Segunda parte PARIS AMEAÇADA

CAPÍTULO V A GRANDE MISSA EM NOTRE-DAME.

Pouco depois das vésperas, os viajantes, cobertos de poeira e moídos de fadiga, desciam a longa rua Saint-Jacques em direcção ao Sena. Aquele dia de Agosto, com o seu sol velado, fora difícil de suportar, mas com a aproximação da noite um vento húmido, vindo de oeste, começou a soprar sobre Paris, acordando todos os cata-ventos que, no alto dos telhados, alinhavam as suas bandeirolas de chapa pintada e recortada.

Havia muita gente na rua. Era a hora em que os grandes colégios a Sorbonne, o colégio de Plessis, de Marmoutiers, du Man, de Clermont, etc. libertavam as turbas turbulentas dos seus estudantes, que, aos bandos ou isolados, fugindo às subtilezas escolásticas, de tinteiro à cintura e de chapéu às três pancadas, se encaminhavam para os seus alojamentos os mais sensatos ou, os mais loucos, para as tabernas do centro da cidade. Os mantos e os gibões eram mais ou menos ricos, mais ou menos limpos e mais ou menos desfiados, mas todos os olhos brilhavam com o mesmo desejo de viver. Trocavam brincadeiras e alguns até cantavam. Porém, esses risos e canções cessaram quando, de uma rua lateral, saiu uma escolta de homens de armas a cavalo enquadrando alguns polícias a pé, que levavam para o Châtelet uma meia dúzia de malandrins de mãos atadas atrás das costas.

Ouviram-se alguns gritos. Alguns daqueles malfeitores eram conhecidos dos estudantes, que não tiveram qualquer receio em lhes lançar encorajamentos e escarnecer dos soldados do preboste da cidade.

Quando chegaram ao centro, passada a Petit-Pont, a animação ainda foi maior: homens, mulheres, raparigas, burgueses e mercadores cumprimentavam-se, paravam e trocavam propósitos, ao mesmo tempo que alguns miúdos, que iam em busca de vinho, ou de mostarda, passavam agitando as suas bilhas. Entretanto e contrariamente aos estudantes, ninguém ria.

É um pouco como em Florença observou Fiora mas falta-lhe a nossa luz...

Hoje não há luz nenhuma disse Demétrios mas já vi esta cidade com um sol mais ardente do que o da Toscânia. E já passámos por imensos jardins!

Depois da porta Saint-Jacques, Paris mostrara-se em toda a sua beleza. Hortas, jardins e quintais, pertencentes a conventos ou a particulares, floresciam um pouco por toda a parte, escondendo as feridas ainda visíveis sofridas pela grande cidade durante uma guerra que durara cem anos e, sobretudo, aquando da ocupação inglesa. O Rei Carlos VII, que não gostava de Paris, não fizera grande coisa por uma cidadela que, segundo ele, o rejeitara durante demasiado tempo, mas Luís XI, se bem que preferisse os seus castelos do Loire à sua capital, compreendera que Paris merecia ser defendida e renovada. As muralhas tinham sido consolidadas, o fosso duplo reescavado e muitos edifícios reconstruídos com a ajuda de uma burguesia que o Rei enriquecia e tornava poderosa.

Apesar de considerar a capital como o centro nevrálgico do reino, Luís raramente a visitava. Desdenhando a antiga residência Saint-Pol que tanto agradara aos seus avós, ficava, então, no palácio de Tournelles, do qual os duques de Orlães tinham feito uma espécie de obra de arte com um parque, um bosque, animais selvagens, um labirinto, galerias, capelas, claustros e edifícios graciosos, ou, mais frequentemente, na residência da portaria da Bastilha Saint-Antoine, no coração das defesas da sua cidade.

Não era raro verem-se viajantes estrangeiros em Paris. Assim, Fiora e a sua escolta não despertaram grande curiosidade. Ainda por cima porque não tiveram que perguntar o caminho: Demétrios, ficara alojado, em tempos, no albergue do Grand Saint-Martin, na rua do mesmo nome, quando, com o seu jovem irmão Teodósio, tinham fugido de Bizâncio em chamas. A sua memória infalível era o guia mais seguro. Fez, até, uma vez na rue de la Cite, um ligeiro desvio para que Léonarde pudesse contemplar à vontade a catedral de Notre-Dame. Ela quis entrar para uma curta oração, à qual Fiora não se associou, preferindo esperar de pé no pequeno adro enquanto contemplava, de braços cruzados, a formidável igreja com o seu pórtico triplo, as estátuas de reis e as imensas torres gémeas, que pareciam querer impor-lhe a imagem opressiva do poder de Deus. De um Deus com o qual, mais do que nunca, se sentia revoltada. De um Deus terrível, impiedoso, que, não contente por lhe ter arrancado tudo, ainda permitira que desse o seu coração inocente a um homem suficientemente vil e perverso para ridicularizar o sacramento do casamento com o único objectivo de possuir o seu corpo e de levar triunfalmente ao seu senhor o dote real, que, àquela hora, já devia ter sido devorado pelas armas de uma conquista injusta... Fiora já não queria saber, já não queria rezar, para grande desgosto de Léonarde.

Quando esta saiu, ainda maravilhada com o que vira no interior daquele santo lugar, Fiora contentou-se em subir para a sela e perguntar:

Essa rua dês Lombards ainda é muito longe?

Não. Depois de atravessarmos o outro braço do Sena, já não falta muito. Gostas de Paris?

Não sei. É, sem dúvida, uma bela cidade, mas tenho a impressão de sufocar.

A viagem cansou-te e o tempo faz o resto.

Saíram da ilha por uma ponte de madeira ladeada de casas todas iguais e a ponte de Notre-Dame, que fora construída pelo Rei Carlos VI, avô de Luís XI. Ouvia-se um grande barulho vindo dos moinhos, cujas grandes rodas batiam na água, que erguiam e depois deixavam cair em grandes cachões brilhantes... Passado o Sena, meteram por uma praça espaçosa que ia morrer docemente na margem do rio. Um imponente edifício, repousando sobre grandes arcadas e coroado por coruchéus limitava-a a leste.

É a Casa dos Pilares explicou Demétrios. É ali que estão os almotáceis. Uma espécie de Senhoria. Chamam-lhe a Greve. Lá dentro há um exército de negociantes, carregadores, barqueiros e até taberneiros, que vão abastecer-se de vinho nos tonéis que vês além na margem, junto daquele monte de feno. É o lugar mais animado de Paris, dos folguedos... e também das execuções, infelizmente!

Meu Deus, como cheira mal! protestou Fiora tapando o nariz.

Esse cheiro vem das fábricas de curtumes que podes ver deste lado, mas perto daqui fica, também, o Grande Matadouro. Mas, acho-te muito esquisita, de repente. No centro de Florença também não cheira a rosas. As damas usam perfumes, tanto lá, como aqui. Eu ofereço-te um...

Por fim, mergulharam num dédalo de ruas estreitas, tornadas escuras pelos grandes telhados das casas com varandas que as ladeavam e quase se tocavam. Apesar da valeta escavada a meio do pavimento, este estava cheio de detritos, mas, pelas janelas abertas, os cheiros das cozinhas lutavam vitoriosamente contra aqueles.

A visão sedutora da rua dês Lombards reconfortou um pouco Fiora. As suas casas, arvorando todas belos estandartes coloridos, pertenciam, em grande parte, a comerciantes genoveses, milaneses, venezianos e florentinos, que tinham a seu cargo a banca, o câmbio e até a usura e que, na sua generalidade, eram ricos. O aspecto das suas casas ressentia-se desse estatuto.

A casa de comércio de Agnolo Nardi, irmão-de-leite de Francesco Beltrami e seu representante para a França setentrional, erguia-se no ângulo da rua dês Lombards com a Grande rua Saint-Martin, quase em frente dos portões da igreja de Saint-Merri. Era uma grande e bela casa cujas três empenas, alinhadas, cobriam a casa do mestre, o depósito de tecidos e um banco. O comércio duplo era a imagem daquilo que Beltrami criara em Florença. Os edifícios estavam cuidadosamente conservados e, sobre os telhados pontiagudos, dois cata-ventos vermelhos, quais línguas de animais fabulosos, enquadravam um florão dourado de belo efeito. As janelas, todas abertas para a frescura da tarde, deixavam ver belos tectos de vigas pintadas com iluminuras. Por fim, por trás da tripla casa, um pequeno jardim, vedado por muros, separava-a da de um joalheiro, cujas aberturas davam para a rua de la Vieille-Courroieríe, o que dava àquele pequeno recinto fechado uma tranquilidade absoluta.

Agnolo Nardi não era totalmente desconhecido de Fiora e de Léonarde. Elas tinham-no conhecido sete anos antes, no decurso de uma visita que ele fizera à casa-mãe e dele tinham conservado a recordação de um homenzinho redondo, moreno como uma castanha, vivo e alegre, amigo da boa carne e do bom vinho. Em suma, uma personagem amável e interessante, cuja generosidade, honestidade e habilidade para os negócios, Beltrami gabava..

Depois, tinham tido conhecimento do seu casamento com uma jovem parisiense, filha de um dos melhores mercadores de tecidos da cidade e cujo nome, Agnelle Perrin, as divertira. Assim, o cordeiro encontrara o seu complemento natural, esperando-se que também encontrasse a felicidade.

E disso não tiveram dúvidas quando, assim que desceram dos cavalos, o viram acorrer igual à imagem que dele tinham guardado, de braços curtos e rechonchudos abertos e um sorriso que lhe iluminava literalmente a figura bonacheirona:

Donna Fiora e donna Léonarda! Até que enfim! Não imaginais como estava preocupado! Já vos imaginava metidas numa má aventura qualquer!

E abraçou ambas com a alegria de um irmão que reencontra as suas irmãs.

Reconheceste-nos? espantou-se Fiora, reencontrando instintivamente e com prazer a língua toscana e o tratamento por tu florentino.

Reconheci, sobretudo, donna Léonarda. Tu, donna Fiora, mudaste muito. Por Santa Reparata, padroeira da nossa querida cidade, tu és, seguramente, a mais bela das Florentinas!

E aproveitou para a abraçar duas ou três vezes com um prazer infantil.

Estáveis à nossa espera? perguntou Léonarde.

Evidentemente e há muito tempo! Messer Donnati, que gere agora os negócios do nosso pobre Francesco, mandou-me uma mensagem acompanhada de uma carta de monsenhor Lourenço, que me honrou muito...

Em seguida virou-se para Demétrios, que saudou cortesmente:

r Agnolo, agneau, agnelle, cordeiro, cordeira.

Messer Lascaris, sede bem-vindo à minha modesta casa, vós e o vosso escudeiro.

Em seguida acorreu Agnelle, erguendo com ambas as mãos as saias de tafetá cor de açafrão, que faziam um frufru encantador. Formava, com o marido, um casal pouco vulgar: tão loura quanto ele era moreno, da mesma altura e tão redonda como ele, tinha uma tez um pouco dourada, parecendo-se com um pote de mel. O seu rosto encantador, cujos olhos eram do belo azul da flor do linho, resplandecia de saúde e boa disposição. Abraçou Fiora como se fosse a sua irmã mais nova era bastante mais nova do que o marido e Léonarde com um respeito que seduziu a velha solteirona. Em que é que está a pensar mestre Agnolo, deixando-vos aqui, na rua, à vista das comadres, em vez de vos mandar entrar? Vinde, vinde! Precisais de uma boa refeição e de repouso. Amanhã faremos a festa.

A festa? perguntou Fiora. Que festa?

Ora essa, para comemorarmos a vossa chegada! Estávamos há que tempos à vossa espera!

Tínhamos assuntos a tratar na Borgonha disse Fiora e isso atrasou-nos mais do que desejávamos. Além disso, ignorávamos que vós nos esperáveis.

Com impaciência! E temíamos pela vossa segurança. Messer Donati e o senhor de Médicis explicaram, nas suas cartas, as terríveis infelicidades que se abateram sobre vós. Só desejamos uma coisa: ajudar-vos...

Dito aquilo, Agnelle agarrou nas duas convidadas por um braço e encaminhou-as para a escadaria que ia dar aos andares superiores e à divisão principal. O interior da casa era igual à sua dona: fresco, elegante e de uma sobriedade flamenga. A sala, com a sua grande chaminé ornamentada com estátuas de santos e a grande tapeçaria com figuras humanas que cobria a parede de frente para as janelas, os aparadores carregados de graciosas louças italianas, de vidros de Veneza, dourados e coloridos, e belas pratas, era digna de um castelo. As cadeiras de castanho, esculpidas, tinham almofadas de veludo encarnado, bem cheias de penas e ornamentadas com franjas. Altos candelabros de bronze suportavam velas de cera branca e, em frente da chaminé apagada, uma braseira de cobre, cheia de goivos e peónias brancas exalava um odor delicioso, que evocava um jardim. Quanto às criadas, vestidas de tule azul recentemente passado a ferro, as suas coifas e aventais limpos pareciam saídos directamente do armário.

Supremo refinamento, a casa possuía uma pequena casa de banho abundantemente fornecida de cântaros, bacias e uma grande banheira. Fiora viu-se metida, deliciada, em água quente e reencontrou a doçura perdida, desde há meses, dos maravilhosos sabonetes venezianos. Duas criadas, entusiasmadas, prodigalizaram-lhe os maiores cuidados, que diminuíram quando, depois de Fiora, tiveram de se ocupar de Léonarde. Entretanto, envolta num lençol e calçada com socos leves, Fiora saiu para o jardim, para o qual dava a estufa, para entrar em casa pela porta de trás e subir para o seu quarto e viu-se em frente de um jovem simplesmente vestido com calções, apertando ternamente contra o peito um vaso de manjericão em flor. A surpresa perante a vista inopinada de Fiora foi tão grande que deixou cair o vaso. Este estilhaçou-se sem que o jovem parecesse preocupar-se minimamente. Petrificado, parecia em êxtase, mas conseguiu articular:

Por todos os santos do paraíso!... Sois verdadeira, ou não?

Por que não havia de o ser? perguntou Fiora, divertida.

Pareceis uma aparição. Sois bela... bela como uma imagem de igreja!

Tranquiliza-te, não tenho nada de comum com os santos e honras-me muito, mas, se fosse a ti, juntava esses cacos todos e ia já replantar esse manjericão noutro vaso...

O jovem pareceu descer do céu. A visão de sonho tinha preocupações bem terrenas!

Achais?

Tenho a certeza. Além disso, gostaria que me deixasses passar. Gostaria de me ir vestir...

Eu... sim, claro. Desculpai-me acrescentou ele, desviando-se. Mas tende cuidado, para não vos ferirdes nos cacos...

Ela endereçou-lhe um sorriso e entrou em casa. Ele não se mexia, contentando-se em observá-la. Quando ela estava prestes a desaparecer, ele murmurou:

O meu nome é Florent... Ela deteve-se, surpreendida:

É um nome muito bonito. Não o esquecerei. Faz-me lembrar a minha cidade, Florença...

Aquela frase deveria ter agradado ao rapaz, mas, pelo contrário, o seu rosto vivo, onde uns olhos castanhos pareciam ocupar a maior parte da superfície sob uma trunfa da mesma cor, entristeceu-se.

Ah... Sois a dama que esperávamos? Não me apercebi e peço-vos perdão...

Perdão porquê?

Bem... Por me ter mostrado... demasiado familiar... por ter ousado...

Não ousaste nada que possa chocar uma mulher! Um cumprimento é sempre bem-vindo, se for sincero. Foste sincero?

Oh sim!

Nesse caso, obrigada. E agora, peço-te, concentra-te nesse infeliz manjericão!

Divertida com o encontro, Fiora soube mais tarde que o seu admirador fora colocado em casa de Nardi pelo pai, o cambista Gaucher lê Cauchois, para estudar a delicada arte das transacções bancárias, mas o jovem, pouco inclinado para os negócios e muito dotado para a jardinagem, dispensava a Agnelle, tanto na rua dês Lombards, como na sua propriedade de Suresne, todo o entusiasmo e forças que não tinha para com a sua escrivaninha. O calor, o corte de uma cerca, e as necessidades da cozinha explicavam o seu vestuário sumário e o vaso de manjericão:

É um rapaz muito simpático concluiu Agnolo mas muito reservado, muito fechado e só a minha mulher consegue adivinhar o que lhe vai na cabeça...

Fiora pensou que, agora, também ela conseguia... e esqueceu Florent. Achava a atmosfera de Paris bizarra. Enquanto se dirigiam para casa de Nardi, ela e os seus companheiros tinham encontrado vários grupos de soldados e, enquanto se preparava para o jantar, ouviu soar o Ângelus e, quase de imediato, todas as portas se fecharam, se bem que a noite ainda viesse longe.

Por seu lado, Demétrios também se dera conta desses factos e, ao jantar, quando estavam todos reunidos em redor de um leitão assado com um saboroso creme do famoso manjericão Florent conseguira chegar à cozinha triunfo de Agnelle e do amor conjugal, o grego interrogou o seu anfitrião:

Depois da porta de Saint-Jacques, onde nos fizeram muitas perguntas antes de nos deixarem passar, cruzámos com muitos homens armados e dame Léonarde viu, em Notre-Dame, muitas mulheres a rezar. As portas foram fechadas há pouco. Paris está ameaçada?

Uma nuvem caiu sobre o rosto amável de Agnolo. Parou, por momentos, de cortar o seu leitão e olhou para cada um dos convidados:

Lamento muito ter de falar, hoje, dessas coisas, que gostaria de deixar para depois da festa que projectámos para amanhã em vossa honra... Mas, no fim de contas, talvez seja melhor pôr-vos ao corrente da situação...

Porque se trata de uma situação... preocupante? perguntou Demétrios suavemente.

É a palavra exacta. Paris não está ameaçada de imediato, mas poderá está-lo em breve. Estamos no começo de uma nova invasão inglesa. E a famosa guerra dos Cem Anos ainda nem sequer acabou há vinte!

De facto, em caminho, ouvimos dizer que o Rei Eduardo tinha transposto a Mancha. Sabeis onde está, neste momento?

A pouco mais de trinta léguas daqui: em Péronne!

Tão perto? murmurou Fiora.

Sim, Madonna, tão perto. E não é só isso: o Temerário está com ele.

Mas continuou Demétrios pensava que o duque estava na Flandres?

Com efeito, estava em Bruges, para tentar arrancar aos Estados uma ajuda suplementar em dinheiro e homens. Graças a Deus, não conseguiu obter tudo o que queria. Os Flamengos são lentos quando se trata de guerras incessantes e o seu sangue torna-se ainda mais precioso. O duque partiu para Calais a fim de se juntar ao cunhado, o qual, é preciso dizer, se sentiu desiludido por o ver aparecer à cabeça de uma escolta de apenas

1 O Temerário casara com Margarida de Iorque, irmã de Eduardo.


cinquenta homens, quando esperava um exército que o ajudasse a invadir a França! Com perfeita má-fé, aliás, o Temerário contra-atacou, dizendo que Eduardo não tinha compreendido nada, que devia ter desembarcado na Normandia para se juntar ao duque da Bretanha, que o seu exército estava no Luxemburgo e ia anexar a Lorena. Até propôs um novo encontro: que os Ingleses entrassem em Champagne e ele próprio, vindo da Lorena, juntar-se-ia a eles em Reims, onde coroariam Eduardo Rei de França!

Que loucura!

Na verdade, não, mas seria preciso que o Rei Luís não existisse. E o Rei Luís, para além do seu grande exército, possui uma coisa que nenhum dos seus inimigos possui: o génio. É com esse génio que nós, as gentes de Paris, contamos, mais do que as armas, para vencer a coligação. Ele está entre nós e o exército inglês, e é muito capaz de embrulhar o Temerário e Eduardo...

Onde está ele, neste momento? perguntou Fiora.

Em Compiègne, onde estabeleceu o seu quartel-general.

E... o exército é grande?

Mais ou menos cinquenta mil homens, quase o dobro do exército inglês, mas o Rei é muito cioso do sangue dos seus soldados. Prefere pagar, enganar e engodar, a dar batalha...

É cobarde, então? perguntou desdenhosamente Fiora.

De modo nenhum. Já deu provas disso, podeis crer. É claro que dará batalha se for a única hipótese de defender Paris, mas espera não chegar a isso.

De qualquer maneira, se o seu exército é mais forte...

Não o será contra os Ingleses aliados aos Borgonheses... e à Bretanha, porque o duque bretão, se vir o Rei em má posição, apunhala-o pelas costas. Sempre foi amigo dos Ingleses...

Sempre a falar, Agnolo ia comendo o seu leitão e, como todos estavam servidos, o som dos maxilares substituiu, por momentos, o da conversação. Tal como os outros, Fiora comia com prazer, feliz por reencontrar os sabores do seu país, mas o seu apetite terminou pouco depois. A jovem pousou a faca, limpou os dedos e, no silêncio, perguntou:

É longe, Compiègne?

Um pouco mais de vinte léguas respondeu Agnolo.

Ah!...

A jovem não disse mais nada, mas Demétrios compreendeu que ela fazia contas de cabeça. Trinta menos vinte são dez e dez léguas não são grande coisa para um bom cavalo. Para prevenir uma nova desilusão, continuou, virando-se para o dono da casa:

Dizíeis que o Temerário só tinha cinquenta homens quando chegou a Calais?

Sim. O grosso do exército ficou nos limites da Lorena e do Luxemburgo às ordens do marechal do Luxemburgo e do conde de Campobasso, um condottiere napolitano transfuga do exército da Lorena e que está com o duque Carlos há dois anos...

Transfuga... que doce eufemismo! Isso quer dizer traidor? perguntou Esteban com um desprezo que fez sorrir Fiora.

Mais ou menos, mas não exactamente. Vós, que vindes da Toscânia, devíeis saber que um condottiere está mais ligado ao dinheiro do que à lealdade... Desde que lhe paguem, marcha!

Levantaram-se da mesa e Agnolo tomou Demétrios pelo braço:

Vós desejais, creio, juntar-vos rapidamente ao Rei Luís!

Sem dúvida, se bem que ele esteja, talvez, demasiado ocupado...

Para receber um médico tão bom? Posso dizer-vos uma coisa: ele espera-vos impacientemente.

Ele está à minha espera?

Claro. Vós fostes anunciado.

Nesse caso, partimos amanhã exclamou Fiora, subitamente corada.

O lugar de uma jovem dama, ou de uma dama, não é num acampamento disse Agnelle. Sentir-me-ia tão feliz se ficásseis aqui algum tempo! Apenas o suficiente para ver em que param as modas. O nosso Rei é muito bem capaz de evitar a guerra, mas, para já, os soldados são muitos...

Mas é que... nós nunca nos separámos!

1 Chefe de mercenários italianos.


A separação não será longa. Compiègne não fica longe. Além disso, talvez o Rei não fique muito contente por ver chegar uma mulher...

Duas mulheres! rectificou Léonarde. Eu nunca me separo de donna Fiora...

Agnelle tem razão disse o marido desta vindo em seu socorro. As únicas mulheres que se encontram num acampamento são as prostitutas que os exércitos arrastam sempre consigo. Ficareis melhor aqui...

Fiora ficou impassível: não estava convencida. Aliás, como dizer àquela boa gente que concluíra com Demétrios um pacto de sangue que visava matar o grande duque do Ocidente? Em Compiègne, os dois justiceiros estariam próximos do seu objectivo e aquelas notícias reforçavam a decisão da jovem. Matar o Temerário seria muito mais do que uma vingança, seria salvar Paris, salvar a França do grande perigo da junção dos exércitos inglês e borgonhês. O pensamento de encontrar, ao mesmo tempo, Philippe, que, talvez, acompanhasse o seu duque, só a aflorou e repeliu-o como importuno, irada, já que o ódio, assim como a paixão, são maus conselheiros. Fiora acreditava, ingenuamente, que odiava Philippe, quase tanto como o amara...

Na manhã seguinte a uma noite pouco repousante, já que quase não dormira, Fiora, ao levantar-se, viu o quarto vazio, mas lembrou-se que Léonarde tinha, na véspera, perguntado à sua anfitriã a hora da primeira missa na igreja vizinha. A jovem levantou-se e fez uma toilette rápida, tendo o banho da véspera permitido umas abluções mais curtas. Hesitava no que vestir quando ouviu gritos e palavras levianas e dirigiu-se à janela. O que viu espantou-a: um grupo de homens conduzia na direcção da casa uma Léonarde que gemia de maneira a destroçar um coração. Fiora vestiu o primeiro vestido que encontrou e precipitou-se pela escada abaixo. Chegou a tempo de ver o cortejo transpor a soleira da casa.

Não tenhais medo! gritou-lhe Agnelle, que segurava a cabeça de Léonarde ela não está em perigo, mas creio que tem uma perna partida.

Como é que isso aconteceu?

De maneira estúpida, como sempre em casos semelhantes: ao sair da igreja, escorregou no pavimento e a perna foi de encontro à roda de uma carroça. Está cheia de dores.

A pobre Léonarde estava tão branca como uma folha de papel e grossas lágrimas corriam-lhe pelo rosto, sem que as conseguisse conter. A velha solteirona agarrou-se desesperadamente à mão de Demétrios, que, ocupado a afivelar as suas sacolas, tinha acorrido ao ouvir o burburinho:

Não me ides cortar a perna, pois não? suplicou ela. Não ides fazer de mim uma inválida?...

Acalmai-vos, peço-vos. Ainda não chegámos a esse extremo... Primeiro, tenho de examinar o vosso pé.

Mas, não íeis partir?

Parto mais tarde, mais nada! O Rei espera-me já há muito tempo. Um pouco mais, um pouco menos... Não pensáveis que vos ia deixar nesse estado?

Transportaram Léonarde para a cama que a solteirona partilhava com Fiora. Demétrios lançou a esta um olhar rápido:

Tu vais ajudar-me. Primeiro, é preciso descalçá-la...

O pé formava, com a perna, um ângulo anormal, o que era, aparentemente, muito doloroso. Tirar o sapato foi relativamente fácil, mas foi preciso cortar a meia cheia de sangue, através da qual se via a pequena lasca de um osso. A ferida era pequena e sangrava pouco:

O pé não está deslocado diagnosticou o médico depois de ter passado os dedos ágeis pelos ossos mas há uma fractura exposta. E que é muito dolorosa. Podeis, dame Agnelle, instalar aqui uma mesa coberta com um pano...

Certamente. Tudo o que quiserdes... Mandarei também trazer talas de madeira e faixas de linho fino...

Por Deus, é uma bênção estar doente em vossa casa disse Demétrios com um sorriso porque sabeis mais do que muitos dos nossos estudantes. Tende, também, a amabilidade de acrescentar uma bacia cheia de farinha, água... e o meu criado, se o encontrardes. Deve estar na cavalariça...

Agnelle desapareceu como uma pequena nuvem dourada para regressar pouco depois com metade das criadas e Esteban, todos carregados com talas, pranchas e uma quantidade de objectos úteis e variados. Enquanto isso, o grego encontrara na sua bagagem tudo aquilo de que tinha necessidade. Graças à generosidade principesca do Magnífico e às riquezas do seu jardim de Fiesole, possuía uma provisão de farmacopeia ambulante que faria inveja ao velho Hotel-Dieu parisiense, cujas muralhas veneráveis se elevavam, cinzentas e melancólicas, junto a Notre-Dame.

A ferida, cuja mão trémula agarrava a de Fiora, foi estendida sobre a mesa com a cabeça apoiada em almofadas. A velha solteirona tremia tanto de medo como de dor, a despeito das palavras doces e encorajadoras que a jovem lhe prodigalizava e bebeu, reconhecida, as duas colheres de opiato com mel que Demétrios lhe deu e que lhe apaziguaram, um pouco, a dor. Mas quando o médico, com um gesto seco e preciso, lhe repôs o pé no devido lugar, lançou um grito agudo e desmaiou...

Foi o melhor que lhe podia ter acontecido disse este. Aproveitemos!

Enquanto duas sólidas criadas seguravam Léonarde pelos ombros e Esteban se deitava praticamente sobre o seu corpo, Demétrios, depois de ter limpo a ferida, esticou firmemente a perna quebrada até o osso ter retomado o seu lugar... Após o que, com as talas e as faixas de linho, que mergulhara na farinha mergulhada em água, confeccionou um aparelho que manteria imóvel o membro lesado, na ponta do qual prendeu uma grande pedra depois de a infortunada Léonarde ter sido transportada para a sua cama. Durante toda a operação, a pobre mulher acordou e desmaiou duas vezes mas depois de tudo terminado caiu num sono profundo após ter absorvido uma nova dose de opiato...

Não podeis continuar a partilhar esta cama disse Agnelle a Fiora. Vou mandar colocar outra...

Dai-lhe o meu quarto disse Demétrios. Eu durmo na cavalariça com o meu criado. Por uma noite...

Continuas a pensar em ir? perguntou Fiora, alarmada com a ideia de se separar daquele sólido companheiro...

Se a noite correr bem, não tenho razão nenhuma para ficar. É preciso deixar a natureza seguir o seu curso.

E quanto tempo durará esse curso?

1 Hospital


Mais ou menos seis semanas. Mas, descansa acrescentou ele ao ver o fino rosto entristecer-se eu regresso antes. Depois de o tratar, o Rei, deixará, certamente, que eu parta.

Não conteis com isso! lançou Agnolo, que regressava nesse momento de casa de um cliente. Se agradardes ao nosso sire, ele não vos deixará partir com essa facilidade...

Eu explico-lhe. Mas, a propósito, mestre Agnolo, vós pareceis muito a par dos seus hábitos, assim como da sua política?

... e vós estais surpreendido, não é verdade, por um simples mercador, ainda por cima estrangeiro, vos dizer coisas que seriam mais próprias de um próximo do monarca?

Em Florença não me surpreenderia muito, onde todos estão, mais ou menos, ao corrente dos assuntos do Estado, mas num reino que parece governado por mão de mestre...

E que o é, podeis estar certo. Mas, demos alguns passos no jardim, estaremos tranquilos e será mais agradável...

Ao passarem pela cozinha, o negociante ordenou a uma criada que lhes levasse vinho fresco ao caramanchão de glicínias e madressilva que era um dos atractivos do jardim, sendo outro os maciços de roseiras, aos quais Florent prodigalizava cuidados de pai. Este estava, justamente, a cortar flores murchas quando os dois homens penetraram no seu território.

Ainda acabo por te mandar para a minha propriedade de Suresnes suspirou Nardi. Passas mais tempo neste jardim do que diante da tua escrivaninha...

Isso, meu senhor, é porque gosto mais de flores do que de escrituras...

E que dirá o teu pai? Ele não te mandou para minha casa para que te tornes jardineiro...

Eu aprendo o suficiente durante o Inverno. E sinto-me tão feliz assim...

Com um gesto afectuoso, Agnolo desgrenhou os cabelos do rapaz, que não eram muito disciplinados:

Veremos isso mais tarde. Por agora, faz-me o favor de ir fazer os teus deveres. Este senhor e eu temos de conversar.

Florent obedeceu imediatamente e os dois homens começaram a caminhar lentamente ao longo dos carreiros ensaibrados, onde não crescia a menor erva daninha...

Contrariamente ao pai, o defunto Rei Carlos VII, que Deus tenha a sua alma, o nosso sire Luís faz-se acompanhar dos seus vassalos habituais e uma parte do seu conselho são homens como eu, burgueses, que lhe transmitem a imagem verídica do que são os negócios comerciais do país e do que se passa nas nossas cidades. Eu sou um dos primeiros entre os mercadores estrangeiros residentes em Paris. Herdei, também, um pouco da amizade que o Rei concedia ao nosso pobre Francesco Beltrami. Sua Majestade conhecia-o bem e, no plano bancário, Beltrami serviu o Rei de França em proporções mais modestas do que os Médicis, sem dúvida, mas ele nunca se arrependeu. Nem eu.

O vinho chegou, trazido por Jeanneton, a mais jovem das criadas da casa. A jovem encheu duas taças, que ofereceu a cada um dos homens antes de desaparecer. O calor começava a fazer-se sentir e as abelhas zumbiam na madressilva. Mas, sob o caramanchão, estava mais fresco... Agnolo bebeu uma grande golada, enxugou a boca ao guardanapo pousado no tabuleiro e continuou:

Eu nunca cheguei a conselheiro como o meu compadre Jean de Paris, mas algumas missões são-me confiadas, de acordo com as deslocações que os meus negócios implicam. Além disso, tive a honra de acompanhar messire Louis de Marrazin e o meu amigo Jean de Paris quando, o ano passado, se encontraram com o senhor duque Renato II da Lorena para reatar com ele o antigo tratado de amizade que o duque da Borgonha o obrigara a dissolver...

Obrigara? Como é possível?

O duque Renato é jovem vinte e quatro anos e muito inexperiente. O Temerário chama-lhe, desdenhosamente, ”o menino”, mas é um príncipe amável e muito corajoso, que não estava, aliás, destinado a governar a Lorena. Só a morte prematura do seu primo, o duque Nicolas, há três anos, lhe outorgou a coroa e o Rei Luís assinou de imediato com ele um tratado de amizade que o Temerário, evidentemente, não suportou...

Que meios empregou ele para obrigar o jovem duque a renegar a aliança?

Oh, foi muito fácil, com um rapaz recto e honesto como Renato. Ferry de Vaudémont, o seu pai, e mesmo Yolande d’Anjou, a sua mãe, deviam muito ao duque Filipe, pai do Temerário.

Carlos relembrou a Renato essa velha confiança e Renato deixou-se cativar. Mas rapidamente se apercebeu do que valia a aliança do grande duque do Ocidente. Teve que ceder ao seu perigoso aliado quatro das suas cidades: Épinal, Darney, Preny c Neufchâteau, com o poder de guarnição e de nomear os governadores. Foi colocar a Lorena sob a pata do borgonhês e Deus sabe como ela é pesada! As cidades gritaram aos céus, sem poderem fazer fosse o que fosse para se libertarem. Quando, após o cerco de Neuss, que o Temerário não conseguiu concretizar, as suas tropas marcharam sobre o Luxemburgo e sobre Thionville, o duque Renato aliou-se aos cantões suíços que tinham, também eles, queixas e que, com os Alsacianos, libertados há pouco tempo do Landvogt Pierre de Hagenbach, favorito do Temerário, entraram no Franco Condado. Renato II estava pronto para cair nas mãos do Rei Luís e ninguém melhor do que este para colher os frutos semeados por outros...

Estou a ver. E o que é que acontece, a seguir?

Isso não sei. Talvez vós possais saber algo no acampamento de Compiègne?

Esperava que me conduzísseis lá. Seríeis, para um estrangeiro como eu, uma boa introdução...

Não tereis necessidade. Quanto à viagem, ceder-vos-ei o jovem Florent. Ele conhece a região na perfeição e leva-vos a bom porto. Eu tenho que ficar, porque amanhã, na Maison aux Piliers, messire Robert d’Estouteville, preboste de Paris, reúne os chefes das corporações e os principais burgueses para deliberar a ajuda que pode conceder caso a nossa cidade seja cercada...

Um conselho de guerra? A situação será mais grave do que me destes a entender?

De maneira nenhuma e não vos escondi nada, pelo menos pelo que sei, mas há um velho ditado latino que diz: Si vispacempara bellum Se queres a paz, prepara a guerra. É exactamente isso que vamos fazer.

Agnolo Nardi e Demétrios permaneceram ainda longos minutos debaixo do caramanchão bebendo o seu vinho. Minutos preciosos, durante os quais homens vindos de horizontes diferentes se entendem e compreendem e a existência parece mais preciosa. Tudo estava calmo na casa da rua dês Lombards.

Agnelle, ajudada por Fiora, arrumava a roupa recentemente passada, enquanto Léonarde dormia, a dor submersa no sono. Esteban fazia o mesmo na palha da cavalariça e nos gabinetes do negociante cada um fazia o seu trabalho: as penas de pato rangiam, quase todas ao mesmo tempo, sobre os pergaminhos. Só, Florent sonhava. Sentado num degrau da escada, olhava para Fiora, que, sempre a falar, passava à sua anfitriã pilhas de toalhas e guardanapos, que esta guardava nas arcas da grande sala. Vestida com um simples vestido de linho branco bordado com uma delgada grinalda de folhas verdes, que Chrétiennotte lhe confeccionara em Dijon e a massa lustrosa dos cabelos negros entrançados caindo sobre um ombro, parecia-se mais do que nunca com uma princesa de um qualquer romance medieval e o jovem devorava-a com os olhos. Sem que ela, aliás, disso se apercebesse. Foi Agnelle que reparou no olhar guloso do rapaz e mostrou-se irritada:

Não tens mais nada que fazer senão ficar aí sentado embasbacado? Pensava que estavas no jardim?

Florent levantou-se com uma má vontade evidente e resmungou:

Mestre Agnolo está lá com o grande homem negro e mandou-me ir para dentro.

Sem dúvida para que fosses trabalhar! Vai lavar as mãos, penteia-te e volta para a escrivaninha. Começo a arrepender-me de te ter entregado o jardim...

Florent partiu na direcção da cozinha, virando-se um pouco para olhar durante mais algum tempo para aquela a quem chamava, interiormente, a sua ”bela dama”. Agnelle abanou a cabeça, encolheu os ombros com uma certa comiseração e regressou à sua tarefa:

Este rapaz está louco por vós, minha querida. Receio bem que não preste para mais nada.

Ele esquece-me assim que deixar de me ver! Infelizmente, a perna da minha querida Léonarde vai-nos reter aqui ainda mais algum tempo, o que é um incómodo para vós.

Incómodo? Doce Jesus! É um verdadeiro prazer e eu sinto-me encantada por poder gozar a vossa presença. Sem este acidente deplorável partiríeis esta manhã, não é verdade?

- Sim. Messire Lascaris é-me muito querido e nunca nos separamos. Por assim dizer tomou o lugar do meu querido pai, cuja recordação nunca me abandona.

Certamente, mas não seria melhor um marido para preencher esse vazio? Tão jovem, tão bela, não fostes feita para essas jornadas tão grandes. Algum senhor conseguirá, um dia, conquistar o vosso coração?...

Não creio e, aliás, não o desejo. O amor provoca mais feridas do que alegria. Perguntai ao jovem Florent.

Estou com vontade de o mandar para Suresnes, para lhe arejar as ideias. Vou falar nisso ao meu marido, esta noite...

Mas não teve necessidade disso, porque, como o estado de Léonarde era satisfatório, Demétrios e Esteban despediram-se da casa Nardi no dia seguinte de manhã. E Florent foi encarregado de os conduzir a Compiègne.

Não sem pena! Quando chegou a hora da partida, o rapaz exibia uns olhos vermelhos de insónia, mais do que de lágrimas. Enquanto montava na sua mula, envolvia Fiora com um olhar que metia dó... de que a jovem nem sequer suspeitava, ocupada em tentar analisar os seus próprios sentimentos. Uma coisa era certa: sentia o coração destroçado por ver Demétrios partir sem ela. Sem dúvida porque ia aproximar-se daquele duque da Borgonha cuja marca pesara tanto na sua vida, mas também porque, ao longo dos dias, se ligara mais do que pensara àquele homem sábio, silencioso e pouco comunicativo, que aparecera a seu lado quando desesperava de qualquer socorro humano.

A ideia de que ele prosseguisse a sua vingança sozinho nem sequer lhe passou pela cabeça. Sabia que entrava numa certa parte dos desígnios do grego, mas também não ignorava que, por vezes, o destino prega partidas, apesar dos planos mais bem concebidos e mais solidamente estabelecidos. Teria que esperar que Demétrios regressasse o mais depressa possível.

Léonarde, por seu lado, estava desolada por ser a origem daquela separação, mas achava, secretamente, que a vontade de Deus tinha pesado: rezava-lhe tanto para que desviasse o seu ”cordeirinho” daquele projecto homicida, que poderia enviá-la para as mãos do carrasco.

Devíeis ter partido sem mim! suspirou ela com uma certa hipocrisia...

E abandonar-vos aqui, sozinha, numa cidade e numa casa que não conheceis? Por mais encantadores que a senhora Agnelle e o marido sejam, não deixam de ser estrangeiros. Portanto, não vos atormenteis e pensai apenas em sarar! Onde poderíeis ser mais bem tratada do que aqui?

De facto, Léonarde estava, sobretudo, vexada por se ter ferido ao sair de uma igreja. Ainda por cima porque a igreja em questão não lhe inspirara uma confiança absoluta. Com efeito, pudera constatar, como explicara, corando, a Fiora, que as raparigas públicas pareciam fazer de Saint-Merri ponto de encontro, que era, mais ou menos, a sua paróquia. Fora o suficiente para que a velha solteirona ficasse com as maiores suspeitas acerca de uma santa que tolerava uma tal promiscuidade.

Agnelle, a quem Fiora contou o caso, achou muita piada:

No entanto, não é por culpa dos curas dessa pobre igreja, que ao longo dos séculos se fartaram de protestar com sortes diversas. Mas, que quereis, as senhoras prostitutas formam, nos nossos dias, uma verdadeira corporação, reconhecida, que tem as suas leis, os seus juizes, os seus estatutos, os seus privilégios e que até, na festa da santa padroeira, Santa Madalena, no dia 22 de Julho, tem direito a procissão. E uma bela procissão, acreditai, com ricos pendões, nuvens de incenso e grandes iluminações...

Mas, porquê Saint-Merri?

Simples questão de vizinhança: duas das nove ruas de Paris, onde as prostitutas têm direito a fazer comércio, a rua Brisemiche e a Court-Robert, são contíguas à igreja. Isso impedir-vos-ia de ir lá ouvir missa no domingo? acrescentou ela, mais séria.

Fiora quase respondeu que perdera o hábito dos seus deveres dominicais, mas temeu, por excesso de franqueza, melindrar a sua amável anfitriã. Por outro lado, ao recordar-se da sua passagem pela casa de Pippa, sentiu um certo constrangimento. Que diria aquela doce, luzidia e generosa Agnelle se soubesse daquele episódio aviltante que sujara a vida daquela que ela tratava como uma irmã mais nova? Assim, Fiora apressou-se a tranquilizá-la: iria ouvir missa onde Agnelle lhe agradasse...

Entretanto, para se certificar que não melindraria o pudor daquela que era, sem dúvida, uma jovem nobre e pura, a esposa de Agnolo decidiu que iriam ouvir missa a Notre-Dame de Paris e Florent, regressado na véspera de Compiègne, onde se demorara apenas o tempo suficiente para depositar Demétrios e Esteban na residência do Rei, recebeu ordem de preparar as mulas e acompanhar as damas. Com o entusiasmo que se imagina!

Na manhã de domingo do dia 15 de Agosto puseram-se a caminho sob um céu sem nuvens que as andorinhas, rápidas e quase invisíveis de tão alto que voavam, atravessavam como flechas negras. O som dos sinos, anunciando os ofícios divinos, substituíra a algazarra da grande cidade, onde durante a semana se acordava de manhã cedo ao som dos estalidos que os comerciantes faziam ao abrir as persianas das suas quitandas e dos rapazes das estufas anunciando que os banhos estavam quentes... Não havia o inevitável ajuntamento provocado pela estreiteza e sinuosidade das ruas. As vozes frescas e poderosas dos vendedores de La Halle, que, de cabazes debaixo do braço, ou escoltados por um burro, gritavam aos quatro ventos a manteiga de Vanves, os agriões de Orleães, o cebolinho de Étampes, os alhos de Gandelu, as cebolas de Bourgueil, os ovos de Beauce, os queijos de Brie ou de Champagne tinham-se, também elas calado. Só encontraram gente vestida com os seus melhores fatos, com a qual trocavam uma saudação ou algumas palavras. Algumas pessoas espantavam-se por ver Agnelle sem o seu Agnolo, que, como cristão escrupuloso, nunca faltava à missa de domingo e foi preciso repetir vezes sem conta que o senhor Nardi estava doente, arriscando-se a chegar atrasadas.

Não se poderá faltar a uma missa sem que tenha de se explicar a razão à cidade inteira? disse Agnelle um pouco irritada. E imagino que vai acontecer o mesmo quando descobrirem que vamos a Notre-Dame em vez de Saint-Merri!

Estais a ver? Não devíeis ter mudado os vossos hábitos por minha causa...

Mas eu vou tantas vezes à catedral! É tão bela! Além disso, hoje é o dia da Assunção!

Fiora, que se recusara a acompanhar Léonarde, no dia da chegada, na sua visita de boas-vindas, arrependeu-se ao penetrar na imensa nave resplandecente de centenas de velas. Havia muita gente em redor do altar-mor, por trás do qual se escalonavam os relicários de ouro de numerosos santos, mas Agnelle e a sua companheira conseguiram arranjar lugar nas primeiras filas de uma multidão à qual a magia dos vitrais, juntamente com o brilho do sol, dava uma cor diversa. E os olhos maravilhados da florentina, apesar de habituados à beleza dos edifícios sagrados, iam das altas ogivas resplandecentes à grande rosácea cintilante sobre o pórtico da entrada.

Todo o clérigo estava no coro, vestido de vermelho e ouro, rodeando a alta cadeira onde estava sentado um hóspede muito especial: o bondoso cardeal de Bourbon, primo, do Rei e primaz da Gália, que expunha as suas vestes púrpuras sob o pálio decorado com as suas armas encimadas por um chapéu cardinalício. Naquele esplendor, o bispo de Paris parecia insignificante...

Temos sorte sussurrou Agnelle. Sua Eminência raramente está em Paris no Verão. Nesta época está, geralmente, na sua cidade arquiepiscopal de Lyon, mas o Rei deve tê-lo enviado para tranquilizar os parisienses. Com efeito, ele está ligado às duas partes: o seu irmão Pierre de Beaujeu casou há dois anos com a filha mais velha do Rei e, por parte da mãe, Agnès de Bourgogne, está ligado ao Temerário. O que, convenhamos, não lhe deve facilitar a vida...

Chhhh! sussurrou alguém e Agnelle, confusa, escondeu o rosto nas mãos, afundando-se na oração.

Aliás, o cardeal tinha-se levantado e, com a sua voz indolente de grande senhor desiludido endereçou algumas palavras ao povo de Paris, exortando-o a manter a confiança no Senhor, na sabedoria do seu soberano e na solidez das suas muralhas. Tranquilizou-o também com as suas orações e apoio em tudo. Após o que, no meio de espessas nuvens de incenso, começou a missa com o Veni Creator... Mas Fiora já não via nada: nem a imponente silhueta de monsenhor de Bourbon, nem as alvas de renda, nem as casulas douradas que se moviam por entre o ligeiro nevoeiro ascendente dos incensórios de bronze. O que

1 É só no reinado de Luís XIV que Paris se torna arcebispado. Até então dependia do arcebispado de Sens.


ela via era, ajoelhado num dos genuflexórios do capítulo, num hábito branco de monge, meio encoberto por um escapulário negro, um crânio em forma de cúpula, cor de azeitona, que brilhava, e duas grandes mãos magras, dissimulando um rosto que ela temia reconhecer... O coração começou a bater-lhe no peito, cada vez mais depressa. Tentou tranquilizar-se, persuadir-se de que se enganava, que o que estava a ver era impossível... Mas, subitamente, o monge deixou cair as mãos e virou para o altar o grande nariz, a boca cerrada e as pesadas pálpebras de frei Inácio Ortega...

Uma vaga náusea revolveu o estômago da jovem, cujos olhos se enublaram por um instante, mas, à custa de um violento esforço, ela conseguiu superar o mal-estar. Se desmaiasse, o burburinho criado atrairia as atenções e, certamente, a do seu inimigo. Contentou-se em puxar mais para baixo o véu que lhe cobria a bela coifa de seda, presente de Agnelle nessa manhã.

Naturalmente, não ouviu nem viu nada da grande missa que se desenrolava perante os seus olhos. As admiráveis vozes do coro não representavam para ela mais do que um sussurro de tempestade e no seu espírito havia apenas um pensamento: que fazia em Notre-Dame, no coração da França, o dominicano espanhol que o Papa Sisto IV enviara a Florença para tentar minar a força dos Médícis? Pelo que sabia, frei Inácio, juntamente com as suas maquinações frustradas, fora conduzido até meio caminho de Roma pelos soldados do Magnífico e, no entanto, ali estava ele, a poucos passos daquela que perseguira tão cruelmente. Porquê? Com que fim? Estaria na sua pista?

Fiora abanou a cabeça como que para afastar aquele pensamento insistente. Não havia qualquer razão para que o monge a tivesse seguido até Paris, mas se ele ali estava, não era, certamente, em peregrinação, ou numa qualquer obra piedosa... No entanto, a jovem estremeceu quando os olhos de serpente, virando-se para os fiéis, passaram pelo local onde ela se encontrava.

Depois de a Elevação ter feito curvar as cabeças sob o esplendor da hóstia branca, Fiora tocou no cotovelo da sua amiga.

Não façais qualquer movimento, Agnelle, mas eu vou sair... o mais discretamente possível...

Não estais bem?

Não muito. Preciso de ar. Deve ser deste incenso todo...

Quereis que saiamos juntas?

Não... peço-vos: ficai até ao fim. Eu vou ter com Florent. Se me sentir melhor, volto...

Era preciso, com efeito, escapar, a qualquer preço, ao perigo que a Comunhão a faria correr para a qual, aliás, não estava preparada, já que não se confessava há meses. Quer se aproximasse do altar para receber o sacramento, quer permanecesse no seu lugar, encontrando-se então isolada, arriscava-se a ser vista. Frei Inácio tinha uma vista penetrante e, de qualquer maneira, teria que erguer o véu para receber a hóstia. Mais valia sair rapidamente...

Aproveitando o facto de toda a gente estar de pé, a jovem deslizou pelo meio da multidão com um lenço encostado à boca, como alguém que se sente mal, e todos lhe deram passagem. Ao transpor as portas vermelhas ornamentadas com grandes volutas de ferro forjado, sentiu o coração descontrair-se e aspirou a plenos pulmões o ar doce da manhã. Mas os mendigos, que se encontravam sempre nos degraus da catedral em dias de grandes cerimónias, acorreram e ela teve a maior das dificuldades para se desembaraçar deles. Mas com gentileza, porque se recordava de Bernardino, o mendigo que a acolhera uma terrível noite num palácio inacabado. De repente, teve vontade de pronunciar a palavra que era compreendida em todos os países latinos: ”Mendid!” mas era uma palavra de passe, uma espécie de pedido de socorro, que não tinha o direito de empregar.

Com a bolsa vazia, foi juntar-se a Florent, que devia estar à espera das damas junto das mulas, perto de uma velha residência. Com efeito, avistou-o e, de repente, foi invadida por uma grande alegria: Florent não estava sentado, antes de pé e a conversar com Esteban.

A jovem correu para o castelhano como para um amigo perdido, sem se preocupar com o equilíbrio do seu penteado:

Esteban! Estás cá?... Nesse caso, Demétrios já regressou?

Não, ficou lá. Eu regressei para escoltar um senhor conselheiro do Rei que vos quer falar. Mas, que vos aconteceu, donna Fiora? Pareceis perturbada...

Não é nada.

E, puxando Esteban de lado sem se preocupar com a expressão de desagrado de Florent, a jovem explicou-lhe rapidamente o que acabava de lhe acontecer. O escudeiro-secretário franziu as espessas sobrancelhas:

Estais certa de que não vos enganastes?

Certíssima, Esteban, não tenhas dúvidas. Era ele! Como poderia esquecer a sua figura? Mas, que está ele aqui a fazer? Não deve saber que nós estamos em Paris?

Se quereis a minha opinião, acho que devemos estar muito longe do seu espírito, o que não impede que não tentemos saber o que trama. Juraria que está interessado em alguém e que, se bem o conhecemos, não é por caridade cristã...

Que poderemos fazer?

Vós, nada. Esse velho demónio gostaria muito de vos pôr as garras em cima. Mas eu vou saber. Onde é que ele está, na igreja?

A jovem explicou-lhe. Esteban lançou-se na direcção da catedral e, sem deixar de correr, virou-se:

Quando a dama Agnelle se juntar a vós, regressai a casa! Não espereis por mim!...

Fiora viu-o atravessar os grupos de mendigos e saltimbancos que se preparavam para a saída da missa e desaparecer. Foi ter com Florent, que, com um ar ofendido, fazia de conta que verificava os arreios vermelhos e dourados das mulas, mas a jovem estava demasiado aliviada para lhe prestar qualquer atenção. Sentou-se no apeadeiro de cavalos, ajustou a coifa à qual não estava habituada e cujos alfinetes lhe repuxavam os cabelos e pegou no lenço para se abanar. Ainda mais vexado por tanta indiferença, Florent resmungou, de olhar sombrio:

Vós não me prestais nenhuma atenção, pois não?

Porquê? Devia prestar?

Não... não, tendes razão. Não mereço que vos interesseis pela minha sorte. Que sou eu para vós? Nada... menos que nada... Poderia morrer aos vossos pés, que nem se quer me concederíeis um olhar...

O som dos sinos, que anunciavam a saída da missa, cobriu-lhe as palavras. Ocupada com as suas próprias preocupações, Fiora mal os ouviu. Sem um olhar para o jovem, que rangia os dentes, levantou-se para ir ter com Agnelle, cujo véu cor de mel acabara de avistar...

CAPÍTULO VI O SENHOR DE ARGENTON

Os sinos continuavam a tocar para grande glória da Virgem Maria quando Agnelle e Fiora entraram na sala onde a mesa acabara de ser posta, Agnolo, aparentemente em excelente estado, conversava com um visitante, ambos sentados num banco cheio de almofadas e bebendo vinho cuja frescura embaciava as taças de estanho. Quando as damas entraram, levantaram-se e Fiora viu que o desconhecido era um homem jovem ainda não tinha, certamente, trinta anos de estatura média mas elegante, metido numa túnica violeta, cujas mangas largas, rendadas, caíam até aos joelhos e nuns calções justos, de cores harmoniosas, revelando umas pernas elegantes. Do peito pendia-lhe uma grande corrente de ouro. As botas, grandes e macias, estavam cheias de poeira, como é natural após uma longa cavalgada. Sobre tudo aquilo erguia-se um rosto bondoso de olhos azuis alongados, de boca carnuda, bem desenhada e maliciosa e de nariz comprido, cujas narinas, sensíveis, pareciam animadas de vida própria: umas rugas profundas, partindo das asas, iam quase até aos maxilares. Os cabelos, de um louro-escuro, e muito espessos, enquadravam aquela figura, que respirava graça e inteligência. O desconhecido saudou as duas mulheres com uma segurança senhorial, mas demorando-se um pouco mais em Fiora, que fixou por um instante, de sobrancelhas erguidas, sem sequer se dar ao trabalho de dissimular a admiração.

Donna Fiora Beltrami, suponho? perguntou ele com um meio sorriso.

A sua voz, bem timbrada, mas suave e acariciadora, poderia pertencer a um cantor e era evidente que o desconhecido sabia fazer uso dela com encanto...

Não vos enganais, messire disse Agnolo e esta é a minha mulher, donna Agnelle. Permiti que vos apresente aelas: este, queridas senhoras, é o conselheiro mais escutado pelo nosso rei, Messire Philippe de Commynes, senhor de Argenton, que nos veio ver de propósito para falar com donna Fiora.

Comigo? E da parte de quem, meu Deus?

Mas... da parte do Rei, madonna!

A sério? E quem sou eu, para que um grande príncipe se lembre de mim?

A ligeira troça não escapou ao senhor de Argenton. O seu sorriso acentuou-se, ao mesmo tempo que as suas pálpebras se semicerravam ligeiramente:

A modéstia é uma virtude que convém, sobretudo, às mulheres feias. Com essa beleza, madonna, isso é tempo perdido e, pior ainda, é uma hipocrisia. Que o nosso sire se interesse por vós não tem nada de extraordinário. Ainda por cima porque guarda as melhores recordações do vosso defunto pai. Mas, talvez possamos falar depois da refeição? Perdoai-me, minha senhora acrescentou ele virando-se para Agnelle mas morro de fome. Acho que era capaz de comer um cavalo...

O riso da jovem derramou-se como um jacto de água límpida:

Não temos cavalo na ementa, messire, mas creio que a nossa refeição, se bem que modesta, satisfará o vosso apetite. Olá, pequenas! acrescentou ela batendo as palmas tragam bacias e toalhas e tratem de nos servir rapidamente!

Como se não esperassem senão aquele sinal, três jovens criadas apareceram com bacias cheias de água perfumada, nas quais os convivas lavaram as mãos que enxugaram em toalhas finas antes de passarem à mesa. Em seguida, as criadas desapareceram para dar lugar a criados transportando massas, empadas e ”charcutarias” muito afamadas, porque as bolotas dos carvalhos alimentavam os numerosos porcos que constituíam o primeiro serviço. Em seguida vieram os peixes, carpas e salmões arranjados de forma diversa, depois as aves e um quarto de boi assado, tudo acompanhado de funcho, cenouras, couves e rábanos; por fim, os queijos e os frutos, cerejas, ameixas e alguma pastelaria. Tudo regado com vinhos de França e de Itália, porque Agnolo possuía uma cave bem fornecida, da qual se orgulhava. Não parava de encher a taça do seu convidado, indicando-lhe a colheita e o ano e o senhor de Commynes bebia tudo com um entusiasmo lisonjeador, não cessando de dar ao dente e não parando de falar. O senhor Nardi dava-lhe habilmente razão e os dois homens discutiam política animadamente sem se preocuparem com as senhoras o que não aborrecia Fiora, muito interessada no que ouvia, nem Agnelle, que velava pelo bom desenrolar do festim.

As notícias eram boas, tendo em conta os estranhos acontecimentos que se passavam e, sobretudo, os que quase tinham acontecido. Assim, Fiora soube que um certo condestável de Saint-Pol, que era, em princípio, o grande comandante do exército real, mas que não era menos ”borgonhês”, autêntico e velho amigo do Temerário, tivera uma conduta muito estranha. Portador da grande espada com a flor-de-lis que lhe dava supremacia sobre os príncipes de sangue e casado com a cunhada de Luís XI, uma princesa de Sabóia, Louis do Luxemburgo, conde de Saint-Pol, fora, nada mais nada menos, oferecer os seus serviços ao Temerário e ao Rei inglês, propondo-lhes abrir as portas da sua cidade de Saint-Quentin, mas mandara disparar os canhões quando estes se apresentaram diante das muralhas da cidade... Estranho, não?

Espero disse Agnolo que Sua Majestade não se fie muito na fidelidade desse senhor?

Sua Majestade conhece-o há muito tempo! Saint-Pol, pelo que sei, já não sabe a que santo se dedicar, nem que senhor servir. Entretanto, o primeiro resultado da canhonada foi a partida de monsenhor da Borgonha, que, na madrugada seguinte, deixou o seu aliado inglês, retirando para Valenciennes. Ao saber isto, o Rei não perdeu um minuto para iniciar conversações com Eduardo IV. Ele sabe que os Ingleses têm poucas provisões e que a deserção do exército borgonhês foi um golpe fatal para a sua moral. Alguns pensam que a estação já vai avançada e que talvez tenha chegado a hora de regressar a casa, esperando uma melhor ocasião, mas não querem deixar a França de mãos vazias e o Rei Luís sabe-o bem.

E que pedem eles para partir?

Digamos que as suas pretensões são descabidas: primeiro, reclamaram a coroa de França...

Estavam mesmo à espera que lha oferecessem? perguntou Agnolo, rindo.

É claro que não, mas eles são muito vaidosos. Em seguida, pediram que lhes fosse dada a Guyenne e a Normandia, que lhes são muito queridas...

Mas que ainda são mais queridas à França. E depois?

Depois?... Commynes bebeu o seu Borgonha com satisfação e endereçou ao seu anfitrião um grande sorriso. O Rei acha que vai conseguir o que quer com algum ouro e alguns presentes... O ouro estou eu encarregado de retirar das caves da Bastilha, mas tenho que ver, com os senhores almotacés de Paris, qual o preço da sua tranquilidade. E temos de agir com rapidez. Parto depois de amanhã...

Para Compiègne?

Não, para Senlis, para onde foi o nosso sire. Devo levar o ouro com uma escolta que a cidade me dará...

O Senhor de Argenton virou-se bruscamente para Fiora e acrescentou amavelmente:

Desse modo, não tereis que temer os perigos da estrada, madonna, porque tenho ordem para vos levar comigo.

O Rei quer ver-me? Pensava que me trazíeis, apenas, uma mensagem.

É uma mensagem, mas verbal. Deixaremos Paris de madrugada, quando as portas se abrirem. Aprontai-vos! E agora acrescentou ele, levantando-se deixo-vos, o senhor Nardi e a vós, donna Agnelle, agradecendo-vos esta excelente refeição, porque devo encontrar-me rapidamente com messire d’Estouteville, o chanceler Pierre Doriole e messire Pierre Lhuillier, governador da Bastilha.

E com um passo ligeiro, como se não tivesse comido senão a asa de um frango e bebido dois dedos de clarete, o senhor de Argenton deixou a casa Nardi com a sua gente, que tinha comido na cozinha, recomendando a Agnolo que levasse Fiora

1 Antigos inspectores de pesos e medidas.


à porta de Saint-Denis na madrugada do dia seguinte. Sonhadora, esta subiu para ver Léonarde e pô-la ao corrente do que se passava. Agnelle seguiu-a.

Que me quererá o Rei Luís? inquietou-se Fiora enquanto subia a escada. Devia ter falado de Léonarde a messire de Commynes, dizendo-lhe que me é impossível abandoná-la.

Porquê? Eu tomo conta dela, asseguro-vos disse Agnelle, sorrindo. Certamente, não estareis ausente muito tempo. E Senlis não fica assim tão longe: dez léguas não são nada. E, por fim, uma ordem do Rei não se discute.

Léonarde disse o mesmo. Sentia-se perfeitamente em casa dos Nardi e recuperava pacientemente:

Quando não há mais nada a fazer, a sabedoria é que manda disse ela e como donna Agnelle diz que não a incomodo, fico aqui até estar curada. Ide em paz, cordeirinho, não tendes nada a temer da parte do Rei Luís.

Tenho a certeza acrescentou Agnelle. Quanto a nós, se a ameaça inglesa está afastada, talvez possamos ir para a nossa propriedade de Suresnes. Donna Léonarde ficará lá melhor instalada para prosseguir a sua convalescência, porque lá o campo é muito belo e temos uma vista maravilhosa para o Sena.

Demasiado comovida para responder, Fiora abraçou aquela mulher encantadora e, negligenciando momentaneamente o Rei Luís, virou o espírito para outras preocupações: Esteban ainda não tinha regressado.

O castelhano regressou ao cair da noite, pouco antes do recolher, com uma cara de quem tinha caminhado muito e cheio de fome e sede. A gorda Péronnelle, cozinheira dos Nardi, encarregou-se dele a despeito da hora tardia, instalando-o a um canto da mesa e servindo-lhe um patê de enguias, uma empada de pombo, uma grande fatia fria de boi e alguns doces, tudo regado com vinho de Bourgueil, de maneira a restaurar as forças. O castelhano agradava muito à cozinheira, a quem, antes de partir para Compiègne, rendera bons serviços, extasiando-se, com uma gulodice não dissimulada, com os pratos que a via fazer. Nessa noite, Péronnelle sentia-se satisfeita por apaparicar Esteban e por poder tê-lo só para si. Fiora compreendeu-o e esperou no jardim que o festim terminasse.

Aliás, a noite estava bela e estava-se na época das estrelas cadentes. Sentada num banco perto de um grande maciço de flores-de-lis perfumadas e cor de neve, a jovem deixou que o seu olhar e espírito se perdessem no azul profundo do céu, procurando descobrir as constelações que, em Florença, o velho mestre Toscanelli a ensinara a reconhecer. No ano anterior, naquele mesmo mês de Agosto, estivera na vila de Fiesole com o seu bem-amado pai e pensara estar perdidamente apaixonada por Giuliano de Médícis. Nessa ocasião, nada faltava à sua felicidade de menina estragada, mimada. A sua vida decorria suave e florida, como a seda da China que Francesco Beltrami comprara para a sua filha querida por ocasião de uma das suas viagens a Veneza. E, então, tudo se desmoronara, transformando-se a sua vida numa espécie de inferno demente onde a sua vida se afundara, um caos incoerente eriçado de espinhos cruéis que a tinham rasgado, deixando viver apenas no seu jardim secreto a grande flor púrpura, soberba e venenosa da paixão. As suas raízes tortuosas e insinuantes estavam armadas de garras poderosas, que arrancavam sempre pedaços de carne e, tal como a hidra da lenda, voltava sempre ao ataque. Quem respirasse o perfume violento mas suave dessa flor ficava subjugado, escravo e Fiora, nessa noite, no abrigo daquele jardim, ousou confessar a si própria que, a despeito de tudo o que sofrera, continuava a amar Philippe e, sem dúvida, amá-lo-ia até ao seu último suspiro. A flor púrpura só morreria com ela.

Benzeu-se maquinalmente sempre que, lá no alto, um minúsculo meteoro cintilante raiava o veludo sombrio da noite. Alguns diziam que cada estrela cadente representava uma alma que entrava no paraíso. Outros, que era um sinal de felicidade e que era preciso formular um desejo, mas Fiora, a despeito do gesto piedoso que esboçara, não acreditava numa coisa nem noutra...

O saibro do jardim rangeu sob os passos de Esteban e este, sem dizer uma palavra, sentou-se no banco, no lugar que ela lhe indicou a seu lado. O castelhano não lhe deu tempo a que lhe fizesse qualquer pergunta:

Não vos enganastes, madonna, é mesmo ele. Segui-o, espiei-o e fiquei com a certeza.

Onde é que ele foi?

Primeiro, seguiu o cardeal de Bourbon até à residência deste, que fica perto do Louvre. Fazia parte da gente que o acompanhava e eu até vi, em determinado momento, o soberbo cardeal inclinar-se para o monge para lhe confidenciar qualquer coisa.. Mas este só deve ter tomado, na residência de Bourbon, a refeição do meio-dia. Vi-o sair logo a seguir e regressar à catedral, para ali cantar as vésperas e as completas... às quais assisti como bom cristão. Em seguida, frei Inácio foi a um convento vizinho de Notre-Dame, que me disseram pertencer aos Jacobinos. E, desta vez, não voltou a sair. Então, regressei, um pouco moído, um pouco cansado, mas plenamente santificado... Que quereis que faça, agora?

Que ides rapidamente para a cama, porque bem a merecestes. Para já, temos de abandonar o monge ao seu destino. Até porque, depois de amanhã, parto com messire de Commynes. Sabeis, sem dúvida, que o Rei me mandou chamar?

Sei. Quanto a porquê, sei tanto como vós. Mas deve ser por uma boa causa, a julgar pelo acolhimento que reservou ao meu senhor. Entretanto, não sou da vossa opinião no que respeita a frei Inácio. Amanhã vou outra vez para os lados do convento dos Jacobinos. Talvez consiga saber qualquer coisa sobre o que o trouxe a Paris.

Sede prudente, peço-vos. Sabeis como ele é perigoso e talvez seja melhor não chamar a sua atenção sobre nós, eu ou o vosso patrão, porque ele tanto odeia um como o outro...

Confiai em mim. Ele nem suspeitará da minha presença.

Esteban tinha a sua ideia. Na manhã seguinte, cedo, vestido com um fato de tela e armado com dois cabazes pertencentes a Péronnelle, que esta lhe tinha confiado com uma lista de compras quando ele a informou da sua intenção de ir dar uma volta pelo mercado, errou pela vizinhança do convento dos Jacobinos até que viu sair um irmão leigo equipado com cabazes semelhantes aos seus. O castelhano correu-lhe no encalço e um instante depois apanhou-o, mandou-o parar e apresentou-se como um criado doméstico estrangeiro recentemente chegado a Paris, pouco familiarizado com as mercadorias mais afamadas.

Deram-me esta lista acrescentou, mostrando o que ele próprio escrevera, com Péronnelle ignorante de todo aquele exercício e explicaram-me o caminho do mercado, mas foi tudo.

Fizestes bem em falar comigo disse o monge com um ar importante. Eu conheço todos esses mercados e apontar-vos-ei as lojas onde se encontram os melhores géneros ao melhor preço.

Ficar-vos-ei infinitamente reconhecido, meu irmão respondeu Esteban com humildade.

O seu reconhecimento traduziu-se pela única maneira que conhecia. O castelhano, uma vez os cabazes cheios, arrastou o seu benévolo guia para uma taberna da rua Couvillière para ali o regalar com algumas taças de vinho fresco. O irmão Guyot tinha um coração simples, que sabia reconhecer e apreciar os favores de Deus e com um fraco pelo sumo de uva, essa divina bebida santificada pelo próprio Senhor na noite da última Ceia. Ao cabo da terceira taça de vinho de Suresnes, já Esteban sabia o que fora procurar: frei Inácio Ortega fora investido por Sua Santidade, o Papa, numa missão particular e discreta junto do Rei de França, ao qual se juntaria proximamente e com a qual todo o convento se sentia honrado.

Descansado naquele ponto, Esteban lembrou ao seu companheiro que eram horas de voltar e colocou-o no caminho de regresso, alegando, para não ir de novo à rua Saint-Jacques, uma última compra a fazer naquele bairro. Meia hora mais tarde levava a Pétronnelle os cabazes cheios e a Fiora as informações fresquinhas.

A missão dele não deve ser de importância capital supôs a jovem senão o Papa teria mandado um cardeal-delegado...

Não sou da vossa opinião. Um simples monge passa mais despercebido do que um cortejo pomposo com uma samarra púrpura, e muitos segredos de Estado acompanham, muitas vezes, homens ainda mais modestos. De qualquer maneira, este monge vai aonde nós vamos. Trataremos, o meu patrão e eu, de o vigiar. Não vos preocupeis com ele, donna Fiora!

Fiora passou aquele último dia em Paris junto de Léonarde, sentindo-se culpada por abandoná-la, como se a decisão tivesse sido sua. Só se afastou dela por um momento, após o almoço, para ir ter com Agnolo Nardi ao seu gabinete, que lho tinha pedido.

Não tendes necessidade de dinheiro, donna Fiora? perguntou o negociante quando ela entrou, enquanto lhe designava uma cadeira.

Não me deixeis confusa, ser Agnolo! A generosidade com que nos recebestes, aos meus amigos e a mim, proíbe-me de vos abordar com essa questão...

Por Baco! Donna Fiora. Que estranha filha de negociante que vós sois. Misturais tudo!

Não creio e até vos peço que não continueis, porque me embaraçais!

Dio mio! Não compreendeis nada, mas mesmo nada, do que são os negócios! A hospitalidade é um dever de qualquer cristão, que entre nós se junta a um prazer maravilhoso, mas é uma coisa que não faz parte do comércio. No que vos diz respeito, a realidade é esta: Ser Angelo Donati, que assumiu, de acordo com Sua Senhoria de Médicis, a responsabilidade dos bens, comércio e propriedades do defunto Francesco Beltrami, fez-me saber que os benefícios que, no meu negócio, eram parte do vosso pai, devem ser-vos entregues integralmente. Acontece o mesmo com o balcão de Bruges, ou, para mais comodidade, com ser Renzo Capponi, que recebeu ordem de me enviar, todos os anos, o que vos é devido e posso dizer que, se não se trata de uma riqueza comparável com a do nosso querido Francesco Beltrami, estais assim mesmo, a partir de agora, à cabeça de uma agradável fortuna, que engordará todos os anos e que vos permite hoje mesmo, se assim o desejardes, comprar uma bela casa em qualquer local de França que vos agrade. No Loire, por exemplo, onde a vida é tão doce e onde o Rei reside normalmente.

Será que, por pura bondade, não estais a exagerar?

De maneira nenhuma, pela minha honra! Tendes de pensar no futuro, donna Fiora, e agarrar o que vos pertence...

Não sei o que fazer, de momento. No entanto, aceito de boa vontade alguma liquidez para a viagem que vou encetar amanhã, mas só o que for preciso. Quanto ao resto, desejo que o coloqueis no melhor dos nossos interesses comuns e desejo que façais tudo o que vos for possível para assegurar o tratamento e conforto da minha querida Léonarde...

Com um gesto desenvolto, Agnolo afastou o último desejo como se não tivesse qualquer importância e dirigiu-se a um dos pesados cofres com ferragens que se encontravam alinhados ao fundo do seu gabinete de trabalho. O mercador abriu-o e tirou um saco que parecia bem pesado.

Para começar, estão aqui mil libras. Podereis pedir-me outro tanto sempre que necessitardes e, já que me confiais a administração da vossa fortuna, farei com que nunca vos venhais a arrepender.

Comovida, a jovem aproximou-se dele e deu-lhe um beijo em cada uma das faces.

Tenho a certeza. Em todo o caso, obrigada por serdes o que sois. Se não partisse amanhã, creio que seríeis obrigado a iniciar-me nesse comércio pelo qual o meu pai estava tão apaixonado...

Também para isso estarei à vossa inteira disposição. Seria uma boa coisa, se aprendêsseis tudo sobre os negócios, porque, se ainda estais em plena juventude, eu já não estou. Mas, falaremos disso quando souberdes o que vos quer o Rei nosso senhor!

Fiora sorriu e abraçou o excelente homem. Ainda tinha contas a ajustar com os grandes deste mundo, assim como com um certo Philippe de Selongey, sem contar com Hieronyma del Pazzi, que escapara por verdadeiro milagre ao justo castigo pelos seus crimes. Depois, talvez fosse apaixonante seguir o rasto brilhante que Beltrami deixara. Mas, quando seria aquele ”depois”? Dentro de quantos anos? E que seria daquela jovem florentina chamada Fiora que, a despeito de tudo o que sofrera, ainda acreditava que tudo era possível quando se deseja apaixonadamente?

Na madrugada do dia seguinte, ladeada por Philippe de Commynes e Esteban, transpunha a barbacã da porta de Saint-Denis. A seguir aos três cavaleiros, uma companhia montada de franco-atiradores da Cidade de Paris escoltava várias carroças entaipadas carregadas de tonéis, que faziam rir os hortelãos alinhados ao longo da estrada para deixar passar o cortejo. Riam a bandeiras despregadas, gritando que o astuto Rei Luís tinha grande necessidade de bons vinhos para dar coragem às suas tropas antes da batalha que iam travar contra o inglês rapace. Os soldados sorriam e respondiam com brincadeiras. Apenas Commynes sabia que só três daquelas barricas continham o vinho das colinas do Loire, de que tanto gostava o Rei. As outras iam cheias de ouro, desse ouro que, melhor do que uma batalha sempre incerta, expulsaria, talvez, e uma vez mais, o inglês do solo de França.

Se os campos nos arredores imediatos de Paris ofereciam a imagem de um país ocupado com as suas colheitas, a estrada por que avançavam para norte tinha mais soldados e carroças militares do que camponeses. A mais pequena aldeia estava guardada, o mais pequeno dos castelos revelava, na sua torre, o brilho dos capacetes e ferros de lança. A espessa floresta de Senlis, onde Luís XI gostava de caçar, perdera o seu silêncio. O eco de uma ordem, ou o tilintar de armas, cobria, por vezes, o canto das aves: o Rei, como homem previdente que era, dispusera as suas tropas em posições belicosas, ao mesmo tempo que os seus emissários negociavam com os do monarca inglês.

E, subitamente, foi a calma, a paz divina silvestre, povoada pelo canto das aves. Abandonaram o grande caminho, no termo do qual se perfilavam as muralhas de Senlis, para continuarem por uma vereda arborizada, apenas marcada pelos trilhos das rodas de algumas carroças... Face à interrogação muda de Fiora, Commynes respondeu com um sorriso.

Estamos a chegar! disse ele.

A floresta acabava de se abrir em duas, como uma cortina de teatro, diante do que parecia ser uma cidade em redução: por trás dos muros de altura mediana viam-se as altas janelas floridas de um palácio encimado por cata-ventos dourados e azuis e o esplendor cintilante de uma igreja. As torres inacabadas estavam ainda prisioneiras de um entrelaçado de andaimes e as ardósias novas brilhavam como placas de aço azul. Um grande estandarte, uma grande flâmula, onde o fundo azul com flores-de-lis estava dividido em quatro partes por meio de uma cruz branca, adejava docemente no topo da sua haste dourada na mais alta empena do edifício.

A abadia da Vitória anunciou Commynes. O Rei gosta de viver nela...

Como é bela! suspirou Fiora, sincera. E que belo nome: Vitória!

A origem é simples: em 1214, no dia 27 de Julho, quando o Rei Filipe Augusto derrotou, em Bouvines, o imperador alemão Otão, enviou ao seu filho, o príncipe Luís, um mensageiro portador da grande notícia. Por seu lado, este, ainda eufórico com o sucesso em la Roche-aux-Moines sobre o Rei João de Inglaterra, despachou outro para o seu pai. Dizem que os dois cavaleiros se encontraram neste local e, alguns anos mais tarde, o Rei ordenou a fundação de uma abadia, que foi confiada a doze cónegos regulares da ordem de Santo Agostinho, vindos da abadia de Saint-Victor, em Paris. Ricamente dotada, transformou-se no que vedes: uma nobre residência, digna do Senhor Deus...

É guardada por anjos? Pareceu-me ver, até com asas, uma estátua do Senhor São Miguel...

Com efeito, esplêndidos nas suas armaduras brancas e brilhantes, sobre as quais flutuavam as cotas de malha que retratavam em ponto mais pequeno o estandarte real e grandes gorros chatos com longas penas de garça-real pregadas a medalhas de prata a um dos lados, a pé ou a cavalo, os mais belos soldados que Fiora já vira montavam, de um lado e de outro do portal, uma guarda vigilante.

Commynes pôs-se a rir:

Não são anjos, longe disso! Estais a ver, madonna, a célebre Guarda Escocesa do Rei Luís, que conta entre os seus membros alguns dos melhores guerreiros do mundo. Só conhecem duas leis: a do Rei, ao qual juraram fidelidade e a do amor, susceptível e intransigente que votam à sua honra e à pátria longínqua...

Os viajantes tinham sido avistados. Um cavaleiro galopava na sua direcção e Commynes gritou:

Saudações, Robert Cunningham! Só vos trago amigos. O Rei espera esta jovem dama... e as barricas de vinho que nos seguem.

As caves estão prontas para as receber. Quanto à escolta, vai poder refrescar-se e repousar um pouco antes de regressar a Paris. Mas vós, Messire, não tendes necessidade de interlocutor.

Depois de ter saudado cortesmente Fiora, tentando ao mesmo tempo desvendar o mistério que se escondia sob o véu que ela gostava de usar quando viajava, o escocês fez virar o seu cavalo e tomou a cabeça da fila de barricas. Uma após outra, as carroças e os que as guardavam transpuseram o portal do mosteiro sob o olhar interessado dos arqueiros de guarda.

E agora, nós! disse Commynes com alegria. Aposto que o nosso sire vai ficar encantado por vos ver, madonna...

Para lá do alto portal ogival, no frontão do qual uns anjos ajoelhados, de asas imensas, pareciam proteger as armas de França, os viajantes descobriram um vasto espaço coberto de erva recentemente aparada, formando um belo tapete junto dos edifícios da abadia e da beleza de uma admirável igreja de pedra branca. Imaculados também os grandes galgos usando coleiras de couro com pregos dourados, que brincavam no relvado junto de um homem que devia ser, segundo Fiora, um tratador de cães. Magro e de estatura mediana, vestido com uma túnica curta de tecido cinzento apertada na cintura por um cinto de couro, os calções desaparecendo numas macias botas altas cinzentas de gamo, usava, sobre um gorro vermelho que lhe escondia as orelhas, um chapéu de feltro negro levantado na parte traseira, sobre a copa do qual estavam fixadas algumas medalhas.

Que belos animais! exclamou Fiora. Dá a impressão que saíram de uma lenda... E como parecem gostar do homem que trata deles!

Com efeito, gostam muito dele assegurou Commynes com uma piscadela de olho cúmplice para Esteban. Quereis vê-los mais de perto?

O senhor de Argenton já tinha posto pé em terra e oferecia a mão à jovem para que ela fizesse o mesmo. Esta hesitou:

Será prudente, por causa de um instante de prazer, fazer esperar o Rei? Dizem que é paciente...

Vinde! Prometo-vos que tereis direito a toda a indulgência...

Um pouco contra vontade, Fiora deixou-se conduzir. Esteban permaneceu no seu lugar, juntando nas mãos as rédeas dos três cavalos. Sentindo a aproximação de estranhos, os galgos Pararam de brincar e imobilizaram-se, as cabeças esguias fixas nos recém-chegados. Ao ver aquilo, o tratador virou-se. Sob o olhar estupefacto de Fiora, Commynes pôs um joelho em terra:

Sire disse ele eis-me de volta, tendo cumprido as duas missões que o Rei se dignou confiar-me! Depois, entredentes, acrescentou: ”Saudai, que diabo!”

E Fiora, maquinalmente, dobrou os joelhos para uma profunda reverência.

Bem, bem! disse o Rei. Mais uma vez servistes-me bem, messirePhilippe, pelo que vos estou grato. Agora, quereis ter a amabilidade de me deixar a sós com esta jovem dama, da qual espero a graça de se dignar levantar o véu? Mas não vos afasteis: temos que falar!

Sem abandonar a sua posição desconfortável, meio ajoelhada, Fiora atirou a sua musselina por cima da dupla coifa de seda que lhe servia de toucado, libertando o rosto. Mal refeita da surpresa, a jovem contemplava aquele homenzinho sem aparência, que, no entanto, era o Rei de França. Não era belo nem jovem cinquenta e dois anos feitos no dia de Saint-Anatole último mas sob o olhar dominador daqueles olhos castanhos profundamente encovados nas órbitas, a jovem sentiu-se corar e baixou a cabeça, tendo apenas conseguido reparar no longo nariz sardónico, na boca delgada, sinuosa e móvel, mas soube que, mesmo que vivesse mil anos, nunca esqueceria aquele rosto. Tinham-lhe dito que aquele homem possuía a inteligência mais subtil e profunda que havia e, desde o primeiro olhar, ficou persuadida.

Entretanto, Commynes tinha-se afastado sem que Fiora tivesse sido autorizada a levantar-se. E, subitamente, a jovem viu, sob o seu nariz, uma longa mão seca, que se estendia para a ajudar a erguer-se, ao mesmo tempo que uma voz amável pronunciava:

Senhora condessa de Selongey, sede bem-vinda.

O estupor quase atirou Fiora por terra. A jovem vacilou como se sob o assalto de um brusco golpe de vento e ficou tão pálida que o soberano pensou que ia desmaiar:

Que se passa? disse ele num tom descontente não é esse o vosso nome? Ter-nos-iam enganado?

Compreendendo que tinha diante de si um adversário formidável, Fiora, à custa de um violento esforço, conseguiu recuperar.

Que o Rei me perdoe uma emoção da qual não sou dona disse ela docemente. É a primeira vez que me chamam assim e não estou certa de ter direito a esse título. Messire de Commynes disse-me que o Rei queria ver Fiora Beltrami. É essa... e nenhuma outra que tenho a honra de colocar, a partir deste momento, às ordens de Vossa Majestade...

A reverência foi repetida na perfeição: um milagre de graça e elegância e o duro olhar apreciador suavizou-se com uma ponta de alegria:

Ah ah! Estarei a vislumbrar um mistério? Quereis, condessa, caminhar um pouco para esclarecermos isso? Devagarinho, cães! Segui-nos e que eu não vos ouça!

Ambos deram alguns passos na erva ainda húmida por uma chuvinha que caíra ao começo da tarde, refrescando o local. Desorientada com a apóstrofe de que fora objecto e tentando desesperadamente descobrir como podia Luís XI estar ao corrente do seu estranho casamento, Fiora perdeu-se em conjecturas. Era impossível, impensável, que Demétrios fosse o culpado de tagarelices irreflectidas. Então? Quem? Como? Porquê? Tantas perguntas sem resposta, pois era proibido interrogar um Rei... Aliás, este pôs fim às suas vãs interrogações continuando, num tom diferente:

Nós conhecemos, em tempos, messire Beltrami, o vosso pai e tínhamos estima por ele porque era um homem recto, honesto e generoso e foi com pena que soubemos do seu trágico fim e dos acontecimentos que se seguiram... Já sabíamos que o senhor Lourenço de Médicis possuía um belo talento de poeta, mas ignorávamos que a sua pena pudesse atingir um tal grau de evocação lírica quando nos descreveu os infelizes acontecimentos de que fostes vítima, donna Fiora acrescentou o Rei com um sorriso fino. Na verdade, o grande Homero não teria feito melhor!

No entanto, monsenhor Lourenço prometeu-me que nunca falaria de mim protestou Fiora, que acabava de perceber de quem Luís XI recebera aquela surpreendente posse dos seus segredos.

Sem dúvida, mudou de opinião. Talvez com o fim de vos proteger, mesmo contra a vossa vontade? De qualquer maneira, ele conhece-nos demasiado bem para ignorar que nós, em todas as coisas, queremos saber tudo daqueles que se aproximam de nós. Esta exigência tem o mérito de esclarecer as situações, de evitar as mentiras e de nos poupar a explicações tão enredadas quanto confusas. As nossas relações, assim, ficam simplificadas. Que achais?

Que o Rei tem razão, sem dúvida, mas nem por isso fico menos agastada...

Por Deus, minha senhora! Nós acabamos de vos falar clara e francamente. Tratai de nos pagar na mesma moeda e concedei-nos a graça de algumas momices e afectações femininas. Pelo que sabemos de vós, sois corajosa. Não mudeis!... E não fiqueis com essa cara contrita! Dizei-nos antes por que razão não estais certa de ser Mme. de Selongey?

Um pouco aliviada, apesar de tudo, por poder avançar por um terreno mais estável, Fiora, com tanta simplicidade como se aquele desconhecido fosse o seu confessor, contou a sua infeliz visita ao castelo de Philippe e a dor e cólera que sentira. Luís XI escutou-a sem nada dizer, caminhando com a cabeça um pouco inclinada e as mãos atrás das costas.

Portanto disse ele quando ela acabou messire de Selongey ter-se-á tornado bígamo quando casou convosco? Essa falta é muito grave, além de que é sacrilégio, o que dá direito ao cadafalso.

Não tenho qualquer razão, nem vontade de defender esse homem, sire, mas depois da cólera veio a reflexão. Talvez, acreditando que eu estava morta, tenha casado há pouco com essa Beatrice?

O olhar vivo que o Rei lançou à jovem tinha algo de surpresa e algo que parecia simpatia.

É uma qualidade rara, essa de raciocinar assim, com o próprio coração! Quais são os vossos sentimentos por Selongey?

Na verdade, não sei. Há momentos em que creio amá-lo ainda e há outros em que o odeio, talvez mais do que odeio o seu senhor, esse duque a quem ele me sacrificou! Esse arrogante Temerário que nós jurámos matar, Demétrios Lascaris e eu!

Um brilho, que rapidamente se apagou sob as pesadas pálpebras, atravessou o olhar do Rei:

Jurastes matar Carlos de Borgonha? Porquê?

Se o duque Filipe ainda fosse vivo, teríamos decidido a sua perda, porque tanto o pai, como o filho, são culpados. Abomino aquele duque impiedoso, que não teve piedade da juventude do meu pai, o autêntico, esse duque ao qual messire de Selongey me sacrificou. Quanto a messire Lascaris, reprova-lhe a morte do irmão mais novo e a falsa esperança de socorro esperada pelos gregos, agora mortos, ou escravos..

Luís XI fez meia volta para regressar sobre os seus passos. Os cães seguiam-no docilmente.

Segundo a regra, que não permite que uma mulher resida nesta abadia, Commynes vai conduzir-vos a Senlis, onde reencontrareis o vosso amigo. Tenho muita estima por ele, porque é um grande médico e conto ficar com ele, como era desejo do senhor Lourenço. Mas vós, donna Fiora, se vos propusesse que me servireis, aceitaríeis?

Se o Rei me permitir levar a cabo a vingança jurada, não terei razão para recusar. E serei leal.

A jovem pensava cada palavra que pronunciava, porque, de repente, sentia-se confiante. Talvez porque o Rei, ao abandonar provisoriamente o plural de majestade, parecia-lhe, subitamente, mais próximo e mais humano. Este abanou a cabeça e sorriu, um verdadeiro sorriso, que lhe tirava vários anos e que, como todas as coisas raras, tinha muito encanto.

Tenho a certeza. Basta olhar para os vossos olhos... Além disso, é bom que saibais o seguinte: Philippe de Selongey é, actualmente, meu prisioneiro... e... em grande risco de ser executado. Como vedes, posso oferecer-vos metade da vossa vingança...

Aturdida e de olhos esbugalhados de espanto, Fiora mal conseguiu articular:

Mas... porquê? Que fez ele?

Tentou matar-me. Os magistrados chamam a isso regicídio e, se a lei for aplicada, o favorito do Temerário será cortado em quatro. Mas voltaremos a falar de tudo isso mais tarde, com tempo, espero? Que Deus vos tenha na Sua santa guarda, donna Fiora!

Virando bruscamente as costas à jovem desvairada, Luís XI afastou-se na direcção da residência da abadia. À sua volta, os grandes galgos brancos, livres de uma longa docilidade, saltavam para apanhar as guloseimas que ele erguia na ponta da mão. Fiora sentiu um enorme cansaço. Teve vontade de se deixar cair ali mesmo, naquele tapete de erva molhada, de chorar, de dormir... Mas uma mão sólida agarrou-lhe o braço no momento em que os seus joelhos se começavam a dobrar:

Vinde, donna Fiora! Vou conduzir-vos até junto do vosso amigo. Ele não está longe: a uns três quartos de légua, no máximo...

Sem opor qualquer objecção, Fiora deixou-se levar. O golpe que acabara de receber fora tão violento que lhe tirara, até, a faculdade de pensar. A ideia de voltar a encontrar Demétrios era a única que se mantinha. A jovem agarrou-se ”ela como um náufrago a um ramo...

O castelo de Senlis era pequeno, pelo menos para um castelo real, mas, pelo contrário, o albergue dos Trois Pots, a seu lado, era grande e de habitação agradável. O Rei, quando estava em Senlis, alojava nele os seus convidados especiais e, naturalmente, Demétrios fora ali instalado, já que a estadia numa abadia não lhe agradava e nem sequer era permitida a um ortodoxo. Lascaris declarara-o francamente a Luís XI que, sendo o Rei também de uma extrema piedade, compreenderia as razões de um homem do valor do médico grego.

Esteban partira como batedor enquanto Fiora conversava com o Rei, para anunciar da chegada da jovem e esta, ao entrar no albergue, encontrou um agradável quarto já preparado para a receber. A jovem sentiu-se comovida, mas foi o acolhimento de Demétrios que mais a emocionou. Pela primeira vez desde que se conheciam, ele abraçou-a. Ao vê-la ir na sua direcção com o rosto pálido e perturbado, compreendera que era de um gesto como aquele que ela precisava, já que estava privada do refúgio representado por Léonarde. Mas, quando ela rompeu em soluços nos seus braços, ele inquietou-se:

Que aconteceu? O Rei recebeu-te mal?

O seu olhar procurou o de Commynes, testemunha da cena e que afastou os braços, ao mesmo tempo que encolhia os ombros para traduzir a sua ignorância:

Donna Fiora não disse uma palavra desde que saímos da abadia. Porém, parece que o nosso sire lhe recusou qualquer favor. Por meu lado, só desejo ajudá-la e, se puder fazer qualquer coisa, estou disposto a conduzir-me como um verdadeiro amigo, se me quiserdes aceitar como tal...

Fiora afastou-se, pegou no lenço que Demétrios lhe oferecia, enxugou os olhos e assoou-se:

Perdoai-me ambos, acabo de me conduzir como uma criança e tenho vergonha. Messire de Commynes... uma amizade oferecida tão espontaneamente é um presente do céu e eu aceito-a com a mesma simplicidade com que me foi oferecida. Se o Rei não precisar de vós esta noite aceitais jantar connosco?

O rosto bondoso do senhor flamengo iluminou-se com um largo sorriso... e Fiora concluiu que a cozinha do albergue devia ser muito conhecida.

De boa vontade! Ainda por cima porque esta estrada, que percorremos em conjunto, me fez muita fome, mas, se vós me aceitais assim, cheio de poeira?...

Vinde refrescar-vos ao meu quarto propôs cortesmente Demétrios e, se desejardes dormir aqui...

Excelente ideia! Regressarei à abadia amanhã de madrugada. O que interessa é estar lá quando o Rei sair da missa.

Para além da simpatia que Commynes lhe inspirava, Fiora, ao fazer desaparecer a poeira da estrada e ao vestir o seu vestido de linho bordado com folhas verdes, confessou a si própria que o seu convite não fora totalmente desinteressado. Conselheiro privado e muito ouvido por Luís XI, o senhor de Argenton devia estar ao corrente do que se passava com Philippe e a jovem queria saber a qualquer preço o que acontecera. Sentia-se irritada por sentir tanta angústia pelo destino de um homem que se esforçava por expulsar do seu coração, mas esse mesmo coração, surdo a qualquer razão, a qualquer sensatez e a qualquer rancor, só queria saber uma coisa: Philippe estaria morto, talvez, no dia seguinte. E essa ideia era-lhe insuportável. Se Philippe deixasse de respirar, nem que fosse no fim do mundo, Fiora sabia que qualquer coisa lhe faltaria na vida. Amor ou ódio, os dois extremos sentimentos humanos introduziam na vida o sal, a pimenta e as especiarias que lhe davam todo o sabor... Era preciso que messire de Selongey continuasse a existir!

Durante o princípio da refeição, Fiora foi capaz de reter as perguntas que lhe queimavam os lábios para não estragar o prazer do seu convidado. Enquanto saboreavam uma empada de alho-porro com natas, lagostins do rio Nonette e uma carpa recheada proveniente de um tanque vizinho, Commynes e Demétrios falavam de toda a espécie de coisas, como homens que já se conheciam e apreciavam. A despeito da idade, o senhor de Argenton possuía uma boa cultura e, sobretudo, adorava falar de política. Concordava com Luís XI por este ter recusado o conflito aberto com o Rei inglês. As suas tropas contentavam-se em acompanhar as marchas e contramarchas de um inimigo que, visivelmente, hesitava em entrar em combate. Era verdade que o exército inglês era grande, bem armado, e que os seus famosos arqueiros não tinham perdido a perícia, mas, depois do desembarque em Calais, o invasor só encontrara pela frente terra queimada e cidades abandonadas. Os refugiados de Arras e da região circundante, a quem Luís XI ordenara a destruição para esfomear o inglês, tinham encontrado asilo, víveres e dinheiro em Amiens ou em Beauvais, por exemplo, porque, apesar de querer reduzir o inimigo a pão e água, o Rei entendia que o povo é que tinha mais a perder.

E agora concluiu Commynes, atacando galhardamente um presunto cozido nas cinzas Eduardo e os seus estão mais ou menos onde o Rei queria que estivessem: devoraram todas as provisões e, como não se podem alimentar na região, os seus ventres começam a dar horas... o que, graças a Deus, ainda não é o nosso caso! Experimentai este porco, donna Fiora, está sublime. Mestre Auburtin excedeu-se...

O duque da Borgonha não aprovisionou o cunhado quando se lhe juntou? perguntou Demétrios.

Só tinha com ele cinquenta cavaleiros e as cidades da Flandres tinham-lhe recusado qualquer ajuda...

Foi nessa ocasião que o conde de Selongey foi feito prisioneiro? perguntou Fiora com uma voz que ela esperava fosse calma.

Os olhos dos dois homens viraram-se para ela, mas ela não os viu. Aquecendo entre as mãos a sua taça de vinho, a jovem aspirava o aroma com um ar distraído, sem parecer aperceber-se do silêncio que acabava de provocar.

Foi um pouco mais tarde respondeu calmamente Commynes, como se a pergunta de Fiora se inscrevesse com toda a naturalidade no seu relato. Durante Beauvais. Os espiões do Temerário souberam que o nosso sire, para relaxar um pouco o espírito, quis, um certo dia, ir à caça das cercetas, perto de Therain, sem uma grande escolta. Messire de Selongey emboscou-se com alguns homens nos silvados de uma casa em ruínas. Quando o Rei apareceu, lançou-se sobre ele, atirou-o do cavalo abaixo e já brandia uma maça sobre a sua cabeça quando Robert Cunningham, que vistes há pouco e a quem aquela partida de caça não inspirava confiança, surgiu subitamente com uma dezena de escoceses. Selongey não parava de insultar o nosso sire. Foi subjugado, assim como o seu escudeiro Mathieu de Frame, ao mesmo tempo que os seus homens eram mortos mesmo ali. Os prisioneiros foram primeiro conduzidos para a prisão do bispo de Beauvais e depois para o castelo de Compiègne, onde estão enquanto esperam por um julgamento que não tardará...

Mas, em tempo de guerra não é costume pedir um resgate pelos senhores prisioneiros?

Sem dúvida, no entanto aquela não foi uma acção de guerra, antes uma tentativa de assassinato, friamente premeditada. O Rei não estava armado. Acrescento que uma tal temeridade não me espanta vinda daquele louco do Selongey. Ele ignora tudo da diplomacia e só conhece um argumento: matar! acrescentou Commynes com um gesto de desdém que fez corar Fiora. Além disso, tem pelo seu senhor uma devoção cega, surda, impenetrável a qualquer raciocínio. Até Deus vem depois do seu príncipe, no qual não vê qualquer defeito e não compreende, nem compreenderá nunca, que corre deliberadamente para um abismo que engolirá irremediavelmente aquele grande ducado que ele pretende transformar em reino...

1 espécie de pato.


A alegria desaparecera subitamente do rosto de Commynes. De olhos exorbitados e boca retorcida, não olhava para nenhum dos seus companheiros e Fiora teve a impressão súbita que não se dirigia a nenhum deles, antes falava consigo próprio.

Assim, foi com muita suavidade que ela continuou:

Como é possível estardes tão a par dos assuntos da Borgonha, messir e Falais do duque Carlos como se o conhecêsseis pessoalmente...

A mão de Demétrios acabava de pousar-se sobre a de Fiora para a pôr de sobreaviso contra qualquer coisa, mas era demasiado tarde. Philippe de Commynes virou para ela um olhar que a jovem não conseguiu decifrar. De qualquer modo, pareceu-lhe que continha alguma dor, mas, no entanto, foi com um sorriso que ele lhe respondeu:

Eu sou flamengo, donna Fiora. O meu pai, Colart de Commynes, foi governador de Cassei, bailio de Gand, soberano bailio da Flandres e cavaleiro do Tosão de Ouro. O duque Filipe era meu padrinho e eu fui criado na sua corte. Aos dezassete anos, em 1464, fui agregado à pessoa do conde de Charolais, que, ao tornar-se duque da Borgonha, fez de mim seu conselheiro e camareiro. Mas eu já sabia que nenhum entendimento seria possível entre mim e um senhor incapaz de ouvir um conselho sensato, ou moderado. Se tivésseis, como eu, assistido à destruição de Dinant, ao massacre metódico de todos os seus habitantes, homens, mulheres e crianças, velhos e mesmo recém-nascidos, e isso porque aqueles infelizes tinham ousado erguer a voz contra o seu suserano, compreenderíeis o que quero dizer... Tive vontade de vomitar, mas ele considerou tudo aquilo com um olhar frio de satisfação. Voltei a ver esse género de matança em Liège, onde ninguém foi poupado, nem sequer as freiras enclausuradas, nem sequer os seres mais miseráveis...

Nesse caso disse Fiora sem procurar esconder a surpresa éreis borgonhês?

O sorriso de Commynes tornou-se sarcástico:

E agora sou francês. Um transfuga, não é verdade? O Temerário diria traidor e, no entanto, não creio merecer esse epíteto. Só se trai o que se admira, estima ou ama, e eu nunca senti por Carlos nenhum desses três sentimentos. Tudo o que ele deseja inspirar, aliás, é o medo...

Quando conhecestes o Rei Luís?

A primeira vez foi na batalha de Montlhéry, onde o vi combater valentemente sem deixar de comandar e de fazer o que podia pela vida dos seus soldados. Admirei-o. Depois, voltei a vê-lo naquele infeliz encontro de Péronne, nessa armadilha onde ele se extraviou e onde, durante horas, a morte esteve suspensa sobre a sua cabeça sem que parecesse assustado. Demonstrou ser um diplomata fantástico e, então, compreendi que era habitado por um génio. Creio que gostei dele pelo seu valor e fiz tudo para reter a cólera cega do Temerário. O Rei testemunhou-me o seu reconhecimento...

Dizem disse Demétrios que o Temerário o obrigou a acompanhá-lo a Liège e assistir à punição dos seus habitantes... que, no entanto, eram os seus amigos da véspera. Parece que permaneceu sereno, atendendo às circunstâncias...

É um comediante espantoso e confesso que esta ”aranha” me fascina, tecendo paciente e cuidadosamente a teia onde os insectos, aturdidos, caem. Depois de Péronne, levei a cabo para o Temerário diversas missões em Inglaterra, na Bretanha e em Castela, sem nunca receber outra coisa senão críticas amargas ou respostas tortas. Ao mesmo tempo, via-o desenvolver uma política impiedosa e demente. Com que sonhava o Temerário? Com um Império! Com a hegemonia da Europa! Conseguir que o imperador Frederico III o reconhecesse como seu herdeiro em vez do filho! E agora, quer o reino, para o qual precisa da Lorena, que unirá os países de cá aos de lá... mas eu já tinha partido. Uma missão inútil, onde quase deixei a vida, decidiu-me: o Rei Luís XI chamava-me. Na noite de 8 para 9 de Agosto de 1472, há pouco mais de três anos, juntei-me a ele em Anjou, nas Ponts-de-Cé. E não estou arrependido...

Que vos acontecerá se, por acaso, o Temerário se apoderar de vós? perguntou Demétrios.

O meu fim será, sem dúvida, exemplar. Aliás, ao atacar o rei, Philippe de Selongey contava fazer um golpe duplo, levando-me também acorrentado, porque, creio, ainda deseja mais a minha morte do que o seu senhor. Infelizmente para ele, eu não aprecio a caça... e, agora, é ele que está prisioneiro.

Conhecei-lo bem? murmurou Fiora.

Bastante bem. Só é dois anos mais velho do que eu e fomos, durante muito tempo, companheiros de armas. Mas nunca fomos verdadeiros amigos: somos muito diferentes.

No entanto, talvez tenhais conhecido a sua mulher?

A surpresa manifestada por Commynes era demasiado absoluta para não ser sincera.

A sua mulher? Nunca ouvi dizer que fosse casado! Tanto quanto sei, recusou diversos partidos, por vezes fantásticos, mas ele não consagraria muito tempo à infeliz que casasse com ele...

Por que razão dizeis infeliz?

Não é um destino muito agradável viver isolada num castelo borgonhês, ou aumentar o círculo de dames afastadas dos maridos que rodeiam, em Gand, em Bruges, em Bruxelas, ou em Lille, a duquesa Marguerite e a sua nora Marie. A época não é propícia à felicidade de um casal! O mesmo acontece comigo: há dois anos e meio, ocasião em que voltei a casar-me, que não vejo dame Hélène, a minha bela mulher. Quando não está junto da Rainha Carlota, que vive em Amboise com os filhos, está em Argenton, terra que veio para a minha posse pelo casamento e onde ela gosta de estar.

E... ela não tem saudades vossas? lançou Fiora com uma ligeira insolência.

Se tem, é demasiado inteligente e educada para as exprimir.

Então, mudemos a proposição, por favor: não tendes saudades dela?

Commynes, já com todo o seu bom humor reencontrado, desatou a rir:

Estou a ver que é preciso agradar-vos, donna Fiora! Poderia dizer-vos que o nosso sire não me dá o tempo ou a oportunidade, o que seria verdade. No entanto, por vezes, quando o campo cheira bem e o céu está cheio de estrelas, lamento a sua ausência, porque é uma mulher doce, bela e fresca... tão loura quanto vós sois morena... mas de carácter bastante mais tranquilo, se me permitis esta pequena maldade.

Começava a fazer-se tarde. Commynes, que acabara de liquidar uma salada de morangos e amoras, fazendo escorregar os frutos com três dedos de aguardente de ameixa, pediu licença aos seus novos amigos e retirou-se para o quarto que lhe tinham preparado. Fiora escutou o som dos seus passos a diminuírem na longa galeria dominando o pátio central que dava acesso aos diversos apartamentos e depois, certa de que o senhor de Argenton já tinha entrado no seu quarto, regressou para junto de Demétrios, que, à janela, escutava os sinos da catedral próxima tocando a recolher, depois de ter apagado as velas que iluminavam a mesa. Mas a noite estava suficientemente clara para poderem dispensar qualquer tipo de iluminação. Fiora instalou-se junto do grego e perguntou:

Na verdade, não sei o que pensar deste homem. Desorienta-me. Parece franco, leal, honesto e deve ser fácil tornarmo-nos amigos dele, mas...

Não vais, agora, condená-lo por ter abandonado o Temerário pelo Rei Luís?

Não deveríamos fazê-lo? Em todas as línguas do mundo ele é um traidor!

Na minha não é, porque a culpa não é de sire Commynes, antes desse príncipe desmedido, louco de orgulho e inacessível a todos os sentimentos humanos, que não soube conservar um tal servidor. Porque, digo-te, este Commynes é um grande servidor e aproximou-se, com toda a naturalidade, de uma inteligência que se assemelha à sua. Ele tem o estofo de um homem de Estado e Luís XI não se enganou... Ele sabe que temos o que merecemos. O Temerário não sabe e nunca saberá...

No entanto... foi amigo de messire de Selongey murmurou Fiora com amargura.

Porque são parecidos: são homens de guerra, senhores feudais, que os de Florença temem e desprezam um pouco porque lhes compram os serviços. O teu Philippe é o reflexo que o Temerário vê quando se olha ao espelho.

O meu Philippe não é assim!

No entanto, o teu coração está cheio de angústia, agora que o sabes a caminho do cadafalso. Não digas que não. Eu leio em ti como num livro, sabes bem.

Tu também lês o futuro. Ele vai morrer?

Não sei. Para te responder, seria preciso que estivesse ao pé dele...

Mas estás ao pé de mim! Que vês?

Uma longa estrada, sons de batalha... sangue e lágrimas. Escutar-me-ás, Fiora, se te ordenar que regresses a Paris, para junto de Léonarde e dos Nardi? Os combates que se preparam são demasiado violentos para uma mulher. Amo-te o suficiente para desejar poupar-te a eles.

Eu não quero ser poupada disse ela com uma violência súbita. Odeio mais o Temerário hoje do que odiava ontem. E se Philippe morrer por causa dele...

O som de passos na rua cortou-lhe a palavra. A jovem reconheceu a silhueta vestida de trapos de Esteban, que regressava ao albergue após uma tarde passada, sem dúvida numa taberna qualquer com os soldados que defendiam a cidade. Depois de ter deixado Paris, o castelhano aspirava o odor violento da guerra com todos os poros da sua pele e não perdia uma ocasião para se aproximar das tropas, para partilhar, nem que fosse por um instante, uma vida para a qual nascera. Demétrios não ignorava nada dessa atracção. Só a ligação estreita que havia entre ambos fazia com que ele não se alistasse. Mas, resistiria ele ainda muito tempo num país onde havia mais homens armados do que civis?

O grego chamou-o do alto da janela e ordenou-lhe que subisse.

Eu teria subido, de qualquer maneira disse Esteban ao entrar no quarto porque tenho que dizer uma coisa a donna Fiora.

A mim?

Aos dois será mais justo. O monge espanhol!

Sim?

Está aqui. Chegou montado numa mula, pouco antes de fecharem as portas. Está alojado em casa do arcipreste da catedral.

Que monge espanhol? perguntou Demétrios, que caía das nuvens. O...?,

Sim disse o castelhano com uma careta feroz. Esse mesmo. Donna Fiora viu-o na missa da Assunção, na catedral de Notre-Dame de Paris, eu vi-o depois e fiz falar um dos monges em casa de quem ele estava alojado. Parece que veio para falar com o Rei.

Demétrios permaneceu calado por alguns instantes, sem dúvida para se habituar à ideia de ver surgir de novo Inácio Ortega na sua vida:

Bem suspirou ele não nos faltava mais nada! Esteban, meu rapaz, sinto-me desolado, mas vais ter que vigiar de perto esse fanfarrão...

Tudo bem disse o rapaz com desenvoltura. Estarei na catedral mal comecem as missas! Uma a mais, uma a menos...

CAPÍTULO VII LUÍS, REI DE FRANÇA PELA GRAÇA DE DEUS.

Três dias mais tarde, o Rei recebia a sua corte no castelo de Senlis. Uma corte estranha, onde as damas estavam ausentes, com excepção de uma e que mais parecia um conselho de guerra do que a reunião habitual de um soberano, que deseja escutar as queixas do seu povo. Havia mais armaduras do que gibões e casacas justas. Luís XI era quase uma excepção, metido num traje verde-escuro, comprido, aberto na frente para deixar passar as pernas magras metidas em calções negros e os pés calçados com sapatos de bico em couro, que mantinha cruzados sobre o chapéu, cuja ponta fazia uma linha paralela divertida com o seu longo nariz, as medalhas brilhavam, polidas. Assim vestido, contrastava gritantemente com as cotas de seda multicoloridas, as correntes de ouro do seu séquito e os trajes soberbos da Guarda Escocesa. Alguns dos seus amigos estavam junto dele: o velho senhor de Bouchage e o senhor de Lude, que o Rei cognominara de Jean dês Habilités e Tanneguy du Chastel, mas nenhum deles era chamado aos seus conselhos. Apenas Commynes, o mais jovem, no entanto, podia, em Senlis gabar-se desse título junto de um soberano do qual se dizia que ”o seu cavalo transportava todo o seu Conselho”. Estava de pé junto dele, prestes a atender ao menor sinal... Um grande galgo branco, Cher Ami, o favorito, estava deitado aos pés do seu dono, que se sentava sob um pálio com flores-de-lis.

1 Caro amigo.


A única excepção feminina naquela assembleia de homens, porque fora convidada imperiosamente, Fiora, vestida de negro, os cabelos severamente entrançados e cobertos por uma coifa baixa de veludo cujos panos não deixavam passar uma única mecha, estava de pé junto de Demétrios, cuja alta silhueta a escondia em parte.

Raramente se sentira tão febril, porque andara durante três dias às voltas no seu quarto do albergue sem conseguir entender fosse o que fosse, atormentada pelo pensamento de que, a qualquer momento, Philippe podia ser conduzido ao suplício e agarrando-se à frágil esperança das últimas palavras do Rei: ”Falaremos disto noutra oportunidade...” Esperara que Demétrios fosse à presença do soberano e que o pudesse acompanhar, o que não acontecera.

Pensava que ele não podia passar sem ti? disse ela quase agressiva.

Sobretudo, não pode passar sem o unguento que eu lhe preparei com folhas de sabugueiro e de espinheiro esmagadas em banha fina e que lhe aplico nas hemorróidas depois de uma lavagem com uma decocção fria de hipericão. Sente-se óptimo...

De tal modo que já não precisa de ti! Qualquer charlatão pode fazer a tua receita...

Na condição de a saber e eu nunca passo as minhas composições a ninguém. Só a ti, claro, Não te preocupes, o Rei ainda vai precisar de mim...

Dois dias antes, não aguentando mais, Fiora pedira o seu cavalo. A jovem sabia que Compiègne não ficava longe e queria lá ir, na esperança de saber qualquer coisa, por pouco que fosse, acerca de Philippe, mas apercebera-se, então, que, se era fácil entrar em Senlis, era muito mais difícil sair sem uma ordem do Rei ou do governador da cidade. Ao vê-la quase desfeita em lágrimas, Demétrios esforçou-se por consolá-la.

Tem paciência! Estou persuadido de que messire de Selongey não corre perigo imediato. Ao mandar-te vir, o nosso sire, como diz o jovem Commynes, tinha uma ideia qualquer na cabeça, já que não ignora nada dos laços matrimoniais que te ligam ao seu prisioneiro. Dá-lhe tempo a que se exprima...

Falemos de Commynes! Esse também desapareceu! Nunca mais o vi.

Viram-no na manhã desse terceiro dia. Foi ele que foi dizer aos dois estrangeiros para se dirigirem ao castelo para a audiência real. Quanto a Esteban, ficara suspenso da sotaina de frei Inácio, por culpa de quem não perdera uma única missa. O único passeio um pouco divertido acontecera quando o monge, querendo deslocar-se à abadia da Vitória, fora repelido pelos guardas da cidade. A despeito da protecção do arcipreste, teria de esperar que o Rei se dispusesse a recebê-lo. Mas a sua presença irritava Fiora, que, temendo encontrá-lo, não pôs os pés fora do albergue Trois Pots.

Naquela manhã, Luís XI parecia de excelente humor. Do seu lugar, Fiora podia vê-lo a rir e a conversar amigavelmente com o senhor do Lude. Acolheu com clemência algumas súplicas de burgueses vindos apelar à sua justiça e distribuiu generosas esmolas à prioresa de um convento do exterior, que sofrera depredações aquando do movimento de tropas. Após o que o Rei se levantou:

Meus senhores disse ele esfregando as mãos longas e secas temos notícias que alegrarão os corações de todos os nossos bons súbditos, tal como alegraram o nosso. A ameaça que pesava sobre o nosso reino, provocada pela ambição louca do nosso primo de Borgonha, que convenceu o inglês a cruzar o mar para se apoderar do nosso país, acaba de se afastar. Houve uma grave disputa entre o Rei Eduardo e Carlos o Temerário, na qual este acusou aquele de não fazer marchar as suas tropas contra nós e de ser favorável à ideia de um acordo. O nosso belo primo de Borgonha, que tinha regressado a Péronne, partiu, ontem, para se juntar ao seu exército no Luxemburgo e não mais voltar. Amanhã iremos dar graças ao Senhor Nosso Deus e à Santa Virgem Maria, nossa protectora, por terem poupado o nosso bom povo à dor e à aflição, porque a guerra é uma coisa bem feia...

As aclamações encheram a sala, fazendo adejar os estandartes suspensos no alto das paredes. Fiora e Demétrios, sobretudo para não se fazerem notar, juntaram as suas vozes às outras, a jovem ainda mais porque via naquilo uma excelente ocasião para tentar obter o perdão de Philippe, indignamente abandonado por esse senhor que ele tanto amava e que, aparentemente, nada tentara para o tirar da prisão.

A jovem estava quase a dirigir-se ao trono quando, na porta da sala, um hussardo real bateu três vezes no chão com o seu bastão e disse com voz forte:

Que o Rei se digne receber monsenhor o arcipreste da catedral e Sua Reverência o prior da abadia de Saint-Vincent, que desejam apresentar-lhe um monge vindo de Roma!

A um sinal de Luís XI, as portas abriram-se para deixar passar os três religiosos.

Ao ver o monge espanhol, Fiora teve um arrepto de repulsa e horror, como se uma víbora acabasse de se atravessar no seu caminho. Continuava o mesmo. Pleno de desdém e arrogância, avançou entre os dois dignitários, as mãos escondidas nas mangas e não olhando para ninguém senão para o Rei, que se levantara para acolher os homens da Igreja. A cúpula desnudada do seu crânio luzia à luz pobre do dia carregado de nuvens e, ao ouvir um trovão ao longe, Fiora perguntou a si própria se Deus teria posto o Rei de França em guarda contra o ser malfeitor que caminhava ao seu encontro...

À medida que ele avançava, Cher Ami recuava. Abandonando a sua pose elegante de animal heráldico, o cão levantou-se e rosnou. O Rei pousou vivamente a mão sobre a coleira trabalhada:

Paz, meu filho, paz! Deita-te!

Mas Fiora reparou que os olhos de Luís XI se tinham, curiosamente, semicerrado. De má vontade, mostrando os dentes, Cher Ami obedeceu. O monge não lhe concedeu a honra de um olhar e mal respondeu à saudação plena de reverência que o Rei lhe dirigiu.

Este homem deve ser louco sussurrou Demétrios. Que maneira curiosa de se apresentar a um soberano! Palavra de honra, ele toma-se pelo Papa!

Creio, mesmo, que se acha um pouco acima do Papa! Mas, chhhh!...

Com efeito, Luís XI saudou amavelmente o viajante vindo da cidade santificada pela tumba do Apóstolo e acrescentou:

É sempre uma grande alegria, para uma alma cristã, acolher um enviado do nosso Mui Santo Padre.

Não foi para te alegrar que o Papa Sisto me enviou, Rei de França, porque o seu coração está pesado e cheio de cólera.

De cólera contra nós? Isso é impossível. Não nos lembramos de ter, fosse em que fosse, ofendido o vigário de Cristo...

A tua memória é curta, Rei e, sobretudo, complacente. Esqueces com facilidade que há sete anos manténs na prisão um príncipe da Santa Igreja. O Papa enviou-me para te ordenar que libertes agora mesmo o cardeal Balue!

O rosto de Luís XI fechou-se e as suas pupilas emitiram um brilho:

Jean Balue é um traidor merecedor da morte, não teve pejo em conspirar contra nós com as gentes da Borgonha. Contra nós, que, de um filho de moleiro, fizemos um prelado coberto de riquezas e honrarias, contra nós, que pedimos e obtivemos para ele o chapéu de cardeal. Que se dê por satisfeito por ainda estar vivo!

Para ti viver é estagnar no fundo de uma jaula, como uma fera? Não tinhas o direito de pousar a tua mão num homem de Deus, que depende unicamente do Papa.

Nós temos todo o direito e o Papa sabe-o bem, já que aceitou há três anos a Concordata de Tours! Estaríamos dispostos a fazer um gesto susceptível de aliviar o coração de Sua Santidade, na condição de que não se tratasse de negócios do Reino. Mas, precisamente, trata-se de um assunto do Reino...

Recusas-te a libertar o cardeal?

Evidentemente!

Consentes, no entanto, em ler a carta que te envia Sisto IV?

Uma carta? Por que não começastes por aí, reverendo irmão?...

Frei Inácio tirou da manga um rolo fino de pergaminho atado com uma fita branca e selado com um grande selo dourado, que Luís XI recebeu com reverência beijando, até, o selo, antes de se virar para o seu chanceler, para que ele abrisse a missiva. Nesse instante, Fiora empurrou Demétrios e lançou-se sobre o monge, que, desequilibrado, caiu por terra, deixando cair a grande faca que, na sua mão, acabava de substituir o pergaminho. Os olhos vivos da jovem, fixos em frei Inácio, tinham visto a faca num relâmpago e a sua reacção fora imediata; atacar com uma só ideia: afastar do Rei aquela ameaça de morte que acabava de entrever. O galgo reagira com a mesma impetuosidade e, de patas sobre o peito do monge, ameaçava-lhe a garganta com as presas. Entretanto, Fiora levantou-se,- pegou no punhal e, de joelho em terra, ofereceu-o a Luís XI:

Sire, este homem queria matar o rei!

Sem dizer nada, este pegou na arma e examinou-a, levando o seu tempo, aparentemente pouco apressado em chamar o seu cão que continuava a rosnar, o que, aliás, não parecia inquietar frei Inácio. Se o seu rosto não passava de uma máscara de furor impotente, devia-se unicamente ao facto de ter reconhecido Fiora:

A florentina! escarrou ele. A feiticeira danada! Está aqui e tenta imputar-me as suas intenções criminosas!... Era ela, era ela que tinha o punhal, era ela que...

Que se preparava para nos matar? disse calmamente Luís XI. Antes de tudo, sou amigo da lógica e das probabilidades. Se a ideia de donna Fiora era magoar-nos, teve todas as oportunidades no outro dia, na abadia da Vitória. Estivemos muito tempo juntos, a conversar. O que gostaríamos de saber, em vez disso, é em que circunstâncias conheceu ela este estranho servidor de Deus.

De joelho em terra, Fiora ergueu para o Rei os seus grandes olhos cinzentos, nos quais nenhuma nuvem perturbava a limpidez:

Se o Rei quiser ouvir-me, dir-lhe-ei tudo.

E nós ouviremos com prazer. Já em criança gostávamos muito de histórias de bandidos. Messire de Commynes, conduzi donna Fiora ao nosso oratório, onde a encontraremos daqui a pouco... E agora, Cher Ami, vai-te deitar. Serviste-nos bem e terás a tua recompensa. Capitão Kennedy!

O oficial que comandava a Guarda Escocesa colocou-se junto do monge, que, ainda por terra, não ousava levantar-se com medo das presas do galgo, que, se bem que obedecendo, continuava a rosnar:

Às ordens do Rei. Que ordena ele?

Não agrada a Deus que manchemos as nossas mãos com o sangue deste assassino. Portanto, queres morrer por Balue, pobre louco?

Nem sequer o conheço! É pela minha Rainha, Isabel de Castela, que estou pronto a morrer. Os teus soldados pilham e martirizam as terras que são suas...

Há muito tempo que não o são, e por casamento. Sem contar que a Catalunha livre nunca lhe pertenceu. Com Aragão é que temos assuntos pendentes. Seria bom que na terra dos irmãos do grande São Domingos se aprendesse um pouco de história e de geografia! Ha? Mas não acredito. A verdade é que tu és um enviado do Papa Sisto. Ele é aliado do Temerário e nada o alegraria tanto como a nossa morte. Que obteria ele se tu tivesses sucesso?

Que sei eu? Tu és o Anticristo, o apoiante de Satanás! Mais cedo ou mais tarde receberás a punição pelos teus crimes, mais tarde ou mais cedo saberás o que custa a maldição. Por teres ousado pousar a tua mão em mim, serás excomungado, serás...

E por que não será o meu reino, também, interdito? ironizou Luís XI. Meu Deus, como este monge é fatigante! Kennedy, meu amigo, tirai-o daqui antes que a cólera nos faça fazer algo...

E que quereis que se faça com ele?

Mandai-o conduzir ao nosso castelo de Loches com uma boa escolta. Lá, se não me engano, há uma cela vazia ao lado da de Jean Balue. Juntai-os. Travarão conhecimento, porque, aparentemente, este louco veio implorar o perdão de um homem que nunca tinha visto. São capazes de se entender.

Espumando de raiva e cólera, escarrando veneno e maldições, frei Inácio foi levado por quatro sólidos escoceses que o transportaram no ar, em vez de o enquadrarem. Os pés do monge escouceavam no ar de forma grotesca... Cher Ami, acalmado, voltou a deitar-se aos pés do Rei. Commynes segurou Fiora pelos braços:

Vinde disse ele. Creio que não há mais nada para ver.

A jovem seguiu-o sem se fazer rogada. Os uivos do seu inimigo ecoavam-lhe no coração como cantos de alegria... Livrara-se daquele monge, que parecia ligado à sua vida como uma maldição, recordação viva do furor cego que a precipitara no inferno! Fiora não sabia onde ficava aquele castelo de Loches, mas, fosse onde fosse, punha entre ela e o seu inimigo a espessura das suas muralhas, as suas sólidas portas, os seus calabouços profundos e as correntes nas celas...

Aquele homem deve ser louco comentou Commynes. Atacar o nosso sire no coração do seu reino, num dos seus castelos, no meio dos seus guardas, servidores e amigos? Como esperava ele escapar se tivesse conseguido?

Facilmente, imagino. Ele pensa que é a espada a ira de Deus. Em cada príncipe secular vê um tirano. Contava com a alegria reconhecedora dos escravos libertados...

Bem, se é isto o que o Papa arranja como embaixador! Pensava que era um homem hábil?

Provavelmente, é mais do que pensais! Reflecti: se o atentado tivesse tido sucesso, Sisto IV ter-se-ia desembaraçado do mais poderoso aliado de Florença e, portanto, de um inimigo perigoso. E como frei Inácio falhou, desembaraçou-se de um homem incómodo, ao qual não sabia que fazer. Estes fanáticos são bons ouso dizer quando há necessidade deles.

Commynes olhou para Fiora com um espanto sincero e desatou a rir:

Eu, que me achava um político refinado, acabo de receber uma grande lição... Ah! Senhor Olivier, deixai-nos entrar. Esta jovem vai esperar o Rei no seu oratório.

A última frase fora dirigida a um homem que saía dos alojamentos reais segurando debaixo do braço um pequeno cofre. Vestido de negro, os cabelos castanhos cortados curtos, o rosto estreito de uma estátua de madeira, tinha lábios finos e uns olhos que possuíam a imobilidade e a cor indefinível de um pântano. O homem inclinou-se um tudo nada demais e Fiora, que não gostara da sua figura, achou-o obsequioso. A voz, ainda por cima, era um pouco doce de mais:

O senhor príncipe de Talmont não precisa que um modesto barbeiro o deixe entrar em casa do seu senhor. Basta que apareça!

Fiora pensou sentir um traço de fel naquelas últimas palavras. Entretanto, o homem abriu a porta com uma nova reverência.

Ora vamos, senhor Olivier! protestou Commynes com um ligeiro encolher de ombros. Vós é que decidis quem entra aqui.

Quem é? perguntou Fiora quando a porta voltou a fechar-se e se encontraram os dois numa espécie de antecâmara mobilada com apenas um cofre, mas ornamentada com belas tapeçarias.

O barbeiro do nosso sire. Chama-se Olivier lê Daim e é flamengo como eu, mas há quase vinte anos que está ao serviço do Rei e este gosta muito do seu talento como organizador de uma casa. Tem a seu cargo a organização das viagens e deslocações e, graças a ele, o Rei encontra sempre, onde quer que vá, as suas coisas sempre no mesmo lugar. É, também, um homem subtil e nunca abandona o seu senhor. Formaria até, juntamente com o secretário piemontês Alberto Magalotti, uma espécie... de... conselho íntimo do nosso sire, que não desdenha de ouvir os seus conselhos.

É assim tão importante, com tão pobre aparência?

A aparência não tem qualquer influência no Rei Luís e não estou certo se Daim terá algum poder. Como tal, convém desconfiarmos. Alguns chamam-lhe Olivier, o Diabo. Mas, eis-nos no nosso destino.

Depois de terem atravessado um quarto de grande sobriedade, cujos mais belos ornamentos eram, certamente, os cães que dormiam no tapete, Commmynes fez entrar Fiora num pequeno oratório cuja riqueza espantou a jovem: tapeçarias preciosas e panos pintados todos eles amovíveis, porque, segundo o costume da época, a capela do Rei, assim como os seus móveis, seguiam-no nas suas diferentes residências rodeavam um altar drapeado de brocado, sobre o qual se erguia uma cruz de pedra junto de uma estátua representando Notre-Dame de Cléry, à qual Luís XI votava uma devoção particular e de uma outra, de prata, com a efígie de São Miguel, em nome do qual o Rei tinha, no dia 1 de Agosto de 1469, fundado a Amboise, uma ordem de cavalaria. O colar de conquilhas dessa ordem repousava sobre a preciosa toalha do altar, contentando-se Luís XI, geralmente, em usar uma medalha suspensa de um simples fio de ouro. Outras efígies de santos guarneciam pequenos suportes na parede, algumas antigas e uma quase nova representando Santa Angadresme, a padroeira da cidade de Beauvais, que se opusera, vitoriosamente às tropas do Temerário em 1472. A estatueta fora oferecida ao soberano pela heroína local, Jeanne Laisné, cognominada Jeanne Hachette, que defendera as muralhas com mulheres e crianças... As cores quentes de um vitral faziam viver todos aqueles objectos.

Como é belo! suspirou Fiora. Enfim, uma sala digna do Rei de França!

Justamente porque é a única onde o nosso sire deixa de o ser. Só aqui vem como humilde servo de Deus.

Por São Luís, meu antepassado venerado, por vezes dizeis grandes coisas, Commynes! disse o Rei, que acabava de entrar. Mas, agora, deixai-me com donna Fiora e esperai no meu quarto... Luís ajoelhou-se para uma curta oração e a jovem achou por bem imitá-lo, o que fez com que, quando o Rei se levantou, a visse de joelhos e, estendendo-lhe a mão, a ajudasse a erguer-se. Quando ela ficou de pé, ele guardou na sua, por alguns momentos, a mão da jovem, mergulhando o seu olhar sonhador no dela.

Então? Aquele monge espanhol? De onde o conhecíeis?

De Florença, onde tentava minar o poder de monsenhor Lourenço por ordem do Papa Sisto, que deseja dar a nossa cidade ao sobrinho, Girolamo Riario...

Nós conhecemos muito bem as ideias de Sua Santidade, mas a pergunta era para vós.

É uma longa história, sire...

Os olhos do Rei ergueram-se para a cruz de pedra no altar:

Deus nunca tem pressa. Nós também não, quando se trata do Estado. Falai!

Sem voltar a insistir, Fiora começou a penosa história das suas relações com frei Inácio. Fê-lo com toda a objectividade possível, sem tentar carregar as cores já de si bem escuras. A jovem sabia que com um homem com a têmpera e sobretudo com a inteligência de Luís XI, um relato claro, isento de qualquer paixão, seria mais bem entendido do que um lamento dramático.

Portanto, o senhor de Médícis mandou expulsar este monge de Florença disse ele quando Fiora se calou. Evidentemente, é sempre delicado atingir um membro da Santa Igreja, mas parece-nos um pouco leviano ele não ter posto este fanático fora de acção. Quando o Papa se desleixa nos seus deveres para com os príncipes cristãos, é dever destes pôr as suas terras, as suas gentes e a sua pessoa ao abrigo. Frei Inácio Ortega vai poder reflectir durante muito tempo sobre os perigos que há em misturar a ordem das coisas: ou se é homem de Deus, ou espião e assassino.

Talvez se passe com facilidade de uma para a outra quando se entra na política e creio saber que muitos padres fizeram isso?

E o Papa mais do que os outros! Receio que ele seja mais um soberano secular do que um pai espiritual. Além disso, não gosta de nós. O nosso querido primo, o duque Carlos, é que tem as suas preferências. Provou-o claramente ao lançar o seu núncio, Alessandra Nanni, bispo de Forli, entre ele e o Imperador aquando do caso de Neuss. Graças à habilidade deste, não houve vencedor nem vencido. Reconciliaram-se, só por palavras, sem dúvida, mas o Temerário retirou as suas tropas, o que, no que nos diz respeito, estavam muito bem onde estavam. Ficou, assim, livre para se poder virar contra nós...

Mas não fez nada?

É difícil fazer a guerra quando não há dinheiro nem tropas frescas. Este monge era um bom meio de acabar de uma vez por todas com o Rei de França...

O Rei está certo... de que ele não poderá escapar?

Luís XI semicerrou os olhos, deixando passar um clarão de divertimento e sorriu:

Se tivermos oportunidade nos tempos mais próximos, mostrar-vos-emos o nosso castelo de Loches. Mesmo que crescessem asas a esse monge, não conseguiria voar. Mas, basta de falar de castigos! Vós salvastes-nos a vida e nós desejamos testemunhar-vos uma gratidão à medida do serviço prestado! Que desejais?

Fiora voltou a dobrar um joelho e, inclinando a cabeça:

Eu sei que vou pedir demasiado ao Rei, mas tudo o que desejo é a vida... e a liberdade do conde de Selongey.

O silêncio que se seguiu foi tão pesado que a jovem estremeceu e, sem ousar erguer os olhos, acrescentou com voz fraca mas audível:

Não desejo mais nada, sire...

Sempre sem dizer nada, Luís XI segurou no queixo de Fiora com dois dedos e olhou longamente para os grandes olhos cinzentos, dos quais caía uma lágrima.

Pobre criança! suspirou ele suavemente. O amor prende-vos numa prisão mais cruel do que os calabouços de Loches! Não, não digais mais nada!... Nós estávamos persuadidos, ao vir a esta capela, que nos pediríeis o perdão desse homem. Devemos-vos muito para o recusar... se bem que isso contrarie as esperanças que tínhamos em vós. Levantai-vos!

O Rei virou-se, foi pegar na estatueta de Santa Angadresme e olhou para ela como se procurasse um defeito qualquer.

Sire começou Fiora o reconhecimento que eu...

Não! Não quero agradecimentos! Talvez... não sejamos dignos de tanta gratidão como imaginais... Ao mandar-vos vir aqui, tínhamos pensado, sobretudo tendo-vos visto antes, que seríeis para nós... uma boa refém, de maneira a obrigar o senhor de Selongey a servir-nos. Vós destes-nos a entender que o nosso prisioneiro não vos ama a esse ponto! Portanto, concebemos outro plano: conseguir os vossos serviços contra o Temerário em troca do perdão. Este maldito monge e o seu punhal vieram meter-se de permeio... Enfim! suspirou ele amanhã sereis conduzida a Compiègne, junto de...

Que o Rei me perdoe por o interromper, sire, mas eu creio que não nos estamos a entender. A ideia da morte daquele que eu acreditava ser o meu marido era-me insuportável. Ele viverá e eu agradeço a clemência do Rei, mas eu não quero mais nada. Não disse, no outro dia, a Vossa Majestade que estava disposta a servi-la e que, ao fazê-lo, podia saciar o ódio que sinto pelo duque da Borgonha? Nada mudou.

Luís XI baixou devotamente a preciosa figurinha antes de a recolocar no suporte. Sem se virar para Fiora, perguntou:

Não desejais levar-lhe vós mesma a notícia inesperada da sua libertação? Isso seria, parece-me, uma bela e nobre vingança?

Não, sire. Nem sequer o quero ver, para não me arriscar a cair sob o encanto em que ele me manteve cativa. Atingindo o senhor que ele estima mais do que qualquer outra coisa no mundo, a vingança será maior...

E com esse objectivo vós faríeis... não importa o quê? Mesmo... entregar-vos a outro homem?

Se o meu casamento não passou de um logro, não tenho que temer o adultério. Que o Rei ordene! Obedecerei.

Seja. Ide ter com messire Lascaris. Esta noite jantareis os dois à nossa mesa, na intimidade. Ninguém se espantará depois do que fizestes hoje pelo reino. Sabereis mais tarde o que tendes de fazer...

Ajoelhando-se de novo defronte do altar cintilante, Luís XI afundou-se em profunda oração. Fiora saudou ao mesmo tempo Deus e o Rei e retirou-se às arrecuas...

A tempestade que ameaçara rugindo durante todo o dia, girando em redor da cidade e das grandes florestas que a circundavam, caiu quando chegou a noite, desabando sobre todas as coisas como uma verdadeira catarata. Todas as ruas ficaram transformadas em rios e as goteiras noutras tantas pequenas cascatas. Os trovões invectivavam majestosas imprecações e os relâmpagos sucediam-se uns aos outros... Não havia vivalma nas ruas. Apenas os soldados, de guarda às muralhas, recebiam o dilúvio estoicamente. Depois do calor sufocante, que fazia as armaduras tão pesadas, o enorme aguaceiro devia ser deliciosamente refrescante.

Postado por trás da janela do seu quarto, Luís XI observava a tempestade com satisfação: pensava no seu ”querido irmão”, o Rei Eduardo IV de Inglaterra, que, de barriga vazia e pés na água, devia esperar com alguma impaciência a conclusão do acordo secreto que lorde Howard e John Cheyney tinham vindo, seis dias antes, estabelecer com ele. Esses dois, que deveriam ter ficado, como combinado, como reféns até que o exército inglês tivesse cruzado o mar, eram os únicos que não deviam passar fome: antes de os reenviar ao seu senhor, tinham sido alimentados e dessentados regiamente, circunstância que devia dar calor aos seus propósitos...

Os Ingleses devem esperar-nos como se fôssemos o Messias! declarou o Rei esfregando as mãos. Tanta água e nem uma gota de cerveja, ou vinho, para levantar o moral...

Esperemos, no entanto, que a chuva pare até amanhã. Se partimos amanhã para Amiens? disse Commynes.

É claro que partimos amanhã. O encontro com Eduardo está previsto para 29 deste mês em Picquigny e, daqui até lá, muitas coisas têm de ser postas no seu lugar. Amanhã também darei ordens a Tristan Lhermite, o nosso Grande Preboste, para que liberte o senhor de Selongey e o mande acompanhar, com uma boa escolta, até Vervins. Ali, deixá-lo-ão, fazendo-lhe saber que o Temerário está em Namur. Assim, juntar-se-lhe-á sem dificuldade...

Ides libertar um homem que vos quis matar? Sire, estareis a ser razoável? Donna Fiora salvou-me a vida e foi a liberdade dele que ela pediu como recompensa.

Porquê? É insensato!

Ela é mulher dele. Foi por isso que a quis ver... Vamos, Commynes, não faças essa cara! Ao libertar aquele figurão estou a fazer, creio, o maior negócio da minha vida. Donna Fiora pensa que o marido é bígamo e talvez seja! Ela não sabe ao certo se ele a ama ou a odeia. Uma coisa é certa: ela não o quer ver nunca mais. Mas o que é mais manifesto, é o ódio que ela vota a Borgonha, cuja morte jurou. Vou-lhe fornecer os meios para isso.

Como?

Vou enviá-la a Campobasso, que é um dos principais chefes de guerra do Temerário, mas que parece não saber de que lado está a manteiga na sua fatia de pão...

Estou a ver: ela representa o pequeno bocado de manteiga encarregado de explicar a esse condottiere que as vacas francesas produzem melhor e mais abundante leite do que as vacas borgonhesas?

Luís XI riu-se e aplicou uma boa palmada no dorso do seu jovem conselheiro.

É um prazer conversar convosco, messire Philippe... se bem que a vossa metáfora campestre não se coadune muito com tal beleza. Diz-se que Campobasso gosta muito de mulheres e esta, maravilhosa, vem de Itália, como ele.

Ela não vai correr um grande perigo? Para ir ter com o napolitano, vai ter que atravessar regiões infestadas de soldados!

É uma mulher jovem... e frágil, para ser assim lançada numa fornalha acrescentou Commynes gravemente. Tão gravemente que o Rei franziu as sobrancelhas.

Por Deus, compadre, estás a ficar apaixonado? Lembra-te que o teu coração pertence a dame Hélène, a tua graciosa esposa. A bela florentina não é para ti.

Preferis entregá-la àquele patife?

Prefiro! Poucas vezes tive nas mãos uma arma tão bela e tão bem temperada. Fica descansado, será protegida... Agora, vamos agradecer a Deus todas as bondades que tem tido para connosco e vamos dormir. Amanhã, antes de partirmos, verei donna Fiora para lhe dar as minhas instruções.

Se ela conseguir, que fareis por ela?

No dia seguinte à morte do Temerário, poderá pedir-me o que quiser. Além disso, vou dar-lhe um pequeno castelo rodeado por um belo terreno, que não está muito afastado da nossa residência de Plessis-lez-Tours...

Doce Jesus, sire! disse Commynes, escandalizado. Não estais a pensar fazer dela...

Nossa amante?... Eh, eh!... Não seria a vontade que nos faltaria, mas jurei não tocar em mais nenhuma mulher senão na Rainha e é um juramento que tencionamos cumprir. No entanto, a vizinhança com uma filha de Eva, ao mesmo tempo bela e inteligente, é um prazer que um Rei honesto pode dar a si próprio. Ainda por cima porque o Loire é o quadro ideal para tanta graça e encanto.

Estou de acordo convosco, sire, mas... e Selongey, bígamo ou não, nisso tudo?

Esperemos que, se o Temerário morrer, o seu mais fiel cavaleiro não tenha o mau gosto de lhe sobreviver. E poderemos, então, casar a sua viúva com um qualquer servidor fiel...

Que, claro, não será a minha pessoa! resmungou Commynes.

Tomais-me pelo Grande Turco, meu amigo? Eu já vos casei... e bem. Não choreis!

Deixando sair uma colecção de suspiros que dizia bem o que pensava dos projectos do seu senhor no que tocava à bela Fiora, o senhor de Argenton foi-se deitar, não sem pedir ao seu criado que fosse à cozinha procurar-lhe algumas fatias de empada, ou caça, escoltadas por um jarro de vinho. As penas do coração faziam-lhe sempre fome...

No dia seguinte, o Sol não apareceu. Ficou escondido por trás de espessas nuvens escuras de tal modo tristes que deixavam cair, de tempos a tempos, algumas lágrimas em forma de chuvisco, que se dissolviam mais depressa do que as trombas de água da véspera... O que não melhorava os caminhos, dos quais alguns se tinham transformado em pântanos, mas o Rei Luís não deixou de ordenar a partida em direcção a Amiens, onde Tanneguy du Châtel, que ali comandava importantes efectivos, o tinha precedido.

De pé sobre a muralha, na porta norte da cidade, Fiora, envolta numa manta negra com capuz que a preservava da chuva, observava a caravana do Rei, maravilhando-se com a força que aquele homenzinho de olhos vivos conseguira reunir! conduzindo o seu reino com a segurança de mãos de um bom cocheiro, sem parecer preocupar-se com os charcos que os grandes senhores feudais provocavam sob as rodas da sua carroça, encarniçados em conseguir a maior parte do bolo em forma de estrela que se chamava França. Era verdade que dispunha, para tal, de uma força nova e ainda desconhecida: um exército permanente, nascido das Companhias de Ordenança criadas pelo seu pai e que ele soubera levar à perfeição. Esse exército compunha-se de quatro mil lanças sendo a lança uma unidade táctica formada por um homem de armas, pelo seu pajem, pelo seu armeiro, dois archeiros e um moço de espada à qual se juntava a Guarda Escocesa e a Guarda Francesa. Para além disso, vinte mil francos arqueiros e artilheiros e mais seis mil homens de armas fornecidos pelos senhores franceses. Sem esquecer os canhões, a temível artilharia com que os irmãos Bureau tinham dotado a França sob o reinado de Carlos VII e que Luís XI tinha melhorado. Tudo aquilo formava, entre Dieppe e Reims, uma longa cortina de ferro, capaz de resistir vitoriosamente ao exército inglês.

Fiora, claro, só viu passar as duas guardas reais que precediam e seguiam Luís XI, que cavalgava à cabeça de um grupo cintilante de pendões, cotas de malha e armaduras alegremente coloridas. Ele próprio ia meio armado, usando por cima da cota de malha curta uma semicouraça, escarcelas, grevas e sapatos de aço. No entanto, não levava nenhum elmo emplumado, antes um chapéu de feltro negro retorcido na aba e ornamentado com uma medalha de São Miguel circundando a coroa de ouro. Desse modo, ia equipado com mais simplicidade do que qualquer dos seus guardas, mas podia dispensar a insígnia real, porque a sua postura orgulhosa e a sua elegância como cavaleiro não deixavam dúvidas acerca da sua posição: era mesmo o Rei. Quanto às suas bagagens, poderiam muito bem ser as de um Rei mago. Para além das carroças que transportavam a sua cama desmontável, a sua cadeira confortável, as suas tapeçarias, a sua capela e os seus cães, outras, numa fila interminável, transportavam os pesados cofres cheios de ouro, que tinham substituído as barricas parisienses; outras ainda transportavam vitualhas de todas as espécies e numerosos tonéis, cheios de vinho desta vez, que eram destinados a apaziguar a fome do exército inglês, como o ouro a sede de Eduardo e de alguns dos seus barões. Seguiam-se prostitutas, a pé ou em charretes, para sustentar o moral das tropas, como em todos os exércitos do mundo. Era assim que o Rei de França ia expulsar o inglês do seu reino, sem perder um único dos seus homens. No entanto, a flâmula de São Dinis acompanhava-o, como se marchasse contra o inimigo.

Com o coração um pouco apertado, Fiora viu passar Demétrios, que cavalgava junto de Philippe de Commynes. Luís XI estava demasiado satisfeito com os cuidados prodigalizados pelo médico grego para lhe permitir que acompanhasse a sua amiga:

Pode ser que vos autorize a ir ter com ela dentro de algum tempo, quando estiver curado. Até lá, seguir-me-eis!

Nem as súplicas de Demétrios, nem as de Fiora demoveram a sua vontade. Não sem razão, o Rei achava que Lourenço de Médicis lhe tinha mandado um médico para tratar dele e não para percorrer as estradas com uma bela mulher.

Não receeis acrescentou ele à guisa de consolação estareis presente por ocasião do toque de rendição. Sei que gostareis!

Fiora tivera de se inclinar, mas, no entanto, não continuaria o seu destino sem protecção: Demétrios ordenara a Esteban que

1 Tinha um aspecto bem mais régio a cavalo do que a pé.


a seguisse, sem encontrar, aliás, o menor protesto. O belicoso castelhano não se sentia tentado por combates em que os golpes eram desferidos com presuntos, empadas, vasilhas e escudos de ouro, que eram os preferidos do Rei Luís. Fiora, essa, ia ter com Campobasso, aquele cabo de guerra, mercenário do príncipe da tempestade e dos seus furores que era o duque de Borgonha. A balança, a despeito da devoção que ele tinha para com o seu senhor, pendia irresistivelmente para o lado da jovem. Julgando, aliás, que Esteban constituía uma escolta pequena de mais, Luís XI juntara à guarda da sua embaixatriz oculta um dos melhores sargentos da sua Guarda Escocesa, Douglas Mortimer, cognominado de Mortimer-la-Bourrasquel, que possuía, talvez, o carácter mais terrível de todo o regimento... talvez porque não tivesse tido a honra de ver a luz do dia nas Highlands veneradas, mas sim em Plaimpied, a sul de Bourges, fruto dos amores apaixonados e depois legítimos de um certo Francis Mortimer. Este conquistara as suas primeiras armas, como jovem escudeiro, na batalha de Baugé, onde os cinco mil escoceses vindos em socorro do delfim Carlos mais tarde Carlos VII se cobriram de glória sob o estandarte de John Stuart, conde de Buchan. O seu chefe tornara-se, um dia, condestável de França e conde de Aubigny, não longe de Bourges, onde se estabelecera. O jovem Francis continuara, como era costume, a bater-se pela França sob o comando de Buchan primeiro e depois sob o do bretão Richemont, com um parêntesis exaltante ao serviço de Jehanne la Pucelle, a enviada de Deus, que tinha coragem de homem, mas cujos olhos azuis tinham tanta luz... Tudo isso lhe deixou pouco tempo para dispensar ao serviço do amor e passaram-se vinte anos antes que o guerreiro se visse cativo de um outro olhar azul e dos cabelos louros de Marguerite Lalliée, a jovem viúva de um fidalgote dos arredores de Aubigny. Douglas era o fruto dessa paixão, mas, apesar da ternura e veneração pela mãe, não lhe perdoava, secretamente, por ter feito dele um dos membros mais representativos dessa raça híbrida, os Escoceses-Berrichons, que tinham proliferado em redor de Aubigny e Bourges.

1 Mortimer-Tempestade.

2 Terras Altas.


Assim, firmemente determinado a não perpetuar os Mortimer antes de ter tido a oportunidade de regressar às Terras Altas, o sargento Tempestade consagrara-se exclusivamente à sua profissão de soldado, recusando obstinadamente notar que as cidades e os campos, para não falar da corte, lhe ofereciam numerosas raparigas bonitas e outras que, não sendo já raparigas, eram igualmente encantadoras. Como tratamento higiénico, as prostitutas serviam-lhe perfeitamente. Quando lhe apetecia, arranjava uma sem lhe dar mais importância do que a uma taça de vinho. No entanto, escolhia-a com tanto cuidado como a sua bebida.

Chegado, assim, aos quarenta anos, Douglas Mortimer exibia a sua trunfa arruivada a quase um metro e noventa de altura em perfeito acordo com o longo bigode que lhe interceptava o rosto tisnado, as espessas sobrancelhas que lhe protegiam os olhos cor de avelã os da sua mãe, a Berrichonne! e um nariz de uma pureza romana, que durante muito tempo a família perguntara onde o fora ele buscar. Bravo como todos os cavaleiros da Távola Redonda, forte como muitos turcos, o Tempestade sabia aparelhar e montar um cavalo como um mongol, atirava ao arco melhor do que Robin dos Bosques, fazia saltar a cabeça de um homem, capacete incluído, com um único golpe de acha, manejava a lança, a espada e a maça com uma destreza que roçava a perfeição e, ainda por cima, era inteligente. Luís XI, para o qual desempenhara algumas missões, escolhera-o pelos seus talentos variados, claro, mas também por uma outra razão: Mortimer, que já tinha viajado muito ao serviço do seu senhor, conhecia a França, a Borgonha, a Lorena e todos os outros países limítrofes como as suas próprias mãos.

Um pouco perplexa com aquela força da natureza que a olhava com perfeita indiferença, Fiora perguntou timidamente se o seu guia não se sentia contrariado por abandonar o regimento e o seu esplêndido equipamento para proteger uma simples mulher.

Desta vez, não respondeu calmamente o Tempestade. Eu gosto mais dos Ingleses na ponta da minha lança do que no fundo de uma colher! Os Borgonheses são mais divertidos.

Esteban, esse, estava francamente furioso:

Eu sou capaz de vos defender em qualquer circunstância e contra qualquer inimigo, donna Fiora, não preciso desta montanha de músculos! A sua presença é uma ofensa à minha coragem e dedicação!

Demétrios tratou de o acalmar:

O Rei não te conhece! Além disso, donna Fiora pode ficar exposta a graves perigos, contra os quais dois não são de mais. Enfim, pensa em mim!

Eu sei, mestre! Pensas que gosto de te deixar? Mesmo por pouco tempo?

Não é isso que eu quero dizer. Que um outro tome o meu lugar junto da que considero um pouco como minha filha é contrário aos projectos que concebemos juntos.

Não tens que temer nada interveio Fiora, que se juntava nesse momento aos dois homens no pátio do castelo onde se preparava a partida depois de uma última conversa com o Rei. Onde está o teu dom de visão dupla, Demétrios? A cortina do futuro já não se ergue para ti?

Eu posso ver o futuro dos outros, não o meu.

Muito bem, vê o meu! Não vês nada do que me espera? Lembra-te do baile no palácio dos Médicis!

Nessa altura eras, para mim, uma desconhecida. A afeição perturba a visão do mago. Tu tornaste-te muito querida para mim, querida Fiora...

Comovida, a jovem pegou nas mãos do grego e pôs-se em bicos dos pés para lhe dar um beijo na face. Era a primeira vez que ele fazia alusão a um laço afectivo entre os dois e ela sentia-se tocada:

Em breve estarás novamente junto de mim, tenho a certeza. O Rei prometeu-mo!

Sem responder, Demétrios pousou as duas mãos na cabeça de Fiora, num gesto que era uma bênção.

De qualquer maneira, hei-de ir ter contigo. Com ou sem as promessas do Rei...

Em seguida, virando-se, partiu em grandes passadas para onde estava o seu cavalo e Philippe de Commynes, que, já na sela, lhe fazia sinal para se apressar. Fiora e Esteban dirigiram-se, então, em silêncio, para o caminho de ronda das muralhas, de onde observavam agora o interminável cortejo. Este esfumou-se pouco a pouco, as suas brilhantes cores desaparecendo na bruma formada pela chuva fina e persistente...

Vamo-nos preparar! suspirou Fiora. O nosso escocês já deve estar a bater com os pés de impaciência no albergue...

No entanto, Mortimer não batia com os pés de impaciência. Instalado na grande sala, esvaziava filosoficamente algumas canecas de cerveja morna na melhor tradição britânica. Pousadas à sua frente, num banco, as suas sacolas estavam junto de uma longa e larga peça de lã ruça grosseiramente tecida, na qual um fio vermelho e outro verde desenhavam quadrados e que servia ao mesmo tempo de estola e cobertor ao escocês. Vestido de cinzento, substituíra a grande boina com penas de garça do uniforme por outra, mais pequena e do mesmo tecido do manto, guarnecida de penas de faisão. Uma adaga e uma longa espada pendiam-lhe de cada um dos lados da cintura.

Assim equipado, Douglas Mortimer tinha um ar soberbo e majestoso, como testemunhavam os olhos redondos da jovem criada que o contemplava, de dedo na boca, sem que ele lhe prestasse, aliás, a menor atenção. Mas, ao ver entrar Fiora, levantou-se, esvaziou a caneca, atirou uma moeda para cima da mesa, pegou na bagagem e dirigiu-se à jovem:

Pronto! disse ele sobriamente. A etapa desta noite é em Villers-en-Retz!

A etapa desta noite é em Paris disse Fiora docemente, mas com firmeza. Tenho assuntos a tratar lá!

Nem pensar! grunhiu o escocês. - O Rei ordenou: vou conduzir-vos à Lorena.

Estou de acordo, mas ele não disse por que caminho. Vamos passar por Paris!

Isso é perder tempo. Quando o Rei manda, executamos. O Rei disse Lorena, é para a Lorena que vamos!

A voz do sargento o Tempestade começava a ganhar amplitude. Fiora compreendeu que era tempo de utilizar a paciência que Demétrios proclamava soberana em todas as coisas:

1 Hoje em dia Villers-Cotterêts.


Escutai, messire Mortimer: eu deixei em Paris, com uma perna partida, uma mulher que foi como uma mãe para mim, que eu amo imenso, que deve ter saudades minhas e que tem o direito de saber para onde vou. Não quero partir sem me despedir dela. Sois capaz de compreender isto?

Eu só compreendo as ordens do Rei. Se queríeis fazer um desvio por Paris, devíeis ter-lho dito.

Mas, enfim, que diferença faz ir por um lado ou por outro? exclamou Fiora, que começava a perder a sua preciosa paciência.

A mim não faz diferença nenhuma, mas o meu cavalo terá de fazer mais quinze léguas perfeitamente inúteis. Sem contar com o tempo que vamos perder! Ah, sois mesmo mulher urrou Mortimer, cujo bigode começava a eriçar-se de ira. Devíeis saber que, quando temos a honra...

Enfrentavam-se como dois galos de combate. Esteban deslizou por entre os dois e segurou Fiora pelos ombros, virando deliberadamente as costas ao escocês:

Escutai, donna Fiora! Sabeis como gosto de vós e acreditai que não pretendo dar razão a este escocês teimoso, mas é melhor não regressar à rua dês Lombards.

Quereis que eu parta para uma aventura, da qual talvez não regresse, sem abraçar a minha querida Léonarde? Oh, Esteban, pensava que éreis um homem de coração!

E sou, mas é em dame Léonarde que estou a pensar. A sua perna ainda não deve estar sarada. Seria preciso um milagre. Portanto, não a podemos levar connosco. Se fordes ter com ela, ela far-vos-á perguntas, inquietar-se-á. O que, de momento, não é conveniente. Ela julga que estais junto do Rei e do meu senhor. Não achais que é preferível não perturbar a paz do seu coração? Por outro lado, ignoro de que missão fostes investida e não quero saber, mas ela vai querer. Que lhe direis?

Fiora virou-se lentamente e as mãos de Esteban caíram. Seguiu-se um silêncio que Mortimer teve o bom gosto de não perturbar, talvez pensando que a sua adversária fora vencida. O que era o caso. Fiora sabia que Esteban tinha razão. A jovem nunca conseguira esconder nada a Léonarde quando esta queria saber qualquer coisa. Como dizer-lhe que o Rei a enviava à Lorena para seduzir ”por todos os meios” um dos capitães do Temerário, levando-o à traição pura e simples? Léonarde gritaria que nem uma possessa, meter-se-ia de permeio e talvez entrassem numa discussão e numa zanga que a jovem não poderia suportar... E, para já, precisava de toda a sua coragem. Erguendo os olhos, Fiora viu que Esteban a observava. Douglas Mortimer, desinteressando-se da questão, dirigira-se até à porta, a qual obstruíra com a sua possante estatura, e olhava para a chuva a cair.

Tendes razão, meu amigo. Mais vale deixar dame Léonarde viver docemente a sua convalescença no jardim de dame Agnelle. Aliás, é melhor isso, na sua idade, do que as rudezas dos grandes caminhos e, assim, ela poderá rezar por nós com toda a tranquilidade... Messire Mortimer! chamou ela.

O escocês virou-se:

Minha senhora?

Partimos quando quiserdes... para onde está decidido. Nessa noite fizeram etapa em Villers-en-Retz.

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