A chuva não parava. O tempo, transtornado, fazia daquele fim do mês de Agosto uma espécie de Outono precoce e apocalíptico, durante o qual os rugidos dos trovões alternavam com chuvas diluvianas e violentas rajadas de vento. Podiam dar-se por felizes por receberem nas costas aquela chuva fina, que envolvia a paisagem com uma cortina de água. Aquilo molhava mais do que uma grande tempestade, mas era mais fácil de suportar. Fiora, envolta no seu grande manto com capuz apesar do calor pesado, e Esteban, na sua manta de cavalo, iam encolhidos, mas o Tempestade, como se estivesse no seu elemento, seguia envolto no seu manto sem perder um centímetro da sua corpulência. Bem direito na sela, de pluma bem erguida, conduzia o seu cavalo pelos caminhos transformados em lodaçais e pântanos com a mesma dignidade com que escoltaria o Rei. A sua grande estatura cortava o vento diante de Fiora, escondendo à jovem uma paisagem que, verdade seja dita, não tinha nada de reconfortante. A região de Champanhe, que atravessavam, sofrera terrivelmente com as últimas guerras e a despeito do punho do Rei Luís, que fazia reinar, ao menos, a segurança, o esforço de reconstrução permanecia fraco. Mesmo em Reims, a cidade real, a cidade sagrada, a miséria mostrava o seu rosto pálido. Aldeias inteiras tinham sido queimadas e estavam a ser reconstruídas, mas a chuva incessante não permitia distinguir o que estava a ser reedificado do que estava em ruínas.
Depois de Reims ainda era pior. Barrentos e desolados, os campos deixavam ver grandes placas esbranquiçadas entre os tufos de vegetação. Não havia albergues. Apenas alguns pobres priorados acolhiam os viajantes e, a despeito da boa vontade, só lhes ofereciam frutos, mel, queijo e o abrigo de uma granja que só tinha palha. No entanto, Mortimer recompensava essa hospitalidade regiamente, como homem que recebia ordens e as executava à letra, mais do que como senhor generoso: cada vez que tinha de se separar de uma moeda de ouro, as suas sobrancelhas franziam-se e o bigode retorcia-se por cima de uma careta.
Aposto que é avarento sussurrou Fiora uma manhã, quando abandonavam uma dessas pobres etapas. O Rei deve sabê-lo e deu ordens em conformidade. Se assim não fosse, este fanfarrão era capaz de nos deixar morrer à fome e fazer-nos dormir ao relento.
As relações entre Fiora e o seu guia não tinham melhorado. Uma segunda discussão tivera lugar em Senlis, quando a jovem recusara firmemente a liteira que o escocês lhe destinava e mostrara, abrindo o seu manto, o fato de rapaz.
Eu vou escoltar uma dama fulminou-a ele. Não um garoto!
Ides escoltar Fiora Beltrami declarou-lhe tranquilamente a jovem e espantar-me-ia muito se o Rei se tivesse dado ao trabalho de vos dizer como devo vestir-me e por que meio de locomoção devo viajar. Eu monto a cavalo desde a mais tenra idade e não tenciono passar horas sacudida como uma ameixoeira em Agosto nessa espécie de caixa. Além disso, andamos mais depressa!
Aquele último argumento fora decisivo, mas, depois disso, Douglas Mortimer só dirigia a palavra à sua companheira quando era indispensável. De manhã e à noite saudava-a sem dizer palavra.
Com Esteban, as relações não eram mais calorosas. O escocês e o castelhano detestavam-se e, por assim dizer, faziam os impossíveis por ser desagradáveis um com o outro. Foi assim que Esteban, tendo descoberto que Mortimer detestava ouvi-lo cantar, entendeu amenizar a lentidão da jornada regalando os companheiros com toda a espécie de baladas, romances e cantilenas que armazenara desde criança. O castelhano, aliás, tinha uma voz agradável, mas por nada deste mundo Mortimer o daria a entender. Limitou-se a dizer alto e bom som que choveria, sem dúvida, menos se Esteban se calasse.
Entretanto, Fiora e o seu mentor foram obrigados a reconhecer que a presença de o Tempestade nada tinha de supérfluo. O escocês seguia o seu caminho com segurança, sem nunca se enganar e quando, à passagem por um pequeno bosque, uma meia dúzia de bandidos caiu sobre os viajantes com a intenção evidente de os aliviar dos seus bens, foram obrigados a constatar que o sargento o Tempestade valia, sozinho, um esquadrão. À vista do inimigo entrou numa espécie de furor sagrado e, lançando um urro de fazer cair umas muralhas, se houvesse algumas à vista, brandiu a espada bem alto para os recém-chegados. Num piscar de olhos enviou três para a eternidade, o que fez com que os três restantes fugissem, perseguidos pelas maldições tonitruantes saídas de uma garganta digna de ter visto a luz do dia em Glenlivet, berço dos Mortimer. Aquelas vociferações votaram os descendentes dos malfeitores ao pior dos destinos, depois de terem emitido dúvidas insultantes sobre a qualidade dos seus pais e mães. Esteban, tão deslumbrado como os bandidos, nem teve tempo de desembainhar a sua lâmina... Limitou-se a juntar os seus cumprimentos não muito sinceros, porque se sentia frustrado aos de Fiora, tão aturdida como ele:
Se o Rei tivesse uma dúzia como vós disse esta podia muito bem desbaratar os exércitos de Borgonha numa só batalha...
Nós somos todos assim! Não fiz nada de extraordinário respondeu Mortimer, tão frio como ainda há instantes colérico.
O escocês acrescentou com uma simplicidade desarmante:
Nós, os Escoceses, somos os melhores soldados do mundo!
Em seguida, reajustando a boina que resistira vitoriosamente a uma acha atirada perfidamente ao acaso, retomou a marcha interrompida por momentos, seguido com algum respeito pelos dois companheiros.
Quando atingiram Meuse, que naquela região marcava a fronteira entre o reino de França e os estados do duque da Borgonha, Fiora pensou que chegara a hora de se separarem de Mortimer, já que um dos membros da famosa Guarda Escocesa tinha poucas hipóteses de ser bem acolhido nas terras do Temerário. A ponte e a pequena cidade de Dun já estavam à vista e a jovem deteve o seu cavalo.
Como estamos a chegar à Borgonha, não será tempo de nos deixardes, messire Douglas?
O escocês também parou e virou para a jovem um olhar gelado:
Campobasso está aquartelado em Thionvílle. Eu levo-vos até lá. O Rei quer saber como sereis recebida: devemos desconfiar desses mercenários italianos.
Por que razão hão-de ser menos dignos do que os outros? perguntou secamente Fiora, atenta ao seu orgulho florentino.
Precisamente porque são mercenários. Servem quem lhes dá mais e, em combate, são muito ciosos do seu sangue, e das suas vidas ainda mais. Em todo o caso, Campobasso nunca passou por um modelo de virtudes. Se assim fosse, quereis dizer-me o que faríamos aqui?
Se é assim tão fácil desviá-lo dos seus deveres, quereis dizer-me por que razão me enviaram? ripostou a jovem. Um saco de ouro seria suficiente. Dito isto, sinto-me... feliz por vos conservar como guia.
Gostaria de ter a certeza resmungou o escocês, reatando a marcha da sua montada.
Uns momentos mais tarde, após umas breves palavras com o capitão que comandava a pequena praça de Doulcon, que, face a Dun, guardava a velha ponte construída pelas legiões romanas, e paga a portagem, Fiora e os seus companheiros transpuseram a dita ponte para entrar na cidade. Esta marcava a fronteira do antigo ducado do Luxemburgo, que era agora terra borgonhesa desde que, em 1441, a duquesa Elisabeth de Gorlitz o cedera ao pai do Temerário. Não para seu bem. Os campos pareciam ainda mais miseráveis do que na região de Champanhe, devastados pelos Franceses demasiado próximos e pelo ocupante borgonhês.
Contrariamente ao que pensavam, os três viajantes não tiveram qualquer dificuldade em passar. Durante a última etapa, Fiora trocara o seu fato de rapaz por um vestido e uma coifa.
A sua beleza e elegância, e o ar marcial dos seus companheiros impressionaram visivelmente o oficial que comandava a guarda da ponte. Se ficou surpreendido por se ver perante uma nobre dama do outro lado dos Alpes, ou se tinha dúvidas acerca da sua autorização para percorrer um país abandonado pelo céu àquele ponto, esqueceu-as quando a jovem disse calmamente:
O conde de Campobasso que vós conheceis, talvez, é meu primo e eu desejo juntar-me a ele o mais depressa possível...
Ele ficará, sem dúvida, muito contente com uma visita tão bela, mas, até Thionville, onde ele se encontra, o caminho não é muito seguro para uma mulher. Sentir-me-ei feliz por vos escoltar, porque, se vos acontecer alguma coisa, ele não me perdoará.
Um passe será suficiente, capitão. O meu escudeiro e o meu secretário têm capacidade para me defender em caso de maus encontros...
Não ponho em dúvida o seu valor, mas um passe não é suficiente se cairdes em cima de um grupo de soldados em busca de comida, porque a maior parte não sabe ler. Acreditai-me, as capas de Borgonha sobre os ombros de dois sólidos rapazes ajudar-vos-ão mais do que todos os papéis do mundo.
E foi assim que no dia seguinte, depois de ter aceite a hospitalidade do oficial e encantado a sua memória por um período de longas semanas, Fiora, que ia engendrar a perda do duque da Borgonha, deixou Dun sob a guarda das suas cores. Dentro de dois dias, se não acontecesse nada de mais, estaria junto daquele que, de acordo com a sua missão, teria de levar à traição...
No outro dia, ao cair da noite, dois homens jogavam xadrez na sala alta do castelo de Thionville. Se bem que ainda houvesse alguma luz, um grande candelabro de ferro forjado, com uma dúzia de velas, iluminava o tabuleiro de ébano e marfim. Na grandiosa chaminé ardia um fogo que tentava combater a humidade. Construído no século anterior pelos duques do Luxemburgo, o castelo, com as suas paredes enormes era uma sólida fortaleza capaz de suportar qualquer assalto. Com efeito, Thionville e a região circundante formavam um canto enterrado no ducado da Lorena, com o qual os Luxemburgueses nem sempre estavam de acordo. Era preciso que a cidadela e as suas defesas estivessem à altura da sua missão e estavam, mas o conforto interior tinha algo de espartano, o que era apanágio dos edifícios militares.
A sala onde os dois homens jogavam não fugia à regra. Para além da pequena mesa onde repousava o tabuleiro e as duas cadeiras de braços estofadas de cinzento onde eles estavam sentados, a decoração compunha-se estritamente de um grande cofre de madeira enegrecido pelo tempo e de dois antigos trofeus de armas. Uma tapeçaria, que teria ganho se fosse três ou quatro vezes maior e alguns pendões de cores esbatidas, pregados lá no alto, sob a abóbada, faziam o que podiam para aquecer uma sala construída para as grandes assembleias e onde os dois homens pareciam um pouco perdidos. As janelas, altas e estreitas, abriam-se ao fundo de grandes vãos, comportando cada uma dois bancos de pedra e seria preciso um sol muito brilhante para que dessem uma claridade conveniente. Com tempo cinzento, deixavam passar apenas uma luz pobre, à qual era preciso suprir. Daí a luz das velas.
Os dois homens, por diferentes que fossem, eram igualmente notáveis. Um era grande, bem-feito e com aquela espécie de graça animal das grandes feras. Sob a túnica negra que o cobria adivinhava-se uma musculatura longa, solta, com a suavidade de um homem treinado em todos os exercícios do corpo. Os seus espessos cabelos negros, grisalhos nas têmporas, suavizavam um pouco um rosto de traços duros, de cor trigueira, sulcado por cicatrizes que desfeavam a harmonia clássica de um olhar negro, vivo e penetrante: era Campobasso. O outro, nitidamente mais pequeno, mas extremamente sólido, tinha a pele da cor do barro e os cabelos de diversas cores, de quem passara a vida ao sol. Também ele de olhar vivo, mas de um verde-escuro, que quase se tornava amarelo em redor das pupilas, nunca abandonava a sua brilhante cota de malha, que aparecia sob uma túnica vermelha com as suas armas: era o seu colega e amigo, Galeotto.
Cola di Monforte, conde de Campobasso, pertencia a uma antiga família dos arredores de Nápoles, que se ligara à fortuna da casa de Anjou. Corriam estranhos boatos sobre ele e os seus. Dizia-se que o seu pai morrera de lepra e que ele matara a sua mulher infiel de quem tivera, entretanto, dois filhos. Quando em 1442 o Rei Renato, o Bom, que reinava em Nápoles e na Lorena, foi destituído, por Afonso de Aragão, do seu reino mediterrâneo sobre o qual velava o Vesúvio, Campobasso, com dezoito anos e ligado ao séquito de Jean da Calábria, o filho mais velho de Renato e também amigo do seu outro filho Nicolas, deixou sem pena uma terra pobre que não tinha comparação com os doces horizontes da Provença e de Anjou. Do castelo de Tarascon ao de Angers, Campobasso seguiu a fortuna de Nicolas da Calábria, tornado duque da Lorena por morte do seu pai Jean. O que lhe valeu tornar-se dono e senhor do castelo de Pierrefort, em Martaincourt, uma poderosa fortaleza dominando, do alto das suas muralhas, o pitoresco vale de Esch e onde mantinha uma guarnição de príncipe. Com efeito, condottiere de alma e coração, ligado à guerra, assim como ao dinheiro, Campobasso não partiu só das suas terras, antes com alguns dos seus vassalos, formando o agradável começo de um pequeno exército com o qual era preciso contar, porque, bem equipado e treinado por um homem para quem as armas não tinham segredos, transformara-se rapidamente numa condotta de valor.
Talvez Campobasso tivesse continuado fiel à casa de Anjou se, nos finais de Julho de 1473, o jovem duque Nicolas não tivesse morrido subitamente. Tão depressa que se falou em envenenamento, mas era preciso um sucessor. A nobreza da Lorena entregou a coroa ducal à filha mais velha do rei Renato, Yolanda, viúva do conde Ferry de Vaudémont, mas esta não desejava reinar: vivia de recordações no seu castelo de Joinville. No entanto, tinha um filho de vinte e dois anos, ao qual, naturalmente, transmitiu os seus direitos hereditários. Este passou a ser o duque Renato II.
Mas tal senhor não convinha a Campobasso. Achava-o demasiado frágil, demasiado amável, demasiado ”donzel”. Pelo contrário, quando em Setembro, no Luxemburgo, quando ainda fazia parte da guarda de Renato II, conheceu o duque da Borgonha, achou que era aquele o chefe que convinha aos seus desejos. Aliás, já conhecia o Temerário por o ter encontrado, oito anos antes, quando tomara a liderança da célebre Liga do Bem Público, armada contra o Rei de França e da qual faziam parte Jean da Calábria, então duque da Lorena e o seu filho Nicolas. Foram precisos dois anos para que Carlos se sentasse no trono do seu pai, mas a sua arrogância e esplendor seduziram Campobasso. Quando ele passou a intitular-se grande duque do Ocidente, o italiano ficou deslumbrado.
Resultado: ainda nesse ano de 1473, mas em Dezembro, o Temerário punha pé em terra no pátio do castelo de Pierreíort, onde o condottiere o acolheu. O borgonhês não teve qualquer dificuldade em desviar o seu anfitrião do serviço do Menino, que era o que este mais queria. Regiamente pago e coberto de presentes pelo mais faustoso dos príncipes, Campobasso aceitou o posto de comandante das tropas lombardas, que ele próprio se encarregou de recrutar em Milão. A despeito das aparências, foi uma traição. Carlos de Borgonha dizia-se o melhor amigo do jovem Renato e obrigou-o a aceitar a sua protecção ”contra as manigâncias do Rei de França”. Protecção essa que custou ao jovem soberano quatro das suas melhores cidades, onde se instalaram guarnições ”protectoras” essencialmente borgonhesas e extremamente tirânicas.
No entanto, o Menino não se deixou enganar por muito tempo e três meses mais tarde mandou incendiar o torreão de Pierrefort na ausência do seu proprietário não teve tempo de destruir o resto privando assim o castelo do napolitano da sua melhor defesa.
Para consolar Campobasso, o Temerário prometeu-lhe que, assim que submetesse a Lorena, poderia escolher a cidade que mais lhe agradasse. Com efeito, a sua intenção era esmagar o pequeno duque e ficar com as suas terras, que uniriam os Países Baixos à Borgonha propriamente dita.
Promessa ainda por cumprir naquele fim de 1475, porque, depois, o Temerário não cessara de guerrear e Campobasso de o servir, com um talento e uma lealdade que pareciam a toda a prova.
Jacopo Galeotto era menos complicado. Condottiere ao serviço do duque de Milão, juntou-se ao exército borgonhês sem se fazer rogado durante o cerco de Neuss quando Campobasso lhe pediu. Os dois homens estavam ligados pela amizade e completavam-se, porque se um e outro eram guerreiros endurecidos e cavaleiros de mérito, Galeotto possuía um talento suplementar e muito útil: era engenheiro, arrastando sempre consigo um bando de carpinteiros hábeis na construção de torres de cerco, aríetes e outras máquinas de guerra essas máquinas fizeram maravilhas no cerco de Neuss, mas sem conseguir vencer a resistência encarniçada dos habitantes e da guarnição. Galeotto, claro, ficou algo rancoroso, enquanto Campobasso começava a fazer a si próprio algumas perguntas. Vira o soberbo exército bloqueado durante meses diante de um calhau teimoso, desgastando-se sem resultados interessantes. Ora, ganhar em Neuss era pôr o imperador de joelhos e abrir a Alemanha aos seus apetites. Em vez disso, fora preciso recuar sob a bênção de um bispo italiano, o que não passara de uma miserável consolação para quem esperava um grande saque.
Campobasso continuava a pensar naquilo. Há já duas horas que jogava xadrez com o amigo sem se interessar verdadeiramente pelo jogo. O seu espírito estava longe. Subitamente, levantou-se. Tão bruscamente que o tabuleiro virou-se. As pedras negras e brancas rolaram pelo chão que nenhum tapete aquecia.
Isso é maldade! rugiu Galeotto. Na jogada a seguir levavas cheque-mate, mas tu nunca compreenderás que obstinares-te em defender a rainha é um erro.
Desculpa. Eu jogo mal, é certo, mas estava distraído.
Onde estavas, então?
Sem responder, o condottiere foi até uma das janelas que davam para o Moselle e olhou por um instante para a corrente viva que reflectia um céu desesperadamente cinzento. Para lá da ponte guardada pelos seus mercenários conseguia ver as fracas luzes amarelas que se acendiam no velho bairro judeu, aliás quase deserto, porque, se os duques do Luxemburgo tinham demonstrado para com os filhos de Israel uma certa tolerância, o mesmo não acontecera com o duque da Borgonha. Os mais jovens tinham partido para se juntarem às colónias judias de Frankfurt ou Colónia. Apenas os velhos tinham ficado para o serviço da antiga sinagoga e eram os únicos, numa cidade onde Campobasso exercia uma autoridade impiedosa, a congratularem-se com a sua presença. Habituado desde sempre aos guetos das cidades italianas, o comandante da praça não achara útil exterminar aquela meia dúzia de velhos, que, aliás, tinham tido a boa ideia de lhe comprar a sua tranquilidade.
Galeotto juntou-se ao amigo na janela e olhou, por um instante, para a bruma exterior:
Que achas tu de tão apaixonante ver a chuva a cair no rio?
Eu não estou a olhar para a chuva: estou a olhar para os homens. Todos eles nasceram no lado de lá dos Alpes e sentem-se aqui tão infelizes como eu.
Infelizes? Que palavra, na tua boca! O que é que te apoquenta?
Tudo! E antes de mais esta cidade, onde tudo é negro! Negro como esta terra, onde nada nasce...
Mas que nos dá o ferro com o qual se forjam armas. O que tem uma certa vantagem. Achas? Pois eu dava todo o ferro do mundo para rever a baía de Nápoles e as minhas colinas ao sol...
Nós somos condottieri disse Galeotto encolhendo os ombros com filosofia. Um dia aqui, outro ali e, se o pagamento for bom...
Acha-lo bom, tu? Não tocamos em nada desde Neuss, onde esperávamos um saque tão bom. Depois, viemos para aqui para nos refazermos, mas isto aqui não é o Paraíso. Não importa. Nós esperávamos conquistar a França e dividi-la com os Ingleses e tu ouviste o que disse o monge que prendemos esta manhã: o Rei Eduardo, empanturrado de prata e vinhos franceses, atravessou o mar e nós, nós estamos para aqui como dois imbecis neste ninho de ratos suspenso sobre a Lorena... na qual não temos o direito de entrar!
No entanto, há borgonheses na Lorena. Nós temos lá quatro cidades...
Nós? Esqueces-te que não passamos de mercenários? O duque Carlos reserva as boas praças para os do seu séquito, para senhores nascidos na sua terra, não para aventureiros como nós...
Mas temos um posto de confiança. E a praça não é assim tão má... ou queres-me dizer que preferias servir o Rei Luís? Nesse caso, alto! Luís XI não precisa de nós. Possui, talvez, o melhor exército do mundo, um exército permanente, em pé de guerra durante todo o ano e nem sequer se serve dele. Esse combate com o cérebro!
No entanto, tem mercenários. A famosa Guarda Escocesa...
A maior parte dos homens nasceu em França. São mais franceses do que os verdadeiros...
Mas estão cheios de privilégios, honras e ouro...
Sem dúvida, mas são leais, coisa que nós não somos, nem tu, nem eu. Olha, faz-te escocês, se o coração te diz alguma coisa!
Não sejas estúpido. Nós temos, tu e eu, homens que esperam de nós proveito e glória. Se nós...
A entrada de um pajem ensopado, cujos longos cabelos negros escorriam água sob um gorro cuja pena estava reduzida a metade, cortou-lhe a palavra. Era um rapaz de doze anos, belo como um anjo, mas cujo olhar insolente dizia de uma segurança nitidamente acima da sua idade e condição. Olhar esse que ignorou Galeotto e se pousou, carinhoso e vagamente cúmplice em Campobasso, que sorriu:
Que queres, Virgínio?
Trago notícias, monsenhor...
Da parte do duque? exclamou o condottiere com uma pressa que o fez corar.
O pajem encolheu os ombros:
Nada de tão importante, monsenhor. Três viajantes acabam de chegar à porta de França: dois homens e uma mulher. A mulher diz que é vossa prima!
Minha prima? Raios me partam se eu tenho alguma prima! Como é ela? Jovem?
Acho que sim...
Bonita?
O pajem encolheu de novo os ombros com um desdém que divertiu Galeotto.
No teu lugar, pagava para ver. Este caro Virgínio é mau juiz em matéria de mulheres. E depois, uma prima que te chega assim do fim do mundo merece alguns olhares.
Se monsenhor diz que não a conhece, só pode ser uma espia. Vou dizer ao corpo da guarda que a atire para a prisão, a ela e aos companheiros...
Antes que Campobasso tivesse tempo de responder já Galeotto tinha agarrado o pajem pelo colar da túnica brasonada e erguia-o no ar:
Eh lá, mosquito! Mais devagar! Desde quando é que tu dás aqui ordens? Para essa mulher te desagradar tanto é porque deve ser interessante...
Pousa-o! disse Campobasso. E tu, Virgínio, vai buscar essa gente e traz-ma aqui. Ou antes, traz a mulher e deixa os homens com o corpo da guarda. A propósito, onde está Salvestro?
Com a voz subitamente rouca, o pajem, que massajava a garganta enquanto lançava a Galeotto um olhar furioso, respondeu:
O vosso escudeiro está em casa do burgomestre. Este matou um porco e esqueceu-se de mandar metade para o castelo.
Quando é assim, é preciso trazer o porco todo. Hei-de ralhar com Salvestro. E agora vai!
Deixá-lo abusar um pouco disse Galeotto quando o garoto desapareceu. Há mulheres aqui, sem contar com as putas da tropa...
Nenhuma dessas fêmeas é tão bela como ele disse o conde com um sorriso ambíguo. O rapaz tem o corpo de um jovem deus grego... e gosta de fazer amor.
Há-de vir o dia em que não conseguirás fazer-te obedecer. Devias mandá-lo para junto do teu filho em Pierrefort, porque, se um dia o duque percebe...
Tenho assim tanta importância, para que ele se interesse com o que se passa na minha cama? disse Campobasso com amargura. Por vezes, pergunto a mim próprio se ele não fará o mesmo? Nunca nenhuma mulher passou a porta do seu quarto, ou da sua tenda...
Não precisa. O pai teve tantas amantes que tirou o gosto ao filho. Além disso, dizem que ele não consegue esquecer a primeira mulher, Isabel de Bourbon. Mesmo a segunda, que é bem boa, só consegue da parte dele um interesse polido. Também é verdade que dizem que ela já não era virgem quando casou com ele... Por todos os santos do céu!
Os olhos de Galeotto acabavam de se abrir ao mesmo tempo que a porta para deixar passar Fiora. Esta estava na soleira, envolta no seu grande manto negro onde brilhavam umas gotas de chuva, o capuz descido, deixando livre a sua bela cabeça coroada de maneira soberba pelas tranças brilhantes, das quais pendia um véu verde. Altiva, a jovem pousou os olhos cinzentos nos dois homens que a contemplavam, mudos de admiração.
Eis a vossa prima, monsenhor disse Virgínio. A sua voz má rompeu o encanto.
Que seja bem-vinda! murmurou Campobasso como se tivesse acordado de um sonho. Desaparece, Virgínio!... Tu também, Galeotto!
Mas eu... começou o outro, siderado.
Quero estar só por uns momentos... com a minha bela prima cortou o conde, que não afastava os olhos de Fiora. Não te preocupes, poderás vê-la de novo ao jantar... mas este primeiro instante pertence-me.
O condottiere permaneceu de pé em frente da jovem até os outros terem deixado a sala, num silêncio apenas perturbado pelo ruído do fogo na chaminé. Fiora ainda não tinha pronunciado uma palavra e ele também não dizia nada. Olhava-a, simplesmente... como se o tempo tivesse parado, como se toda a sua vida estivesse suspensa daquele olhar. E foi Fiora que rompeu o silêncio.
Não me ofereceis disse ela docemente um lugar junto do fogo? Estou gelada...
E eu sou imperdoável...
O conde conduziu a sua visitante para junto da chaminé, atiçou os cavacos que se espalharam numa miríade de brasas cintilantes, acrescentou lenha com mãos que tremiam um pouco, avançou uma das cadeiras cobertas de tecido e por fim ajudou Fiora a desembaraçar-se do manto molhado. Não sabendo o que fazer, colocou-o no seu braço e bateu as palmas. Virgínio, que não devia estar longe, apareceu instantaneamente:
Outra vez tu? Não há mais criados neste castelo?... Leva este traje para o meu quarto e põe-no a secar ao lume. Depois, vai à cozinha: manda-nos vinho e vela para que sirvam rapidamente o jantar!
O pajem arrancou-lhe o manto do braço e partiu a correr com lágrimas de raiva no fundo dos olhos. Campobasso regressou para junto de Fiora e sentou-se diante dela, no degrau da lareira.
Portanto, somos primos? Custa a acreditar! disse ele com um sorriso mais maravilhado do que céptico. Sois napolitana?
Não, florentina. Chamo-me Fiora Beltrami. O meu pai era um dos mais poderosos cidadãos de Florença...
Era?
Perdi-o há alguns meses atrás. Quanto ao nosso parentesco, é, creio, muito longínquo e remonta a uma avó vinda de Nápoles. Os Florentinos raramente casam fora da Toscânia, daí a excepcionalidade da recordação.
Agradeçamos, portanto, a essa avó! Pessoalmente sei pouco acerca das mulheres da minha família, salvo que algumas eram muito turbulentas. Mas, que fazeis aqui, tão longe da vossa cidade? Foi para vos encontrardes comigo que fizestes esta longa viagem?
Não. Já vos disse: o meu pai morreu... e os Médicis expulsaram-me para se apoderarem da fortuna dele. Procurei refúgio em França, onde ele tinha... muitas amizades...
Tão grandes assim?
Creio que não poderiam ser maiores. Foi nesse meio que ouvi pronunciar o vosso nome pela primeira vez e veio-me a fantasia, a mim, que não tenho mais nenhuma família, de vos ver de perto... O Verão pareceu-me uma boa estação para viajar. Infelizmente, o céu não é dessa opinião!
A jovem levantou-se para se aproximar do fogo e os olhos do homem que a olhavam começaram a brilhar sombriamente. O vestido fino, suave como uma luva, que a vestia realçava as formas de um pescoço delicado, redondo e firme e a delicadeza de uma cintura, da qual ele tinha vontade de tirar as medidas. Era mais uma fantasia de costureira parisiense do que um vestido, mas Agnelle insistira com Fiora para que o comprasse, já que parecia ter sido pintado no seu corpo, pelo menos até às ancas, antes de enviesar para acabar numa curta cauda que se podia prender ao punho.
No entanto, chegastes aqui. Posso perguntar-vos se lamentais esta penosa viagem?
A jovem olhou para ele por entre as pestanas reviradas e riu com um riso tão doce como o arrulhar de uma pomba:
Quereis saber se estou desiludida? Muito bem, não... Vós sois... muito belo, messire meu primo, mas penso que não o ignorais e já mais do que uma dama vos deve ter persuadido disso. Pelo menos, é essa a vossa reputação.
Ignorava que essa reputação tivesse chegado a França!
É um facto, porque eu estou aqui. Quis verificar... Mas não fiqueis surpreendido: em Florença as mulheres estão acostumadas a dizer livremente o que pensam e o que desejam. Acontece que eu sou livre de fazer o que me apetece...
Estaria a fazer troça dele? Campobasso pensou naquilo por um instante, mas já estava para lá de qualquer raciocínio claro e só sabia uma coisa: aquela rapariga, que acabava de lhe cair do céu, ou do inferno, tinha que ser sua. Nunca vira uma mulher tão bela, tão sedutora. Fazia-lhe ferver o sangue e ele não gostava de esperar... Levantando-se com um golpe rápido de rins, pousou as mãos nas ancas de Fiora para a aproximar de si:
Sabias disse ele em italiano que pode ser perigoso agradar-me... demasiado?
Por que perigoso? Eu não tenho medo de nada respondeu ela na mesma língua. Menos ainda depois de te ver. Naquele instante desejei que me achasses bela...
Bela?...
Campobasso quis inclinar-se sobre a sua boca, embriagado pelo estranho odor a flores, ervas e lã molhada que emanava daquele corpo suave que ele sentia vivo entre os dedos, mas já ela lhe escapara, girando sobre si mesma como uma figura de dança.
Não me olheis como se fosseis um lobo esfaimado e eu um pobre cordeiro, primo! disse ela, sorrindo. Reparai que acabo de fazer uma longa viagem e sou eu que estou esfaimada! Alimentai-me, primo! Teremos todo o tempo para... conversar depois, não?
Com a impressão de acordar de um sonho, Campobasso sacudiu-se como se tivesse acabado de sair da água e virou-se para Fiora, temendo que a jovem não passasse de uma miragem, mas ela continuava ali. Com os braços bem levantados, o que fazia sobressair os seios, a jovem tirou os alfinetes que retinham o véu e o penteado:
Os meus cabelos estão todos molhados e colam-se-me ao pescoço! disse ela, rindo.
Instantaneamente, a massa negra e luzidia deslizou-lhe sobre os ombros e ao longo do corpo. O homem, que a devorava com os olhos, pensou que, com aquele vestido verde e os longos cabelos húmidos, ela parecia uma sereia, e desejou-a mais ainda. Mas resistiu à vontade que tinha de se atirar a ela, de lhe rasgar o vestido e de a possuir imediatamente, no chão de pedra. Como bom napolitano, sabia apreciar o saboroso sofrimento da espera, na condição de que não durasse muito tempo e, nesse ponto, estava descansado. O seu orgulho de macho dizia-lhe que aquela feiticeira enlouquecedora de olhos cinzentos só aparecera para se lhe entregar... Além disso, não vinha ela de França? Dessa França onde confessara ter tão grandes amizades?
Campobasso já erguia as mãos para chamar de novo quando a porta se abriu, dando passagem a criados carregados de cavaletes, uma prancha de madeira e toalhas para pôr a mesa. Virgínio seguia-os e os seus olhos sombrios detiveram-se, primeiro, cheios de ódio, em Fiora, que, diante do fogo, secava os cabelos e depois no seu senhor com uma interrogação muda, que fez este sorrir. Campobasso gozava cruelmente com os ciúmes que sentia ferver na alma do seu pajem.
Onde é que ela vai dormir? perguntou Virgínio, designando a jovem com um movimento de cabeça desdenhoso.
Donna Fiora respondeu o condottiere com ênfase dormirá no meu quarto, bem entendido. É o único decente, juntamente com o do senhor Galeotto. Tu farás com que os lençóis sejam mudados...
E vós? Onde ides dormir?
Chi Io sã?... Talvez no meu quarto? Por que não?
E eu? perguntou o rapaz com insolência.
Tu?... Onde quiseres. Olha... com o Salvestro, quando ele regressar de casa do burgomestre...
O rapaz empalideceu e os seus olhos negros lançaram faíscas:
Eu mato-a, ouviste? disse ele de dentes cerrados. Se lhe tocas, mato-a...
Com um dedo negligente, Campobasso acariciou a face aveludada do pajem e o seu sorriso acentuou-se, descobrindo uns dentes fortes e brancos, uns verdadeiros dentes de carnívoro:
Nesse caso, meu pequeno Virgínio, serei obrigado a enforcar-te disse ele docemente. Aliás, é o que te acontece se lhe acontecer o menor acidente... Confessa que seria pena, porque ainda podemos passar umas boas horas juntos. Pensa nisso!
Mas, afinal, quem é esta mulher para ocupar, de repente, o melhor lugar aqui?
Ainda não sabes? Mas... é a minha prima e eu sempre tive espírito de família. Como todos aqueles que têm pouca, ou nenhuma.
A voz de Fiora soou, quente e musical, através da vasta sala:
A propósito, meu belo primo, sois capaz de me dizer o que tencionais fazer dos meus homens? Não ides, imagino, deixá-los a noite toda no vosso corpo da guarda? A viagem foi tão desagradável para eles como para mim.
Perdoai-me! Tinha-me esquecido deles. Vai buscá-los, Virgínio!... para eu ver que tal são acrescentou ele sotto você.
Um momento mais tarde, o castelhano e o escocês faziam a sua entrada na sala, que, com a mesa posta para a refeição, o suplemento de velas e tochas que tinham sido acesas, perdera o aspecto glacial. Uns odores de carne assada acompanharam-nos:
Este é Esteban apresentou-o Fiora. É, ao mesmo tempo meu escudeiro e meu secretário, meu mentor e meu guarda-costas. E este é Denis Mercier, meu guia desde Paris.
O condottiere olhou para os dois homens com interesse. Esteban, com a sua cabeça quadrada, o nariz partido, os cabelos espessos e o corpo atarracado era a imagem do soldado da fortuna que ele gostava de recrutar. Não tinha nada o aspecto de um secretário. Quanto ao outro, com os seus ombros de corsário e ar arrogante, ainda cheirava mais a militar do que o companheiro...
Para conhecer tão bem os caminhos, és daqui? perguntou ele a Mortimer, que, sem se preocupar com fórmulas de cortesia excessivas, respondeu calmamente:
Não, Sou de Berry, mas sempre viajei muito.
Tanto assim? Um bom guia pode ser uma coisa preciosa. Eu poderia dar-te emprego... a menos que prefiras regressar a casa. A quem pertences?
A ninguém. Mas tenho a minha casa e os meus hábitos e a partir do momento que a minha missão está cumprida...
Diabos me levem, pensou Campobasso, se este gigante não pertence à famosa Guarda Escocesa do Rei Luís! Nesse caso, a minha bela prima pode ser... uma mensageira?” E como os criados entravam com bacias, jarros e toalhas, imediatamente seguidos por Galeotto, que fora lavar-se um pouco, declarou:
Lavemos as mãos, minha bela prima e passemos à mesa!
Podias apresentar-me! grunhiu Galeotto, cuja figura, barbeada de fresco, mostrava alguns golpes.
É justo. DonnaFiora, este é o senhor Jacopo Galeotto, de Milão, que comanda comigo o corpo de Lombardos do senhor duque de Borgonha. Donna Fiora Beltrami, de Florença.
Ah, Florença! suspirou o capitão com alma já a visitei, em tempos, quando o duque Galeazzo-Maria Sforza e a duquesa Bona foram visitar os senhores de Médicis! Que festa tivemos! Que belas justas! Que vinhos! Que mulheres... Foi em...
Em 1471, há quatro anos disse Fiora com um sorriso, ao ver iluminar-se, perante aquela precisão que afirmava a sua identidade como florentina, o rosto um instante antes desconfiado de Campobasso. A vossa duquesa Bona era muito bela! O meu pai teve a honra de dançar com ela...
E sentaram-se à mesa, evocando o esplendor do Magnífico para grande prazer de Fiora, feliz por poder falar da sua cidade amada, daquela Florença que tanto mal lhe fizera, mas cuja imagem e recordação nunca abandonariam o seu coração...
Duas horas mais tarde, de pé no vão da janela estreita do quarto onde a tinham conduzido, Fiora esperava Campobasso. A jovem sabia que ele viria, porque o seu olhar insistente, pouco antes, ao beijar-lhe a mão com um ”boa-noite” hipócrita, não enganava. Estava resignada, porque Commynes, por ordem do Rei, traçara-lhe, do condottiere napolitano, um retrato ácido, de uma extraordinária fidelidade. Estava ciente da sua situação ambígua e que teria de se haver com um homem arrebatado e sem paciência. Se se recusasse depois de o ter enfeitiçado, arriscava-se a sofrer as consequências. Mais valia dar-lhe a entender que era ela a seduzida: isso dar-lhe-ia mais poder...
Mas não queria deitar-se e era de pé que o esperava. O leito de cortinas vermelhas, datado do século anterior e suficientemente grande para quatro pessoas, que tinha sido aberto, permaneceria vazio o tempo que ela desejasse. Com efeito, o seu orgulho recusava recomeçar as primícias da cena atroz vivida em casa de Pippa, no bordel do bairro Santo Spirito: a rapariga oferecida meio nua, qual carne de caça numa travessa...
Em redor dos ombros, que tremiam contra a sua vontade, como se estivesse em pleno Inverno, a jovem apertava um xaile. No entanto, não tinha medo. Campobasso seria o terceiro homem a possuir o seu corpo, depois de Philippe e do nojento Pietro. Um trouxera-lhe o fascínio do amor total, o outro o horror de uma violação sádica, da qual guardava uma recordação terrível. Entre esses dois extremos, Campobasso não tinha hipótese de deixar qualquer marca. A jovem esperava-o com a indiferença de uma cortesã, cujo papel aceitara desempenhar. O seu corpo era uma armadilha, que visava a perda de um príncipe. Era preciso atrair o condottierecom força suficiente, para que se desligasse por completo do Temerário. Entretanto, era uma sorte e Fiora admitia-o de boa vontade o homem não ser desprovido de sedução.
Em Florença... um século antes, Demétrios prometera-lhe que a armaria para os combates futuros e cumprira a sua palavra. Uma noite, no barco que os conduzira à Provença, desenhara para ela um corpo masculino, indicando-lhe as zonas erógenas. Fizera-o com a frieza e desprendimento de um professor de anatomia para com uma aluna e esta recebera os seus ensinamentos com o mesmo espírito...
Em certos países de África e do Oriente, as raparigas são educadas desde tenra idade visando o prazer do homem disse-lhe ele então o que não é uma má coisa, porque o poder da mulher fica reforçado. Mesmo uma criatura tão bela como tu pode ter necessidade de ser iniciada. Ficarás mais temível.
Além disso, o grego fizera para ela um perfume, que deveria utilizar com moderação e unicamente em determinadas circunstâncias.
As mulheres dos haréns usam-no para excitar os sentidos do seu senhor e dono, mas acrescentara Demétrios com a satisfação de um inventor eu introduzi-lhe alguns aperfeiçoamentos.
Nessa noite, pela primeira vez, Fiora pusera um pouco desse perfume. Muito pouco, apenas, com a ponta do dedo, uma gota por trás da orelha e outra entre os seios. Era pouco, mas ela ficou com a impressão de ficar a cheirar como um queimador de perfume. Sentiu-se mais segura, sem dúvida, mas também com a impressão bizarra, de ter mudado de personalidade, em vias de se desdobrar. A sua alma afastou-se um pouco de um corpo cujas reacções e comportamento ela ia poder controlar...
No exterior, os sons daquela cidade desconhecida iam-se extinguindo. As luzes que punham um reflexo avermelhado no tecto do quarto vinham dos postos de guarda escalonados ao longo das muralhas e do Moselle. Os gritos que as sentinelas emitiam umas para as outras eram em dialecto lombardo, tão próximo do toscano que a jovem não pôde deixar de sentir um certo prazer... A cidadela luxemburguesa, emudecida e negra no fundo da noite, desaparecia por completo. As tropas que a ocupavam impunham-lhe a sua própria cor...
A porta, ao abrir-se, rangeu ligeiramente. A despeito da sua coragem, Fiora sentiu um arrepio gelado ao longo da espinha. O momento difícil chegara, o instante em que necessitaria, mais do que nunca, de permanecer senhora de si mesma...
Da sombra destacou-se outra sombra ainda mais densa do que o reflexo longínquo da vela, que sussurrou:
Ainda não estais deitada? disse Campobasso. Não sabíeis que... eu viria?
Sim... mas eu não me deito quando espero uma visita. Isso seria colocar-me numa situação de inferioridade...
Há visitas e visitas e a mim não me parece que a minha presença neste quarto seja uma... Esperava...
Ela fez-lhe frente bruscamente, os olhos a faiscarem.
O quê? Encontrar-me naquela cama, nua e de pernas abertas, à espera do vosso prazer?
Por São Gennaro! Que violência! Não poderemos recomeçar a nossa conversa de há pouco? Recordai-vos! Eu ia tomar-vos nos braços...
A jovem esperava uma reacção brutal, o que não aconteceu. A sua voz, pelo contrário, era doce e suplicante. O homem estava tão perto dela que Fiora lhe podia ouvir a respiração curta e reteve um sorriso de triunfo: tê-lo-ia já dominado, quando recebera dela apenas o direito de lhe beijar a mão? A fera já estaria à sua mercê? Fiora sentiu a tentação de o pôr à prova, repelindo-o, mas veio-lhe à memória uma frase do seu querido Platão: ”Dá e receberás...”
Então, que esperais? disse ela com um sorriso provocante. Ou... preferis despir-me primeiro?
A jovem sentiu tremer as mãos que ele já pousara na sua cintura. Em seguida subiram, acariciaram-lhe o pescoço de passagem, agarraram no decote do vestido e puxaram... O tecido rasgou-se até à cintura, mas já Campobasso apertava Fiora contra si, afundando o rosto na massa de cabelos negros, cobrindo-lhe o pescoço de beijos devoradores e apoderando-se em seguida dos seus lábios, levando-a depois para o leito, onde acabou de lhe reduzir o vestido a farrapos antes de se atirar para cima do seu corpo nu... como um animal sedento sobre um riacho fresco.
Arrebatada por um furacão de carícias e beijos, Fiora, passada a primeira explosão de brutalidade, descobriu que aquela fera podia ser um amante apaixonado, sabendo tocar num corpo feminino. Esperava um soldado e saiu-lhe um apaixonado. Esperava poder manter a cabeça fria, mas, traída pelos seus sentidos, permitiu, por várias vezes, que o prazer a transportasse nas suas ondas abrasadoras. E a noite estava quase no fim quando o sono, por sua vez, a venceu e a fez esquecer que, se tinha, também ela, conseguido uma vitória, esta fora muito parecida com uma vitória à Pirron.
Com a orelha colada à porta do quarto, o pajem Virgínio, de dentes ferrados no punho e quase desmaiando de raiva impotente, contara todos os queixumes, todos os suspiros, todos os estertores que o jogo ardente do amor tinha arrancado àquele casal invisível...
Quando os tambores acordaram os soldados, Campobasso, suficientemente treinado nos combates de Vénus para que uma
1 Primeiro grande céptico grego.
noite de amor o submergisse no sono a ponto de não os ouvir, deslizou do leito cuidadosamente para não acordar Fiora, vestiu a camisa e os calções e dirigiu-se à grande sala onde já Salvestro, o seu escudeiro, o esperava.
Vai-me buscar os dois homens que acompanhavam ontem donna Fiora! ordenou ele enquanto devorava um bocado de pão duro que ficara em cima da mesa. Depois, leva vinte soldados para a escada.
Esteban e Mortimer compareceram quase de imediato. A inquietação mantivera o castelhano acordado durante toda a noite; quanto ao escocês, também estava habituado a acordar com o nascer do dia. Ides poder regressar a casa disse-lhes Campobasso. Donna Fiora já não precisa dos vossos serviços.
Perdoai-me, monsenhor disse Esteban, cujo rosto acabava de se fechar mas eu estou ao seu serviço há muito tempo e, se ela já não precisa de mim, gostaria de o ouvir da sua boca! Nunca a deixarei por minha vontade... ou por ordem de um estrangeiro!
Eu também recebi ordens de velar por ela disse tranquilamente Mortimer e tenho por hábito ir até ao fim dos meus deveres.
Que grandes palavras para um guia. Foste encarregado de a conduzir até mim? Muito bem, o trabalho está feito! Podes partir!
Compreendestes-me mal: eu devo conduzi-la aonde ela desejar ir. Donna Fiora ainda vai precisar de mim.
Escusas de me tentar enganar, eu sei muito bem quem és: tu és um dos guardas escoceses do Rei de França. Portanto, escuta bem: vais regressar para junto do teu senhor e agradecer-lhe-ás pelo belo presente que me enviou. Acrescentarás que espero, um dia, poder demonstrar-lhe a minha gratidão... quando donna Fiora for condessa de Campobasso. E agora vai! Quanto a ti acrescentou ele virado para Esteban já ouviste: eu vou casar com a tua patroa e posso assegurar-te que saberei defendê-la de todos os perigos. Aconselho-te a seguir o teu companheiro.
E se eu recusar? grunhiu o castelhano, que sentia a mostarda chegar-lhe ao nariz.
É muito simples: dentro de uma hora serás enforcado.
A mim também não me apetece nada ir embora articulou Mortimer. Ou então, ide buscar donna Fiora. Dela, aceitarei a ordem...
O escocês virara o olhar para Esteban e este leu nele que o Tempestade estava a ponto de se enfurecer. Entre os dois, o condottiere, desarmado, não seria grande desafio... Mas Campobasso suspirou, com um ar cansado:
Meu Deus, como sois fatigantes!
O italiano bateu as palmas e uma vintena de soldados entrou na sala:
A última palavra é minha. Parti tranquilamente e separemo-nos como amigos. Os meus homens dar-vos-ão alguns víveres para a jornada... e podeis partilhar isto.
O condottiere desprendeu a bolsa que trazia à cintura e lançou-a aos dois homens, mas nenhuma mão se estendeu para a apanhar e o seu conteúdo espalhou-se pelas lajes do chão. O escocês voltou a consultar o seu companheiro com o olhar e depois, encolhendo os ombros, declarou:
Partamos! Darei o vosso recado ao meu superior... Todos os vossos recados!
Perfeito! Sereis acompanhados até às portas da cidade. Mortimer e Esteban partiram sem se virarem, seguidos pelos soldados. Salvestro fechava a marcha. Depois de eles desaparecerem, Campobasso começou a recuperar as moedas que se tinham espalhado pelo chão e meteu-as na bolsa, que fez saltar na mão com satisfação enquanto se dirigia para o seu quarto. Fiora ainda dormia no meio da massa brilhante dos seus cabelos em desordem, enquadrando o seu corpo encantador. O conde contemplou-a por um instante, tirou as roupas, deslizou para junto dela e, apoiado num cotovelo, começou a acariciá-la suavemente. Ela gemeu sem abrir os olhos e distendeu-se para melhor se oferecer à mão que deslizava por ela, pronta para o prazer cujo calor já lhe começava a subir pelos rins. Quando começou a contorcer-se com queixumes de felicidade, ele entrou nela para se lhe juntar num espasmo supremo...
Campobasso e Fiora permaneceram, durante três dias e três noites, no isolamento do quarto e das cortinas do leito. Apenas Salvestro transpunha, duas vezes por dia, a porta daquele para levar as refeições, mas sem nunca ver o que se passava por trás destas. Galeotto fora encarregado de assegurar o comando e de velar pela ordem em Thionville. O condottiere cerrava os punhos de raiva quando olhava para determinada janela fechada, onde imaginava o que se passava.
Fiora viveu essas horas ardentes inteiramente nos braços do seu amante. Ele apertava-a contra si para dormir, comer e beber e quando, ao cabo de vinte e quatro horas, ela reclamou um banho, transportou-a ele mesmo até à tina que o velho escudeiro enchera com água fresca e secou-a sem deixar de lhe prodigalizar carícias e beijos. Quando não fazia amor com ela, olhava-a maravilhado, tocava-lhe nas pálpebras, nos lábios, no pescoço, nos seios, nos pés e nas mãos, murmurando-lhe palavras de amor que ela nem sempre compreendia.
Nunca a jovem imaginara que provocaria uma tal paixão. Aquele homem nunca estava satisfeito nem saciado e a posse, em vez de lhe saciar os sentidos, parecia exasperá-los e duplicava-lhe o desejo, a ponto de, por vezes, assustar Fiora. Dormia pouco e não a deixava escapar para o sono senão durante um curto espaço de tempo: uma hora ou duas depois já estava mais esfomeado por ela do que nunca.
És minha para sempre disse-lhe ele uma noite, apertando-a até a sufocar. Vou fazer de ti minha mulher...
Apanhada de surpresa por aquela declaração inesperada, ela preferiu rir.
Queres casar comigo?... e nem sequer sei o teu primeiro nome...
Cola... aqui dizem Nicolas, como o jovem duque que perdi e que gostava de servir. Mas, de ti, só quero ouvir palavras de amor.
Creio que não disse que te amava? Apenas que me agradavas...
Que importa se a tua boca não o diz? O teu corpo, esse, grita-o sem cessar, chama-me e eu faço-o cantar, vibrar e até gritar. Isso vale mais do que todas as futilidades dos poetas. Aliás, tu já me amas, sem mesmo te dares conta...
Talvez, mas não tenciono casar contigo... Agarrando-a pelos cabelos, o italiano puxou-lhe a cabeça para trás:
Amas outro? Diz-me! Amas outro homem? Vamos, responde!
Levado por um furor súbito, mordeu-lhe a base do pescoço. Com os olhos subitamente cheios de lágrimas, Fiora lançou um grito de dor:
Por que razão estaria aqui... se fosse o caso?
Ele largou-a, viu as lágrimas que corriam e a marca vermelha no pescoço...
Perdão! Perdão, meu amor!... Ainda enlouqueço... Tu fazes-me ferver o sangue e dás-me alegrias que nunca conheci com outra mulher. E tu, diz-me... algum outro homem te deu tanto prazer? Diz-me! Quero saber...
Não murmurou Fiora, pensando que não mentia já que a sua noite de núpcias fora breve em comparação com aquela paixão arrebatadora e aquela orgia de amor que a esgotava, mas que, curiosamente, lhe mantinha o espírito livre.
A jovem tinha consciência da dualidade existente entre a sua cabeça e um corpo cujas reacções não conseguia controlar. E a sua cabeça dizia-lhe que não voltaria a precisar do perfume de Demétrios, cujo odor desaparecera havia várias horas, e que Campobasso era seu prisioneiro. Entre ela e um duque cujo serviço lhe agradava menos do que supunha, o condottierenão hesitaria... mas, enquanto ele lhe lambia o pequeno ferimento no pescoço, Fiora pensou, saciada, que gostaria de ver acabar aquela clausura a dois que parecia não mais acabar.
Assim, na manhã do quarto dia ouviram uma luva de ferro bater na almofada da porta. Ao mesmo tempo, a voz rude de Galeotto berrava:
Sai daí... Cola! Preciso de te falar com urgência! Campobasso saiu nu do leito, atravessou o quarto e abria a porta. Recebeu em pleno rosto o olhar furioso do seu amigo.
Que se passa?
O pajem desapareceu!
É essa a tua notícia? Que vá para o diabo e que...
Não. Não é só isso: o duque Carlos está no seu castelo de Soleuvre, a doze léguas daqui. Que pensas tu que vai acontecer se aquele Virgínio danado lhe contar que tu desleixaste o comando porque não consegues parar de comer uma espia do Rei de França?
A mão de Campobasso agarrou-se, como uma serpente, à garganta do seu companheiro, apertando-a furiosamente:
Proíbo-te que fales assim, ouviste? Ela vai ser minha mulher!
Nesse caso, se queres que ela viva o tempo suficiente para isso, farias bem se a enviasses para o lugar de onde ela veio! rugiu Galeotto, arrancando a mão do amigo da sua garganta.
Nunca a mandarei embora!
Nesse caso, esconde-a e faz qualquer coisa. O miúdo deve ter partido ontem...
O conde reflectiu por uns instantes e grunhiu:
Talvez tenhas razão. Manda-me o Salvestro e dá ordem para que arranjem uma liteira e que preparem uma escolta: dez homens!
Em que é que estás a pensar?
Vou mandá-la conduzir a Pierrefort!
Em plena Lorena, portanto em pleno território inimigo? És louco?
Precisamente. O Temerário não irá procurá-la lá se aquele pequeno velhaco me denunciou. Pierrefort pertence-me, assim como nos pertencem as cidades que aquele imbecil do Renato II nos deixou ocupar.
A hora que se seguiu foi difícil para Fiora. Não que os projectos do seu amante lhe desagradassem particularmente porque estava pronta a tudo para dormir uma noite tranquila mas as coisas ficaram feias quando ele lhe disse que mandara embora os seus companheiros. O condottiere teve de fazer frente a uma ira italiana, que o deixou estupefacto por alguns instantes.
Quem te deu o direito de mandar embora os meus servidores? gritou ela. Só porque dormiste comigo, imaginas que podes fazer tudo o que te apetece, imaginas que podes destruir a minha vida? Esteban está comigo há muito tempo e tu mandaste-o embora como se ele fosse um criado grosseiro! Nunca te perdoarei e recuso-me a ficar aqui mais tempo!
Acalma-te, peço-te. Tu vais partir, acabo de to dizer...
Sem dúvida, mas não como eu quero! Se pensas que me fechas no teu castelo, estás muito enganado. Manda-me selar um cavalo e adeus!
És louca! Onde é que tu vais...
Agora que já não tenho guia? Vou surpreender-te: vou ter com o duque da Borgonha!
Ele manda-te enforcar!
Achas? Tu mandaste-me enforcar, tu, quando cheguei, uma perfeita desconhecida e até um pouco suspeita? Não. Meteste-me na tua cama e eu aceitei, porque pensava que eras um homem. Mas, estás para aí a tremer como um garoto só porque o teu pajem, se calhar, te denunciou. O Temerário, a mim, parece-me de outra envergadura... e talvez seja divertido tentar seduzi-lo.
Com uma raiva súbita, ele apertou-lhe o pescoço:
Sua putazinha! Estás farta de mim, não estás? A cama de um príncipe é mais interessante do que a minha?... Não penses que te deixo ir. Já te disse que tenciono ficar contigo!
Nesse caso... ficas... com o meu cadáver! disse ela, meio estrangulada.
Compreendendo que estava quase a matá-la, Campobasso largou-a, mas atirou-a por terra com um empurrão:
Tu vais fazer o que eu te digo! Levanta-te e veste-te... se não queres que os meus homens te vistam...
Ela levantou-se, claro, mas disse-lhe, a rir:
Olha, que rica ideia! Chama lá os teus homens! Uns arqueiros a fazerem de camareiras é capaz de ser engraçado...
O absurdo desafio acalmou-o, mas reavivou-lhe o ardor. Com um gesto brutal, atraiu-a a si, empurrou-a contra uma das colunas do leito e possuiu-a de pé, com tanta violência, que ela gritou de dor.
Não me provoques, Fiora! Nunca aceitarei perder-te, entendes? Quero poder possuir-te uma vez e outra, cada vez que me apetecer e, para isso, tenho de te esconder, afastar-te do perigo. Se o duque te mandasse matar, eu era capaz de o matar a ele... Eu amo-te, compreendes? Amo-te, amo-te, amo-te!...
Que vais fazer? perguntou ela um momento mais tarde, ao mesmo tempo que, com gestos acariciadores, ele a ajudava a vestir-se.
Depois de saíres de Thionville, vou a Soleuvre para ver o duque, antes que ele me mande chamar. Dir-lhe-ei que te amo loucamente e que quero fazer de ti minha mulher. Assim, ele não ousará culpar-te. Ele precisa das tropas que eu comando. Depois, mando buscar-te e casamo-nos...
Por que é que não o deixas, em vez de lhe desafiares a cólera? Parte comigo!
Ele hesitou, visivelmente tentado, porque o pensamento de ver afastar-se, mesmo por pouco tempo, aquela mulher adorável, dilacerava-o, mas, por fim, a razão retomou os seus direitos...
Não posso confessou ele. Tenho de pagar aos meus homens e o duque deve-me ouro...
Talvez outro te dê mais?...
Eu sei... e pode ser que isso aconteça, um dia. Mas, por agora, tenciono receber o que me é devido. O Temerário enviou à Lombardia o grande bastardo Antoine, seu meio-irmão e melhor capitão, para trazer mercenários. Entendo que os meus devem ser pagos antes dos recém-chegados...
Fiora não insistiu. Tivera uma ideia: deixar-se-ia levar para onde ele tinha decidido. De lá, arranjaria um meio de fugir e, se Campobasso lhe queria assim tanto, abandonaria tudo para a encontrar...
Uma hora mais tarde, deitada sobre as almofadas de uma liteira um pouco antiga, mas sólida, e cujas cortinas de couro se fechavam hermeticamente, Fiora deixava Thionville, da qual não vira praticamente nada, e atravessava o acampamento dos soldados que não tinham encontrado lugar na cidade. Salvestro, indiferente como de costume, cavalgava a seu lado, ao mesmo tempo que uma escolta de dez homens, dividida em dois grupos, precedia e seguia a atrelagem. Por precaução, os homens de armas levavam, em vez da túnica verde com a cruz branca de Santo André, que era a insígnia da Borgonha, a cota de armas com a dupla cruz da Lorena... Seguiram para sul em trote rápido. Era preciso percorrer, numa única jornada, as pequenas vinte léguas que separavam a cidade luxemburguesa do castelo de Campobasso na Lorena. O condottiere preferia chegar protegido pela escuridão da noite.
Construído no século anterior por Pierre de Bar, o castelo de Pierrefort, baptizado segundo o seu construtor, erguia as suas muralhas sobre um esporão dominando um vale encaixado, formando uma via naairal, entre o Barrois e o Moselle. Era um pentágono de mais ou menos vinte mil metros quadrados defendido por quatro torres representando cada uma um modelo da arquitectura militar da época: uma torre quadrada, uma torre redonda, uma torre em bico e, por fim, uma grande torre octogonal: o torreão. Fora essa a torre que a cólera do duque Renato II semidestruíra, mas o castelo pouco mais sofrera com o incêndio. Dando, para norte e para leste, para uma ravina abrupta, era cercado, por sul e oeste, por largos e profundos fossos unidos por uma ponte fixa, sobre a qual caía a enorme ponte levadiça. Uma primeira linha de defesa, feita de paliçadas e vigias de madeira que tinham ardido em parte, precedia os fossos. Era, ao mesmo tempo, uma obra de arte e uma poderosa fortaleza, onde Campobasso mantinha uma guarnição de vinte homens sob o comando de um dos seus filhos...
Mas Fiora não viu nenhum daqueles acessos, assim como não viu o caminho que seguiram, porque, sem se preocupar
1 Pjerrefort ainda existe, em parte, mas encerra uma exploração agrícola que não o restaura
com os solavancos da liteira, dormiu como uma santa a viagem toda e só abriu os olhos quando ouviu o barulho apocalíptico da ponte levadiça que baixava e da grande grade que subia. A tropa passou sob o arco quebrado da porta, penetrou no pátio imenso mal iluminado por alguns archotes e parou, por fim, diante da entrada de uma bela casa cujas janelas, elegantemente esculpidas, ostentavam, sob as empenas, as armas dos antigos senhores de Bar.
Um jovem, parecido com Campobasso, vestido de couro sob uma cota de malha brilhante, estava de pé na soleira.
Saudações, Salvestro, velho bandido! gritou ele alegremente. Livraste-te de apanhar uns bons tiros de besta com essas cotas de armas da Lorena. Foi boa ideia!
Os ares da Borgonha não são muito saudáveis. Foi uma questão de prudência...
E que bons ventos te trazem?
Ventos que te vão levar, messire Angelo. O teu pai quer que vás ter com ele e mandou-me substituir-te em Pierrefort.
A sério? Vou, por fim, deixar este ninho de mocho e voltar à guerra? Graças a Deus! Há quanto tempo esperava essa notícia!
Os dois homens abraçaram-se, esmurraram-se amigavelmente rindo e Angelo perguntou:
O que é que vem nessa liteira?
O tesouro do teu pai. A dama que vai ser, dentro de pouco tempo, a senhora deste lugar: a tua futura madrasta!
Abrindo as cortinas da liteira, o escudeiro ofereceu a mão a Fiora para a ajudar a descer. Ainda estremunhada, a jovem piscou os olhos à luz dos archotes seguros por dois criados.
Já chegámos? perguntou ela.
Sim, minha senhora. Este é messire Angelo, o filho mais velho de monsenhor Cola.
Mas já o jovem se inclinava com uma graça inesperada num homem vestido de aço e pegava na mão da jovem.
Ainda há um momento eu me julgava feliz por sair daqui. Mas eis que a vontade me passou, uma vez que vindes e eu me vou!
Obrigada pelo vosso acolhimento, messire! Não esperava encontrar um homem tão galante nesta fortaleza...
Nem eu disse Salvestro, brincalhão. Fizeste progressos na arte de falar às mulheres, miúdo. Quanto à guerra, não contes muito com ela! O duque Carlos, que está em Soleuvre, despachou, segundo parece, messire Hugonet, seu chanceler, para Vervins, para ali discutir a paz com os enviados do Rei de França.
Toda a alegria se apagou do rosto do jovem:
A paz? O Temerário quer a paz com o seu inimigo mortal? Não acredito! O francês tirou-lhe a Picardia e as suas tropas atacaram o norte do Franco Condado depois do fim das tréguas, em Maio.
Tem mais em que pensar e prefere, sem dúvida, manter Luís XI à distância por meio de uma paz coxa. Diz-se que, a pedido do duque Renato da Lorena, os suíços e os Alsacianos também entraram no Franco Condado, que devastam. No fim de contas, talvez a tenhas, a tua guerra! terminou ele com um sorriso malicioso.
Tudo isso é muito interessante, meus senhores disse Fiora com um sorriso que os chamou à ordem mas eu gostava de entrar nesta casa... e jantar, se possível?
Perdoai-me disse Angelo tendes mil vezes razão. Mas chegais em boa hora, porque andei à caça o dia todo e ia mesmo agora para a mesa.
Dais-vos ao luxo de ir à caça quando esta fortaleza borgonhesa em terras da Lorena corre perigo permanente?
Nós não estamos propriamente na Lorena, mas na fronteira entre o ducado e a França. Como essa fronteira não está devidamente delimitada, vivo mais ou menos tranquilamente, mas vós ainda o estareis mais, se estamos em paz com Luís XI... E o ducado também não se mexe. Renato II foi ter com o Rei. Mas, entremos!
Ao penetrar na casa, Fiora descobriu que se podia ser homem de guerra e homem de gosto. Tapetes e grandes tapeçarias bordadas enchiam as paredes da sala, onde não faltavam móveis, almofadas e belos objectos. A jovem cumprimentou o seu jovem anfitrião, acrescentando que Thionville, apesar de ser um antigo castelo ducal, não tinha nada de comparável.
O meu pai só lá está de passagem. Acomoda-se com simplicidade. Aqui é a casa dele, como aliás em Ainvelle-aux-Jars, perto de Neu-chateau, onde vai raramente, contentando-se em manter lá o meu irmão e um bailio encarregado de colectar os impostos, mas onde o castelo precisa de uns melhoramentos. Encarregar-vos-eis disso, sem dúvida, já que ides tornar-vos sua esposa! Com o que me regozijo sinceramente...
Fiora fez as honras ao jantar, composto por peixe e caça e declarou-se, em seguida, satisfeita com o quarto que lhe tinham preparado, uma divisão agradável com cortinas de grandes ramagens e uma grande tapeçaria florida que embelezava a parede em frente das janelas... Estas, infelizmente, davam para o único pátio, assim como todas as outras janelas da casa.
A jovem fechou-se à chave, temendo que o jovem, que a contemplara com um prazer evidente, quisesse verificar por si mesmo os encantos que o seu pai queria para si. Mas ninguém bateu à porta e ela sentiu um grande alívio.
Entregue a si mesma pela primeira vez desde há dias e sobretudo desde há noites! Fiora empregou uma grande parte desta a reflectir. Tendo dormido durante toda a jornada, não tinha sono e dedicou-se, de espírito claro, a analisar aquela situação inesperada. Ao chegar a Thionville, esperara agradar a Campobasso, sem dúvida, mas de maneira tranquila, prendendo-o pouco a pouco e levando-o, suavemente, a fazer o que Luís XI queria que ele fizesse: abandonar a casa do Temerário e regressar a França com ela, levando consigo, claro, os soldados que lhe estavam mais ligados. Tudo com a ajuda de uma honesta quantidade de ouro...
O que devia e teria acontecido, se dois factores não se tivessem apresentado: primeiro, a presença de Galeotto, dos seus homens de armas e de uma parte do exército borgonhês na cidadela luxemburguesa: teriam impedido Campobasso de partir por todos os meios. Em seguida, a paixão imensa que ela acendera no coração e nos sentidos do condottiere. Violenta, exclusiva e até perigosa, tornara-se contrária ao que Fiora esperara: em vez de a seguir, Campobasso só pensara numa coisa: guardar para si aquela que amava, escondê-la o tempo que fosse preciso e casar, depois, com ela: tudo isso sem abandonar o clã borgonhês. Aliás, se a paz com a França estava feita, a sua traição teria pouco valor, privando-o de grandes vantagens, oferecidas, sem dúvida, por um príncipe lançado à conquista de um reino. E agora, Fiora encontrava-se no coração de um país desconhecido, fechada num castelo sem qualquer possibilidade de ajuda para fugir. Privada da astúcia de Esteban e da força prodigiosa de Mortimer, assim como da coragem de ambos, estava praticamente desarmada, não vendo qualquer hipótese na possibilidade de seduzir o velho Salvestro para poder escapar.
Onde estariam, àquela hora, o castelhano e o escocês? Campobasso mandara conduzi-los, pelo que dissera, a um determinado lugar de Thionville. Só lhes tinham restituído as armas nesse momento e os que os acompanhavam tinham-nos visto afastarem-se na direcção de França. Já lá teriam Chegado e ter-se-iam as coisas passado como lhe tinham contado? Ter-lhes-iam ”na verdade” restituído as armas, ou tê-los-iam degolado pura e simplesmente? Fiora conhecia suficientemente o seu amante para saber que tudo era possível vindo do seu génio tortuoso...
Se nada daquilo tivesse acontecido o que ela esperava de todo o seu coração Douglas Mortimer devia ir a todo o galope para junto do seu Rei para lhe dar conta da missão. Mas, e Esteban? Teria partido com ele na esperança de regressar com socorro? Fiora duvidava. O castelhano era-lhe muito chegado. Além disso, por nada deste mundo ele infringiria uma ordem de Demétrios e este fora muito claro: velar por Fiora o tempo todo e em todas as circunstâncias. Talvez não estivesse tão longe como imaginava?... Em todo o caso, uma coisa era certa: era preciso sair dali, custasse o que custasse. Talvez, então, ao saber que ela lhe tinha escapado, Campobasso se lançasse na sua perseguição, privando assim o Temerário de um dos seus melhores capitães? De qualquer maneira, não queria continuar a ser o brinquedo daquele homem e reviver os dias e noites que não recordava sem vergonha: conduzira-se com uma cortesã, sem dúvida, tendo-se, aliás, preparado para isso, mas o pior era que tivera prazer. Descobrira que podia gostar dos jogos do amor sem neles deixar o sentimento, como um rapaz, e que qualquer desconhecido, se fosse hábil, poderia fazer vibrar os seus sentidos, fazendo-a esquecer por uns instantes que era outra coisa para além de um corpo ávido de gozo.
E foi a pensar na sua próxima evasão que acabou por adormecer tão profundamente que não ouviu, de madrugada, o jovem Angelo partir com a escolta que a trouxera.
Depois de ele abandonar o castelo, Salvestro mandou baixar a grade e levantar a ponte levadiça. Em seguida, deitando um rápido olhar para a janela por trás da qual dormia a mulher que enfeitiçara o seu senhor, esboçou um sorriso, encolheu os ombros e foi inspeccionar os aquartelamentos e as armas dos homens encarregados de proteger a fortaleza. Fiora ainda não o sabia, mas estava prisioneira de um velho soldado que não gostava dela e que faria tudo para que ela compreendesse bem o papel que lhe tinham atribuído: o de um belo objecto inteiramente devotado ao repouso do guerreiro e aos seus prazeres. Nada mais!
Rapidamente se apercebeu da sorte que lhe estava destinada. Na manhã seguinte, constatando que não chovia e que o céu estava quase limpo, pediu um cavalo para dar uma volta pelas redondezas. Responderam-lhe que era impossível, que os passeios a cavalo ou a pé não eram compatíveis com a defesa de uma praça forte fronteiriça. E apontaram-lhe uma escada que, perto da porta, ia dar ao caminho de ronda. Mas quando começou a subir os degraus, a jovem ouviu os passos ferrados dos dois soldados encarregados de a acompanhar. E foi escoltada pela sua presença vigilante, e em passo lento, que percorreu o caminho de ronda do castelo, mal olhando para a paisagem circundante, que não era desprovida de encanto e invadida por uma sensação desagradável.
Pior ainda foi quando, ao descer, se apercebeu de dois pedreiros colocando grades na janela do seu quarto sob a vigilância atenta de Salvestro. Levada por uma súbita cólera, a jovem correu para ele:
Quem vos autorizou a fazer isso? Ignorais que o vosso senhor deseja fazer de mim sua esposa?
Não receeis: ninguém vos faltará ao respeito neste castelo, mas, vede lá, eu não estou muito certo de que vós queirais vir a ser esposa dele e, como ele vos ama, quero ter a certeza de que estareis pronta a recebê-lo quando ele o desejar.
Que tolice! Eu não fui ter com ele de livre vontade?
Sem dúvida... mas, com que objectivo? Porque sonháveis com ele há muito tempo? Não acredito nisso: vós sois jovem e em breve ele será velho. Não sabeis que sou prima dele?
É possível... mas isso não é certo: Quanto a mim, recebi a missão de vos guardar e guardar-vos-ei, se for preciso contra vós mesma. E podeis crer que me custa! Sem vós, estaria a seu lado para a guerra que se está a preparar.
Qual guerra? As partes estão em vias de assinar a paz...
E eu digo-vos que o duque vai partir de novo para a guerra.
No Inverno? Parece-me pouco provável! Isso tem pouca importância para os verdadeiros soldados. Quereis entrar, agora?
Queixar-me-ei disto!
Mas o meu senhor, esse, não se queixará: o que ele quer é ter-vos na sua cama e eu velarei para que não saiais, justamente, dela!
Furiosa, Fiora entrou em casa, dando-se ao prazer irrisório de bater a porta atrás de si.
E os dias e as noites passaram-se, tristes, cinzentos, todos parecidos e sufocantes de aborrecimento. O tempo recuperara as suas cores desoladoras e o Verão terminara com grandes chuvadas e ventos desmesurados, próprios do equinócio. Pierrefort, cercada de nuvens e turbilhões, parecia um barco no meio de uma tempestade e Fiora gostava de subir às muralhas para sentir o prazer violento da borrasca. Sonhava que era levada por uma, podendo, como uma ave, voar sobre as ameias para mergulhar nos campos, como mergulharia no mar... Mas era preciso, sempre, voltar a descer... e, dentro de casa, sufocava.
Passava longas horas na sala, ao canto da imensa chaminé onde o fogo ardia durante todo o dia, sem fazer nada, o olhar perdido no jogo caprichoso das chamas. Não tinha nada com que se ocupar, porque não havia um único livro no castelo nem nada que lhe permitisse bordar, ou ocupar as mãos. À noite, Salvestro fechava-a à chave no quarto e dormia atravessado na soleira para mais segurança ainda: Fiora podia ouvi-lo ressonar como um peão alemão. Entretanto, como não tinham nada que dizer um ao outro, só trocavam algumas palavras. A única peripécia digna de nota era representada pelas notícias que, duas vezes por semana, Salvestro pedia que lhe trouxessem de Toul, ou da abadia de Domèvre, quando iam buscar provisões.
Como previra o velho escudeiro, o Temerário erguera o seu estandarte violeta e negro e reabrira as portas da guerra. Depois de ter enviado no dia 15 de Setembro, ao jovem duque, um manifesto que não passava de mais uma das suas belicosas declarações, assumira o comando do seu exército e começara a invadir a Lorena. Era precedido por um primeiro corpo de tropas às ordens do marechal do Luxemburgo e de Campobasso, que tinham cercado Confians-en-Jarnisy. Renato II partira para França para tentar obter, sem muita convicção, a ajuda de Luís XI, porque o Rei acabava de assinar a paz de Soleuvre com a Borgonha. O eco dos combates fazia vibrar o velho Salvestro como um cavalo de batalha que ouve um clarim, tornando-o ainda mais desagradável, se possível.
Uma noite, Fiora foi acordada pelo barulho da grade e da ponte levadiça. Ouviu-se o galope de um cavalo e gritos. A jovem saiu da cama e vestiu a sua camisa para ir ver o que se passava, mas mal teve tempo de fazer a si própria qualquer pergunta. Já Campobasso, de elmo sob o braço, a armadura a pingar e olhar a brilhar, entrara. Ambos se olharam por instantes em silêncio e em seguida, deixando cair o capacete e arrancando as manoplas, ele caminhou na direcção dela...
Tinha de vir! disse ele. Conflans pode passar sem mim vinte e quatro horas...
Queres dizer... que abandonaste o teu posto para vir aqui?
Sim... em risco de me desonrar, mas já não podia mais... Preciso de ti... ainda mais do que o ar que respiro. Ajuda-me a tirar este ferro todo! Tenho, mais ou menos, duas horas.
Em vez de obedecer, ela foi buscar um xaile para cobrir o seu traje demasiado ligeiro, cruzou os braços sobre o peito e dirigiu-se para a janela:
Não! É muito fácil aparecer assim, como uma tempestade, declarando que precisas de mim! Muito bem, vê tu, eu não preciso nada de ti, nem te desejo e, se me quiseres, terás de empregar a força!
Desorientado pela sua reacção, ele só conseguiu balbuciar:
Mas... Fiora... nós amamo-nos! Já esqueceste Thionville, o nosso quarto... e como nos amamos?
Eu não esqueci nada. Tu, pelo contrário, é que pareces ter esquecido o que é devido a uma mulher da minha condição. Que sou eu aqui? Uma rapariga submetida ao teu prazer? Olha para aquelas barras na minha janela! Sabias que não tenho o direito de apanhar ar senão no caminho da ronda e escoltada por dois guardas? Sabias que o teu escudeiro dorme na soleira da minha porta?
Não fiques zangada, suplico-te! Fui eu que dei essas ordens a Salvestro. Era preciso... para tua segurança!
O que é que a minha segurança tem a ver com isto?
Tens de compreender! Para além de este lugar não ser absolutamente seguro, eu não te podia deixar sozinha no meio de uma guarnição sem tomar algumas precauções. Sei muito bem que nenhum homem está ao abrigo da tua beleza. Os daqui são como os outros e, após algumas bebidas, uma janela pode muito bem ser escalada... Salvestro!
O velho soldado apareceu imediatamente. Devia estar encostado à porta, como habitualmente...
Ajuda-me a tirar isto tudo! ordenou-lhe Campobasso.
Não serve de nada troçou Fiora porque voltarás a partir como chegaste. Nunca aceitarei ser tratada como uma prostituta!
Eu trato-te como minha mulher, é tudo.
A sério? Dizem que a mataste! Vais fazê-lo outra vez?
Sois bem indulgente, monsenhor, por vos permitirdes discutir com esta criatura grunhiu Salvestro, que acabava de lhe retirar a armadura. Eu mantenho-a aqui e vós podereis servir-vos dela quando quiserdes...
Mas Campobasso, com um empurrão, atirou-o contra a parede:
Vai-me buscar vinho! E depois fecha essa porta à chave e vem-me chamar dentro de duas horas. E preciso de um cavalo fresco!
Enquanto isso, o espírito de Fiora trabalhava. Duas horas não era muito. E, se calhar, não era o suficiente... Que aconteceria se conseguisse impedi-lo de partir? Seria desonrado, claro, mas ela não queria saber... E valeria a pena...
Quando Salvestro trouxe o vinho e a chave se ouviu na fechadura, ela desatou a rir. Ele estava ali, a alguns passos de distância, com uma expressão preocupada, remoendo visivelmente a acusação que ela lhe atirara à cara:
Pára de rir! Quem te disse...
Que tu mataste a tua mulher? Mas, meu caro, isso faz parte da tua lenda. Mas, não te preocupes, não estou preocupada!
O que é que te preocupa, então?
Tu, talvez! Eu não gosto de ser tratada como uma escrava, mas gostaria de ser, realmente, tua amante... na verdadeira acepção da palavra.
Nesse caso, põe-me à prova! Ordena! E obedecerei... Mas, suplico-te, não te recuses!
Seja! Consinto em pôr-te à prova. Ordeno-te que fiques onde estás e que não te mexas sob qualquer pretexto, antes de to dizer.
Que pretendes fazer?
Julgar a tua obediência. Não te mexas, senão... Lentamente, muito lentamente, sem desviar o olhar, ela tirou o xaile dos ombros, desatou a fita dos cabelos, deixou-a cair por terra e espreguiçou-se voluptuosamente, erguendo a sua massa lustrosa. Campobasso estava violeta:
Fiora! implorou ele.
Não te mexas!
Sem se apressar, bela e nua, ela foi até à arca onde Salvestro tinha pousado o vinho, serviu-se de uma taça e bebeu-a com pequenos goles, sorrindo sempre para o homem que torturava. Ele caiu de joelhos e gritou o seu nome:
Fiora! O tempo passa! Pára com esse jogo cruel!
É verdade: tu tens sede! Espera!... Eu dou-te de beber. Desta vez ela virou-se para reencher a taça de estanho, mas, ao mesmo tempo, ergueu da arca a bolsa onde tinha o seu perfume e um pequeno frasco, presente de Demétrios, bem entendido, que continha um soporífero, do qual deitou duas gotas na taça. Os seus grandes cabelos formavam um abrigo suficiente para que Campobasso não visse o que estava a fazer. Por fim, erguendo a taça nas duas mãos, a jovem aproximou-se dele e estendeu-lhe o vinho.
Bebe! disse ela docemente. Entretanto, eu dispo-te. Depois... vamos para a cama!
Ele bebeu a bebida de um trago e depois, atirando com a taça, tomou a jovem nos braços e atirou-se para cima da cama, que gemeu. Mas o efeito do soporífero não foi suficientemente rápido para que Fiora evitasse o assalto furioso que o seu amante lhe infligiu.
Quando ele adormeceu, ela deslizou do leito, foi lavar a taça com um pouco de vinho que atirou pela janela, voltou a encher o recipiente, colocou-o na mesa-de-cabeceira e deitou o resto do vinho fora. A chuva caía com força e faria desaparecer os vestígios. Em seguida deitou-se, bebeu um pouco de vinho, entornou o resto nos lençóis e fez de conta que estava a dormir.
Naturalmente, quando Salvestro entrou para acordar o seu senhor para o seu dever, foi impossível acordá-lo:
Ele bebeu como uma esponja suspirou Fiora. Está completamente embriagado!
Sobretudo, está embriagado de fadiga. E vós tendes alguma coisa a ver com isso... Não importa! Tem de partir, senão está perdido. Ajudai-me a vesti-lo!
Desviando o olhar para não ver Fiora levantar-se, ele já estava a enfiar os calções no corpo inerte que emitia grunhidos de protesto entre dois roncos. Os dois conseguiram vesti-lo e Salvestro foi chamar o sargento que comandava a pequena guarnição para que o ajudasse a meter Campobasso na sua armadura. Escondendo a sua decepção, Fiora observava-os. Descobria que o pior dos estratagemas femininos era impotente contra a devoção cega de um velho servidor.
Vestido e armado, o condottiere foi içado e atado sobre um cavalo que Salvestro, que se equipara num abrir e fechar de olhos, segurava pelas rédeas:
Eu acompanho-o até ele acordar. Se for preciso ir até Conflans, vou até Conflans disse ele ao sargento.
E, inclinando-se sobre a sela, disse-lhe algumas palavras ao ouvido, abandonando em seguida o castelo.
Com um encolher de ombros resignado, Fiora regressou ao leito manchado de vinho...
Salvestro regressou ainda de dia. Campobasso retomara a consciência de madrugada e regressara ao acampamento a toda a brida sem compreender nada do que lhe tinha acontecido.
Entretanto, a sua escapadela iria ter, para o seu orgulho, terríveis consequências. Nessa mesma noite chegara socorro a Gratien d’Aguerre, o valente governador de Conflans, na pessoa de Briey, que vinha em sua ajuda com uma parte das suas tropas. Campobasso conseguiu, mesmo assim, chegar ao acampamento, mas para ver chegar pela sua retaguarda o duque Renato II em pessoa, regressado de França com quatrocentas lanças sob o comando de Georges de La Temoille, que lançou contra ele aquela nova força, à qual se juntou um corpo de cavaleiros e archeiros lorenos. Compreendendo que ia deixar ali a vida, o condottiere apressou-se a levantar o cerco... e experimentou uma das mais terríveis cóleras do duque da Borgonha. Acusado de traidor e incapaz, Campobasso, com a raiva no coração, teve que se curvar à tempestade, jurando que se desforraria.
Quando a notícia chegou a Pierrefort, Salvestro deitou lume pelos olhos e Fiora ficou, por momentos, em perigo:
Talvez ele me mate, mas, se recomeçar esta loucura convosco, juro-vos que vos estrangularei com as minhas próprias mãos! berrou ele pondo-lhe debaixo dos olhos duas possantes tenazes felpudas capazes de quebrar o pescoço de um urso, mas ela olhou para ele friamente:
Far-me-eis um favor disse ela. Pensais que gosto deste género de vida?
E, encolhendo os ombros, a jovem girou nos calcanhares e dirigiu-se para a capela anexa à casa. Os construtores do castelo deviam ser piedosos, porque, para além da capela, tinham construído um oratório entre as cozinhas e o corpo da guarda para uso dos servidores e dos soldados.
Não era a primeira vez que Fiora entrava no pequeno santuário mal iluminado, pesadamente ogival, que ninguém cuidava. Um altar nu, uma cruz de pedra, nas paredes alguns frescos
1 O desenho das fronteiras do Luxemburgo, Lorena e França era, então, extremamente tortuoso, com bolsas e reentrâncias que tornavam muito difícil a sua compreensão mais ou menos dois mil e quinhentos homens
degradados pela humidade e um velho banco comido pelo caruncho... era tudo o que estava à vista. No entanto, a jovem gostava de ir ali por causa do silêncio. E ficou longas horas sentada no velho banco, sem rezar perdera o hábito e nem sequer tentava recuperá-lo as mãos unidas em redor dos joelhos, procurando desenredar a meada da sua vida naufragada.
O fio a que, obstinadamente, se tentara agarrar durante tantos dias, era o amor de Philippe, mas até isso já não tinha qualquer sentido, já que ele se tinha casado, ou casado de novo. Já não tinha o direito de pensar nele, mas, apesar de tudo, continuava no fundo do seu coração, como a ponta de uma flecha que nenhum cirurgião conseguiria arrancar sem causar a morte do paciente. E Deus sabia que, por vezes, sofria! A esperança que trouxera consigo ao deixar Florença apagara-se sem conseguir curar a ferida invisível que, agora, era envenenada pela recordação de Campobasso e das alegrias carnais que dele recebera. Que faria quando o Temerário tivesse recebido o seu castigo? Iria para um convento? De maneira nenhuma! A recordação de Santa Lúcia reforçava a repulsa que sempre tivera pela vida monástica. Juntar-se a Demétrios e continuar com ele a sua vida errante em busca da sabedoria? Aquilo não a tentava e, aliás, Demétrios não precisava dela. Portanto... morrer seria, talvez, a melhor solução, mas na condição de essa morte acontecer sob o céu de Florença, para que as suas cinzas pudessem repousar na mesma terra que cobria o corpo do único ser que a amara verdadeiramente sem nunca pedir nada em troca: Francesco Beltrami... o seu pai. Quanto a Campobasso, nunca mais a tocaria, nem que, para o evitar, tivesse que se matar.
Transformou aquela decisão em juramento quando se soube o que acontecera em Briey, ao mesmo tempo que o duque Carlos, à cabeça do seu grande exército, descia para sul, contornando Nancy para atacar Épinal. Campobasso, encarregado de submeter a cidade fronteiriça, atacara-a com a raiva e o furor nascidos da sua humilhação. Briey só tinha, como guarnição, quatrocentos alemães, os seus habitantes e as tropas que ali tinha deixado Renato II antes de ir em busca de outros soldados, porque, tendo consciência da fraqueza do seu exército, repatriara-o pelas cidades principais antes de se afastar. A artilharia também não era famosa: três ou quatro peças. O condottiere, com os seus seis mil homens, tomou-a sem muita dificuldade, mas lembrou-se da ajuda que Gerard d’Avilliers, o governador, levara a Conflans. Uma vez dentro da cidade que se defendera corajosamente e que os seus soldados pilharam, mandou pendurar nas árvores todos os soldados da guarnição sob os olhares dos seus chefes e, sobretudo, de Gerard d’Avilliers, cujo braço tinha sido decepado por uma bala de canhão. O horror submergiu a Lorena nesse mês de Outubro, ao mesmo tempo que o Temerário, que contornara a capital por Custines e Neuveville, arrasava o sul do ducado que queria conquistar antes de atacar Nancy. Toda a Lorena erguia os braços ao céu, ao mesmo tempo que o povo tentava escapar à ferocidade dos seus vencedores.
Do alto das muralhas de Pierrefort, Fiora podia ver filas de camponeses miseráveis, sem tecto nem comida, arrastando consigo crianças, velhos e feridos, procurando um abrigo contra aquela chuva que não cessava e que engrossava rios e ribeiros. Alguns aproximavam-se do castelo, suplicando que lhes abrissem a porta e os socorressem, mas Salvestro era impiedoso e repelia-os à pedrada e a tiros de flecha, sem se preocupar com a cólera de Fiora.
Que espécie de mãe te deu à luz, miserável? gritou-lhe ela em pleno rosto diante dos seus arqueiros. Nem os lobos matam se não tiverem fome. Tu e o teu ignóbil senhor, matais por prazer, porque vos achais ao abrigo de qualquer castigo...
O meu senhor ignóbil? Não o achas tão terrível quando te beija, minha puta florentina. Eu sei qual é a canção que tu cantas quando ele te cobre. E ele há-de voltar!
Nunca, entendes? Nunca mais me tocará. Pela minha alma to juro!
A tua alma? troçou o velho. Não se perde grande coisa! Não passas de uma andarilha, de uma espia, pronta a fazer qualquer coisa. Sai-me da frente antes que eu perca a paciência.
Então, com toda a força, ela esbofeteou-o e escarrou-lhe no rosto, antes de fugir a correr, perseguida pela voz rouca de furor de Salvestro:
Ele há-de voltar! Há-de voltar em breve, aquele que é teu e meu senhor, e saberei que lhe dizer!
Encolhendo os ombros, a jovem foi, a correr, fechar-se no seu quarto, mas passou primeiro pela cozinha de onde tirou uma faca, decidida a servir-se dela contra fosse quem fosse que a atacasse e, se lhe faltasse a esperança, contra si mesma.
Mas Campobasso não regressou... Quem apareceu, por uma manhã carregada de bruma dos primeiros dias de Novembro, foi, sob o estandarte de Borgonha, uma tropa de cavaleiros escoltando um cavaleiro já idoso, de porte altivo, diante do qual as portas se abriram quando gritou:
Da parte de monsenhor Carlos, príncipe e duque de Borgonha, conde de Charolais, eu, Olivier de La Marche, cavaleiro da honorável Ordem do Tosão de Ouro e capitão das guardas do dito senhor duque, exijo que nos permitais o acesso a este castelo!
Reunindo à pressa uma guarda de honra e vestindo a sua melhor túnica, Salvestro mandou baixar a ponte e erguer a grade. De imediato, os cavaleiros entraram por ela e avançaram até meio do pátio.
Desejo falar disse o chefe àquele que comanda esta praça.
Sou eu, monsenhor. Salvestro da Canale, escudeiro de monsenhor o conde de Campobasso, às vossas ordens.
Muito bem. Entregai-me uma mulher, uma tal Fiora Beltrami. Ela está aqui?
Está... mas eu recebi ordens de velar por ela e de a manter junto de mim até o meu senhor me dar ordem para a libertar.
O capitão inclinou-se, agarrou Salvestro pela gola da sua túnica sem esforço aparente e ergueu-o do solo:
Eu obedeço ao duque de Borgonha e ele ordenou-me que viesse buscar esta mulher. Entendeste?
Entendeu muito bem cortou a voz fria de Fiora, que avançou alguns passos para fora da casa. Eu sou Fiora Beltrami. Que me quereis?
Sem procurar esconder a surpresa perante aquela jovem delicada, de porte altivo e toda vestida de negro que o olhava tranquilamente com os maiores olhos que jamais vira, Olivier de La Marche baixou involuntariamente o tom de voz para declarar:
Tenho ordem de vos prender e conduzir perante o meu senhor.
Prender-me? Cometi algum crime?
Ignoro-o. Estais pronta a seguir-me de boa vontade?
Até com prazer! disse ela com um pequeno sorriso, dirigido depois a Salvestro, que lutava visivelmente contra a cólera. Posso levar o que me pertence? Aliás, é pouca coisa.
Sem dúvida. Um dos meus homens ajuda-vos. Entretanto, espero que me tragam um cavalo devidamente selado.
Um momento mais tarde, Fiora regressava envolta no seu manto negro e seguida por um soldado que lhe transportava a bagagem ligeira. Um cavalo esperava-a. A jovem dirigiu-se para ele, mas o capitão pôs pé em terra e interpôs-se. Tinha na mão uma corda:
Devo atar-vos. Se me prometerdes não tentar escapar, atar-vos-ei as mãos à frente...
Ah!... A esse ponto?
Sim.
Bem... De qualquer maneira suspirou ela disse-vos que me sentia feliz por deixar esta prisão.
Mesmo se outra vos espera?
Seja o que for, estou certa que me agradará mais.
Com os punhos ligados, ajudaram-na a montar o cavalo e o oficial envolveu-a, até, no manto, puxando-lhe o capuz para a cabeça para a abrigar da chuva. Em seguida, voltando a subir para a sua montada, pegou nas rédeas do cavalo da jovem e colocou-as sobre a sua manopla.
Tendes o direito de me dizer para onde vou? perguntou Fiora enquanto, ao lado de La Marche, transpunha a ponte levadiça de Pierrefort.
Não é segredo nenhum. Ides para Nancy, para o acampamento de monsenhor, o duque. Chegaremos esta noite.
Muito bem.
Abrigada pelo capuz, a jovem permitiu a si própria um sorriso. Tudo era preferível a permanecer cativa de Campobasso, mesmo que isso significasse o falhanço da sua missão. Ia, por fim, aproximar-se daquele príncipe fabuloso, de quem os amigos só falavam bem e os inimigos mal, aquele Carlos o corajoso, ou o Temerário, a quem Philippe de Selongey estava ligado pelo juramento de cavaleiro do Tosão de Ouro e pela lei feudal... aquele homem, enfim, que Demétrios e ela mesma, tinham jurado matar. E eis que, agora, era sua prisioneira e talvez fosse ele a matá-la. Mas, no fundo, não tinha importância... na condição, porém, de o destino não a colocar perante Philippe... Era preciso que a ferida secreta não recomeçasse a sangrar, se queria defrontar a morte com rosto sereno.
Do alto da aldeia de Laxou Fiora viu estender-se a seus pés duas cidades. Uma, feita de tendas de cores vivas encimadas por flâmulas de tons diversos, dispostas em volta de uma construção meio-arruinada entre delgadas torres pontiagudas; a outra, coroada por diversos fumos, erguia as suas muralhas e torres, defendidas por fossos e elevações de terreno. Alinhados diante da primeira e sobre as muralhas da segunda, os canhões disparavam e o seu som terrível era acompanhado por gritos. Homens agitavam-se de um lado e de outro. A despeito do tempo cinzento, as armas e as couraças brilhavam. Homens caíam sobre os parapeitos das trincheiras cavadas em frente da cidade de tela e sobre os baluartes da cidade de pedra, na qual se via arder, com grandes chamas vermelhas e nuvens de fumo negro, o que devia ser uma casa...
Nancy não era uma grande cidade. Cinco a seis mil habitantes viviam naquele quadrilátero com cerca de seiscentos metros quadrados por quatrocentos, mas era, de qualquer modo, a capital do ducado da Lorena e uma cidade nobre, para a defesa da qual os seus príncipes tinham edificado altos muros, nos quais grandes palanques de madeira protegiam as seteiras. Poucas torres, porém: para além das duas, gémeas, que defendiam a porta
1 Esses baluartes apresentavam-se como grandes massas de terra repousando sobre uma estacaria de carvalho, dispostos em xadrez Eram destinados a reforçar os postos de vigia
da Craffe a do norte e a porta Saint-Nicolas a do sul e as duas poternas, a chamada Sarate e a poterna Saint-Jean, apenas quatro torres: a do Vannier, virada a nordeste, a de Sar, virada a noroeste; a du Terreau, virada a ocidente e, enfim, a grande torre, verdadeiro torreão que vigiava, a sudeste, a estrada para a comendadoria Saint-Jean. Além, claro, das que defendiam o palácio ducal virado a leste, de frente para o Meurthe.
Cinquenta anos antes, o duque Carlos II, consciente dos progressos da artilharia e do facto de que as velhas muralhas direitas e os fossos já não constituíam defesa suficiente para a sua cidade, ordenara, para afastar o inimigo da base das muralhas e proteger as portas, permitindo ao mesmo tempo as saídas, a construção daqueles ”bellewarts” ou baluartes. Tinham-se reforçado as guaritas e, um pouco mais tarde, o duque Jean II erigira as torres gémeas com guaritas de ardósia, que defendiam a porta da Craffe. Tal como estava, a capital da Lorena resistia ferozmente aos assaltos do exército borgonhês... Um exército que, entretanto e graças aos contingentes luxemburgueses, do condado, da Sabóia e ingleses, regressara poderoso e temível e que, de Metz pelo norte, ou do Franco Condado, pelo sul, podia receber ajuda e provisões, o que não era o caso da cidadela cercada: no princípio do cerco Campobasso capturara os rebanhos que passavam no exterior das muralhas. Quanto tempo, naquelas condições e com o Outono frio e chuvoso, conseguiria resistir Nancy?
Aparentemente nada preocupado com a canhonada, Olivier de La Marche dirigiu a sua prisioneira para o imenso acampamento e atravessou as diversas secções onde tinham lugar diferentes ofícios: armeiros, carpinteiros de carros, correeiros, carpinteiros, cuteleiros, padeiros, talhantes e até um boticário. Um exército era, então, um grande burgo, onde não faltavam as tabernas e as prostitutas, que estavam um pouco à parte, nas margens do lago Saint-Jean. O duque Carlos reduzira o número a trinta por companhia, mas continuava a ser um grande número.
1 A única que ainda existe.
O bispo de Metz era aliado do Temerário.
Com o cair da noite e esta vinha rapidamente com aquele tempo desagradável de Novembro os canhões deixaram de disparar. Os assaltantes regressaram ao seu acampamento trazendo os feridos, pelo menos aqueles que não estavam para lá de qualquer socorro humano. Na cidadela cercada, os sinos de Saint-Epvre e de Saint-George tocaram as Ave-Marias e, tanto de um lado, como de outro, as cabeças descobriram-se, ao mesmo tempo que todos se imobilizavam para uma curta oração. A escolta de Fiora fez o mesmo... Por fim, passadas as antigas fortificações da velha comendadoria dos cavaleiros de Saint-Jean de Jerusalém, que se encontravam a cerca de duzentos metros das muralhas, viram, guardado militarmente, um grupo de tendas faustosas em redor da maior, um imenso trevo púrpura, cuja ponta central era encimada por uma cúpula dourada. Uma grande bandeira violeta, negra e prateada estava espetada no chão junto dela e um ajuntamento de escudeiros, criados e pajens, vestidos com as cores da Borgonha, agitava-se em redor. As outras tendas tinham as cores do duque de Clève, do príncipe de Tarente, dos diversos embaixadores e cavaleiros do Tosão de Ouro, mas a que estava mais próxima da tenda ducal era um pouco maior do que as outras, pintada de roxo, encimada por uma cruz dourada e abrigava o núncio do Papa, Alessandro Nanni, bispo de Forli.
Todas aquelas habitações provisórias, das quais algumas poderiam rivalizar com algumas casas pela sua solidez e elegância, estavam, àquela hora, cheias de actividade, ao mesmo tempo que nas construções ainda de pé da comendadoria os cozinheiros ateavam os fogos por baixo de assados e guisados cujos perfumes enchiam o ar. Aquilo originava uma alegre vozearia, graças à qual se podia esquecer um pouco que se estava em guerra...
A aparição do capitão da guarda, levando pela brida uma bela mulher vestida de negro e mãos atadas, suscitou mais do que um simples interesse, mas, aparentemente surdo e insensível aos apelos e perguntas dos seus companheiros de armas, Olivier de La Marche prosseguiu o seu caminho sem sequer virar a cabeça. Fiora, essa, também não olhava para nada nem para ninguém. Muito direita no seu cavalo, seguia com a atitude altaneira de uma rainha cativa e não viu, a alguns passos de distância, dois cavaleiros, dos quais um ajudava o outro a desembaraçar-se de um elmo amolgado. Por um instante, o estupor imobilizou o rosto do primeiro, que, com um golpe seco, arrancou o capacete demasiado depressa:
Devagarinho, se fazes favor! protestou Philippe de Selongey. Quase me arrancaste o nariz!
Olha!... e diz-me se, por acaso, não estou com visões? Com o braço estendido, Mathieu de Prame designou os dois cavaleiros que se dirigiam para a tenda do duque. Bruscamente, Philippe corou.
Não é possível! Não pode ser ela! murmurou ele. Se ainda está viva, que faz aqui? E prisioneira?
Não sei. Mas, achas que será possível uma tal semelhança? Diria que aquela beleza única...
Temos de saber!
Philippe lançou-se a correr, mas já La Marche e a sua cativa tinham posto pé em terra diante da tenda ducal guardada por homens armados e entravam. As lanças cruzaram-se silenciosamente diante de Selongey quando este, por sua vez, quis entrar.
Quero entrar! protestou ele. Tenho de ver monsenhor o duque imediatamente!
Impossível! Messire Olivier acaba de dar ordem para não deixar passar ninguém.
Está bem, mas aquela mulher que acaba de entrar com ele, quem é?
Não sei...
Furioso, Selongey tirou a sua manopla e atirou-a por terra. Prame, que se lhe juntara, esforçou-se por acalmá-lo:
Acalma-te! A cólera não te serve de nada. Basta esperar que ela saia... O duque não vai ficar com ela eternamente...
Tens razão... Esperemos!
E os dois foram sentar-se sobre o tronco de uma das numerosas árvores abatidas...
Entretanto, Fiora, após esperar sozinha alguns instantes numa espécie de antecâmara de veludo púrpura, entrou, sempre guiada pelo capitão da guarda, numa divisão sumptuosa, de tela inteiramente bordada a ouro, que brilhava como uma mitra de bispo. No meio, iluminado por um candelabro onde ardia uma profusão de velas e lâmpadas de cristal, erguia-se uma espécie de trono sob um dossel púrpura com as armas da Borgonha. Sobre esse trono estava sentado um homem, que Fiora reconheceu de imediato por lhe ter sido descrito pela sua ama-de-leite: ”Tem um rosto largo e corado, um queixo poderoso, olhos sombrios e dominadores. Os seus cabelos são negros e espessos...” Aquele homem era o Temerário.
Usava um longo traje de veludo vermelho com um cinto dourado e uma estola de arminho, sobre a qual brilhava o colar do Tosão de Ouro. No gorro do mesmo veludo brilhava uma jóia estranha e fascinante: uma pluma de diamantes segura por uma pequena aljava feita de pérolas e rubis e a prisioneira achou que ele se parecia com um daqueles príncipes lendários cujas histórias o seu pai lhe contava quando era pequena. O Imperador, certamente, não era tão imponente como ele. A jovem, porém, não teve medo e até sentiu uma certa vontade de rir ao pensar que sonhava, há meses, em matar aquele homem defendido por um exército de guardas e servidores, mais ainda do que pela sua própria lenda. Ela, uma simples rapariga sem qualquer poder, e o seu amigo Demétrios, um médico grego cada vez mais velho, tinham jurado matar o grande duque do Ocidente, sem sequer saberem se se conseguiriam aproximar dele... E eis que estava ali diante dele, mas prisioneira, as mãos atadas por uma corda e, sem dúvida, não viveria o tempo suficiente para ver a aurora seguinte, porque aquele rosto sombrio e aqueles olhos faiscantes, que a observavam em silêncio, não auguravam nada de bom. Mas continuava a não ter medo.
Portanto disse o duque com uma voz grave e sonora, que podia ser a de um cantor tu és a rapariga por quem um dos meus melhores capitães esquece os seus deveres e abandona o seu posto diante de uma cidade cercada? De onde saíste tu, que não sabes que te deves inclinar perante um príncipe?
Uma mulher não se inclina, monsenhor e eu não saberia saudar como deve ser com as mãos atadas. Aliás, desde que me foram buscar que procuro saber qual a razão disto acrescentou ela, erguendo os punhos ligados. Que eu saiba, não matei nem roubei ninguém?
Tu és uma espia ao serviço do meu querido primo, o Rei Luís de França. O que é pior, a meu ver.
Na verdade? Não ouvi dizer que tinha sido assinada uma trégua de nove anos em Soleuvre entre o Rei e Vossa Senhoria? Pensei que era possível viajar à vontade a partir do momento em que as armas se calam?
Aqui ainda falam. Portanto, tu tiveste a fantasia de visitar as fronteiras e, singularmente, uma cidade onde, por acaso, estava concentrada uma grande parte do nosso exército?
Tive o desejo de conhecer o único primo que me resta, monsenhor.
Primo? Campobasso é teu primo? Não percebo por que razão disse Fiora com um meio sorriso esse grau de parentesco parece ofender o poderoso duque de Borgonha. E já que falamos de ofensas, eu gostaria, monsenhor, que parásseis de me tratar por tu. Eu sou de bom nascimento e o Rei Luís, que eu conheci, sempre me falou com deferência. Não ouvi dizer que Sua Majestade seja menos fidalgo do que Vossa Senhoria.
Perante a audácia daquela mulher, cujos grandes olhos cinzentos o fixavam com uma insolência irónica, a cólera de Carlos explodiu. Com o rosto tão vermelho como o traje que usava, levantou-se e ordenou:
La Marche! Obrigai esta mulher a ajoelhar-se diante de nós e fazei-a compreender que a sua vida está por um fio. Ela tem todo o interesse em não excitar desta maneira a nossa cólera!
Sem uma palavra, o capitão da guarda colocou-se por trás de Fiora e fez-lhe força nos ombros, até que os joelhos da jovem cederam. Estes caíram com força no tapete, mas a jovem não baixou a cabeça.
Teria sido mais simples disse ela desatar-me as mãos. Teríeis podido constatar, monsenhor, que eu sei saudar um príncipe como deve ser. Um gesto conseguido pela força nunca foi um sinal de respeito... Dito isto, mandai executar-me, se isso vos satisfaz.
Aquela coragem tranquila extinguiu o furor de Carlos. Com efeito, de todas as virtudes, era a que ele mais apreciava:
Não temeis a morte?
Por que havia de a temer? A vida nunca me deu nada que mereça ser lamentado.
O Temerário aproximou-se e inclinou-se um pouco para perscrutar as profundezas daquele olhar que não fugia do seu. Subitamente, tirou do seu cinto uma adaga cujo punho de ouro estava cravejado de pedras preciosas e encostou a ponta ao pescoço da jovem:
Concedo-vos o tempo de dizer uma oração!
É inútil murmurou Fiora. Deus não tem nada para me perdoar, porque não creio tê-Lo ofendido gravemente. Pelo contrário, Ele é que me fez sofrer. Se Lhe disser uma oração, será para que me reúna ao meu pai assassinado.
A jovem fechou os olhos, à espera que a lâmina se enterrasse, mas esta afastou-se. Com um gesto vivo, o duque cortou as cordas que ligavam as mãos da jovem:
Por Deus, acredito que dizeis a verdade disse ele com uma voz sombria. Não tendes mesmo medo... Sai, La Marche! E vós, levantai-vos!
Mas Fiora não teve tempo de executar aquela ordem: Campobasso acabava de irromper na sala. Viu Fiora de joelhos e o duque com um punhal na mão:
Monsenhor! gritou ele. Por amor de Deus, não toqueis nessa jovem! Eu amo-a e quero casar com ela!
O condottiere precipitou-se para Fiora, levantou-a e, passando-lhe um braço pelos ombros, continuou:
Ela não é responsável pelas faltas que eu cometi, meu príncipe! Sem sequer se dar conta, ela acendeu em mim um fogo devorador, que não me dá tréguas nem repouso. Não posso viver sem ela e...
Fora! urrou o duque. Que audácia foi essa de entrar aqui sem ser chamado? Onde estão os meus guardas?... La Marche!
Não chameis ninguém, monsenhor! pediu Campobasso com um olhar pungente para Fiora, que o tinha repelido. Eu não procuro ofender Vossa Senhoria, mas disseram-me que tínheis ordenado que donna Fiora viesse aqui e quando pensei que ela estava entregue, sem defesa, à vossa cólera...
Sem defesa? Eu acho que ela se defende muito bem! Quem te preveniu?
O meu escudeiro, Salvestro da Canale, que ficou encarregado de a guardar no meu castelo de Pierrefort. Ele seguiu a escolta que a trouxe aqui. Não ma tireis, monsenhor, suplico-vos, porque ela não merece a vossa cólera. Tentai compreender! Nós somos um para o outro, amamo-nos e só falta, para a nossa felicidade, a autorização do nosso príncipe e a bênção...
E por que não a minha autorização? disse uma voz furiosa, cujo som fez parar o coração de Fiora. Seguro com dificuldade por Olivier de La Marche e por um pajem, que faziam corajosos esforços para o imobilizar, Philippe de Selongey acabava, por sua vez, de entrar na tenda ducal. O rosto do duque ficou da cor do barro:
Selongey, também? rugiu ele. Ah, mas, entram aqui como num moinho! Que vindes fazer aqui? Rua!
Em vez de obedecer, Philippe pôs um joelho em terra, mas sem baixar a cabeça e sem perder um centímetro do seu porte altivo:
Peço-vos perdão, monsenhor, por esta falta de etiqueta! Vossa Senhoria conhece-me: sabe como lhe sou fiel, mas eu tinha que vir e não me contive quando vi este grosseirão forçar a vossa porta...
Aparentemente, parece que ninguém se conseguiu conter! Muito bem, estou à espera que me digais o que vindes fazer aqui. Pensáveis e seria uma boa desculpa que Campobasso queria a nossa vida?
Não, monsenhor. Venho reclamar o que me pertence. Esta jovem é minha mulher!
Se uma bala de canhão tivesse caído no centro da tenda ducal não teria causado maior surpresa. O duque olhou por um instante para as três personagens daquela estranha cena com um olhar que não pressagiava nada de bom e virou-se, mais sombrio do que nunca, para se ir sentar no seu trono. Campobasso foi o primeiro a reagir. Puxando da espada, quis atirar-se sobre Philippe, que se levantava a um gesto do duque:
Por todos os diabos do inferno, mentes, miserável! Mas, não ficarás com ela...
Chega! gritou o duque e já Olivier de La Marche caía sobre o condottiere e lhe arrancava a espada das mãos, ao mesmo tempo que o seu senhor continuava: Aqui não se assassina ninguém! Por terdes ousado desdenhar a minha presença, deveríeis ser punido, conde de Campobasso! Retirai-vos!
Mas, monsenhor...
Não me obrigueis a repetir, se quereis evitar a vergonha de ser posto na rua!... E agora, Selongey, nós dois! Prestai muita atenção ao que ides dizer, porque nunca permiti que ninguém fizesse troça de mim e menos ainda aqueles que têm a minha protecção.
Deus me guarde de vos desagradar, meu príncipe. Desde a infância que sou vosso vassalo e morreria antes de usar para convosco de uma ironia que seria, aos meus olhos, um sacrilégio.
Acredito, Philippe! Nesse caso, responde sem receio: pretendes que esta mulher é tua?
Casei com ela em Florença onde me enviastes junto dos Médicis, em Fevereiro último. O seu pai, Francesco Beltrami, era, então, um dos dois ou três homens mais ricos e poderosos da cidade. Casámo-nos...
Para poder engrossar o tesouro de guerra de Vossa Senhoria com os cem mil florins de ouro que constituíam o meu dote e que os Fugger de Augsbourg vos entregaram! cortou Fiora, que, por fim, conseguira anular a emoção sentida aquando da entrada de Philippe, de tal modo semelhante à recordação que guardava, mas, no entanto, diferente.
Talvez se devesse àquela armadura que ele vestia com à-vontade e que ela nunca lhe vira, àqueles cabelos mais curtos, àqueles vincos provocados pela fadiga e à pequena cicatriz que ele tinha na face, mas o seu coração começou a bater com toda a força e a ferida secreta voltou a sangrar a despeito da alegria furtiva sentida quando ele reivindicou o seu título de marido. Uma alegria que rapidamente se apagou. Renegada e abandonada, enganada agora porque outra mulher usava o seu nome, Fiora chamou o rancor em socorro do seu coração demasiado fraco.
É verdade admitiu Selongey e não escondi ao vosso pai o uso que pretendia dar a essa soma importante, mas casei convosco por outra razão, Fiora. Lembrai-vos!
Não ides pretender, agora, que me amáveis, quando não queríeis de mim senão uma noite? Abandonastes-me, sem tencionardes regressar, na manhã seguinte às nossas núpcias, para irdes ter com a única mulher que amais realmente e que deveis ter desposado quando pensastes que eu morrera. Isto admitindo que não o tenhais feito antes?...
Outra mulher? Eu casei com outra mulher? Eu, Philippe de Selongey, cavaleiro do Tosão de Ouro, bígamo?
Eu não encontro outro termo. Ou, então, explicai-me quem é aquela Beatrice que reina no vosso castelo de Selongey. Disseram-me que era a donna...
Beatrice? exclamou Philippe. Ela ainda lá está?
E por que não havia de estar, se está em sua casa? Selongey desatou a rir, uma pequena chama de alegria acesa subitamente nos seus olhos cor de avelã.
Pensei que tinha regressado para casa dos pais. Ela é minha cunhada, mais nada.
Quando é que dizeis a verdade e quando é que mentis? Uma cunhada pressupõe, pelo menos, um irmão e vós dissestes ao meu pai que não tínheis mais nenhuma família.
E era verdade. O meu irmão mais velho, Amaury, morreu na batalha de Montlhéry, há dez anos. A sua viúva esperava, não vos escondo, que eu a desposasse, como é normal nas nossas famílias. Mas nunca me decidi a casar com uma mulher que não amava. A vós, Fiora... eu amava.
Amáveis-me... e, no entanto, partistes sem me deixardes a esperança de vos rever um dia.
Mas eu voltei! E foi para saber da catástrofe que se abatera sobre vós. Não tinha razão nenhuma para não acreditar.
Philippe!... Meu Deus... odiei-vos tanto!
Ao mesmo tempo transtornada e invadida por uma alegria quase demasiado forte depois de tudo o que sofrera, Fiora, esquecendo a presença do príncipe, já estendia os braços para o seu amor reencontrado e Philippe já se ia lançar a ela quando a voz fria do Temerário, que os observara em silêncio, os deixou imobilizados.
É uma história muito bonita, sem dúvida, mas, madame, já que tendes a honra de ser a condessa de Selongey quereis explicar-me por que razão sois a amante do conde de Campobasso e uma amante ardentemente amada, o suficiente para que ele deseje desposar-vos?
Como se acordassem de um sonho, ambos se viraram para ele num mesmo movimento automático. A alegre luz da felicidade vacilou e extinguiu-se na alma de Fiora, como se extinguiu nos olhos de Philippe; a jovem compreendeu que aquele príncipe, que os dominava com o seu esplendor quase bárbaro, iria fazer tudo para lhe arrancar o homem que amava, e preparou-se para o combate.
Não tendo mais ninguém no mundo, por que razão não haveria eu de procurar o único parente que me restava, mesmo se não passava de um primo afastado? disse ela calmamente.
E a vossa pressa era tão grande que não hesitastes em procurá-lo em Thionville, no meio dos nossos exércitos? Como sabíeis que ele estava lá?
Bastava saber onde estavam esses exércitos. Os feitos e gestos de um príncipe tão grandioso como Vossa Senhoria são conhecidos. Se me dirigisse para o local onde residia o duque de Borgonha, teria esperança de encontrar um dos seus principais capitães. Bastava fazer perguntas pelo caminho...
E a ideia de vos juntardes ao vosso marido não vos aflorou?
Eu já disse que não acreditava na realidade do nosso casamento. Aliás, eu pensava que ele já não era deste mundo. Philippe tinha assegurado ao meu pai que, para apagar a desonra de ter ligado o seu nome ao da filha... de um mercador, esperava encontrar em combate uma morte honrosa...
O duque virou-se para Philippe, que, de olhar perdido, escutara em silêncio, tão frio como a sua armadura.
Isto é verdade?
Que eu queria morrer? Sim, monsenhor, mas julguei mal as minhas forças e, sobretudo, não previ que a viria a amar tanto. No dia seguinte ao nosso casamento já sabia que não aceitaria não a ver nunca mais e que teria de regressar um dia...
Philippe falava como se estivesse a sonhar, com a estranha voz neutra e indiferente dos que Demétrios submetia ao seu poder hipnótico. Fiora quis correr para ele, mas um gesto imperioso do Temerário impediu-a.
Amáveis-me a sério, nesse caso, Philippe? Por que não mo dissestes? Por que partistes sem uma palavra, sem...
Chega! exclamou o duque. Eu não vos autorizei a falar com o conde de Selongey. Dizei-me antes de onde vínheis quando chegastes a Thionville?
De França, evidentemente. Depois da morte do meu pai fui para Paris, para junto de messer Agnolo Nardi, seu irmão-de-leite, que gere na rua dês Lombards o balcão e o banco Beltrami...
Mercadores! Lojistas! disse o duque com um desdém esmagador. Eis com quem casastes, Philippe de Selongey, vós, cujos antepassados estiveram nas cruzadas! A rapariga é bela, confesso, mas não é dos nossos...
Mas trouxe-vos, com o casamento, cem mil florins de ouro! rugiu Fiora, insultada por aquele desprezo. Entre nós, a nobreza está na honra de contribuir para a riqueza do Estado com grandes negócios e várias florentinas casaram com príncipes.
Baixai o tom, por favor! Não estais aqui perante um desses Médicis nascidos à sombra de um balcão! Além disso, esqueceis com facilidade que fostes denunciada como espia de Luís XI, encarregada por ele de seduzir Campobasso... e que cumpristes, escrupulosamente, a vossa missão. Não é verdade que na mesma noite da vossa chegada junto do vosso ”primo” o acolhestes no vosso leito? Não é verdade que durante três dias e três noites as portas do vosso quarto não se abriram? Não é verdade que ele vos mandou para o seu castelo de Pierrefort, onde, para voltar a dormir convosco, abandonou o seu posto diante de Conflans? Ainda há pouco, não esteve aí mesmo, junto de vós, prestes a ajoelhar-se para que eu concordasse em casar-vos? ”Amamo-nos, dizia ele. Fomos feitos um para o outro”... Que quereis mais? Devo chamá-lo para que ele nos conte, palavra por palavra, o que foram esses dias e essas noites em Thionville?
Bruscamente, Selongey perdeu a sua imobilidade de estátua e dobrou um joelho:
Com vossa permissão, monsenhor, retiro-me.
E, sem esperar pela resposta, girou nos calcanhares e abandonou a tenda. A sua figura era a de um homem que acabam de ferir de morte. Fiora, invadida pelo desespero, viu-o sair com os olhos secos. Por nada deste mundo deixaria que aquele homem feroz, que esperava, sem dúvida, gritos, choros e súplicas e não aquele silêncio aterrado que transformara a jovem em estátua, visse o seu sofrimento. Depois de Philippe desaparecer, ela virou-se para o duque, muito direita no seu vestido negro e ergueu para aquele esplendor púrpura os seus olhos tão cinzentos como o céu de Inverno:
Parece, monsenhor, que é melhor servir um príncipe nascido por trás de um balcão do que o grande duque do Ocidente. Vossa Alteza detesta, sem dúvida, messire de Selongey?
A ele? Tem a nossa estima e a nossa amizade.
Parece-me evidente. O que seria se o odiásseis?
Não vos lisonjeeis demasiado. Ele prefere sofrer a viver assim, ridicularizado publicamente. O adultério, entre nós, é punido com a morte.
Salvo quando se é príncipe, a acreditar na lenda do pai de Vossa Senhoria. Muito bem, mandai executar-me: assim, fica tudo arranjado.
O que seria um bom exemplo, porque eu odeio o adultério e vós enojais-me, por mais bela que sejais! Veremos o seguimento disto. Por agora, ficareis no acampamento sob uma boa guarda. Os que velarem por vós responderão com as suas vidas, porque não permitirei que escapeis à sorte que mereceis. Mas, por agora, temos uma cidade para conquistar... Podeis estar certa, no entanto, que não vos esqueceremos!
De novo entregue ao senhor de La Marche, a jovem ia sair quando o Temerário a deteve:
Um momento! Antes de irdes para França, já tínheis deixado alguma vez Florença?
Não, monsenhor. Nunca...
É estranho!... Pareceu-me já vos ter visto... há muito tempo...
Dizem que neste mundo todos temos um sósia e Vossa Senhoria terá encontrado uma mulher parecida comigo... Numa rua, talvez?... Ou num mercado qualquer? Ou atrás de um balcão?
Encolhendo os ombros, ele fez-lhe sinal para sair. Então, sem inclinar a cabeça um centímetro, ela ofereceu-lhe a mais graciosa e perfeita das reverências e deixou o pavilhão ducal rodeada por guardas. A noite chegara, mas a vizinhança do grande trevo estava toda iluminada por numerosos archotes, e grandes fogueiras, perto das quais se aqueciam os homens, ardiam um pouco por toda a parte.
Quando Fiora apareceu no exterior, Campobasso, que esperava sentado no mesmo tronco de árvore onde se sentara Philippe e Mathieu, lançou-se na sua direcção, mas La Marche afastou-o:
Afastai-vos! As ordens de monsenhor, o duque, são formais: não é permitida qualquer conversa...
Para onde a levais?
Para perto, mas os que estão encarregados de a vigiar respondem com as suas vidas... Estais proibido de vos aproximar.
O condottiere recuou, como se o tivessem ferido: Fiora passara por ele sem sequer lhe conceder um olhar. Então, o italiano quis entrar no pavilhão, mas, prevendo o seu gesto, os guardas já tinham cruzado as lanças... Louco de raiva, ele insultou-os sem conseguir perturbar a sua impassibilidade, pelo que se lançou no encalço da escolta, a fim de saber, pelo menos, para onde conduziam aquela que amava.
Não foi longe. Por trás do grande trevo púrpura, algumas tendas, bastante menos espaçosas, estavam atribuídas a alguns oficiais da casa ducal. Foi numa delas, deixada livre pela morte recente do seu proprietário, que La Marche fez entrar a sua prisioneira, iluminando, com um archote aceso no exterior, um interior suficientemente confortável onde se via uma cama de campanha guarnecida de almofadas e cobertores, duas arcas, das quais uma continha utensílios de toilette, um grande candeeiro de ferro, uma braseira apagada e um tapete no chão, que isolava a tenda da erva rasa sobre a qual estava montada. Uma provisão de lenha esperava encostada a uma das paredes...
Um dos soldados acendeu o fogo, enquanto, com a ajuda do archote, o capitão da guarda acendia as velas:
Vou mandar trazer-vos o jantar disse La Marche a Fiora, que se sentara, tremendo, na cama. Também vos mandarei a vossa bagagem e, amanhã, virá uma mulher ocupar-se de vós.
Muito obrigada. Mas, por que tantos cuidados? Não sou prisioneira?
Não temos aqui calabouços. Além disso, as ordens de monsenhor são que não vos falte nada. Devo velar por isso pessoalmente...
É muita bondade... mas, consentiríeis em me dizer onde se aloja messire de Selongey? É longe daqui?
Não tenho o direito de vo-lo dizer, madame. Estais aqui mais ou menos em segredo, proibida de sair ou de comunicar com quem quer que seja, para além de mim ou de quem tiver autorização de aqui entrar...
Fiora acenou com a cabeça, significando que tinha compreendido, levantou-se e foi oferecer as mãos frias ao calor da braseira que enchia o seu pequeno alojamento com um bom odor a madeira queimada. Com a cabeça vazia, como sempre acontece quando se naufraga, nem sequer tentou pensar, unicamente ocupada em sentir o seu corpo transido e dorido aquecer lentamente. Sentia nos ossos e na carne uma imensa fadiga, que atingia quase uma espécie de sofrimento; tudo muito superior à lassitude provocada por uma cavalgada de cinco ou seis léguas, mas a passagem da alegria ofuscante para um desgosto profundo fora cruel e Fiora só desejava uma coisa: dormir! Mergulhar durante horas num sono igual ao dos animais cansados, que se parecia com a morte! Mais tarde ou mais cedo seria preciso emergir, mas seria preciso, também, que a coragem e as forças estivessem restauradas. Senão, só lhe restaria procurar um sono ainda mais profundo e, sobretudo, irremediável...
Ia deitar-se sobre a cama quando, no enquadramento de tela apareceu um rapaz, vestido elegantemente com um gibão de veludo violeta bordado a prata sobre uns calções cinzentos-claros, botas curtas de pele de gamo também violeta e transportando um tabuleiro:
A nobre dama dá-me autorização para entrar? perguntou ele, inclinando-se com desembaraço.
O jovem falara em italiano e Fiora, quase maquinalmente, sorriu-lhe. Era o primeiro macho que a tratava com respeito.
Certamente! disse ela. Seremos compatriotas?
Não exactamente. Eu sou romano: Battista Colonna, dos príncipes de Paliano, pajem do meu primo, o conde de Celano, mas recentemente transferido para o serviço de monsenhor o duque de Borgonha. E agora, se me permitis, madame, falemos em francês para não inquietar as sentinelas acrescentou ele nessa língua, ao mesmo tempo que pousava o tabuleiro em cima de uma arca.
O serviço do conde de Celano não vos convinha?
Não é isso, é que eu canto bastante bem e monsenhor Carlos, que patrocina um coro de jovens cantores, gosta que eu junte a minha voz às deles. Estou, por assim dizer, emprestado.
E encarregaram-vos de me trazer o jantar, vós, que sois de uma família muito nobre, se bem compreendi? Quem vos deu essa ordem?
- Messire Olivier de La Marche. No acampamento só temos moços de armas e à falta de mulheres que saibam servir uma nobre dama florentina, messire Olivier pensou que seria mais... que termo hei-de empregar?... Ah sim: reconfortante para vós serdes servida por um rapaz nascido na península.
Eis uma atenção que não teria imaginado há apenas cinco minutos. Espero que o duque Carlos não fique contrariado?
Messire Olivier nunca faz nada sem a devida autorização de monsenhor. E agora, donna Fiora, desejo-vos bom apetite e um bom descanso!
Sabeis o meu nome?
Messire Olivier nunca esquece nada disse o jovem Colonna com uma saudação que mais pareceu uma pirueta e um alegre sorriso.
Um pouco revigorada pela visita inesperada, calorosa e encantadora do garoto devia ter uns doze anos Fiora agradeceu mentalmente ao impassível capitão da guarda, prometendo fazê-lo de viva voz quando a ocasião se apresentasse. Em seguida, descobriu que tinha fome e devorou, literalmente, o patê de enguias, os rissóis e os frutos secos que o pajem lhe trouxera com um pequeno jarro de vinho de Borgonha. Após o que, deitando-se toda vestida em cima da cama e envolvendo-se num cobertor, deixou que a fadiga a levasse para um paraíso tranquilo, onde os anjos cantavam a glória da bem-aventurada Virgem Maria... No seu quarto sumptuoso, o Temerário, com o queixo na mão, escutava a maestria da sua capela, composta por vinte e quatro rapazes e sob a direcção do mestre Adam Busnois, a interpretar um cântico a Nossa Senhora... As vozes celestes encheram a noite fria, anunciando um Inverno precoce, e no imenso acampamento, que se estendia bem para lá do lago Saint-Jean até às colinas de Malzéville, todos retiveram a respiração para tirar daquela beleza um pouco de conforto para os combates que se seguiriam.
Fiora permaneceu durante vários dias fechada na sua tenda, sem ver mais ninguém senão o jovem Battista Colonna, que lhe levava as refeições e a rapariga visivelmente aterrorizada e aparentemente muda que lhe vinha fazer uns arremedos de limpeza, trazer-lhe lenha e água e limpar a lareira e as bacias, sem que Fiora conseguisse arrancar-lhe uma palavra.
Felizmente, Battista era um pouco mais falador. Fiora, meio surda devido à canhonada que se fazia ouvir durante todo o dia, soube por ele que Nancy se defendia bem. O bastardo da Calábria, seu governador, era um homem de guerra muito hábil. Não contente por ter, com a aproximação do exército borgonhês, acrescentado aos bastiões meias-luas, redutos e contraescarpas já existentes, terraços, cavaleiros e parapeitos de todos os géneros, a sua artilharia, nas mãos de um mestre artilheiro chamado Desmoulins, que era, talvez, o melhor artilheiro do seu século, respondia golpe por golpe, ao assaltante. Os dois canhões que Desmoulins mandara montar na Grande Torre que dava para a comendadoria já tinham obrigado o Temerário, por duas vezes, a mudar as suas tendas de lugar e a pôr em posição o Courtois, a grande colubrina, com a qual os Borgonheses atacavam a dita torre e a da porta de Saint-Nicolas. O jovem romano não escondia que um certo descontentamento começava a despontar nos assaltantes. Iriam ter de novo o interminável cerco de Neuss? Na cidade, por outro lado, a esperança
1 Fortificações dominando redutos na retaguarda
2 o Cortês
renascia a despeito de as reservas de víveres começarem a diminuir. Aliás, a chuva vinha em socorro das gentes de Nancy, transformando o campo inimigo numa cloaca...
Infelizmente para eles, os Borgonheses receberam reforços: o grande bastardo Antoine de Borgonha, meio-irmão do Temerário e seu melhor general, chegou do sul trazendo consigo as tropas lombardas frescas que fora buscar a Milão. Com a sua ajuda, Carlos pôde cercar por completo a cidade, ficando esta sem qualquer possibilidade de ser reabastecida...
Quer dizer perguntou Fiora que o cerco vai acabar em breve, ou ficaremos aqui durante meses?
Espero, por vós, que a resistência dos Lorenos não seja eterna. Esta tenda é bastante agradável, mas na condição de sairdes mais vezes, coisa que não fazeis.
Com efeito, Fiora tinha direito, chegada a noite e sob a vigilância estreita dos soldados que lhe guardavam a porta, a sair por alguns minutos para respirar um pouco de ar fresco. O resto do tempo, podia abrir as cortinas que escondiam a porta, mas mais nada. Em geral, não aproveitava a autorização, para evitar a chuva empurrada pelo vento. Porém, a observação do pajem inquietou-a:
Quereis dizer que não sairei daqui antes de Nancy ser conquistada?
Battista hesitou um momento e depois, baixando a voz, respondeu em italiano:
Exactamente. Não vo-lo devia dizer, mas, no fim de contas, quanto a mim, tendes o direito de saber o que vos diz respeito: Campobasso atacou messire de Selongey e os dois homens tinham começado a bater-se quando monsenhor o duque interveio. Ordenou-lhes que esperassem até que o exército entrasse em Nancy, acrescentando que não se queria arriscar a que um, ou talvez dois dos seus melhores capitães ficassem fora de combate. Mas, mesmo exibindo toda a sua cólera, teve dificuldade em consegui-lo. Foi preciso ameaçá-los... de vos mandar executar imediatamente. Isso acalmou-os logo. Cada um partiu para o seu comando...
Sois capaz de me dizer quando aconteceu isso?
Na manhã seguinte à vossa chegada e não sei, na verdade, qual dos dois estava mais encarniçado. Se os tivessem deixado, ter-se-iam matado mutuamente. Assim, para evitar isso, monsenhor mandou um para leste e o outro para oeste...
Obrigada por me terdes informado disse Fiora. Agis para comigo como um verdadeiro amigo e eu sinto-me extremamente comovida. Posso pedir-vos outra coisa?
Se estiver na minha mão... e não contrariar demasiado as minhas ordens.
Espero que não. Gostaria que aceitásseis prevenir-me se... acontecesse alguma coisa ao conde de Selongey.
O jovem Colonna sorriu-lhe, o seu rosto estreito, trigueiro como uma castanha, iluminou-se e, inclinando-se para Fiora, fez-lhe uma bela saudação:
Sempre foi essa a minha intenção... Senhora condessa! É natural...
A gentileza daquela criança era o único raio de sol que trazia um pouco de calor aos dias uniformemente cinzentos e tristes da jovem. As horas escoavam-se lentas, intermináveis, todas parecidas. Um convento, com a sua rigidez, teria sido preferível àquela prisão de lona, de onde não se via nada, mas onde se ouvia tudo. O crepitar da chuva alternava com o ruído dos canhões, os gritos de alegria ou de dor, ou a algazarra dos assaltos repelidos sem cessar. O eco das orações também chegava até à cativa, porque a tenda do núncio papal estava próxima e houvera uma enorme explosão de alegria suscitada pela chegada triunfal do grande bastardo de Borgonha. Por fim, o que era, pelo menos agradável, Fiora ouvia várias vezes a maestria da voz sonora de Battista. Mas Fiora tinha a impressão deprimente de ser uma daquelas duas reclusas que vira em Paris, que vivem toda a sua existência entre quatro paredes de pedra erguidas em seu redor e que não têm, da vida, senão a vista muito limitada de uma estreita janela, pela qual lhes chegam os dons da caridade e os sons do que se passa em redor daquelas tumbas abertas, fechadas imediatamente após a sua morte. Sem o jovem Colonna ela sentia-se esquecida, mas não sabia exactamente se desejava o fim do cerco, que lhe abriria a prisão sem dúvida para ir para outra e talvez para o cadafalso e que seria o sinal para o combate de morte entre os dois homens que lhe tinham destruído a vida...
Uma noite em que o alarido fora particularmente forte e em que tinha mesmo ouvido rugir, não muito longe dela, a voz do Temerário, esperava Battista ainda com mais impaciência do que de costume para saber o que se passava e, quando ouviu passos, atirou com o livro das horas que encontrara numa das arcas e que era a única leitura à sua disposição, portanto a sua única distracção, mesmo se as orações que encontrava nele não encontravam nem acordavam qualquer eco sensível no seu coração. A jovem viu-o aparecer na soleira da porta e constatou que puxara o seu gorro quase até ao nariz.
Está assim tão mau tempo? perguntou-lhe ela alegremente. Não ouço chuva nenhuma...
Sem responder, ele pousou no chão o tabuleiro coberto com uma toalha, quase no mesmo movimento arrancou o gorro e tirou um punhal da cintura, ao mesmo tempo que avançava para o círculo de luz emitido pelo candelabro:
Vós não sois o Battista! exclamou Fiora. Quem sois? Ao mesmo tempo que fazia a pergunta, reconheceu-o. Era o pajem de Campobasso, Virgínio, cujo olhar de ódio ela não esquecera e que, agora, lançava sobre ela uns olhos flamejantes de alegria feroz:
Quem sou? Sou a morte, puta! rosnou ele continuando a avançar lentamente, passo a passo, saboreando aquele instante que devia ter antecipado com todas as suas forças durante dias.
Uma única coisa o perturbava um pouco: a mulher não manifestava qualquer sinal de medo.
Metei essa faca na bainha e ide-vos! exclamou Fiora. Basta-me chamar...
Podes chamar à vontade. Adormeci os teus guardas com vinho drogado. Diante da porta só tens dois corpos inertes e agora não me vais escapar.
Por que razão me quereis matar? Que vos fiz?
Quero matar-te para ter a certeza que Campobasso nunca mais se deita na tua cama. Antes de ti, era eu que reinava sobre ele. Ele gostava dos meus beijos e das minhas carícias, mas, depois, apareceste tu... E agora, quando fazemos amor, o seu espírito está ausente e eu não posso suportar isso.
Virgínio distendeu-se subitamente, como uma mola e mergulhou sobre Fiora de punhal em riste. Com todas as suas forças, esta gritou:
Socorro! A mim!... Socorro!...
A jovem usou de todas as suas forças para afastar a lâmina assassina, mas o pajem era grande para a idade e bem treinado, ao passo que a clausura retirara a Fiora uma parte das suas capacidades. Ele ia vencer e, dentro de um segundo, a faca entraria na sua garganta. A jovem fechou os olhos, continuando a chamar por socorro.
Já vou! gritou uma voz, que lhe pareceu a de um anjo.
Virgínio foi arrancado de cima do corpo de Fiora, desarmado, atirado por terra e em breve se retorcia sob o joelho vigoroso pousado em cima do seu peito.
És muito novo, amigo, para seres já um assassino! disse Esteban, mas, aparentemente, a coragem não espera pelo número dos anos. E agora, que vamos fazer de ti?
Por favor, messire, segurai-o e emprestai-me o punhal, que eu ajusto contas com ele disse Battista, que aparecera em camisa, coberto de lama e esfregando a cabeça, onde se via uma enorme protuberância. Esse bruto atacou-me, despojou-me da minha roupa e do meu tabuleiro e, se percebi bem, também pôs os guardas fora de acção?
É verdade. Mas é melhor irdes buscar socorro... Eu seguro-o ainda por mais algum tempo. É fácil.
Deveis ter razão. Não podemos abafar isto, sobretudo quando estão em causa os soldados de monsenhor... e a sua refém preferida. O duque disse que responderíamos todos com as nossas vidas pela segurança de donna Fiora...
E Battista, envolvendo-se no cobertor que Fiora lhe estendeu, saiu a correr gritando ”Oh da guarda!” Entretanto, a jovem, que ainda não se acalmara, acocorou-se junto de Esteban, que continuava a segurar Virgínio apontando-lhe um punhal à garganta e olhou, não sem espanto, para a cota de armas verde com a cruz branca de Santo André apertada por um cinturão sobre uma cota de malha, a longa espada suspensa do lado esquerdo e o morrião de ferro que rolara por terra quando ele se atirara sobre o pajem.
Esteban! suspirou ela. Mas, é um milagre! Agora sois borgonhês?
Só há pouco tempo, donna Fiora! disse ele com um sorriso tão tranquilo como se se tivessem separado na véspera. Mas não deixo, por isso, de ser um bom soldado acrescentou ele com uma piscadela de olho que aconselhava prudência. Estais bem depois do nosso último encontro? Foi... em Avinhão, suponho? Quanto a mim, quando estava a fazer uma ronda, vi este cretino a atacar um pajem, a roubar-lhe as roupas e o tabuleiro, vestir umas e pegar no outro, e segui-o para ver o que tencionava fazer. E vi... mas, que grande sorte encontrar-vos! Se eu soubesse que estáveis aqui, neste acampamento!...
Fiora compreendeu aquela algaraviada insistente: mesmo fora de combate, Virgínio continuava a ser perigoso, porque tinha, infelizmente, uma língua viperina e sabia servir-se dela.
Ambos conversaram, assim, superficialmente e de uma forma perfeitamente irrealista, até que Battista regressou, ainda todo sujo. Mas, desta vez, acompanhava-o La Marche em pessoa com alguns dos seus guardas. O rapaz foi posto de pé com alguma brutalidade, ao mesmo tempo que o castelhano sacudia os joelhos. O capitão da guarda estava visivelmente furioso:
Soldados adormecidos e um pajem atacado! Que significa isto? E quem és tu?
Virgínio Fulgosi, sire capitão. Estou ligado à pessoa de monsenhor o conde de Campobasso disse o jovem prisioneiro, que visivelmente, recuperara a compostura. Foi por sua ordem que vim aqui... Esta... esta mulher fez chegar um bilhete ao meu senhor suplicando-lhe que a ajudasse a evadir-se...
Curiosa maneira de ajudar a fugir alguém, atacando-a com isto! - exclamou Fiora indignada, brandindo a adaga manchada de sangue e mostrando o ferimento que recebera na mão ao defender-se. Este miserável tentou matar-me e sem este homem corajoso acrescentou ela apontando para Esteban, que voltara a pôr na cabeça o morrião e assumira um ar modesto a esta hora estaria morta. Interrogai-o: ele dir-vos-á o que se passou... Em seguida, podereis sempre perguntar a Campobasso que ordens deu a este rapaz...
Ela mente! berrou Virgínio, que se torcia como uma cobra, preso pelos soldados. Ela e este homem conhecem-se. Ele é um antigo amante dela!
A bofetada que o castelhano lhe assentou era capaz de atirar um boi ao chão, mas a sua voz era de indignação virtuosa quando proclamou:
Certamente que conheço donna Fiora e há muito tempo! Ela era deste tamanho quando a vi pela primeira vez em Florença, em casa do seu nobre pai. E também conheço donna Léonarde, a sua governanta piedosa, e monsenhor o príncipe Lascaris, seu tio-avô... e gostaria de saber o que faz ela no meio de todos estes homens de armas e à mercê do primeiro cobarde que aparece!
Tudo bem, amigo! Veremos o que diz monsenhor o duque disto tudo. Tu vens comigo para lhe contar o que aconteceu. Depois, mando chamar messire Campobasso... Donna Fiora, peço-vos desculpa por tudo. Vou mandar-vos mestre Matteo de Clerici, o médico de monsenhor, para vos tratar esse ferimento.
Isto não é nada, messire Olivier. Não é profundo e eu mesma faço o tratamento. Mas agradeço-vos pela vossa cortesia e recomendo-vos este bravo homem, que só pode ser um excelente recruta para o exército do senhor duque: é forte e valente.
A jovem só tinha um desejo: ficar só, porque era impossível falar com Esteban, mas o facto de saber que ele estava perto dela, protegendo-a, era extremamente reconfortante. O que não impedia que ardesse de curiosidade. Como conseguira o castelhano alistar-se no exército borgonhês? Ele dissera que acontecera recentemente: mas que fizera durante aqueles dois meses?... Incapaz de encontrar uma resposta, a jovem comeu um pouco de carne fria, uma ou duas colheres de compota e deitou-se na cama, cobrindo-se com o seu manto para substituir o cobertor que dera a Battista. Pela primeira vez, depois de muitas noites, o seu sono foi tranquilo, confiante, tão pouca coisa necessita um ser jovem para se sentir em segurança. Para que Esteban tivesse chegado no momento oportuno para a salvar de uma morte certa, era porque uma providência velava por ela. Mas essa ajuda a jovem não a atribuía a Deus. Não porque não acreditasse nunca deixara de acreditar mas porque o Todo-Poderoso não parecia preocupar-se com os humanos senão para os encher de sofrimentos e privações. Não, se alguém velava por ela só podia ser a alma dolorosa de um homem que lhe consagrara a sua vida, aquele Francesco Beltrami a quem ela nunca deixaria de chamar pai.
Quando regressou, no dia seguinte, Battista trazia um cabaz de más notícias: primeiro, Philippe de Selongey fora ferido ao de leve, apesar de tudo no decurso de uma saída tentada pelos assediados para permitir a entrada de uma caravana de víveres pela porta da Craffe. Depois, o pajem Virgínio, que Campobasso, louco de raiva, tinha mandado executar, fora salvo pela intervenção do próprio Temerário. Segundo o duque, talvez ele não tivesse mentido e talvez tivesse havido uma tentativa de evasão. O rapaz fora entregue ao preboste do exército, ficando à espera que o assunto se esclarecesse. Por fim, a chuva diluviana provocara um desabamento de terras, que engolira uma companhia inteira. O exército, exasperado com aquele tempo abominável, estava a pontos da rebelião e, segundo o pajem, o bispo de Metz, Georges de Bade, que queria, pelo menos, ver o seu irmão, o margrave, tornar-se governador da Lorena, não cessava de percorrer o acampamento para exortar os homens à paciência, afirmando que os víveres abundavam, esses víveres que escasseavam cruelmente na cidade bloqueada...
Mas, enfim disse Fiora o famoso duque Renato, onde está ele? Não vem em socorro da sua famosa capital?
Creio que ele bem gostaria, mas não pode. Está em França, tentando conseguir socorro e tropas do Rei Luís, mas este, se bem compreendi, não quer quebrar os acordos assinados em Soleuvre...
O lugar de um chefe é à cabeça das suas tropas, sobretudo quando o combate é desesperado. Quanto a vós, os Borgonheses, não percebo por que se queixam: só têm que esperar tranquilamente que a cidade morra de fome. É assim tão difícil?
Talvez não, mas já é o segundo Inverno que eles vêem aproximar-se diante de portas que recusam abrir-se. Ainda não digeriram Neuss e Nancy não lhes inspira nenhuma confiança. É preciso compreender!
A última má notícia surgiu na pessoa do capitão da guarda: o duque Carlos ordenava que lhe levassem a sua prisioneira. Sem uma palavra, Fiora pegou na sua capa, puxou o capuz para a cabeça e seguiu o oficial através das rajadas de chuva, sob a qual o acampamento começava a dissolver-se...
A jovem encontrou o duque numa divisão mais pequena do que aquela onde a recebera pela primeira vez. Era, cheia de preciosas tapeçarias de Arras bordadas a ouro, uma espécie de gabinete de guerra. O duque estava sentado na companhia de um homenzinho muito redondo, cuja figura afável, coroada de cabelos curtos, grisalhos e encaracolados, estava encimada por uma mitra roxa bordada a ouro. Ondas de tecido tafetá cor de ametista envolviam um corpo que dava a impressão de ser oval. Uma grande cruz de ouro e rubis pendia-lhe do pescoço, presa por uma fita de cores variadas ao traje, de onde saíam uns pés pequenos calçados com pantufas de veludo e umas mãozinhas brancas e gorduchas, que o anel pastoral parecia esmagar.
Compreendendo que aquele devia ser o núncio papal, Fiora dobrou o joelho diante dele, dando assim a si própria o prazer de fazer esperar um momento o Temerário pela saudação que lhe devia. Depois de lhe prestar essa homenagem de cortesia, a jovem esperou o que se seguiria.
Eis disse o duque rapidamente a mulher de que falei a Vossa Eminência e da qual não sabemos bem quem é, nem de onde vem. Chama-se Fiora Beltrami, casada secretamente, parece, com o conde de Selongey, nosso fiel servidor, mas também parece que é espia de Luís de França e que, por motivos obscuros, se tornou na amante do conde de Campobasso. Ele está meio louco por ela e provocou um duelo, como sabeis, com messire Philippe...
Creio ter compreendido cortou o bispo com um meio sorriso que eles se provocaram mutuamente. Diz-se que se apunhalaram como dois carroceiros numa taberna e que foram precisos cinco homens para os separar...
Certo, certo!... O que não impede que exista, para a paz deste exército, um perigo que eu quis afastar ao ordenar aos dois adversários que adiassem o combate para depois da queda de Nancy. Ambos consentiram, mas, a despeito da palavra dada, um pajem de Campobasso introduziu-se, na noite passada, nos alojamentos desta mulher. Houve luta e, agora, diz-se... demasiado. Há muito desassossego...
Estou de acordo, mas, meu filho, esse grande desassossego parece vir mais deste cerco interminável e do tempo detestável que o Senhor nos enviou como penitência para todos.
Fiora olhou para Alessanclro Nanni com espanto. As suas relações precedentes com o monge Inácio Ortega tinham-lhe deixado uma ideia em tudo diferente do que podia ser um enviado de Sisto IV. Aquele parecia ao mesmo tempo amável e bem-humorado. O franzir de sobrancelhas do Temerário convenceu-a de que essa impressão estava certa.
Seja como for continuou o duque é preciso que esta situação escandalosa cesse. O casamento de Selongey com esta mulher foi celebrado em Florença em segredo. Além disso, não é válido aos nossos olhos. Selongey violou o direito feudal, que o interditava de contrair matrimónio sem o consentimento do seu suserano, quer dizer, nós!
Isso é uma falta, sem dúvida, mas receio, meu filho, que aos olhos de Deus seja diferente. Quem vos casou, minha filha?
O prior do convento de São Francisco, em Fiesole, Eminência.
Vós fostes consentânea, ou fostes forçada?
Consentânea... e muito feliz!
E messire de Selongey? Ele também estava feliz?
Pelo menos, disse-o... mas talvez seja melhor perguntar-lho. Ele jurou amar-me e a mais ninguém. Pode ser que tenha mentido...
E vós, também jurastes? No entanto, se o que dizem é verdade...
Eu entreguei-me ao conde de Campobasso, é verdade. Acreditava o meu casamento nulo... e pensava ter sido traída.
Também o amais, portanto?
Não... murmurou Fiora, que sentiu as faces corarem mas... fui... traída pela natureza e confesso que senti prazer.
Estou a ver... e sei que sois uma pessoa muito franca. E agora, monsenhor, gostaria de saber da vossa parte como tencionais fazer cessar o que chamais... ”uma situação escandalosa” porque, à excepção dos interessados, de Vossa Senhoria e de mim mesmo, ninguém, até agora, sabe nada?
Aos meus olhos é escandalosa e devê-lo-ia ser também aos de Vossa Eminência disse o duque com altivez. É certo que, tanto Selongey, como Campobasso, não nos deram a verdadeira razão da sua querela e o duelo decorre, naturalmente, da rixa que os opôs. Será no seguimento do reencontro que teremos de tomar uma decisão: se Selongey ganhar, continuará a ser o marido desta mulher adúltera, que deve ser executada...
Isso não será uma solução um pouco... excessiva? Donna Fiora parece ter algumas atenuantes e antes de a entregar à espada do carrasco...
Eu não desejo chegar a esse ponto, porque, mesmo que a meta numa prisão até à morte, restará sempre o exemplo. Eis porque fiz apelo a Vossa Eminência. Como núncio de Sua Santidade Sisto IV, tendes os poderes necessários para pronunciar a anulação do casamento. Assim, e seja qual for o resultado do combate, esta criatura poderá deixar-se enforcar noutro lado qualquer, ou, se Campobasso quiser ficar com ela, ninguém verá nisso qualquer inconveniente.
Com um frufru de seda, monsenhor Nanni levantou-se bruscamente e, se bem que de pé continuasse a ser muito pequeno, assumiu uma impressionante majestade, que deve ter atingido Carlos de Borgonha, porque também este se levantou:
Vós dais, parece-me, pouco valor à vida de uma mulher e aos sacramentos do Senhor disse severamente o núncio. Ninguém tem o direito de separar, nem que seja pelo gládio, aqueles que se uniram de boa-fé perante Deus. Se o vosso Selongey foi suficientemente estúpido para se sentir diminuído por um casamento com a filha de um rico florentino, é o único responsável e tanto pior para ele. Que se explique com esse outro e que se matem um ao outro, é assunto deles. Mas eu recuso-me a que esta pobre criança, já bastante sofredora, se transforme na sua vítima expiatória. Esperemos pelo desfecho do duelo. Se, nesse momento, um dos dois maridos pedir a anulação, estudarei a questão. Mas não antes!
Posso dizer-vos que Philippe pedirá essa anulação. Não quererá continuar unido a uma tal mulher!
Sobretudo se vós o contrariardes. Imaginai que ele se vai bater por ela...
Não por ela! Pela sua honra traída!
A honra parece infinitamente mais preciosa quando existem uns olhos assim, tão belos!
Eminência! protestou o duque, indignado a vossa indulgência para com esta criatura é, na verdade, excessiva, embaraçosa. Será por ela ser italiana, como vós?
Poderia sentir-me ofendido se não soubesse a que excessos vos pode levar a cólera, monsenhor. Em todo o caso, ficaria muito surpreendido se esse estranho marido deixasse que a sua mulher fosse parar ao cadafalso.
Então, será a anulação. Saberei convencê-lo, porque ele é digno de uma princesa e esta filha de mercadores...
Poderia ter de vos reclamar cortou Fiora os cem mil florins de ouro do seu dote! Como vedes, monsenhor, não tendes outra solução senão mandá-la executar...
A jovem saudou o bispo e depois, lançando ao Temerário, que a cólera tornara púrpura, um olhar glacial de desprezo, girou nos calcanhares e saiu da tenda...
Talvez tivesse de sofrer a cólera que provocara no duque se um acontecimento inesperado não se tivesse produzido simultaneamente: a cidade cercada, as trombetas e os tambores começaram a tocar à rendição, o que era sinal certo de que Nancy desejava render-se, e o duque Carlos sentiu uma grande alegria.
Mais tarde soube-se que uma carta do duque Renato tinha conseguido entrar na cidade:
Já que, para minha infelicidade, escrevia o jovem príncipe, me encontro reduzido a não poder fazer nada para vosso bem e a não poder tentar nada para minha glória, exorto-vos, para interesse da pátria, pela qual vos sacrificastes tanto, a que não derrameis mais o vosso sangue em esforços que vos conduzirão a perdas ainda maiores e a uma capitulação menos favorável...
Aquela mensagem, que todos escutaram chorando, não embotou a resolução do governador: o bastardo da Calábria queria continuar a combater, porque as fortificações não estavam danificadas nem o povo assustado. Podiam aguentar-se ainda dois meses e, dentro de dois meses, o Temerário perderia a coragem... mas os almotacés e todo o conselho da cidade foram de opinião que era preciso obedecer ao duque, que sabiam estar retirado em casa de sua mãe, Yolanda de Vaudémont, no castelo de Joinville. Nunca conseguiriam vencer aquele grande exército. Mais valia tentar obter uma capitulação honrosa.
O governador quebrou a sua espada e atirou os bocados aos pés dos magistrados vestidos de vermelho. Decorria o dia 29 de Novembro de 1475...