarola, que o iam saudar, teve para ambos um verdadeiro sorriso, quente e comunicativo e abraçou-os, um de cada vez. Parecia extraordinariamente feliz por vê-los de novo e manteve-os junto de si até à noite. Durante o jantar, que comeram juntamente com o grande bastardo, foi de uma alegria encantadora, que confundiu os seus convidados. Os seus projectos eram imensos e rejeitava, com desdém, a responsabilidade da derrota de Morat, atribuindo-a à falta de coragem das suas tropas, que tinham, mais uma vez, virado a casaca e fugido.

Monsenhor intercedeu Panigarola mostrai alguma piedade por eles. Muitos estão mortos...

Não estariam se se tivessem batido como deve ser, e os da minha casa foram os piores. Nada de espantoso: muitos eram franceses, mas eu vou tocar a rebate pela minha fiel nobreza da Borgonha. Já sei que vou poder contar...

E compôs números, formou esquadrões, confiou comandos a chefes que não se sabia muito bem se estavam mortos ou vivos...

Tive a impressão de jantar com fantasmas confiou Fiora ao milanês. Esse grande exército de que ele fala, existirá sem ser na sua imaginação? Receio que continue doente.

Também eu. Em todo o caso há uma coisa que me espanta! Para onde foi o capitão da sua guarda, que em princípio nunca o abandona? Parece que terá sido enviado numa missão qualquer? E como estava com ele em Gex, pergunto-me que missão será essa?

Sabê-lo-ia três dias mais tarde, quando as paredes do castelo ecoaram com os clamores furiosos do Temerário: Olivier de La Marche acabava de chegar com um destacamento dos seus guardas e o duque berrava aos quatro ventos que lhe ia fazer ”saltar a cabeça”... Ao ver acorrer Panigarola visivelmente perturbado, Fiora, que se passeava com Léonarde nas margens do Furioso, o rio que costeava toda a cidade de Salins, compreendeu que algo de grave se passava.

Começo, verdadeiramente, a acreditar que ele está demente exclamou o embaixador. - Acaba de cometer a maior das loucuras: ao mesmo tempo que, ao abandonar o castelo de Gex, abraçava a duquesa de Sabóia, jurando-lhe uma amizade eterna, dava ordens a Olivier de La Marche para que a prendesse, a ela e aos filhos, quando ela se dirigia para Genebra para junto do seu cunhado, o bispo.

Mandou prender a duquesa Yolanda? Para quê?

Ela recusou-se a ir com ele para a Borgonha e ele esperava, com isso, segurar firmemente a Sabóia. Infelizmente, um criado escondeu o príncipe herdeiro Philibert e o seu irmão mais novo num campo de trigo. Agora, estão em Genebra e imagino daqui o barulho que o bispo terá feito. Aposto que se vai falar do beijo de Judas e o Rei Luís, que não é nada estúpido, vai aproveitar a ocasião para se armar em protector da irmã e dos sobrinhos. É um grande golpe, fazer da Sabóia o inimigo mortal do nosso duque... Como se não bastasse!

Onde está a duquesa?

Perto daqui: no castelo de Rochefort, perto de Dole. Quanto a La Marche, que só cumpriu metade da missão, está em maus lençóis...

No entanto, conservou a cabeça. O duque Carlos tinha demasiadas preocupações para se preocupar durante muito tempo com aquele episódio: os Suíços continuavam com as suas proezas. Depois de terem posto a saque Lausana, preparavam-se para invadir Genebra quando o Rei de França interveio. Morat deixara-o encantado, mas não gostava nada que os Suíços continuassem a espezinhar a herança do seu sobrinho: em defesa do qual enviou a Chambéry o seu utensílio preferido: um saco de ouro e um pequeno exército, para lhes lembrar que, apesar de não fazer a guerra com frequência, possuía todos os meios para a desencadear. Pouco tempo depois, a Sabóia e os Cantões assinavam um tratado de paz.

1 Levada para o castelo de Rouvres, a duquesa seria libertada, algumas semanas mais tarde, por Carlos d’Araboise, enviado por Luís XI.


Que grande homem! exclamou Panigarola entusiasmado. Ao menos, que haja um que não considera a guerra como a última das belas-artes!

Evidentemente, essa não era a opinião do Temerário, que reunira em Salins os estados da Alta Borgonha para lhes explicar a necessidade de virem em sua ajuda na sua guerra contra os Suíços, à qual não queria renunciar. Fez, então, aos seus súbditos, um soberbo discurso, apoiado em Tito Lívio e nos grandes exemplos de combates perdidos e guerras ganhas. Só tinha empreendido aquilo para os proteger, a eles, às suas mulheres, aos seus filhos e aos seus bens contra o perigo mortal dos Suíços e dos Franceses. Foi de tal modo que o auditório, quase em lágrimas, decidiu financiar a protecção das fronteiras, mas com duas condições: que o duque deixasse de se expor pessoalmente e que concluísse a paz assim que a ocasião se apresentasse. Carlos jurou tudo o que eles quiseram e voltou ao trabalho com entusiasmo:

Donna Fiora declarou ele à jovem uma noite em que esta, como fazia cada vez mais frequentemente, acabava de cantar na companhia de Battista quando tiver vencido aqueles bolos secos e lhes reconquistar os meus bens, farei de vós uma princesa. Podereis escolher, nos meus estados, aquele que mais vos agradar. E restituir-vos-ei o vosso dote.

Não vos peço tanto, monsenhor. Viver em paz com a recordação do meu marido a jovem julgara mais prudente, de facto, não lhe revelar o que sabia é tudo o que desejo. Eu não gosto da guerra e quem governa um estado deve estar sempre preparado para ela.

Esta será a última. Em seguida, farei de vós o mais belo ornamento da minha corte...

Fiora não respondeu, encontrando naquela frase uma ressonância estranha. Aliás, a atitude de Carlos para com ela modificara-se mais uma vez. Pediu-lhe para regressar aos trajes femininos, que, apesar de serem de grande luto, ”punham em evidência a sua beleza”. Não só não a expunha às suas cóleras, como era para com ela de uma galanteria extrema, oferecendo-lhe presentes, interrogando-a sobre a sua infância, os seus estudos, sobre a vida que levara naquela Florença com que sonhava muitas vezes e na qual não desesperava de entrar um dia como seu senhor, porque, por vezes, sonhava em conquistar a Itália...

Creio, Deus me perdoe, que ele se apaixonou por vós declarou Panigarola, enquanto observava Fiora a desdobrar uma peça magnífica de cetim debruado a ouro que um recoveiro acabava de trazer de Dijon.

Não estareis a usar demasiado a vossa imaginação?

Certamente que não. Nem sequer lhe reprovaria a inclinação, mas não tenho a certeza que seja para vosso bem. No estado de exaltação em que o vejo, uma grande paixão, num homem cuja castidade sempre foi elogiada, pode revelar-se perigosa.

Que fazer, nesse caso?

Fugir! O mais depressa possível e para bem longe. Eu ajudar-vos-ei... pelo menos enquanto aqui estiver.

Estais a pensar em partir?

Receio bem que venha a ser chamado um destes dias. As consequências de Morat são desastrosas e a política do meu país está em mudança. Milão reaproxima-se da França e se o meu príncipe rompe relações com a Borgonha...

Fiora guardou silêncio por uns instantes. A ideia de ver afastar-se aquele amigo discreto metia-lhe pena. Largando o tecido brilhante, encaminhou-se lentamente para a janela incendiada por um sumptuoso pôr do Sol:

Se partirdes, tereis de levar Battista, porque eu também não ficarei. De qualquer maneira, não seguirei o duque para outra guerra. Vi Grandson e Morat: chega-me.

No entanto, nos dias que se seguiram, o duque mostrou-se mais calmo. Decidiu deixar Salins pelo Castelo de La Rivière, uma grande construção feudal eriçada de torres e provida de um imponente aparelho militar, situada a três ou quatro léguas de Pontarlier, num alto planalto jurassiano bastante triste, mas suficientemente vasto para que nele se pudesse reunir um exército. A sua casa e a sua família seguiram-no. Fiora encontrou ali um apartamento rico, como há muito não tinha nem via, mas os dias agradáveis de Salins, onde, na calma frescura das montanhas, os sobreviventes de Morat tinham podido repousar um pouco e recuperar o fôlego, tinham acabado.

As primeiras notícias que chegaram a La Rivière puseram o Temerário fora de si. Enquanto os estados da Borgonha tinham aceitado ajudá-lo, os da Flandres, reunidos em Gand, tinham, não só recusado prestar-lhe qualquer ajuda, como também pretendiam restringir as somas previamente cedidas ao exército, com o pretexto de que já não havia exército.

Já não há exército? vociferou o duque. Aqueles miseráveis Flamengos vão ver se eu já não tenho exército! Marcharei contra as suas insolentes cidades depois de castigar os vaqueiros dos Cantões. Quanto àquele burro do chanceler Hugonet, que ousou usar semelhante linguagem, pagará com a sua fortuna. Vou mandar apreender-lhe os bens...

Mais grave ainda: o duque Renato II, cuja avó, a velha princesa de Vaudémont, acabava de morrer legando-lhe uma fortuna, recrutara mercenários suíços e alsacianos, conseguira que a cidade de Estrasburgo lhe emprestasse a sua artilharia e acabava de reconquistar Lunéville. Dizia-se que se dirigia para Nancy para expulsar os Borgonheses.

Aquela notícia fez bater com mais força o coração de Fiora. Sabia onde estava Demétrios. Agora, era preciso arranjar os meios de ir ter com ele o mais depressa possível.

Isso não vai ser fácil disse Léonarde, preocupada. Sair deste castelo mais fechado do que o cofre de um mercador e deste campo em redor, que, a cada dia que passa, fica maior, põe-nos um problema difícil de resolver, porque, com o grande amor que o duque tem por vós e mesmo que vós ainda não vos tenhais dado conta estais mais vigiada do que se fosseis sua noiva...

De qualquer maneira, temos de arranjar um meio. Não vou deixar que me levem para lá dos montes, quando é para Nancy que quero ir!

Aquele último receio foi rapidamente apagado. Uma vez passada a cólera, o duque Carlos mudou os seus planos: estava fora de questão ir sobre os Cantões, com os quais, aliás, se iniciavam tímidas negociações. Doravante era na direcção norte que era preciso marchar, para expulsar definitivamente da Lorena os homens de Renato II, porque a Lorena era o fio que ligava as duas Borgonhas, o elo indispensável, conquistado com demasiado carinho, para que se pudesse permitir que se rompesse...

As coisas estão simplificadas comentou Léonarde.. Não sabíamos como havíamos de ir para Nancy e eis que se propõem conduzir-nos até lá. O exército está a reunir-se. Partiremos em breve...

De facto, o vasto planalto povoava-se quase a olhos vistos. A Borgonha cumpria a sua promessa e enviava tropas e armas. Viram-se chegar grupos de Pícaros, Valões, Luxemburgueses e também alguns ingleses, conseguidos a custo ao Rei Eduardo pela duquesa Marguerite. Galeotto juntou a um dos primeiros as suas lanças e os seus carpinteiros. Os soldados instalavam-se nas aldeias e terreolas e os seus habitantes sustinham a respiração a despeito das ordens severas do Temerário no que tocava ao roubo, à violação ou à pilhagem. Outros acampavam directamente sob a tenda e as suas fogueiras para cozinhar, chegada a noite, ardiam em turbilhão sob o vento vindo das montanhas. O castelo enchia-se de senhores e capitães, que ali faziam grande barulho. Ele eram colóquios e conciliábulos, assim como algumas bebedeiras, é bom que se diga e Fiora nunca abandonava o seu quarto, onde Panigarola ia muitas vezes refugiar-se quando estava cansado dos relatos de feitos guerreiros. A jovem quase nunca via o duque, e não se queixava. O tempo não estava para canções: o barulho das armas substituíra-as e enchia tudo. Até as próprias aves e animais dos bosques fugiam para as montanhas... E então, uma manhã, Panigarola foi despedir-se de Fiora.

Ao vê-lo aparecer com botas de pele e a manta de cavalo debaixo do braço, a jovem compreendeu o que era antes mesmo de ele abrir a boca:

Não me digais que ides partir?

É isso mesmo. O duque acaba de me dispensar, aliás com muito boas maneiras, coisa que eu não esperava, dadas as circunstâncias...

Milão e Borgonha já não são aliados?

Não. E espanta-me que ainda não tenhamos entrado em guerra. Monsenhor teve a amabilidade de me dizer que lamentava a minha partida...

Não é o único. Eu... sinto-me desolada por vos perder, meu amigo. Voltaremos a ver-nos?

Por que não? Milão não é assim tão longe e eu quero que saibais que a minha casa estará sempre pronta para vos acolher.

Salvo se não estiverdes lá. Quem sabe se não vos enviam amanhã para junto do Grande Khan?

Não me parece: a língua é-me desconhecida. Mas... também vim para vos comunicar a notícia que acabo de saber por Galeotto: Campobasso está de regresso!

Para aqui?

Talvez não. Mas escreveu ao duque propondo-lhe regressar ao serviço com a sua condotta. Isso representa perto de dois mil homens e a sua proposta foi acolhida com satisfação.

Fiora juntou-se a Léonarde, que cosia sentada à janela.

Ouvistes? Temos de nos preparar para partir rapidamente. Esperai-me um momento, meu amigo, partiremos juntos!...

A jovem precipitou-se para uma arca, que abriu.

Peço-vos, não façais nada. Eu previ a vossa reacção e pedi autorização para vos levar, mas monsenhor recusa formalmente deixar-vos partir.

Deixando cair a cobertura, Fiora hesitou um instante e dirigiu-se para a porta:

A mim não recusará. Não quero ficar aqui, no meio de todos estes homens de armas cujos olhares me desagradam, à espera que Campobasso se apodere de novo de mim.

Não, Fiora! Será inútil. Ainda ficais prisioneira.

Mas, enfim, ainda há pouco vos propúnheis ajudar-me a fugir?

De facto!... Mas não sabia tudo. Aliás, não sabia nada. Nunca o duque Carlos permitirá que vos afasteis dele. E, se fugis, sabeis quais serão as consequências?

É insensato! exclamou Léonarde. Isso não é amor, é raiva.

Nem uma coisa, nem outra, donna Léonarde... É superstição. Quando estivemos em Besançon, no Inverno passado, um rabi, versado na cabala, disse a monsenhor que a morte não o levaria enquanto vos tivesse junto dele, Fiora. É por isso que ele vos reconhece como a senhora de Selongey, porque isso faz de vós uma borgonhesa; é por isso que ele vos quer na sua corte quando a guerra acabar; é por isso, enfim, que Battista deve morrer, se vós fugirdes. Tornastes-vos no seu anjo-da-guarda. Fiora, a princípio estupefacta, desatou, bruscamente, a rir:

Eu, anjo-da-guarda dele? Eu, que ao deixar Florença só pensava matá-lo?... Isto faz-me regressar a essa primeira ideia

Não o tenteis, porque não conseguireis. A lâmina do punhal partir-se-á, o veneno não fará efeito...

Mas, enfim, vós acreditais nessas loucuras, vós, tão lógico e tão filósofo? Quem vos disse isso? O duque?

Não. O grande bastardo, a quem pedi que intercedesse por vós e que pediu, há muito tempo, a vossa liberdade.

Será preciso, então, que Battista volte para casa. No fim de contas ele é romano, não pertence à casa de Borgonha. O senhor dele não é o conde de Celano?

Que desapareceu em Grandson sem sabermos o que lhe aconteceu. Mas, peço-vos, acalmai-vos! Ainda nada está perdido. Quando sair daqui, vou parar em Saint-Claude para esperar por monsenhor Nanni. O núncio espera concluir a paz entre a Borgonha e os Cantões. O Papa e o imperador também estão nas negociações e ele quer encontrar-se comigo. Juntos, veremos o que podemos fazer. O jovem Colonna poderá ser chamado a Roma... para um luto familiar, por exemplo?

Esperais que o núncio diga uma mentira dessas, tão grande? A despeito da gravidade da situação, Panigarola desatou a rir.

Minha querida filha, na política, como na diplomacia, a mentira e a verdade são noções abstractas. Só o resultado conta... e monsenhor Nanni é um dos melhores diplomatas que eu conheço. Portanto, tende paciência!... e permiti que um velho amigo vos abrace, porque vos tornastes muito cara. Passai bem, donna Léonarde!

Farei os possíveis, messire disse esta com uma pequena reverência e desejo o mesmo a Vossa Excelência!

Chegada a noite, o duque Carlos, para surpresa de Fiora, fez-se anunciar. E ela constatou, ao primeiro olhar, que ele estava triste.

Venho pedir-vos que me deis de jantar, donna Fiora disse ele, segurando-lhe na mão para a erguer da reverência. E, a menos que isso vos contrarie, será servido aqui.

Monsenhor não sabe que está em sua casa?

Não sejais tão cerimoniosa. Deveis estar tão triste como eu. Não perdemos ambos um amigo?

Não creio. Vós perdestes um embaixador, não o amigo que ele continua, certamente, a ser.

Pode ser que tenhais razão, mas por estas defecções é que eu vejo como a glória da Borgonha está ofuscada. Precisamos de uma grande vitória para lhe restituir o brilho. Felizmente, vós ficais.

Apesar do que Panigarola dissera, Fiora tentou a sua sorte:

Quereis assim tanto levar-me convosco para a guerra, monsenhor? Eu estou... tão cansada! A guerra faz-me horror...

Também me quereis deixar? Que aconteceu ao meu valente escudeiro? Que aconteceu à senhora de Selongey, que queria tanto manter junto das minhas as cores do seu marido?

Viu muito sangue derramado. Não lhe permitis que se retire para Selongey?

Para viver na solidão de um castelo campestre? Não, donna Fiora, não creio que isso vos tente. Trata-se de outra coisa, não é verdade? Essa amizade, que me era tão doce, não passa de um logro? Tal como os outros, quereis fugir de mim porque me achais acabado, destruído...

O duque enervava-se. A sua voz subia de tom. Adivinhando, então, que tinha de tomar a iniciativa, Fiora exclamou:

Tendes razão: há outra coisa. Campobasso vai regressar e eu não quero voltar a ver esse homem! É por isso que vos peço que me deixeis ir...

É só isso? Então, ficai descansada. Prometo-vos que não o vereis. É verdade que ele pediu para voltar ao serviço sob a minha bandeira. É um bom capitão e, infelizmente, eu preciso dos seus soldados, mas ele não vem para aqui. Ordenei-lhe que fosse tomar posição entre Thionville e Metz, onde esperará o príncipe de Croy e o duque Engelbert de Nassau, que vêm dos Países Baixos com cinco mil homens de infantaria. Dentro de poucos dias temos que deixar La Rivière. O Menino pôs cerco a Nancy e eu quero apanhá-lo de surpresa. Vós estareis junto de mim como habitualmente, mas Olivier de La Marche terá ordens para velar por vós e manter-vos afastada, quando Campobasso me vier ver. Mas não quero que me deixeis. É preciso, entendeis, é preciso que fiqueis a meu lado, Não me pergunteis porquê!

E, esquecendo que se tinha convidado a si próprio para jantar, o Temerário foi-se embora. A porta fechou-se com força depois de ele sair e o barulho prolongou-se por um instante no silêncio que se estabelecera no quarto.

Bem! suspirou Léonarde. Jantaremos sós!

Prefiro assim, mas confessai que é assustador! Nunca lhe poderei escapar... Não penseis assim! Só deveis ter uma ideia na cabeça: vamos partir para Nancy. Não é isso o principal? No meio da barafunda da guerra havemos de conseguir fugir a monsenhor. E se o jovem Colonna ainda não tiver partido, bem, levamo-lo connosco.

Léonarde disse Fiora com convicção, espantar-me-eis sempre. Levar Battista?

Por que não? É capaz de ser divertido...

No dia 25 de Setembro de manhã, o exército, tão penosamente reconstituído, deixou La Rivière... Alguns diriam uma amostra de exército, tal era o contraste pungente com a soberba máquina de guerra que dois simulacros de batalha tinham reduzido a migalhas. Desde velhos soldados queimados pelo fogo da metralha a jovens recrutas, a Borgonha, a Picardia, o Luxemburgo e o Hainaut tinham mandado tudo o que podiam para juntar às fiéis lanças de Galeotto, o único mercenário que permanecera fiel. Mas eram as tropas da última oportunidade. Se uma nova derrota as dispersasse, ou aniquilasse, não haveria mais, nem mesmo na Borgonha, cujos campanários, ocos, não tinham mais bronze para fornecer. Dez mil homens, não mais, era tudo o que o Temerário arrastava atrás de si e com os quais contava para expulsar, de uma vez por todas, o Menino da sua terra natal.

Sob o capuz negro que pôs de novo para esconder os seus cabelos já longos, Fiora cavalga na cauda do cavalo do Temerário, na companhia de Battista. A jovem vai tão sombria que o pajem nem ousa cantar. Tem saudades de Panigarola. A sua cultura e filosofia faziam dele um companheiro inigualável, graças ao qual a mais longa caminhada se percorria sem custo. As notícias que recebera não eram das melhores: ao chegar a Saint-Claude, o núncio papal tivera de cair à cama sob os assaltos de uma bronquite acrescida de um ataque de gota. Tão cedo não se juntaria ao duque Carlos...

Este fervia de impaciência. Saber Renato II diante de Nancy punha-o doente, assim como a obrigatória lentidão de um exército, no qual nem todos iam montados, longe disso! Quatro a cinco léguas por dia, sob o peso das armas, era o que se podia pedir à infantaria, enquanto o Temerário sonhava voar como uma águia para cair, por fim, sobre o inimigo.

Por Levier, Ornans, Besançon e Vesoul, atingiram os confins da Lorena, de onde viraram para oeste para evitar as cidades já reconquistadas por Renato. O Temerário não queria malbaratar as suas forças. Primeiro queria Nancy e, para isso, tinha de se juntar às tropas de Campobasso, de Chimay e de Nassau, às quais dera ordens para virem ao seu encontro em Toul... A 7 de Outubro fazia a sua entrada em Neufchateau... no mesmo instante em que Renato II entrava na sua capital reconquistada e expulsava o governador borgonhês Jean de Rubempré, senhor de Bièvres. Louco de raiva, o duque Carlos quase matou o mensageiro que lhe trouxera a notícia...

Entretanto, o seu exército ia crescendo. Quando fez, em Toul, a junção com Campobasso que, aliás, se fez esperar e recuperou as tropas cerca de mil e quinhentos evacuados de Nancy por Jean de Rubempré, viu-se à cabeça de um efectivo de dezoito mil soldados. Era um número superior ao do jovem duque da Lorena e todas as esperanças eram permitidas. Ainda por cima porque, a 17, os Borgonheses derrotavam uma parte da sua gente em Pont-à-Mousson. A estrada para Nancy estava aberta...

Carlos acreditou que a sua estrela desvanecida brilhava de novo sobre a sua cabeça quando soube que Renato acabava, uma vez mais, de deixar Nancy em busca de um aumento de tropas. O jovem duque deixara a cidade nas mãos dos mais coriáceos dos seus fiéis: Gerard d’Avilliers, os irmãos d’Aguerre e Petit-Jean de Vaudémont, reforçados com dois capitães gascões: Pied-de-Fer e Fortune. Dois mil homens com eles:

Aguentaremos, pelo menos, dois meses disseram-lhe eles mas apressai-vos! Senão, depois disso, será a fome que nos dizimará...

De facto, Jean de Rubempré e a sua guarnição da cidade, em grande parte inglesa, resistira quase dois meses ao duque Renato. Depois de este entrar na cidade, esta quase não tivera tempo de refazer as suas provisões cruelmente em falta, já que tinham chegado ao ponto de comer os cavalos, nem de reparar as muralhas esventradas. Assim, quando a 22 de Outubro o Temerário investiu sobre a cidade e mandou reconstruir junto da Comendadoria Saint-Jean a sua casa de madeira, estava certo de que a vitória estava ao alcance da sua mão. Celebraremos o Natal no palácio como no ano passado disse ele alegremente a Fiora e darei uma festa tão bonita que vós até esquecereis as dos Médícis...

Ela agradeceu-lhe com um sorriso maquinal, mas o coração não lhe seguiu o exemplo. Ele estava de novo amável para com ela, caloroso, chegando, até, a instalá-las, a ela e a Léonarde, na sua casa de campanha, assim como mantivera a sua palavra no sentido de evitar que Fiora visse Campobasso. A jovem estava-lhe reconhecida, mas sentia-se desorientada. Aquele Renato II, que fugia qual miragem sempre que se aproximava dele, exasperava-a. Onde estaria ele? Em Estrasburgo, em Berna, em Friburgo, algures nos Cantões? Demétrios continuaria com ele? E Philippe? Onde estava Philippe? Já estaria curado dos seus ferimentos e, nesse caso, estaria em que prisão? Os pontos de interrogação sucediam-se no espírito desencorajado da jovem, que não sabia onde procurar as respostas.

Se o duque da Lorena partiu em busca de socorros, acaba por regressar predisse Léonarde, sempre prática. Cessai de vos atormentardes; não mudareis nada a esta história insensata que o duque Carlos nos obriga a escrever com ele...

Sabeis em que estou a pensar? Pergunto a mim própria se Demétrios não estará em Nancy. Uma cidade cercada precisa de um bom médico, ao passo que um jovem príncipe de perfeita saúde pode dispensá-lo...

É muito possível. Mas não vejo como haveis de entrar na cidade para terdes a certeza?

Todos os fins de tarde, da janela do seu quarto, Fiora via o dia cair sobre Nancy e o desejo de nela entrar era cada vez mais ardente. Pensava que aquelas muralhas martirizadas pelo tiro dos canhões, mas que continuavam de pé, mantinham no seu interior o homem que amava. Mas, como entrar sem experimentar o fogo dos defensores ou fazer-se matar pelos assaltantes? E estremecia quando ao fim do dia o Sol vermelho de Outono vestia de chamas e sangue os baluartes...

A cidade defendia-se com unhas e dentes. Os ataques incessantes atormentavam o campo borgonhês, que, de cada vez, deixava lá homens. O bastardo de Vaudémont, que a lenda começava a aureolar, conseguira mesmo, na noite de Todos-os-Santos, aproximar-se do quartel-general dos assaltantes e a casa do Temerário escapara à justa a um incêndio. Vaudémont desaparecera na noite com os seus homens sem perder um único, mas a sua passagem deixara o solo juncado de cadáveres.

E então o Inverno, com um mês de avanço, chegou como uma tempestade e tratou todos de igual modo, sepultando sob o seu manto de neve e bruma sitiados e sitiantes. Numa noite tudo ficou branco; os ribeiros e o lago de Saint-Jean gelaram e até o próprio Meurthe se pôs a arrastar pedaços de gelo. A fome e os seus sofrimentos instalaram-se em Nancy e o frio, a doença e o medo no campo dos Borgonheses. Cada dia que nascia revelava deserções.

Inquieto, Antoine de Borgonha tentou fazer com que o seu irmão ouvisse a voz da razão:

Por que vos obstinais nesta campanha de Inverno? Perdemos soldados todos os dias. Levantemos o cerco e vamos abrigar-nos no Luxemburgo. Regressaremos na Primavera...

Isso era dar tempo a que Renato refizesse o exército e que Nancy se reabastecesse. Não, meu irmão. Decidi passar o Natal nesta cidade danada, da qual queria fazer a capital de um império. Eles não aguentam muito mais tempo. Já comeram os cavalos. Agora, comem os cães, os gatos e até os ratos...

O que era verdade. Nancy suportava corajosamente o seu martírio, queimava os seus móveis para ter um pouco menos de frio e tentava saídas desesperadas na esperança de recuperar um pouco de comida... Os Borgonheses tinham menos falta porque controlavam, a norte da cidade, a estrada de Metz e do Luxemburgo, por onde lhes vinha o reabastecimento. O tesouro de guerra, de facto, encontrava-se no Luxemburgo. Campobasso, Chimay e Nassau vigiavam aquela estrada com ordens formais de nem sequer se mexerem. Era o duque que, todas as manhãs, ia visitar os capitães e o avanço dos diferentes trabalhos.

Fiora gostava daquelas disposições: mantinham Campobasso afastado do campo da Comendadoria e permitia-lhe sair sem receio de maus encontros. Porque na casa de madeira a atmosfera, fumarenta por causa das braseiras, era-lhe difícil de suportar. ”Ainda acabamos de sair de lá fumadas como os presuntos”, resmungava Léonarde e todos os dias, na companhia de Battista, a jovem obrigava-se a um curto passeio em redor do lago de Saint-Jean ou até ao bosque de Saurupt. Foi assim que um dia, aproveitando um raríssimo raio de sol e avançando até à orla do bosque, viu um lenhador a desbastar uma árvore e a carregar uma espécie de trenó com lenha. A jovem sentiu uma vontade súbita de lhe falar e aproximou-se:

Sois daqui, bom homem? Porém, não há muitas casas por aqui.

Moro bastante longe, mas com este tempo danado é preciso encontrar madeira para nos aquecermos, não?

O homem endireitou-se, esfregou os rins e do alto da sua grande estatura olhou para a jovem com uns olhos azuis e divertidos. Apesar da barba e do bigode enormes, Fiora, estupefacta, reconheceu Douglas Mortimer... Deitando em volta um olhar rápido para ver onde estava Battista, viu-o a esticar o arco, que trazia sempre consigo por precaução, na direcção de um bando de corvos.

Que fazeis aqui? sussurrou ela.

Trabalho, como vedes. Não é fácil encontrar-vos, pois não? O Rei está preocupado convosco e pergunta a si próprio se não vos tornastes borgonhesa? Falaram-lhe de uma jovem que não abandona o Temerário. Sois amante dele?

Não digais asneiras: o duque não tem nenhuma amante. Eu sou, para ele, uma espécie de talismã.

A figura barbuda abriu-se num largo sorriso:

Se estivestes em Grandson e em Morat, sois, de facto, um grande talismã.

Predisseram-lhe que a morte se manteria afastada enquanto eu estivesse com ele...

Estou a ver. Mas vós tendes pernas e uma coisa que se chama inteligência. Por que razão ainda não escapastes?

Vede aquele rapaz que está a atirar aos corvos! Se eu fugir, ele será executado.

Ah!... De facto, é um problema que tentaremos resolver. Mas, foi uma sorte terdes vindo até aqui. Há vários dias que vou ao acampamento tentar vender lenha ou lebres, como ontem. Queria que se habituassem a ver-me. Aliás, vou continuar, mas quero dizer-vos o seguinte: o Rei quer que eu vos tire daqui, porque o perigo está a aumentar e ele teme por vós...

Agradecei-lhe, mas, para já, não tenho nada a temer. O que eu quero saber é onde está o duque Renato? Sabeis?

Ainda está bastante longe, creio, mas, antes do fim do ano, está aqui. O perigo é esse.

Eu não o temo. Podeis dizer-me se Demétrios ainda está com ele?

O médico grego? Nunca o abandona. Dizei-me: não achais que já conversámos de mais?

Só mais uma pergunta: por que razão regressou Campobasso?

Pelo dinheiro... e por vós. Tomai cuidado! O tipo é um pedinte, conseguiu até enfastiar o Rei, que o mandou embora. Há-de desertar quando chegar a hora. O Rei está-vos reconhecido pelo que fizestes, mas teme que vos transformeis em vítima. Campobasso deseja-vos seja a que preço for, portanto, agora que já nos vimos, não saiais do vosso alojamento. Vou tentar olhar por vós, mas, de qualquer maneira, não será por muito tempo.

Mortimer recomeçara, há já uns momentos, o seu trabalho. Battista, que matara dois corvos, aproximou-se com a sua caça. Fiora felicitou-o pela sua habilidade.

Ides comê-los? Dizem que são muito duros.

Não se os cozermos durante muito tempo, mas eu estava a pensar oferecê-los a este pobre homem. A caça é rara, nesta estação.

O falso lenhador aceitou o presente com uma gratidão enternecedora e um sotaque local, que divertiu tanto Fiora que a jovem preferiu afastar-se rapidamente com o pajem, perseguida pelas bênçãos do homem... Aquela presença dava prazer à jovem e inquietava-a, ao mesmo tempo. Se Mortimer fosse apanhado, seria enforcado como espião, o mesmo que acontecera a um mordomo do duque Renato, um fidalgo provençal chamado Suffren de Baschi, que fora descoberto quando tentava fazer entrar pólvora e carne na cidade. Uma curiosa história, aliás! O duque Carlos, num primeiro assomo de cólera, ordenara que ele fosse enforcado. O grande bastardo, o sire de Chimay e Campobasso tinham pedido que ele lhe poupasse a vida, mas enquanto os dois primeiros perseguiam o príncipe com as suas súplicas, Campobasso mandara enforcá-lo imediatamente. O infeliz gritara aos seus advogados ”Dizei ao duque que me conceda um instante a sós. Ele dar-me-á um ducado se souber o que eu tenho para dizer...” Do que Mortimer lhe dissera, Fiora tirou uma conclusão simples: Suffren sabia que o condottiere era um traidor e era isso que ele queria revelar ao duque.

Nos dias que se seguiram, Fiora não abandonou o seu alojamento e fez companhia a Léonarde, que tinha apanhado uma constipação ao ajudar Matteo de Clerici a tratar dos doentes. Houve uma grande assembleia em honra do protonotário Hessler, que trouxe uma carta e algumas jóias da parte do príncipe Maximiliano para a sua noiva Maria de Borgonha. O duque e os seus capitães esforçaram-se por lhe fazer uma boa recepção apesar dos poucos meios de que dispunham. Fiora, essa, absteve-se de aparecer porque tinha avistado Campobasso entre eles. Além disso, tivera esperança que monsenhor Nanni acompanhasse, como habitualmente, o abade de Xanten, mas Hessler estava só e não havia notícias de Panigarola. A jovem pensou que o núncio, dada a sua idade, talvez já tivesse morrido?

E depois chegou o Natal, o mais trágico jamais vivido pelos beligerantes. Nancy morria de fome e demolia os vigamentos das casas para obter um pouco de calor que não o dos incêndios acesos pela artilharia borgonhesa e que a água gelada impedia que fossem apagados, mas no campo a situação não

1 Um antepassado do bailio de Suffren


era melhor. Cada dia que passava tinha o seu custo em homens. O frio impiedoso paralisava-os, gelava-lhes os pés e matava-os às centenas. As deserções atingiam números alarmantes e naquela noite de Natal, que prometera ser de festa no palácio dos duques da Lorena, o duque Carlos, depois de ter ouvido missa, errou até de madrugada por entre os seus soldados na companhia do seu médico e do grande bastardo, esforçando-se por reconfortá-los, distribuindo vinho, aguardente, medicamentos e repreendendo os capitães por, segundo ele, não saberem cuidar dos seus homens, mantendo-os, ao menos, vivos:

É preciso ser-vos muito fiel, monsenhor lançou-lhe Galeotto. Celebra-se por toda a Europa a vinda do Menino Jesus e nós morremos aqui de miséria e doença em frente desta puta desta cidade que prefere deixar-se destruir até à última pedra a render-se. Não seria melhor partir, antes que a morte nos leve a todos?

Há um outro Menino diante do qual não fugiremos nunca e que se aproxima. Antes a morte!...

Após a missa do dia, durante a qual ninguém cantou, o duque mandou chamar Fiora.

Lamento muito por vos ter obrigado a seguir-me, madame de Selongey era a primeira vez que a tratava assim e peço-vos perdão do fundo do meu coração... Eu sei... que não tenho muito a esperar da Fortuna e talvez, até, tenha feito perder a paciência a Deus. No entanto, não encontro coragem para me separar de vós...

Por causa da predição do rabi? perguntou Fiora docemente.

Ah, sabeis disso? Mas enganais-vos. Morrer em combate é tudo o que desejo. A Borgonha com que sonhava... continuará a ser um sonho. Quando o loreno chegar, restar-me-ão, talvez, uns cinco mil homens. Não, se vos peço que me acompanheis é para ter diante dos olhos durante o mais tempo possível uma imagem de beleza pura. Compreendeis?

Não percais a coragem, monsenhor! Isso nem parece vosso. Vós sois o grande duque do Ocidente, sois...

O príncipe que vós odiáveis? Lembrais-vos?

Há muito tempo que não penso assim. O meu marido amava-vos tanto!...

Obrigado, mas não nos entristeçamos mutuamente. Hoje é dia de Natal e eu quero dar-vos um presente... digno de vós.

Tirando do pescoço um delgado fio de ouro, colocou-o no pescoço de Fiora. Este tinha, suspenso, um diamante piramidal ^

de uma rara cor azulada.

Guardai isto em minha memória, porque é quase certo acrescentou ele com um sorriso nunca mais receberdes o vosso dote.

Monsenhor! Não posso aceitar...

Oh, sim, podeis, porque eu quero. E agora retirai-vos e mandai-me Olivier de La Marche... Profundamente comovida, Fiora regressou ao seu alojamento lentamente, a mão segurando a pedra ainda quente.

Compreendera que o sonhador acabara de acordar e que pensava com uma lucidez fria nos perigos que o ameaçavam. Era o javali acossado pela matilha, sabia-o e não faria nada para escapar ao seu destino, limitando-se a defender-se até ao fim. Mas nunca se deixaria apanhar vivo... Como sempre nos grandes dramas, surgiu uma nota burlesca. Nos últimos dias do ano sob a figura do Rei Afonso V de Portugal, primo do duque. O monarca vinha propor os seus bons ofícios para reconciliar o seu primo com o Rei de França, com o objectivo de obter deste último uma ajuda financeira para a sua luta contra a rainha de Castela. O duque Carlos olhou para ele de olhos esbugalhados, como se o Rei de Portugal tivesse caído da Lua: Ajudai-me antes a tomar Nancy! disse ele encolhendo os ombros. O outro abriu também os olhos e depois, compreendendo que não havia nada a fazer, eclipsou-se sem dizer palavra. Campobasso desertou na noite de São Silvestre, levando consigo os seus dois filhos e trezentos cavaleiros. Ia juntar-se ao duque da Lorena, que estava apenas a dois dias de jornada, para lhe pedir, como preço da sua traição, a cidade de Commercy. Esperava uma recepção calorosa, mas só encontrou rostos gelados. Os chefes suíços que rodeavam Renato II declararam-lhe brutalmente que não combateriam ao lado de um traidor. Mandaram-no guardar a ponte de Bouxières, que defendia a passagem pelo Meurthe, a uma légua de Nancy:

Ter-me-íeis, talvez, acolhido calorosamente se vos tivesse trazido a cabeça do Temerário! lançou-lhes ele, furioso.

Seria uma pena uma cabeça tão nobre cair numas mãos tão sujas! ripostou Oswald de Thierstein.

A 4 de Janeiro de 1477 o exército loreno instalou-se em Saint-Nicolas-de-Port, nos arredores de Nancy, depois de ter massacrado a guarnição borgonhesa. A batalha seria no dia seguinte.

Na manhã desse domingo, Fiora via a neve cair. Estava menos frio, mas os campos estavam brancos e o vento erguia turbilhões imaculados. Nem ela, nem Léonarde, tinham dormido nessa noite. Era, sem dúvida, por causa da libertação próxima, mas não se sentiam, por isso, menos angustiadas, como se esperassem uma catástrofe... Uma após outra, as companhias deixavam o campo para irem tomar posições e desapareciam na tormenta como um exército de fantasmas...

Após a missa, a que as duas mulheres assistiram junto dele, o duque Carlos fez as suas despedidas e entregou-se aos seus escudeiros para envergar a pesada armadura.

Subitamente, quando um deles lhe colocava o elmo na cabeça, o leão de ouro que o encimava caiu. Impassível, o Temerário olhou para aquele símbolo da grandeza da Borgonha no tapete vermelho e azul e depois para o grande bastardo-.

Hoc estsignum Deil disse ele apenas, enquanto o seu mordomo se apressava a fixar de novo o ornamento. Em seguida colocou-lho na cabeça e dispunha-se a sair quando Battista apareceu e dobrou um joelho perante o príncipe:

Mandai que me dêem armas, monsenhor! Quero estar junto de vós nesta batalha...

Não te confiei uma missão? A de velar por esta dama?

Donna Fiora já não precisa de mim e eu quero combater ao vosso lado. Eu sou um Colonna! Este nome dá-me direito ao perigo.

Será como desejas, meu rapaz disse o duque enquanto um pálido sorriso lhe passava pelo rosto imóvel. Que lhe dêem armas! Adeus... adeus a todos!

1 É um sinal de Deus.


E saiu. O Moro, o seu belo corcel negro, esperava-o, soberbamente coberto por uma carapaça no meio de um grupo de fidalgos. O duque subiu para a sela, saudou as duas mulheres com uma mão e pôs-se em marcha com os seus companheiros. Fiora viu o leão de ouro e o grande estandarte roxo e negro esfumarem-se e desaparecerem, depois, na tormenta de neve.

É melhor entrardes disse Léonarde. Está muito frio.

Só mais um momento...

A jovem não queria que a sua velha amiga visse as lágrimas que lhe caíam dos olhos e deu alguns passos. O ataque, então, foi repentino: apareceram três cavaleiros; um deles apoderou-se dela, atravessou-a na sela sem se preocupar com os gritos, virou a montada e fugiu tão depressa quanto o permitia a neve já espessa.

Já esperei o suficiente gritou ele. Agora, és minha para sempre!

Mas Fiora não precisara de o ouvir. Já reconhecera Campobasso e, sem parar de gritar, começou a debater-se para tentar deslizar para terra, o que retardou a corrida do seu raptor.

Dai-lhe uma pancada, meu pai! aconselhou-o um dos cavaleiros. Um galo nunca matou uma mulher e estamos com pressa.

Mais vale matar-me! berrou Fiora. Isso evitará que eu própria o faça, porque nunca te pertencerei. Metes-me nojo...

O aço da armadura magoava o corpo da jovem, que não deixava, por isso, de se debater, desesperada. O condottiere, ia talvez, seguir o conselho de Angelo, quando três outros cavaleiros surgiram da cortina branca impalpável e lhe barraram o caminho.

Campobasso! Já sei que és um traidor. Agora, vou ver se és mesmo um cobarde! declarou Philippe de Selongey Raptaste a minha mulher e vais pagar com a vida...

Vem buscá-la, se és capaz! disse o raptor, esforçando-se por apertar Fiora contra si para fazer dela uma protecção. Mas a voz de Philippe galvanizara a jovem. Com todas as garras de fora, atirou-se furiosamente ao rosto que a viseira do elmo erguida deixava descoberto. Campobasso lançou um urro e abrandou o abraço. A jovem aproveitou para lhe escapar e deslizou para a neve...

Grande defesa! apreciou a voz tonitruante de Douglas Mortimer mas afastai-vos, porque ainda não acabámos com esta gente.

O terceiro cavaleiro, que era Esteban, já tinha, aliás, saltado para terra, para erguer a jovem e encostá-la a um coto de árvore.

Tudo bem? perguntou ele.

Sim... mas, de onde saís vós?

Dir-vo-lo-emos mais tarde. Por ora, precisam de mim... O castelhano voltou a subir para a sela e juntou-se aos outros. O combate já tinha começado entre Selongey e o seu inimigo e as armaduras ressoavam sob o choque da acha de armas manejada por Philippe e a maça empunhada pelo seu adversário, Mortimer lutava contra Angelo e o terceiro cavaleiro, que era Giovanni, o outro filho. Esteban correu para este último.

Encostada à árvore e com um nó de angústia no estômago, mas não sentindo o frio ou a humidade que lhe invadiam as roupas, Fiora seguia o furioso combate que se desenrolava perante os seus olhos. A jovem esforçava-se por manter a confiança: o milagre que acabava de se produzir não podia ser em vão. Era preciso que a vitória estivesse com a causa justa...

Subitamente, dominando as injúrias que os combatentes trocavam, ouviu-se um grito de angústia seguido de um urro de dor:

Giovanni! berrou Campobasso.

Já o corpo sem vida rolava na neve, que ficou vermelha. Esteban, mais ligeiramente armado do que os seus companheiros, saltara para a garupa do seu adversário e, tirando-lhe o elmo, degolara-o. Ao mesmo tempo, no instante em que a atenção do condottiere se desviou, Philippe assentou-lhe um golpe com a acha, que esmagou o elmo e feriu o napolitano na cabeça... mas este permaneceu na sela. Ao ver aquilo, Angelo desviou-se da maça de Mortimer, agarrou nas rédeas do cavalo do seu pai e puxou-o:

Ao largo, meu pai! Não ganharemos!

Os dois cavaleiros desapareceram em direcção a norte... Philippe, que já tinha tirado o elmo, correu para a sua mulher e tomou-a nos braços.

Meu amor! Não tens nada?... Ele não te feriu?

Não... Oh, Philippe, és mesmo tu? Já desesperava de te tornar a ver... Pensava...

Mas ele fechou-lhe a boca com um beijo apaixonado, apertando-a contra o peito vestido de ferro com tanta força que lhe arrancou um gemido.

Ainda a esmagais observou tranquilamente Mortimer e, quanto a mim, seria uma pena. Deixai-a viver um pouco.

Philippe largou Fiora e desatou a rir:

Tens razão, companheiro, mas uma felicidade assim põe um homem maluco. Confio-vo-la: cuidai dela...

Philippe! gritou Fiora ao ver que ele voltava a pôr o pé no estribo não me vais deixar?

A jovem levantou-se e correu para ele, mas Philippe já estava na sela e o seu sorriso apagou-se:

Tem de ser, Fiora! Além combate-se e o meu príncipe não tem muitas hipóteses de ganhar a batalha. Tenho de me juntar a ele! Obrigado, amigos e obrigado a monsenhor Renato que, como um verdadeiro cavaleiro, permite que me junte aos meus uma vez a minha mulher fora de perigo...

Philippe! berrou Fiora com o coração despedaçado fica. Vais-te matar!

Espero que não, porque te amo!

Selongey esporeou o cavalo e Fiora quis segui-lo, mas Mortimer segurou-a por um braço:

Ficai tranquila! disse ele rudemente. Ele não vos perdoará se não o compreenderdes: trata-se da sua honra!

No mesmo instante, o mugido lúgubre das grandes trompas montanhesas fez-se ouvir. Já passava um pouco do meio-dia e a batalha tinha começado...

Não durou muito, apesar da defesa desesperada do pequeno exército borgonhês. Qual aríete gigantesco, a falange suíça, eriçada de chuços, saíra da floresta de Saurupt para mergulhar de flanco nas tropas inimigas, que tinham de fazer face, ao mesmo tempo, ao assalto frontal dos Lorenos. Por duas ou três vezes ainda, enquanto o exército debandava e Galeotto retirava para o Meurthe com o que restava dos seus homens, se viu o Temerário no combate, batendo-se furiosamente antes de desaparecer...

Com o cavalo a passo, Demétrios costeou o pequeno rio Saint-Jean na direcção do lago do mesmo nome. Os cadáveres cobriam o solo onde a neve, sob o espezinhar constante, se transformara numa lama sangrenta. Já os larápios, abutres habituais dos campos de morte, tinham entrado em acção, ao mesmo tempo que os sinos da cidade libertada soavam loucamente.

Ao chegar junto do lago, o grego pensou ouvir um queixume, um apelo fraco. Pondo pé em terra, pegou no seu saco de medicina. O lago estava gelado, mas o gelo cedera em alguns locais sob o peso dos corpos sem vida. Com precaução, o médico avançou por entre os caniços, tacteando o solo com a ponta do pé antes de o pousar. O queixume tornou-se mais próximo e, subitamente, viu-o. Deitado no meio das plantas cobertas de geada, os pés metidos dentro de água e a armadura dourada manchada de sangue, o Temerário estava ali, diante de si, com um longo chuço enterrado no peito e um outro trespassando-lhe uma das coxas. O elmo com o leão de ouro repousava contra o seu ombro, mas Demétrios não precisava daquele emblema para reconhecer o homem que odiava há tanto tempo.

O ferido sentiu a sua presença e abriu os olhos:, Salva... a Borgonha! sussurrou ele e Demétrios inclinou-se. O seu inimigo estava ali, ofegante, à sua mercê. Bastava-lhe um gesto para saciar a sua vingança e já a sua mão procurava na cintura o punho da adaga, mas ouviu:

Em nome de Deus vivo... ajudai-me!

Então, o grego lembrou-se que era médico e que em nenhum caso um médico tem o direito de matar. As suas mãos, que iam ferir, não tinham sido feitas para aquilo, antes para tratar as feridas, cuidar e sarar... e o gosto amargo da vingança abandonou a sua boca. Empunhando a arma que segurava o corpo ao solo, puxou-a lentamente antes de a atirar para longe, em seguida desapertou a armadura e tirou-a com infinitas precauções:

Estai quieto disse ele. Eu sou médico... Vou tratar-vos e depois vou buscar ajuda...

O médico virou-se e levantou-se para ir buscar o seu saco, que tinha deixado atrás de si. O golpe chegou nesse instante. Lançada por mão segura, uma acha afundou-se no crânio de Carlos. O duque expirou de imediato e Demétrios, estupefacto, viu o assassino fugir. Não havia mais nada a fazer. Desta vez, o Temerário estava mesmo morto... e a Borgonha com ele, sem dúvida.

O grego ficou ali um momento a contemplá-lo, procurando, face àquele despojo trágico, reencontrar o seu velho ódio. As armas da Lorena, que ele usava no braço, preservavam-no dos homens em busca de um saque qualquer e estes afastavam-se da sua silhueta negra debruçada sobre aquele ninho de caniços, onde começava a dissolver-se o que fora o mais faustoso dos príncipes da Europa...

Também não o conseguistes matar, pois não disse uma voz fria e, erguendo os olhos, Demétrios viu Léonarde olhando para si de braços cruzados, apertando em redor dos ombros uma grande peça de tecido de fazenda cinzenta...

Não disse ele com uma nova humildade não, não consegui. Antes de mais nada, sou médico...

E queríeis que ela o matasse, ela, aquela inocente, que vós, mais do que ninguém, sabíeis o que tinha sofrido? É fácil, não é verdade, dizer: ”Mata!... Apunhala! Envenena!” quando estamos afastados e em segurança? Ela arriscava-se à tortura, ao cadafalso, mas, para vós, isso tinha pouca importância. E ousastes exercer sobre ela a mais odiosa das chantagens...

Não me acabrunheis, donna Léonarde! O pensamento de que ela pudesse tornar-se amiga dele dava comigo em doido! Ela tinha jurado ajudar-me a destruí-lo...!

E vós fundastes as vossas esperanças numa criança, ousastes fazer do homem que ela ama o objecto de uma troca ignóbil! E julgais que eu vo-lo deixaria fazer? Eu não gostava de vós, Demétrios; mas, agora, odeio-vos...

Não vos culpo. Esteban também se virou contra mim; ajudou Philippe de Selongey a escapar e conseguiu para ele a protecção de Guillaume de Diesbach e do duque Renato. Mas tudo acabou. Pedi perdão por mim a Fiora e dizei-lhe que, a despeito do que possa pensar, sempre gostei muito dela.

Onde ides?

Não sei. Procurar alguém que ainda precise de mim. Talvez o Rei Luís...

Pouco importa. O que interessa é que seja bem longe daqui. Talvez ela vos perdoe. Eu, não posso...

Evidentemente...

Com grande esforço, ele içou-se para o cavalo. Num instante, os seus ombros tinham-se curvado e o médico envelhecera dez anos. Uma vez na sela, virou-se para a mulher que o olhava na margem do lago gelado, parecida com uma impiedosa estátua da justiça...

Adeus, donna Léonarde!

Adeus, ser Demétrios! Não vos posso desejar nada melhor do que a paz do vosso coração, mas, para isso, tendes de mudar de caminho...

Nessa mesma noite, à luz dos archotes, o duque Renato, em cima de Dame, a sua mula branca, fazia a sua entrada em Nancy para ir dar graças à igreja de Saint-Georges. Mais de metade da cidade estava arruinada e o palácio ducal não tinha tecto: tinham-no queimado. Em frente do convento das Irmãs Pecadoras tinham feito uma pirâmide com as ossadas dos cavalos, dos cães e dos gatos que tinham comido durante o cerco, mas, graças às provisões do campo borgonhês, a fome estava a afastar-se. Não passaria, em breve, de uma má recordação...

Os prisioneiros eram numerosos: o grande bastardo e o seu outro meio-irmão Baudoin, o conde de Chimay, Olivier de La Marche, Jean de Chalon-Orbe, o senhor de Blamont, o margrave de Roeteln e o seu cunhado Philippe de Fontenoy, Philippe de Selongey e a flor da cavalaria borgonhesa. Seriam postos a resgate, mas pela graça do duque Renato, Fiora, nessa mesma noite, reencontrou ao mesmo tempo o seu marido e o quarto que ocupara um ano antes em casa de Georges e Nicole Marqueiz...

Entretanto, o duque Renato não estava satisfeito: o duque de Borgonha não fora encontrado e só a ideia de que ele pudesse estar vivo punha em perigo a sua vitória. Se o Temerário tivesse conseguido fugir para o Luxemburgo ou para outro sítio qualquer, a coroa da Lorena nunca estaria segura na sua cabeça.

Ora, no dia seguinte, enquanto o povo de Nancy pilhava o campo borgonhês, um rapaz veio ajoelhar-se perante Renato: era Battista Colonna:

Eu creio saber onde está o duque, monsenhor, porque vi-o cair... Posso guiar as buscas.

Seguiram-no até ao lago de Saint-Jean onde, entre as dezenas de cadáveres completamente despojados, jazia um corpo meio nu preso nos gelos e quase irreconhecível. O crânio estava fendido até à maxila, o corpo cheio de ferimentos e meio esmagado pelos cascos dos cavalos e uma face devorada por um lobo, ou por um cão. Junto dele jazia Jean de Rubempré, que fora governador da Lorena. Os dois corpos foram piedosamente envoltos em lençóis brancos e transportados para Nancy, um para casa de um burguês chamado Hughes e o duque para casa de Georges Marqueiz. Lavaram-no, vestiram-lhe um longo traje de seda bordada, cobriram-lhe a cabeça fendida com um gorro de veludo vermelho e estenderam-no num leito coberto de veludo negro, de mãos juntas e com quatro archotes nos quatro cantos. Foi erguido um altar no quarto e todos foram admitidos a saudar aquele que fora o último grande duque do Ocidente.

O duque Renato também apareceu, usando, segundo o costume dos antigos cavaleiros medievais, uma barba de ouro que lhe descia até à cintura, último sinal de respeito para com um adversário vencido. Olhou por um momento para o despojo mortal, pegou-lhe na mão direita e, com um suspiro:

Não foi por minha vontade, meu primo, que a vossa infelicidade e a minha vos reduziram a este estado...

Em seguida, inclinou-se profundamente e saiu para devolver a vida à sua Lorena martirizada. No dia seguinte, o Temerário era inumado na igreja de Saint-Georges, tapado por um pano negro e na presença de todos os habitantes da cidade transportando na mão uma vela acesa. Era o fim...

No quarto que o fogo mal aquecia, Philippe e Fiora acabavam de se amar. Deitados, ombro contra ombro e mão na mão, saboreavam a bem-aventurada prostração dos corpos que acabam de lançar para os lençóis brancos amarrotados a onda de

1 Foi trasladado, depois, para Bruges.


prazer, mas não dormiam. Não tinham vontade, nem um, nem outro, porque lhes parecia que nunca conseguiriam recuperar o tempo perdido. Tinham a impressão de que, com as mãos juntas, o sangue corria de um para o outro.

Erguendo-se num cotovelo, Philippe acariciou com a ponta do dedo o belo rosto de olhos fechados, pousou um beijo nos mamilos cor-de-rosa e passou uma mão terna sobre a pele tensa do ventre liso:

Espero que me dês em breve um filho murmurou-lhe ele ao ouvido. Já é tempo, não achas, de pensarmos em fundar uma família?

Ela esticou-se, bocejou e, virando a cabeça, colou os lábios aos do marido.

Tens assim tanta pressa? perguntou ela, recuperando o fôlego. Não poderemos amar-nos, simplesmente? Temos muito tempo. Não temos a vida toda à nossa frente?

Sem dúvida, mas quando regressar contigo a Selongey gostaria que tivesses, nesse belo corpo, uma pequenina chama. Qual é o homem apaixonado que não deseja fundir-se com a mulher amada para dar à luz uma criança? E nunca mulher alguma foi amada como eu te amo... Meu amor, minha doce, minha bela, quando estiver longe de ti ser-me-á tão doce...

Aquelas últimas palavras fundiram-se num beijo ardente que Philippe prolongou ao longo do pescoço de Fiora, ao mesmo tempo que a sua mão lhe afastava docemente as pernas. Mas uma espécie de sinal de alarme acabava de se acender no espírito da jovem e, deslizando para fora do abraço que a prendia, afastou-se um pouco e ficou sentada aos pés da cama, de pernas dobradas, olhando para o grande corpo deitado marcado por novas cicatrizes.

Quando estiveres longe de mim? O que é que isso quer dizer? Tens intenção de me deixar, agora que acabamos de nos reencontrar?

Vai ser preciso, meu amor suspirou ele. O duque morreu, mas a Borgonha continua viva. E tem um nome: a princesa Maria, que a cidade de Gan mantém cativa com a duquesa Marguerite. É dever daqueles que foram companheiros do seu pai irem oferecer-lhe os seus braços e as suas espadas...

A princesa Maria? Mas ela não precisa de ninguém! Não está noiva do filho do imperador Frederico? Creio que ele já é suficientemente grande para velar pelos interesses da sua futura mulher?

Depois do que acaba de se passar, não tenho a certeza que Frederico continue a considerar esta aliança muito proveitosa. A Borgonha está exangue... e as filhas do Rei de França são muito ricas. Não te zangues, Fiora e volta para os meus braços! Eu tenho um dever a cumprir e a minha mulher deve compreender.

Ele tentou puxá-la para si, mas ela bateu nas mãos estendidas e saltou da cama...

Não, Philippe. Não contes com a minha compreensão. Durante este tempo todo em que estivemos afastados um do outro, sofri demasiado, para aceitar agora uma nova separação... Tu és, decididamente, o homem dos amores breves! Quando casaste comigo só querias de mim uma noite de amor e agora, após unicamente três noites, só pensas em partir? Quero lá saber da princesa! Ela tem palácios, guardas, uma herança enorme e um noivo imperial. E eu tenho que ir enterrar-me num castelo perdido na companhia de uma cunhada que me detestará, sem dúvida, enquanto tu cavalgas pela Flandres e brincas aos cavaleiros andantes socorrendo viúvas e órfãs? Não contes com isso!...

Fiora exclamou Philippe tu não compreendes. O meu amor por ti, ardente e profundo, não está em jogo. Sabes muito bem que só tu contas para mim...

Depois da princesa Maria!

Não, muito antes, mas devemos à memória do seu pai tudo o que pudermos fazer para a salvar dos perigos que a ameaçam. Eu não vou partir já amanhã. Dentro de alguns dias iremos a Selongey, onde te instalarei como senhora soberana. E pode ser que não esteja ausente muito tempo. Voltarei...

Para o nascimento do teu primeiro filho? Não, não estou de acordo. Leva-me contigo!...

É impossível. Ainda não estás farta de guerra?

Mais do que farta, porque não ignoro que ela faz mais viúvas do que heróis. Ou ficas comigo... ou eu vou-me embora!

Ele levantou-se de um salto, correu para ela e quis prendê-la nos braços.

Louca disse ele ternamente para onde irias?

Para minha casa. Agnolo Nardi, que gere os interesses franceses do banco Beltrami, queria comprar-me um domínio. Melhor ainda, o Rei Luís deu-me de presente um castelo perto de Plessis-lez-Tours. É para lá que vou, Philippe... e será lá que tu me irás procurar quando decidires ser para mim um marido, um amante... enfim, outra coisa que não uma corrente de ar...

Fiora! As tuas condições são inaceitáveis. Eu sou borgonhês e não tenho nada que fazer em França. Nunca irei!...

Nem para me ir buscar?

Nem para te ir buscar...

Nesse caso, adeus... porque essa é a única prova de amor que quero de ti.

Ele empalidecera, mas os seus olhos dourados chamejavam de cólera:

Não tens o direito de fazer isso. És minha mulher e deves obedecer-me...

Ela olhou para ele por um instante, lutando contra a vontade de pôr termo àquela disputa, de se refugiar nos seus braços e recomeçar o terno duo interrompido, mas ele tinha pronunciado a palavra que não devia: obedecer!

O meu próprio pai, que tinha todo o direito, nunca me exigiu obediência. Se ser tua mulher só significa isso para ti, mais vale separarmo-nos. Um casamento pode anular-se, sei-o muito bem e, nem que tenha de ir a Roma, anularei o nosso... a menos que venhas comigo!

Arrancando um cobertor da cama, Fiora cobriu a sua nudez e saiu do quarto quente reprimindo ferozmente os soluços que lhe subiam à garganta.

Saint-Mandé, 12 de Agosto de 1988.

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