NADA DURA PARA SEMPRE

SIDNEY SHELDON


Titulo original: NOTHING LASTS FOREVER


Para Anastasia e Roderick Nlann, com amor


O que não se pode curar com medicamentos, cura-se com a faca; o que a faca não consegue curar, cura-se com o ferro cauterizador; e tudo o que isto não consegue curar deve ser considerado incurável.


HIPÓCRATES, SÉCULO V A.C.


Existem três classes de seres humanos: homens, mulheres e médicas.


SIR WILLIAM OSLER


O autor deseja expressar os seus mais sinceros agradecimentos a todos os médicos, enfermeiras e pessoal que com ele partilharam os seus conhecimentos.


Prólogo


São Francisco Primavera de 1995

O promotor público Carl Andrews estava furioso:

- Que raio se passa aqui? - perguntou. - Temos três médicas a viverem juntas e a trabalhar no mesmo hospital. Uma delas quase consegue fechar um hospital inteiro, a segunda mata um doente por um milhão de dólares e a terceira é assassinada!

- Interrompeu-se para tomar fôlego: - E todas são mulheres! Três malditas médicas!

A comunicação social trata-as como celebridades. São vistas em todos os canais. O Sessenta Minutos mostrou um programa sobre elas. Barbara Walters fez um especial sobre elas. Não consigo pegar num jornal ou revista sem ver a fotografia ou ler artigos sobre elas. O Two to one, de Hollywood, vai fazer um filme sobre elas e transformar as putas numa espécie de heroínas! Não me espantava nada que o Governo pusesse a cara delas em selos de correio, tal como Presley. Ora, valha-me Deus, eu não suporto isso! - Deu um murro na fotografia da mulher da capa de uma revista Time. A legenda dizia: “Dra. Paige Taylor Anjo da Misericórdia ou Discípula do Diabo?” - Doutora Paige Taylor - disse o promotor público cheio de asco. Voltouse para Gus Venable, o seu melhor advogado de acusação: - Vou entregarte este caso, Gus. Quero uma condenação. Assassinato de primeiro grau!

Câmara de gás!

- Não se preocupe - disse Gus Venable, baixinho - Eu tratarei disso.

Sentado na sala do tribunal a olhar para a Dra. Paige Taylor, Gus Venable pensou: “Ela é à prova de júri.” Depois, sorriu-se: “Ninguém é à prova de júri.” Era alta e esbelta, com penetrantes olhos castanhos num rosto pálido.

Um observador desinteressado tê-la-ia considerado uma mulher atraente.

Outro mais atento teria notado algo mais - que todas as diferentes fases da sua vida coexistiam nela. Notava-se a alegria da infância, sobreposta pela incerteza tímida da adolescência e a sabedoria e dor da mulher adulta.

Exibia um aspecto inocente. “É o tipo de rapariga”, pensou cinicamente Gus Venable, “que um homem apresentaria com orgulho à mãe. Se a mãe apreciasse assassinas a sangue-frio.”

Notava-se um ar longínquo, quase misterioso, nos seus olhos, um olhar que dizia que a Dra. Paige Taylor, bem lá no íntimo, se tinha retirado para um lugar diferente, numa época diferente, longe da fria e assépica sala de tribunal onde estava encurralada.

O julgamento tinha lugar no velho Palácio da Justiça de São Francisco, na Bryant Street. O edifício, que albergava o Tribunal Superior e a Cadeia Municipal, era uma construção de mau aspecto, com sete andares e feito de blocos quadrados de pedra cinzenta. Os visitantes do tribunal tinham de passar por postos de segurança eletrônicos. Em cima, no terceiro andar, encontrava-se o Tribunal Superior. Na Sala 121, onde se julgavam os assassinos, a cadeira do juiz estava encostada à parede traseira, com uma bandeira americana como pano de fundo. À esquerda da cadeira encontrava-se a bancada do júri e ao centro estavam duas mesas separadas por uma passagem: uma para o advogado de acusação e a outra para o advogado de defesa.

A sala de tribunal estava repleta de jornalistas e do tipo de espectadores amantes de acidentes de viação fatais e de julgamentos por assassinato.

Relativamente aos julgamentos por assassinato, este era espetacular. Gus Venable, o advogado de acusação, era por si só um espetáculo. Era um homem gordo, muito gordo, de cabelo grisalho comprido, pêra e os modos característicos de um fazendeiro do Sul. Nunca esteve no Sul.

Exibia um ar desgrenhado, mas o cérebro de um computador. A sua marca registrada, quer no Verão quer no Inverno, era um fato branco com uma camisa antiquada de colarinho engomado.

O advogado de Paige Taylor, Alan Penn, era o oposto de Venable, um tubarão compacto e enérgico, que criou a fama de conseguir a absolvição para os seus clientes.

Os dois homens já se tinham enfrentado antes e o relacionamento entre eles era de respeito relutante e desconfiança total. Para surpresa de Venable, Alan Penn tinha-o ido visitar uma semana antes de o julgamento ter início.

- Vim cá para te fazer um favor, Gus.

“Cuidado com os advogados de defesa que levam presentes.,

- O que é que tens em mente, Alan?

- Ouve com atenção… Ainda não discuti isto com a minha cliente, mas supõe, supõe apenas… que consigo persuadi-la a confessar-se culpada para reduzir a pena e poupar ao Estado o custo de um julgamento…

- Estás a pedir-me para negociar?

- Sim.

Gus Venable dirigiu-se à secretária para procurar algo.

- Não encontro o raio do meu calendário. Sabes que dia é hoje?

- Um de Junho. Porquê?

- Por um minuto, pensei que já estávamos no Natal, ou não me pedirias tal presente.

- Gus… - Venable inclinou-se na cadeira - Sabes, Alan, normalmente sentir-me-ia inclinado a concordar contigo.

Para dizer a verdade, neste preciso momento gostaria de estar no Alasca a pescar. Mas a resposta é não. Estás a defender uma assassina a sangue-frio que, por dinheiro, matou um doente indefeso. Vou exigir a pena de morte.

- Penso que ela está inocente, e eu…

Venable soltou uma enorme gargalhada:

- Não, não pensas nada. E ninguém mais pensa assim. Este é um caso de abrir e fechar. A sua cliente é tão culpada quanto Caim.

- Só será quando o júri o decidir, Gus.

- Decidi-lo-á. - Fez uma pausa. - Decidi-lo-á.

Depois de Alan Penn ter saído, Gus Venable sentou-se a pensar na conversa. A visita de Penn era sinal de fraqueza.

Penn sabia que não tinha hipóteses de ganhar o julgamento. Gus Venable pensou nas provas irrefutáveis que possuía e nas testemunhas que iria chamar, e sentiu-se satisfeito.

Não havia qualquer dúvida. A Dra. Paige Taylor iria para a câmara de gás.

Não foi fácil escolher o júri. O caso tinha ocupado as primeiras páginas durante meses. O sangue-frio da assassina havia desencadeado uma onda de fúria.

A juíza era Vanessa Young, uma inflexível e brilhante jurista negra que, segundo constava, era a próxima indigitada para o Tribunal Supremo dos Estados Unidos. Sabia-se que era pouco tolerante com os advogados e temperamental. Havia um adágio entre os advogados de São Francisco: “Se o teu cliente é culpado e pretendes pedir clemência, mantém-te afastado da sala de tribunal da juíza Young.”

No dia anterior ao início do julgamento, a juíza Young chamou os dois advogados ao seu gabinete.

- Senhores, vamos estabelecer algumas regras básicas.

Devido à grave natureza deste caso, estou disposta a fazer determinadas concessões para que a ré obtenha um julgamento justo. Mas aviso-vos de que não podem aproveitar-se disso.

Entenderam bem?

- Sim, meritíssima.

- Sim, meritíssima.

Gus Venable estava a terminar o discurso de abertura:

- E assim, senhores jurados, o Estado irá provar, sim, provar sem a mínima dúvida - que a doutora Paige Taylor matou o seu doente, John Cronin. E não só cometeu assassinato, mas fê-lo por dinheiro… muito dinheiro.

Matou John Cronin por um milhão de dólares.

“Acredito que depois de considerarem todas as provas, não vos será difícil declarar a doutora Paige Taylor culpada de assassinato em primeiro grau.

Obrigado.

O júri ficou silencioso, imóvel mas na espectativa.

Gus Venable voltou-se para a juíza:

- Meritíssima, se me permitir, gostaria de chamar Gary Williams como primeira testemunha de acusação. - Após o juramento da testemunha, o advogado perguntou:

- Você é funcionário do Embarcadero County Hospital?

- Sim, sou.

- Estava a trabalhar na ala três quando John Cronin deu entrada, no ano passado?

- Sim.

- Pode dizer-nos quem era o médico encarregado deste caso?

- A doutora Taylor.

- Como descreveria o relacionamento entre a doutora Taylor e John Cronin?

- Protesto! - Alan Penn levantou-se. - Ele está a obrigar a testemunha a tirar conclusões.

- Concedido.

- Permita-me que pergunte de outra maneira. Alguma vez ouviu qualquer conversa entre a doutora Taylor e John Cronin?

- Certamente. Não pude evitar. Trabalhei sempre nessa ala.

- Pode descrever essas conversas como amigáveis?

- Não, senhor.

- Verdade? Porque diz isso?

- Bem, lembro-me que no primeiro dia em que o senhor Cronin deu entrada e a doutora Taylor começou a examiná-lo, ele disse-lhe… - hesitou. - Não sei se posso repetir a linguagem.

- Continue, senhor Williams. Penso que não há crianças nesta sala de tribunal.

- Bem, ele disse-lhe que tirasse a merda das mãos dela de cima dele.

- Ele disse isso à doutora Taylor?

- Sim, senhor.

- Por favor diga ao tribunal tudo o que viu ou ouviu.

- Bem, ele tratava-a sempre por “aquela puta”. Não queria que ela se aproximasse dele. Sempre que entrava no quarto, dizia-lhe coisas como “Aqui vem de novo aquela puta!” e “Digam àquela puta para me deixar em paz” e “Porque é que não me mandam um verdadeiro médico?”.

Gus Venable fez uma pausa, a fim de olhar para onde a Dra. Taylor estava sentada. Os olhos dos jurados seguiram-no.

Venable abanou a cabeça como se tivesse ficado triste e, em seguida, voltou-se novamente para a testemunha:

- Parecia-lhe que o senhor Cronin era uma pessoa que queria dar um milhão de dólares à doutora Taylor? Alan Penn levantou-se de novo:

- Protesto! Mais uma vez, ele está a pedir uma opinião.

A juíza Young respondeu:

- Rejeitado. A testemunha pode responder à pergunta.

Alan Penn olhou para Paige Taylor e voltou a sentar-se:

- Diabo, não. Ele odiava-a.

O Dr. Arthur Kane estava no banco das testemunhas.

Gus Venable disse:

- Doutor Kane, o senhor era o médico de serviço quando se descobriu que John Cronin tinha sido assass… - olhou para a juíza Young. -.. morto com insulina por via intravenosa.

Está correto?

- Sim.

- E, subsequentemente, o senhor descobriu que a médica era a responsável.

- Correto.

- Doutor Kane, vou mostrar-lhe a certidão de óbito do hospital, assinada pela doutora Taylor. - Pegou numa folha de papel e entregou-a a Kane. - Por favor, leia-a em voz alta.

Kane começou a ler: - “John Cronin. Causa da morte: A paragem respiratória ocorreu como resultado de um enfarte do miocárdio originado por uma embolia pulmonar.” - E em linguagem corrente?

- O relatório diz que o doente morreu de ataque cardíaco.

- E o papel está assinado pela doutora Taylor?

- Sim.

- Doutor Kane, foi essa a verdadeira causa de morte de John Cronin?

- Não. A injeção de insulina foi a causa da morte.

- Então a doutora Taylor administrou uma dose fatal de insulina e depois falsificou o relatório.

- Sim.

- E o senhor comunicou-o ao doutor Wallace, administrador do hospital, que por sua vez alertou as autoridades.

- Sim. Julguei ser o meu dever. - A voz soou indignada.

- Sou médico. Não acredito ser possível tirar a vida de outro ser humano, qualquer que seja a circunstância.

A testemunha seguinte foi a viúva de John Cronin.

Hazel Cronin era quase quarentona, de cabelos cor de fogo e um corpo volupuoso que o vestido preto não conseguia dissimular.

Gus Venable disse:

- Sei o quão doloroso isto deve ser para si, senhora Cronin, mas tenho de lhe pedir que descreva ao júri o seu relacionamento com o seu falecido marido.

A viúva Cronin limpou os olhos com um enorme lenço rendado:

- Era um homem maravilhoso. Dizia muitas vezes que eu lhe tinha dado a única e verdadeira alegria que ele jamais sentira.

- Quantos anos esteve casada com John Cronin?

- Dois anos, mas John dizia sempre que eram como dois anos no paraíso.

- Senhora Cronin, o seu marido alguma vez lhe falou da doutora Taylor?

Que grande médica ele pensava que ela era? Ou como ela lhe tinha sido prestável? Ou o quanto gostava dela?

- Ele nunca falou dela.

- Nunca?

- Nunca.

- Alguma vez John disse que a iria retirar a si e aos seus irmãos do testamento?

- Absolutamente, não. Ele era o homem mais generoso do mundo. Diziame sempre que não havia nada que eu não pudesse ter e que, quando morresse… - soluçou, - que quando morresse, eu seria uma mulher rica e… - não conseguiu continuar.

A juíza Young interveio:

- Faremos um intervalo de quinze minutos.

Sentado no fundo da sala de tribunal encontrava-se Jason Curtis, cheio de fúria. Não acreditava no que as testemunhas estavam a dizer sobre Paige.

“Trata-se da mulher que eu amo”, pensou. “A mulher com quem vou casar.”

Logo após a prisão de Paige, Jason Curtis foi visitá-la à cadeia.

- Vamos lutar - garantiu-lhe. - Vou arranjar-te o melhor advogado criminal do país. - Veio-lhe imediatamente um nome à memória. Alan Penn. Jason foi visitá-lo.

- Tenho seguido o caso através dos jornais - disse Penn. - A imprensa já a julgou e condenou pelo assassinato de John Cronin a troco de um punhado de notas. E mais, ela admite que o matou.

- Eu conheço-a - disse-lhe Jason Curtis. - Acredite-me, em hipótese alguma Paige faria o que fez por dinheiro.

- Uma vez que ela admite que o matou - disse Penn - então estamos a lidar com um caso de eutanásia.

As mortes misericordiosas são contra a lei na Califórnia, como na maioria dos estados, mas há muitos sentimentos confusos sobre isso. Posso arranjar um caso muito bom sobre Florence Nightingale que ouvia uma voz superior e todas essas merdas, mas a questão é que a sua querida senhora matou um doente que lhe deixou um milhão de dólares em testamento. O que é que surgiu primeiro, a galinha ou o ovo? Ela soube do milhão antes de o matar, ou depois?

- Paige nada sabia acerca do dinheiro - disse Jason com firmeza.

A voz de Penn não era condenadora:

- Certo. Foi apenas uma coincidência feliz. O promotor público apela por assassinato em primeiro grau e quer a sentença de morte.

- Aceita este caso?

Penn hesitou. Era óbvio que Jason Curtis acreditava na Dra. Paige. “Tal como Sansão acreditou em Dalila.” Olhou para Jason e pensou: “Será que o desgraçado do filho da puta cortou o cabelo sem saber?” Jason esperava uma resposta.

- Aceito, desde que saiba que é um caso complicado.

Vai ser difícil ganhar.

A afirmação de Alan Penn acabou por ser demasiado opimista.

Quando o julgamento recomeçou na manhã seguinte, Gus Venable chamou uma série de novas testemunhas.

Uma enfermeira depunha: “Ouvi John Cronin dizer “Sei que vou morrer na mesa de operações. Você vai matar-me. Espero que a condenem por assassinato.” Chegou a vez de um advogado, Roderick Pelham, testemunhar. Gus Venable interrogou-o.

- Quando informou a doutora Taylor sobre o milhão de dólares de John Cronin, o que é que ela respondeu?

- Ela disse algo como “Parece contrário à ética. Ele era meu doente.”,

- Ela admitiu ser contrário à ética?

- Sim.

- Mas concordou em ficar com o dinheiro?

- Oh, sim. Absolutamente.

Alan Penn estava a contra-interrogar.

- Senhor Pelham, a doutora Taylor esperava a sua visita?

- Porquê, não, eu…

- O senhor não lhe telefonou e disse “John Cronin deixou-lhe um milhão de dólares”?

- Não, eu…

- Então, quando lhe disse, o senhor estava na verdade cara a cara com ela?

- Sim.

- Em posição de ver a reaão dela perante as notícias.

- Sim.

- E quando a informou do dinheiro, como é que ela reagiu?

- Bem… ela… parecia surpreendida, mas…

- Obrigado, senhor Pelham. É tudo.

O julgamento estava agora na quarta semana. Tanto os assistentes como a imprensa achavam o advogado de acusação e o advogado de defesa fascinantes de se ver. Gus Venable trajava de branco e Alan Penn de preto, e ambos movimentavam-se pela sala do tribunal como jogadores de uma partida de xadrez mortal e coreografada, sendo Paige Taylor o peão a sacrificar.

Gus Venable estava a unir as pontas soltas.

- Se me permitirem, gostaria de chamar Alma Rogers ao banco das testemunhas.

Depois do juramento da testemunha, Venable perguntou:

- Senhora Rogers, qual é a sua profissão?

- Miss Rogers.

- Peço-lhe perdão.

- Trabalho na Corniche Travel Agency.

- A sua agência reserva viagens para vários países, reserva hotéis e presta outros serviços aos vossos clientes?

- Sim, senhor.

- Quero que olhe para a ré. Já a tinha visto antes?

- Oh, sim. Ela veio à nossa agência de viagens há dois ou três anos.

- E o que queria?

- Disse estar interessada numa viagem a Londres e Paris e, julgo eu, a Veneza.

- Pediu informações sobre pacotes de viagens?

- Oh, não. Ela disse que queria tudo em primeira classe: avião, hotel. Julgo que estava interessada em alugar um iate.

A sala de tribunal ficou silenciosa. Gus Venable dirigiu-se à mesa da acusação e ergueu alguns desdobráveis.

- A polícia encontrou estas brochuras no apartamento da doutora Taylor.

Isto são itinerários de viagem a Paris, Londres e Veneza, brochuras de hotéis e linhas aéreas dispendiosos e uma delas contém uma lista de preços de aluguel de iates privados.

Levantou-se um murmúrio na sala.

O advogado de acusação abriu uma das brochuras.

- Aqui estão alguns dos iates listados para aluguel. - Leu em voz alta. - O Christina O… vinte e seis mil dólares por semana, mais despesas de navegação… o Resolute Time, vinte e quatro mil e quinhentos dólares por semana… o Lucky Dream, vinte e sete mil e trezentos dólares por semana. - Olhou para cima. - Há uma marca de verificação à frente do Lucky Dream.

Paige Taylor já tinha selecionado o iate de vinte e sete mil e trezentos dólares por semana. Mas ainda não tinha selecionado a vítima. - Olhou para o júri e terminou: - gostaríamos que marcassem isto como prova A. - Virou-se para Alan Penn e sorriu.

Alan Penn olhou para Paige. Esta estava pálida e cabisbaixa.

- A testemunha é sua.

Penn levantou-se, evasivo mas a pensar velozmente.

- Como vai atualmente o negócio das viagens, Miss Rogers?

- Desculpe?

- Perguntei como ia o negócio. A Corniche é uma grande agência de viagens?

- É bastante grande, sim.

- Imagino que muita gente entra para obter informações sobre viagens.

- Claro.

- Diria cinco ou seis pessoas por dia?

- Não! - respondeu, indignada. - Falamos com cerca de cinquenta pessoas por dia acerca de marcação de viagens.

- Cinquenta pessoas por dia? - Parecia impressionado. - E o dia de que estamos a falar foi há dois ou três anos. Se multiplicar cinquenta por novecentos dias, dá cerca de quarenta e cinco mil pessoas.

- Creio que sim.

- E, no entanto, no meio de toda essa gente, você lembrou-se da doutora Taylor. Como?

- Bem, ela e as suas amigas estavam muito entusiasmadas com a ideia de viajarem para a Europa. Achei encantador. Pareciam garotas de escola.

Lembro-me muito bem delas, em particular porque não pareciam ter condições para alugar um iate.

- Entendi. Suponho que quem quer que entre e peça uma brochura vai viajar?

- Bem, é claro que não. Mas…

- Na realidade, a doutora Taylor não reservou qualquer viagem, não é assim?

- Bem, não. A nós, não. Ela…

- Nem a mais ninguém. Ela simplesmente pediu para ver algumas brochuras.

- Sim. Ela…

- Isso não é o mesmo que ir a Paris ou a Londres, não é verdade?

- Bem, não, mas…

- Obrigado. Pode retirar-se.

Venable voltou-se para a juíza Young:

- Gostaria de chamar o Dr. Benjamin Wallace ao banco das testemunhas…

- Doutor Wallace, o senhor é o responsável pela administração do Embarcadero County Hospital?

- Sim.

- Assim sendo, conhece bem a doutora Taylor e o seu trabalho?

- Sim, conheço.

- Ficou surpreendido quando foi acusada de assassinato? Penn ergueu-se:

- Protesto, meritíssima. A resposta do doutor Wallace será irrelevante.

- Se me permitirem - interrompeu Venable. - Será bastante relevante, se me deixarem…

- Bem, vejamos no que é que isto irá desenvolver - concedeu a juíza Young. - Mas sem disparates, senhor Venable.

- Permitam-me que faça a pergunta de outro modo - continuou Venable. - Doutor Wallace, todos os médicos são obrigados a fazer o juramento hipocrático, não é assim?

- Sim.

- E parte desse juramento é… - o advogado de acusação começou a ler um papel que tinha nas mãos - “Devo abster-me de qualquer ato de maldade ou corrupção”?

- Sim.

- Houve alguma coisa no passado da doutora Taylor que o levasse a pensar que ela seria capaz de quebrar o juramento hipocrático?

- Protesto!

- Rejeitado.

- Sim, houve.

- Explique-se, por favor.

- Tivemos um doente que, segundo a decisão da doutora Taylor, precisava de uma transfusão sanguínea. A família não quis autorizar.

- E o que aconteceu?

- A doutora Taylor tomou a decisão e, de qualquer modo, fez a transfusão de sangue.

- Isso é legal?

- É claro que não. Não sem a decisão do tribunal.

- E depois, o que é que a médica fez?

- Obteve mais tarde a ordem do tribunal e alterou a data que lá constava.

- Então, ela agiu ilegalmente e falsificou o registo hospitalar para o encobrir?

- Exatamente.

Alan Penn olhou furioso para Paige. “Que mais terá ela escondido de mim”, pensou.

Se os assistentes estavam à procura de algum sinal revelador de emoção no rosto de Paige Taylor, ficaram desapontados.

“Fria como gelo”, pensava o primeiro jurado.

Gus Venable voltou-se para a juíza:

- Meritíssima, como sabe, uma das testemunhas que esperava chamar é um tal doutor Lawrence Barker. Infelizmente, ainda está a sofrer os efeitos de um enfarte e não pode estar presente nesta sala de tribunal para testemunhar. No seu lugar, irei interrogar algum pessoal do hospital que tem trabalhado com o doutor Barker.

Penn levantou-se:

- Oponho-me. Não vejo a relevância. O doutor Barker não está aqui, nem sequer está a ser julgado. Se…

Venable interrompeu:

- Meritíssima, garanto-lhe que o meu questionário é bastante relevante para o testemunho que acabámos de ouvir. Está também ligado à competência da ré como médica.

A juíza Young respondeu cépica:

- Vejamos. Isto é uma sala de tribunal e não um rio.

Não irei permitir pescarias. Pode chamar as suas testemunhas.

- Obrigado.

Gus Venable voltou-se para o oficial de diligências:

- Gostaria de chamar o doutor Mathew Peterson.

Um sexagenário, de aspecto elegante, dirigiu-se ao banco das testemunhas.

Fez o juramento e, quando se sentou, Gus Venable perguntou:

- Doutor Peterson, há quanto tempo trabalha no Embarcadero County Hospital?

- Oito anos.

- E qual é a sua especialidade?

- Sou cirurgião cardíaco.

- E desde que trabalha no Embarcadero County Hospital, teve a oportunidade de trabalhar com o doutor Lawrence Barker?

- Muitas vezes.

- O que pensa dele?

- O mesmo que toda a gente. Provavelmente, à excepção de De Bakey e Cooley, o doutor Barker é o meIhor cirurgião do mundo.

- Estava presente na sala na manhã em que a doutora Taylor operou um doente chamado… - fingiu consultar uma folha de papel - Lance Kelly?

O tom de voz da testemunha alterou-se:

- Sim, estava.

- É capaz de descrever o que aconteceu nessa manhã? Peterson respondeu com relutância:

- Bem, as coisas começaram a correr mal. Começámos a perder o doente.

- Quando diz “perder o doente…”…

- O coração dele parou. Estávamos a tentar reanimá-lo e…

- O doutor Barker tinha sido chamado?

- Sim.

- E ele entrou na sala de operações enquanto a operação decorria?

- Próximo do fim. Sim. Mas já era tarde para fazer o que quer que fosse.

Não conseguimos reanimar o doente.

- E nessa altura, o doutor Barker disse alguma coisa à doutora Taylor?

- Bem, estávamos todos bastante transtornados, e…

- Perguntei-lhe se o doutor Barker disse alguma coisa à doutora Taylor.

- Sim.

- E o que é que ele disse?

Houve uma pausa e, a meio desta, caiu lá fora um relâmpago, como se fosse a voz de Deus. Um instante mais tarde, rebentou a tempestade e a chuva batia fortemente no telhado do tribunal.

- O doutor Barker disse: “Mataste-o”.

Houve um alvoroço entre os espectadores. A juíza Young bateu com o martelo:

- Basta! Será que vivem nas cavernas? Mais uma explosão como esta e serão todos postos lá fora à chuva.

Gus Venable esperou que a barulhe ira terminasse.

Quando o silêncio retornou, perguntou:

- Tem a certeza de que foi isso que o doutor Barker disse à doutora Taylor? “Mataste-o”.

- Sim.

- E o senhor testemunhou que o doutor Barker era um homem cuja opinião médica tinha valor?

- Oh, sim.

- Obrigado. É tudo, doutor. - Virou-se para Alan Penn: - A testemunha é sua.

Penn ergueu-se e aproximou-se do banco das testemunhas.

- Doutor Peterson, nunca assisti a uma operação, mas imagino que existe muita tensão, em especial quando se refere a algo tão sério quanto uma operação ao coração.

- Existe uma grande tensão.

- Num momento como esse quantas pessoas se encontram na sala? Três ou quatro?

- Não. Sempre meia dúzia ou mais.

- Verdade?

- Sim. Normalmente estão dois cirurgiões, um assistente, por vezes dois anestesistas, uma enfermeira para limpar e pelo menos uma enfermeira que circula de um para o outro lado.

- Entendi. Então, deve haver muito barulho e excitação.

Pessoas a dar instruções, etc.

- Sim.

- E, “pelo que sei, é prática vulgar haver música durante a operação.

- É.

- Quando o doutor Barker entrou e viu que Lance Kelly estava a morrer, talvez isso tenha aumentado a confusão.

- Bem, todos estavam bastante ocupados a tentar salvar o doente.

- A fazer muito barulho?

- Havia muito barulho, sim.

- E contudo, no meio de tanta confusão e barulho, sem esquecer a música, o senhor conseguiu ouvir o doutor Barker dizer que a doutora Taylor tinha morto o doente. Com tanta excitação, pode estar errado, não pode?

- Não, senhor. Não posso estar errado.

- Como é que pode ter tanta certeza?

O doutor Peterson suspirou:

- Porque eu estava mesmo ao lado do doutor Barker quando ele o disse.

Não havia qualquer possível saída airosa.

- Não tenho mais perguntas.

O caso desmoronava-se e ele nada podia fazer. E estava prestes a piorar.

Denise Berry subiu ao banco das testemunhas.

- É enfermeira no Embarcadero County Hospital?

- Sim.

- Há quanto tempo trabalha lá?

- Cinco anos.

- Durante esse tempo, alguma vez ouviu conversas entre a doutora Taylor e o doutor Barker?

- Sim. Várias vezes.

- É capaz de repetir alguma delas?

A enfermeira olhou para a Dra. Taylor e hesitou:

- Bem, por vezes o doutor Barker era muito ríspido…

- Não foi isso que perguntei, enfermeira Berry. Pedi-lhe que nos contasse coisas específicas que tenha ouvido dizer à doutora Taylor.

Houve uma pausa prolongada:

- Bem, uma vez ele disse que ela era incompetente e…

Gus Venable mostrou-se surpreendido:

- A senhora ouviu o doutor Barker dizer que a doutora Taylor era incompetente?

- Sim, senhor. Mas ele estava sempre…

- Que outros comentários o ouviu fazer acerca da doutora Taylor?

A testemunha estava relutante em falar:

- Não consigo lembrar-me.

- Miss Berry, a senhora encontra-se sob juramento.

- Bem, uma vez ouvi-o dizer… - O resto da frase foi um murmúrio.

- Não conseguimos ouvi-la. Fale mais alto, por favor.

Ouviu-o dizer o quê?

- Disse… que não deixaria a doutora Taylor operar o cão dele.

Houve uma exclamação coletiva na sala.

- Mas tenho a certeza que ele apenas queria dizer…

- Julgo que podemos deduzir que o doutor Barker queria dizer o que disse.

Todos tinham os olhos postos em Paige Taylor.

O caso da acusação contra Paige parecia esmagador.

Contudo, Alan Penn tinha a reputação de ser mestre da magia na sala de tribunal. Era agora a sua vez de apresentar o caso da ré. Conseguiria ele retirar outro coelho do seu chapéu? Paige Taylor encontrava-se no banco das testemunhas, a ser questionada por Alan Penn. Este era o momento que todos esperavam.

- John Cronin era seu doente, doutora Taylor?

- Sim, era.

- E o que pensava dele?

- Gostava dele. Sabia que estava muito doente, mas era bastante corajoso.

Tinha sido operado a um tumor cardíaco.

- Foi a senhora quem procedeu à operação cardíaca?

- Sim.

- E que descobriu durante a operação?

- Quando lhe abrimos o tórax, descobrimos que sofria de melanoma, que se tinha disseminado por metástase.

- Por outras palavras, cancro que se tinha alastrado por todo o organismo.

- Sim. Tinha-se disseminado por metástase através de todas as glândulas linfáticas.

- Isso significa que não havia esperança para ele? Nenhuma medida heróica que pudesse fazê-lo voltar a ser saudável?

- Nenhuma.

- John Cronin foi ligado a sistemas de suporte de vida?

- Sim, foi isso.

- Doutora Taylor, a senhora administrou deliberadamente uma dose fatal de insulina, a fim de acabar com a vida de John Cronin?

- Sim.

Houve um murmúrio súbito na sala de tribunal.

“Ela é mesmo fria”, pensou Gus Venable. “Fala de uma maneira que até parece que lhe deu uma chávena de chá.

- É capaz de dizer ao júri porque é que acabou com a vida de John Cronin?

- Porque ele me pediu. Ele implorou-me. Mandou-me chamar a meio da noite, sob dores terríveis. Os medicamentos que lhe dávamos já não atuavam. - A voz soava calma: - Disse que não queria sofrer mais. A sua morte só aconteceu alguns dias mais tarde. Implorou-me para que acabasse com a sua vida. Eu assim o fiz.

- Doutora, sentiu relutância em deixá-lo morrer? Qualquer sentimento de culpa?

A Dra. Paige Taylor abanou a cabeça:

- Não. Se o tivessem visto… Simplesmente não havia razão para deixar que continuasse a sofrer.

- Como é que administrou a insulina?

- Injetei-lha nas veias.

- E isso causou-lhe qualquer dor suplementar? -Não. Simplesmente fechou os olhos para dormir.

Gus Venable levantou-se:

- Protesto! Penso que a ré quer dizer que ele foi arrastado para a morte!

Eu…

A juíza Young bateu com o martelo na mesa:

- Doutor Venable, o senhor esgotou o seu tempo. Ainda terá a oportunidade de contra-interrogar a testemunha. Sente-se.

O advogado de acusação olhou para o júri, abanou a cabeça e voltou a sentar-se.

- Doutora Taylor, quando a senhora administrou insulina a John Cronin, sabia que ele a tinha incluído no testamento e receberia um milhão de dólares?

- Não. Fiquei espantada quando o soube.

“ “O nariz dela deveria crescer,”, pensou Gus Venable.

- Até essa altura, nunca tinha falado de dinheiro ou presentes ou pedido alguma coisa a John Cronin? Um leve rubor atingiu-lhe as faces:

- Nunca!

- Mas tinha um relacionamento amigável com ele?

- Sim. Quando um paciente está naquele estado, a relação médico-doente muda. Falávamos de problemas relacionados com os negócios e com a família dele.

- Mas tinha algum motivo para esperar algo dele?

- Não.

- Ele deixou-lhe esse dinheiro por ter aprendido a respeitá-la e a confiar em si. Obrigado, doutora Taylor.

- Penn voltou-se para Gus Venable: - A testemunha é sua.

Enquanto Penn regressava à mesa da defesa, Paige Taylor olhou para o fundo da sala. Ali estava Jason sentado, esforçando-se por parecer encorajador. Ao seu lado encontrava-se Honey. Ao lado desta estava um desconhecido, sentado no lugar que deveria ser ocupado por Kat.

“Se ela ainda fosse viva. Mas Kat morrera”, pensou Paige.

“Também a matei.”

Gus Venable levantou-se e dirigiu-se lentamente ao banco das testemunhas. Olhou para as fileiras da imprensa. Não havia lugares vagos e todos os jornalistas estavam ocupados a escrever. “Vou lhe s dar algo sobre o qual poderão escrever”,, pensou Venable.

Permaneceu diante da ré durante um longo momento, a estudá-la. Depois disse casualmente:

- Doutora Taylor… John Cronin foi o primeiro doente que a senhora matou no Embarcadero County Hospital? Alan Penn pôs-se em pé, furioso:

- Meritíssima, eu…

A juíza Young já fizera soar o martelo:

- Protesto aceite! - Voltou-se para os dois advogados:

- Vamos fazer um intervalo de quinze minutos.

Quero reunir-me convosco no meu gabinete.

Quando os dois advogados já se encontravam no gabinete, a juíza Young virou-se para Gus Venable:

- Você tirou mesmo o curso de direito, ou não, Gus?

- Peço desculpa, meritíssima. Eu…

- Viu alguma tenda lá fora?

- Perdão?

A voz soou zangada:

- A minha sala de tribunal não é um circo e não tenciono permitir que a transforme num. Com que direito faz uma pergunta tão explosiva como essa?

- Peço desculpa, meritíssima. Farei a pergunta de outro modo e…

- Irá fazer mais do que isso! - afirmou Young. - Vai mudar a sua atitude.

Estou a avisar-lhe, dá mais uma golpada destas e declaro o processo nulo.

- Sim, meritíssima.

Quando regressaram à sala de tribunal, a juíza Young disse ao júri:

- O júri irá ignorar completamente a última pergunta da acusação. - E, virando-se para o advogado de acusação: - Pode continuar.

Gus Venable tornou a dirigir-se ao banco das testemunhas:

- Doutora Taylor, deve ter ficado muito surpreendida quando foi informada de que o homem que matou lhe tinha deixado um milhão de dólares.

Alan Penn levantou-se:

- Protesto!

- Aceite. - A juíza Young virou-se para Venable:

- O senhor está a testar a minha paciência.

- Peço desculpa, meritíssima. - Voltando-se de novo para a testemunha: - Deve ter tido uma relação muito amigável com o seu doente. Quero dizer, não é todos os dias que uma pessoa quase totalmente estranha nos deixa um milhão de dólares, não é assim?

Paige Taylor corou ligeiramente:

- A nossa amizade acontecia apenas no contexto da relação médico-doente.

- Será que não foi algo mais do que isso? Um homem não retira a esposa e a família do testamento para deixar um milhão de dólares a uma estranha, sem qualquer tipo de persuasão. As conversas sobre problemas de negócios que afirmou ter tido com ele…

A juíza inclinou-se para a frente e disse em tom de aviso:

- Doutor Venable… - O advogado ergueu as mãos em sinal de rendição.

Voltou-se de novo para a ré:

- Assim, a senhora e John Cronin tiveram uma conversa amigável. Ele contou-lhe coisas pessoais, gostava de si e respeitava-a. Diria que isto é um resumo justo, doutora?

- Sim.

- E por fazer isso, ele deu-lhe um milhão de dólares? Paige olhou para a sala de tribunal. Nada disse. Não tinha resposta.

Venable começou a caminhar em direão à mesa da acusação e, subitamente, tornou a virar-se para a ré.

- Doutora Taylor, há pouco a senhora afirmou que desconhecia que John Cronin iria deixar-lhe dinheiro, ou que iria retirar a família do testamento.

- Sim, afirmei.

- Quanto ganha um médico residente no Embarcadero County Hospital?

Alan Penn levantou-se:

- Protesto! Não vejo…

- É uma pergunta correta. A testemunha pode responder.

- Trinta e oito mil dólares por ano.

Venable replicou compreensivamente:

- Não é muito para os dias de hoje, ou é? E desse valor são deduzidos os impostos e as despesas do dia-a-dia. Não poderá sobrar o suficiente para fazer uma viagem de luxo, digamos, a Londres, Paris ou Veneza, não é assim?

- Suponho que não.

- Não. Então, a senhora não planejou fazer umas férias destas, porque sabia que não conseguia pagá-las.

- Sim.

Alan Penn levantou-se novamente:

- Meritíssima…

A juíza Young voltou-se para o advogado de acusação:

- Aonde é que isto vai dar, doutor Venable?

- Quero apenas sublinhar que a ré não podia planejar uma viagem de luxo sem obter o dinheiro de alguém.

- Ela já respondeu à pergunta.

Alan Penn sabia que tinha de fazer qualquer coisa.

Não sentia o que pensava, mas aproximou-se do banco das testemunhas, com o aspecto alegre de um homem que acabou de ganhar a lotaria.

- Doutora Taylor, lembra-se de ter ido buscar estas brochuras de viagens?

- Sim. - planejava ir à Europa ou alugar um iate?

- É claro que não. Tudo isso faz parte de uma espécie de brincadeira, de um sonho impossível. Eu e as minhas amigas julgámos que nos iria levantar o espírito. Estávamos muito cansadas,… na altura, parecia uma boa ideia. - A voz foi-se extinguindo.

Alan Penn olhou disfarçadamente para o júri. Os rostos registravam a descrença total.

Gus Venable questionava a ré num novo exame:

- Doutora Taylor, conhece o doutor Lawrence Barker? A imagem veio-lhe subitamente à memória. “Vou matar Lawrence Barker. Fá-lo-ei lentamente.

Deixá-lo-ei sofrer primeiro… e depois matá-lo-ei.” - Sim, conheço o doutor Barker.

- Com que ligação?

- Eu e o doutor Barker trabalhámos muitas vezes juntos durante os últimos dois anos.

- Diria que ele é um médico competente? Alan Penn deu um salto da cadeira:

- Oponho-me, meritíssima. A testemunha…

Mas, antes de poder acabar ou a juíza Young determinar, Paige respondeu:

- É mais do que competente. É brilhante.

Penn voltou a sentar-se, demasiado estupefacto para falar.

- Importa-se de se explicar?

- O doutor Barker é um dos mais famosos cirurgiões cardiovasculares do mundo. Tem uma enorme atividade privada mas dispensa três dias por semana ao Embarcadero County Hospital.

- Então, a senhora tem em grande consideração os juízos emitidos pelo doutor Barker relativamente a assuntos médicos.

- Sim.

- Acha que ele seria capaz de julgar a competência de outro médico?

Penn esperou que Paige respondesse “Não sei”.

Ela hesitou:

- Sim.

Gus Venable virou-se para o júri:

- Ouviram a ré dizer que tinha em grande consideração os juízos médicos do doutor Barker. Espero que ela tenha escutado atentamente o juízo do doutor Barker sobre a sua própria competência… Ou a falta dela.

Alan Penn levantou-se, furioso:

- Objeão!

- Concedida.

Mas já era tarde. O mal estava feito.

No intervalo seguinte, Alan Penn empurrou Jason para a casa de banho dos homens.

- Em que é que me meteste? - perguntou Penn zangado. - John Cronin odiava-a, Barker odiava-a. Insisto que os meus clientes me digam a verdade, toda a verdade.

Só assim os posso ajudar. Bem, não posso ajudá-la. A sua amiga encarregou-me de um trabalho sobre neve tão profunda que preciso de esquis. Sempre que abre a boca, coloca mais um prego no caixão dela. A merda deste caso está em queda livre.

Nessa tarde, Jason Curtis foi visitar Paige.

- Tem uma visita, doutora Paige.

Jason entrou na cela de Paige.

- Paige…

Voltou-se para ele, tentando esconder as lágrimas:

- Está feito, não está?

Jason esboçou um sorriso:

- Conheces aquele provérbio… “Até ao lavar dos cestos é vindima”.

- Jason, tu não acreditas que matei John Cronin por dinheiro, acreditas? O que fiz, fi-lo apenas para o ajudar.

- Acredito em ti - disse Jason, baixinho. - Amo-te.

Tomou-a nos braços. “Não quero perdê-la”, pensou Jason.

“Não posso. Ela é a melhor coisa da minha vida - Tudo há-de acabar bem.

Prometi-te que ficaríamos juntos para sempre.

Paige abraçou-o com força e pensou: “Nada é eterno.

Nada. Como é que tudo começou a correr tão mal… tão mal… tão mal…”.

São Francisco

Julho de 1990 - Hunter, Kate.

- Presente.

- Taft, Betty Lou - Estou aqui.

- Taylor, Paige.

- Presente.

Elas eram as únicas mulheres entre o enorme grupo de residentes do primeiro ano, reunidos no amplo e enfadonho auditório do Embarcadero County Hospital.

O Embarcadero County era o hospital mais antigo de São Francisco e de todo o país. Durante o terramoto de 1989, Deus pregou uma partida aos habitantes de São Francisco e deixou o hospital de pé. Era um complexo “ feio que ocupava mais de três quarteirões, com edifícios de tijolo e pedra já escurecidos pela sujidade acumulada durante anos.

No interior da entrada dianteira do edifício principal encontrava-se uma enorme sala de espera, com bancos de madeira para doentes e visitas. As paredes escamavam devido a demasiadas décadas de camadas de tinta e os corredores estavam gastos e irregulares devido aos milhares de doentes em cadeiras de rodas e muletas. Todo o complexo estava coberto pela pátina bolorenta do tempo.

O Embarcadero County Hospital era uma cidade dentro da cidade. Mais de nove mil pessoas trabalhavam no hospital, incluindo quatrocentos médicos internos, cento e cinquenta médicos voluntários em tempo parcial, oitocentos residentes, três mil enfermeiras, mais os técnicos, unidades auxiliares e outro pessoal ajudante. Os andares superiores continham um complexo de doze salas de operações, abastecimento central, banco de ossos, central de programação, três enfermarias de urgência, uma enfermaria de PRIMEIRos socoRRos e mais de duas mil camas.

No primeiro dia da chegada dos novos residentes, em Julho, o Dr.

Benjamin Wallace, administrador do hospital, ergueu-se para lhe s dirigir a palavra. Wallace era um político perfeito, um homem alto de aspecto impressionante, com conhecimentos gerais e charme suficiente para conseguir subir e ocupar a atual posição.

- Esta manhã quero dar as boas-vindas a todos vós, novos residentes.

Durante os dois primeiros anos na faculdade de medicina vocês trabalharam com cadáveres.

Nos dois últimos anos trabalharam com doentes hospitalizados, sob orientação de médicos chefes. Agora, vocês mesmos serão os responsáveis pelos vossos doentes.

É uma responsabilidade aterradora e é preciso dedicação e perícia.

O olhar percorreu o auditório:

- Alguns de vós pretendem especializar-se em cirurgia.

Outros, em medicina interna. A cada grupo será atribuído um residente mais antigo, que irá explicar-vos a rotina diária.

De agora em diante, tudo o que possam fazer poderá ser um caso de vida ou de morte.

Todos escutavam com a máxima atenção, procurando capar cada palavra dita.

- O Embarcadero é um hospital municipal. Isso significa que admitimos todos aqueles que nos batem à porta. A maior parte dos doentes são pobres. Vêm aqui porque não podem pagar um hospital particular. As nossas salas de urgência estão ocupadas vinte e quatro horas por dia. Irão ter muito trabalho e sentir que são mal pagos. Num hospital particular, o vosso primeiro ano consistiria em trabalho de rotina de pouca importância. No segundo ano, ser-vos-ia permitido fazer cirurgia menor, supervisionada. Bem, podem esquecer tudo isso.

O nosso lema aqui é “Examinar, fazer, ensinar”.

“Temos muita falta de pessoal e quanto mais rápido vos conseguirmos meter nas salas de operações, melhor.

Alguma pergunta?

Havia milhares de perguntas que os novos residentes desejavam fazer.

- Nenhuma? Muito bem. Oficialmente, o vosso primeiro dia começa amanhã. Terão de se apresentar ao balcão da recepção principal, amanhã de manhã às cinco e meia. Boa sorte! A reunião estava terminada. Houve um êxodo geral em direão às portas e um murmurinho de conversas excitadas.

As três mulheres viram-se reunidas.

- Onde estão todas as outras mulheres?

- Penso que somos só nós.

- É muito parecido com a faculdade de medicina, oh? O clube dos rapazes.

Tenho a sensação de que este lugar pertence à Idade Média.

A pessoa que falava era uma perfeita e bela mulher negra, com cerca de um metro e setenta de altura, ossos largos, mas bastante graciosa. Tudo nela, o andar, a postura, o olhar frio e irónico que possuía, transmitia uma mensagem de indiferença.

- Chamo-me Kate Hunter. Todos me tratam por Kat.

- Paige Taylor. - Jovem e social, de olhar inteligente e segura de si.

Voltaram-se para a terceira mulher.

- Betty Lou Taft. Todos me tratam por Honey. - Falou com um ligeiro sotaque do Sul. Possuía um rosto aberto e sincero, olhos cinzentos claros e um sorriso caloroso.

- De onde és? - perguntou Kat.

- Mênfis, Tennessee.

Olharam para Paige. Esta decidiu responder simplesmente:

- Bóston.

- Minneapolis - disse Kat. “Fica suficientemente perto”, pensou.

- Pelos vistos estamos todas longe de casa - observou Paige.

- Onde estás a viver?

- Estou num hotel barato - disse Kat. - Ainda não tive tempo de procurar um sítio para morar.

Honey afirmou:

- Nem eu.

Paige alegrou-se:

Esta manhã fui ver alguns apartamentos. Um deles era espantoso, mas está fora das minhas possibilidades. Tem três quartos.

Olharam umas para as outras.

- Se as três o compartilhássemos… - disse Kat.

O apartamento situava-se no distrito da Marina, na Filbert Street. Era perfeito para elas. Três quartos, duas casas de banho, sala, cozinha, lavandaria, parque de estacionamento.

Era mobilado no estilo Sears Roebuck, mas estava bastante limpo.

Quando as três mulheres terminaram de o inspecionar, Honey disse:

- Acho-o maravilhoso.

- Também eu! - concordou Kat.

Olharam para Paige.

- Vamos ficar com ele.

Nessa tarde mudaram-se para o apartamento. O porteiro ajudou-as a levar a bagagem para cima.

- Então vocês vão trabalhar no hospital - disse.

- Enfermeiras, hem?

- Médicas - corrigiu Kat.

Olhou para ela incrédulo:

- Médicas? Quer dizer, como verdadeiras médicas?

- Sim, verdadeiras médicas - respondeu-lhe Paige.

Ele resmungou:

- Para dizer a verdade, se eu precisar de um médico, penso que não havia de querer que uma mulher examinasse o meu corpo.

- Teremos isso em mente.

- Onde está o aparelho de televisão? - perguntou Kat. - Não vejo nenhum.

- Se quiserem um, terão de o comprar. Gozem o apartamento, senhoras enf…, doutoras. - Deu um risinho.

Elas ficaram a vê-lo ir-se embora.

Kat disse, imitando-lhe a voz:

- Enfermeiras, eh? - Riu com desdém. - Macho chauvinista.

Bom, vamos escolher os nossos quartos.

- Qualquer um está bem para mim - disse gentilmente Honey.

Examinaram os três quartos. O quarto de casal era maior do que os outros dois.

Kat sugeriu:

- Porque você não fica com ele, Paige? Você encontrou este lugar.

Paige abanou a cabeça:

- Está bem.

Dirigiram-se todas aos respectivos quartos e começaram a arrumar as coisas. Cuidadosamente, Paige retirou da mala uma fotografia emoldurada de um homem com cerca de trinta anos.

Era atraente e usava óculos de armação preta, o que lhe dava um ar estudantil. Paige colocou a fotografia na cabeceira, juntamente com um monte de cartas.

Kat e Honey entraram:

- Que tal sairmos para jantar qualquer coisa?

- Estou pronta - disse Paige.

Kat viu a fotografia:

- Quem é?

Paige sorriu:

- É o homem com quem vou casar. É um médico que trabalha para a Organização Mundial de Saúde. Chama-se Alfred Turner.

Neste momento está em Äfrica, mas há-de vir a São Francisco para estarmos juntos.

- Sorte a sua - disse Honey, tristonha. - É bonito.

Paige olhou para ela:

- Estás envolvida com alguém?

- Não. Acho que não tenho muita sorte com os homens.

- Talvez a sua sorte mude no Embarcadero - disse Kat.

As três jantaram no Tarantino’s, próximo do apartamento.

Durante o jantar conversaram sobre o passado e a vida de cada uma, mas sentia-se inibição na conversa, uma barreira. Eram três estranhas a examinar e conhecerem-se cuidadosamente umas às outras.

Honey falou pouco. “É envergonhada,”, pensou Paige.

“E vulnerável. Provavelmente algum homem de Mênfis despedaçou-lhe o coração.”

Paige olhou para Kat. “Segura de si. Muita dignidade.

Gosto do modo como fala. Vê-se que venì de boas famílias. “, Entretanto, Kat estava a estudar Paige. “Uma rapariga rica que nunca teve de lutar por nada na vida. É isso que aparenta ser.

Honey estava a olhar para as outras duas. “São tão confiantes, tão seguras de si mesmas. Ser-lhe s-á fácil adaparem-se a esta vida.”

Todas estavam erradas.

Quando regressaram ao apartamento, Paige estava demasiado excitada para adormecer. Deitou-se na cama a pensar no futuro.

Lá fora, na rua, ouviu-se o estrondo de um acidente de automóvel e depois pessoas a gritar, mas, na mente de Paige, tudo se dissolveu na lembrança de nativos africanos a gritar e a cantar melancolicamente enquanto se disparavam tiros. Foi transportada pelo tempo para a pequena aldeia da selva da Äfrica Oriental, no meio de uma mortífera guerra tribal.

Paige estava aterrorizada:

- Vão-nos matar!

O pai abraçou-a:

- Querida, ninguém irá fazer-nos mal. Estamos aqui para os ajudar. Eles sabem que somos amigos.

E, sem aviso prévio, o chefe de uma das tribos penetrou na cabana…

Honey deitou-se, pensativa: “Isto é realmente muito longe de Mênfis, Tennessee, Betty Lou. Acho que nunca mais vou poder voltar para lá.

Nunca mais.” Ainda ouvia a voz do xerife a dizer-lhe:

- Por respeito à família dele, vamos declarar a morte do reverendo Douglas Lipon como “suicídio por razões desconhecidas”,, mas sugiro que saias imediatamente desta cidade e não voltes nunca mais…

Kat olhava para a janela do quarto, escutando os ruídos da cidade.

Conseguia ouvir a chuva murmurar: “Conseguiste…

Conseguiste… Provaste a todos que estavam enganados. Queres ser médica? Uma médica negra? E as rejeições das faculdades de medicina”.

“Obrigada por nos ter enviado a sua proposta.

Desta vez, infelizmente, as matrículas estão completas.”; “Tendo em conta o seu passado, pensamos que talvez se sentisse melhor numa universidade mais pequena.” Tinha tido notas elevadas mas, das vinte e cinco escolas a que concorreu, só uma a aceitou. O reitor da escola tinha-lhe dito:

- Nos dias de hoje, é bom ver alguém com um passado normal e decente.

“Se ele tivesse sabido a terrível verdade.” às cinco e meia da manhã seguinte, quando os novos residentes deram entrada, já lá se encontravam membros do pessoal hospitalar a fim de os conduzir aos respectivos encargos. Mesmo àquela hora da manhã já havia confusão.

Os doentes deram entrada durante toda a noite, chegando de ambulância, carros da polícia e a pé. O pessoal chamava-os de “N’s e A’s” - os náufragos e despojados que corriam para as salas de urgência, feridos e a sangrar, vítimas de tiros e facadas e acidentes de automóvel, os feridos na carne e espírito, os desalojados e indesejáveis, o fluxo e refluxo da humanidade que corriam pelos esgotos escuros de qualquer cidade grande.

Tinha-se uma profunda sensação de caos organizado, movimentos frenéticos e sons esganiçados e dúzias de crises inesperadas que tinham de ser atendidas de imediato.

Os novos residentes mantiveram-se em grupo preventivo, procurando familiarizar-se com o novo ambiente e escutando os misteriosos sons à sua volta.

Honey levantou a cabeça e disse:

- Sou eu.

O residente sorriu e estendeu a mão:

- É uma honra conhecê-la. Pediram-me que a procurasse. O nosso chefe de pessoal diz que a senhora tem as notas mais altas de medicina desde sempre neste hospital. Estamos satisfeitos por a termos cá.

Honey sorriu, embaraçada:

- Obrigada.

Kat e Paige olharam para Honey, boquiabertas. “Nunca pensei que fosse assim tão brilhante, pensou Paige.

- Está a pensar seguir medicina interna, doutora Taft?

- Sim.

O residente voltou-se para Kat - Doutora Hunter?

- Sim.

- A senhora está interessada em neurocirurgia.

- Sim, estou.

Consultou uma lista:

- Ficará ao serviço do doutor Lewis. - Voltou-se para Paige:

- Doutora Taylor?

- Sim.

- A senhora vai seguir cirurgia cardíaca.

- Sim.

- Certo. Iremos integrá-la a si e à doutora Hunter nas rondas operatórias.

Podem dirigir-se ao gabinete da enfermeira-chefe, Margaret Spencer. Ao fundo do vestíbulo.

- Obrigada.

Paige olhou para as colegas e respirou profundamente:

- Aqui vou eu! Desejo boa sorte a todas nós! Margaret Spencer era mais um tanque de guerra do que uma mulher, de aspecto pesado e severo, com modos bruscos. Estava ocupada atrás do balcão da enfermaria quando Paige se aproximou.

- Por favor…

A enfermeira Spencer levantou a cabeça:

- Sim?

- Mandaram-me apresentar aqui. Sou a doutora Taylor.

A enfermeira Spencer consultou uma folha de papel:

- Um momento. - Entrou por uma porta e regressou um minuto mais tarde com alguns artigos de limpeza e uma capa branca.

- Aqui está. Os artigos são para utilizar na sala de operações e sobre ferimentos. E quando estiver de serviço, cubra-os com uma capa branca.

- Obrigada.

- Oh. E isto aqui. - Baixou-se e entregou a Paige uma placa metálica que dizia “Paige Taylor, M. D. - Eis a placa com o seu nome, doutora.

Paige segurou-a na mão e olhou para ela durante um longo período de tempo. “Paige Taylor, M. D. Teve a sensação de que lhe tinham dado a medalha de honra.

Todos os longos e duros anos de trabalho e estudos tinham-se resumido naquelas breves palavras: “Paige Taylor, M. D.

A enfermeira Spencer olhava para ela:

- Sente-se bem?

- Estou bem. - Paige sorriu. - Estou bem, obrigada. Onde posso…

- O vestiário dos médicos fica ao fundo do corredor, à esquerda. Irá fazer rondas e, por isso, quererá trocar de roupa.

- Obrigada.

Paige percorreu o corredor, admirada com a grande atividade à sua volta. O corredor estava cheio de médicos, enfermeiras, ajudantes e doentes, que se dirigiam com rapidez para vários destinos. As insistentes chamadas do sistema de altofalantes aumentavam a algazarra.

“Doutor Keenan… SO Três… Doutor Keenan… SO Três; “Doutor Talbot…

Sala de Urgências Um. Stat…

Doutor Talbot… Sala de Urgências Um. Stat; “Doutor Engel… Quarto 212… Dr. Engel… Quarto 212.

Paige aproximou-se de uma porta onde se lia vEstIáRIO DOS MÉDICOS e abriu-a. No interior encontrava-se uma dúzia de médicos a trocar de roupa, uns mais despidos que outros. Dois deles estavam completamente nus.

Voltaram-se para olharem para Paige quando a porta se abriu.

- Oh! Peço… Peço desculpa - murmurou Paige, fechando a porta à pressa.

Permaneceu ali, sem saber o que fazer. Alguns metros mais abaixo viu uma porta onde se lia VESTIáRIO DAS ENFERMEIRAS. Encaminhou-se para ela e abriu a porta. Lá dentro, várias enfermeiras vestiam o uniforme.

Uma delas olhou para cima:

- Olá. É uma das enfermeiras novas?

- Não - respondeu Paige, envergonhada. - Não sou. - Fechou a porta e regressou ao vestiário dos médicos. Permaneceu ali por um momento, em seguida respirou fundo e entrou. A conversa parou.

Um dos homens observou:

- Desculpa, querida. Este quarto é para médicos.

- Eu sou médica - respondeu Paige.

Olharam uns para os outros:

- Oh? Bem, hum… bem-vinda.

- Obrigada. - Hesitou um momento e depois dirigiu-se a um cacifo livre.

Olhou por um instante para os homens e depois, lentamente, começou a desabotoar a blusa.

Os médicos ali ficaram, sem saber o que fazer. Um deles disse:

- Talvez devêssemos hum… dar à senhorinha um pouco de privacidade, meus senhores.

A senhorinha!

- Obrigada - agradeceu Paige. Ali ficou, à espera, enquanto os médicos acabavam de se vestir e abandonavam o quarto.

“Terei de passar por isto todos os dias?”, interrogou-se.

Nas rondas hospitalares existe uma formação que nunca varia.

O médico de serviço está sempre à cabeça, seguido do residente chefe, depois os outros residentes e um ou dois estudantes de medicina. O médico de serviço a quem Paige fora atribuída era o Dr. William Radnor. Paige e cinco outros residentes estavam reunidos no vestíbulo, à espera dele.

No grupo encontrava-se um jovem médico chinês. Estendeu a mão:

- Tom Chang - disse. - Espero que todos estejam tão nervosos quanto eu.

Paige gostou imediatamente dele.

Um homem aproximou-se do grupo:

- Bom dia - disse. - Sou o doutor Radnor. - Era uma pessoa de falas mansas e cintilantes olhos azuis. Cada um dos residentes apresentou-se.

- Este é o vosso primeiro dia de rondas. Quero que prestem muita atenção a tudo o que virem e ouvirem, mas, ao mesmo tempo, é muito importante que tentem parecer calmos.

Paige fez um apontamento mental: Presta muita atenção, mas tenta parecer calma.

- Se os doentes notarem que estão tensos também ficarão tensos e, provavelmente, pensarão que estão a padecer de alguma doença que vocês lhe s querem omitir. - “Não tornes os doentes tensos.” - Lembrem-se, daqui em diante serão responsáveis pela vida de outros seres humanos.

Agora és responsável por outras vidas. Oh, meu Deus! Quanto mais o Dr.

Radnor falava, mais nervosa Paige ficava e, quando este terminou, a sua autoconfiança tinha desaparecido totalmente. Não estou pronta para isto!

Pensou. Não sei o que estou a fazer. Quem disse que eu podia ser médica?

E se eu matar alguém?

O Dr. Radnor continuou:

- Ficarei à espera de relatórios pormenorizados de cada um dos vossos doentes… análises, eletrólitos, tudo.

Entendido?

Houve um murmúrio de “Sim, doutor.” - Há sempre trinta a quarenta doentes operados de cada vez.

É vosso dever certificarem-se de que tudo está devidamente organizado para eles. Vamos agora dar início à ronda da manhã.

À tarde repetiremos a ronda.

Tudo parecia ser tão fácil na faculdade de medicina.

Paige pensou nos quatro anos que ali passou. Eram cento e cinquenta estudantes, entre os quais apenas quinze mulheres.

Nunca mais iria esquecer a primeira aula de Anatomia Macroscópica. Os estudantes tinham entrado numa enorme sala de azulejos brancos, com vinte mesas dispostas em filas, cada uma das quais coberta com uma toalha de papel amarelo. A cada grupo de cinco estudantes fora atribuída uma mesa.

O professor disse:

- Bom, retirem as toalhas.

E ali, à frente de Paige, encontrava-se o seu primeiro cadáver. Ela temia desmaiar ou sentir-se indisposta, mas sentira-se estranhamente calma. O cadáver tinha sido conservado, o que de certo modo o tinha afastado um passo da humanidade.

No início, os estudantes tinham procurado ser silenciosos e respeitosos no laboratório de anatomia. Mas, incrivelmente para Paige, ao fim de uma semana comiam sanduíches durante as dissecações e faziam brincadeiras atrevidas. Era uma forma de autodefesa, uma recusa da sua própria mortalidade. Davam nomes aos cadáveres e tratavam-nos como velhos amigos. Paige esforçou-se por agir do mesmo modo que os outros alunos, mas foi-lhe difícil. Olhou para o cadáver sobre o qual trabalhava e pensou: “Eis aqui um homem que tinha casa e família. Ia diariamente para um escritório e, uma vez por ano, gozava férias com a mulher e os filhos.

Provavelmente adorava o desporto e gostava de cinema e teatro, e ria e chorava, e via os filhos crescerem e partilhava as alegrias e tristezas deles, e tinha grandes e maravilhosos sonhos. Espero que os tenha realizado a todos…” Uma tristeza agridoce apoderara-se dela, pois ele estava morto e ela estava viva.

Com o tempo, até mesmo para Paige as dissecações se tornaram rotina.

“Abram o tórax, examinem as costelas, os pulmões, o pericárdio que envolve o coração, as veias, as artérias e os nervos.

Grande parte dos primeiros dois anos de medicina foram passados a memorizar longas listas, a que os alunos se referiam como recital orgânico.

Primeiro, os nervos cranianos: olfactório, ópico, oculomotor, troclear, trifacial, abducente, facial, auditivo, glossofaríngeo, vago, requidiano e hipoglóssico.

Os alunos utilizavam menemónicas para os ajudar a lembrar.

Uma das clássicas era: “Ora olhe m os típicos topos alvos, feitos de argila e granito, das velhas ruínas holandesas.”, A moderna versão masculina era: “Oh, oh, oh, tomar e tocar a fofa aba gorda vaginal da rapariga do hospital.

Os dois últimos anos de medicina foram mais interessantes, com cursos de medicina interna, cirurgia, pediatria e obstetrícia, e a trabalharem no hospital local. “Lembro-me da altura…,”, pensava Paige.

- Doutora Taylor… - O residente chefe olhava para ela.

Paige avançou. Os outros já iam a meio do corredor.

- Vou já - respondeu precipitadamente.

A primeira paragem foi numa ala ampla e retangular, com fileiras de camas em ambos os lados do quarto e um pequeno estrado próximo de cada cama.

Paige esperara ver cortinas a separar as camas, mas aqui não havia privacidade.

O primeiro doente era um homem idoso de tez pálida.

Estava a dormir e respirava profundamente. O Dr. Radnor aproximou-se dos pés da cama, estudou o gráfico ali colocado, em seguida dirigiu-se para o lado do doente e, suavemente, tocou-lhe no ombro:

- Senhor Potter?

O doente abriu os olhos:

- Huh?

- Bom dia. Sou o doutor Radnor. Estou apenas a verificar como vai o senhor. Passou bem a noite?

- Foi razoável.

- Sente dores?

- Sim. Dói-me o peito.

- Deixe-me ver. - Quando terminou o exame, disse:

- Está a recuperar bem. Mandarei a enfermeira dar-lhe qualquer coisa para as dores.

- Obrigado, doutor.

- Logo à tarde voltaremos a vê-lo.

Afastaram-se da cama. O Dr. Radnor voltou-se para os residentes:

- Procurem fazer perguntas que obtenham como resposta um sim ou um não, para que o doente não se canse.

E procurem animá-lo. Quero que estudem o gráfico e façam apontamentos.

Voltaremos aqui esta tarde para ver como ele está. Mantenham um registo constante das queixas mais importantes de cada doente, a atual doença, doenças anteriores, historial familiar e historial social. Bebe, fuma, etc.?

Quando tornarmos a fazer a ronda, terão de me entregar um relatório do progresso de cada doente.

Avançaram para a cama do doente seguinte, um homem com cerca de quarenta anos.

- Bom dia, senhor Rawlings.

- Bom dia, doutor.

- Esta manhã sente-se melhor?

- Nem por isso. Durante a noite, acordei várias vezes.

Dói-me o estômago.

O Dr. Radnor voltou-se para o residente chefe:

- O que é que a proctoscopia mostrou?

- Não há sinais de qualquer problema.

- Faça-lhe um enema a bário e um GI superior, stat.

O residente chefe anotou no bloco.

O residente que se encontrava ao lado de Paige segredou-lhe ao ouvido:

- Julgo que sabe o que significa stat.

EShake that ass, tootsie!”, cuja tradução é Mexe-me esse cu, filho!

O Dr. Radnor ouviu:

- Stat vem do latim, statim. “Imediatamente”.

Nos anos futuros, Paige iria ouvi-lo muitas vezes.

O doente seguinte era uma mulher idosa que tinha sido submetida a uma operação de by pass.

- Bom dia, senhora Turkel.

- Quanto tempo irão manter-me aqui?

- Não muito tempo. A operação foi um êxito. Em breve irá para casa.

E dirigiram-se ao doente seguinte.

Repetiram a rotina vezes sem conta e a manhã passou rapidamente. Viram trinta doentes. Após cada doente, os residentes escreviam freneticamente notas, esperando ser capazes de as decifrar mais tarde.

Uma doente era um quebra-cabeças para Paige. Parecia estar de perfeita saúde.

Quando se afastaram desta, Paige perguntou:

- Qual é o problema dela, doutor?

O Dr. Radnor suspirou:

- Não tem qualquer problema. Ela é uma smsu.

E para aqueles que esqueceram o que lhe s foi ensinado na faculdade, smsu é um acrónimo de “Sai da minha sala de urgências!” Os smsus são pessoas que gostam de ter uma má saúde. É o seu passatempo favorito. Dei-lhe baixa seis vezes no ano passado.

Avançaram para o doente seguinte, uma idosa com máscara respiratória que estava em coma.

- Teve um ataque cardíaco massivo - explicou o Dr. Radnor aos residentes.

- Está em coma há seis semanas. Os sinais vitais estão a enfraquecer. Nada mais podemos fazer por ela. Esta tarde vamos desligar a máquina.

Paige olhou chocada para ele:

- Desligar?

O Dr. Radnor disse, gentilmente:

- A comissão de ética do hospital tomou a decisão esta manhã. Ela é um vegetal. Tem oitenta e sete anos e está cerebralmente morta. É uma crueldade mantê-la viva e, por outro lado, está a acabar com as finanças da família.

Vê-los-ei a todos na ronda desta tarde.

Ficaram a vê-lo afastar-se. Paige voltou-se para olhar novamente para a doente. Ela estava viva. “Dentro de algumas horas estará morta. Iremos desligar a máquina esta tarde.”, isso é assassinato!”, pensou Paige.

Nessa tarde, depois de a ronda terminar, os novos residentes reuniram-se na saleta do andar superior. A sala continha oito mesas, um velho televisor a preto e branco e duas máquinas que forneciam sanduíches já ressequidas e café amargo.

As conversas de cada mesa eram quase idênticas.

Um dos residentes disse:

- Examinem a minha garganta, por favor. Está inflamada?

- Penso que tenho febre. Sinto-me mal.

- O meu abdome está inchado e mole. Sei que tenho apendicite.

- Sinto uma dor esmagadora no peito. Só peço a Deus para que não esteja a ter um ataque cardíaco!

Kat sentou-se a uma mesa com Paige e Honey:

- Como é que correu? - perguntou.

- Penso que correu tudo bem - respondeu Honey.

Ambas olharam para Paige:

- Eu estava tensa, mas relaxada. Estava nervosa, mas aparentei calma. - Suspirou: - Foi um dia longo. Ficarei feliz por sair daqui e ir divertir-me logo à noite.

- Também eu - concordou Kat. - Que tal jantarmos e depois irmos ao cinema?

- Parece-me bem.

Um funcionário aproximou-se da mesa:

- Doutora Taylor?

Paige levantou a cabeça:

- Sou eu a doutora Taylor.

- O doutor Wallace quer vê-la no gabinete dele.

O administrador do hospital! “O que é que eu fiz?” pensou Paige.

O funcionário ficou à espera:

- Doutora Taylor…

- Vou já. - Respirou profundamente e levantou-se:

- Vejo-vos mais tarde.

- Por aqui, doutora.

Paige seguiu o funcionário. Entraram no elevador e subiram até ao quinto andar, onde se situava o gabinete do Dr. Wallace.

Benjamin Wallace estava sentado à secretária. Levantou a cabeça quando Paige entrou:

- Boa tarde, doutora Taylor.

- Boa tarde.

Wallace suspirou:

- Bem! É o seu primeiro dia e já causou uma enorme impressão.

Paige olhou para ele, intrigada:

- Não… Não compreendo.

- Soube que esta manhã teve um pequeno problema no vestiário dos médicos.

- Oh. - “Então é este o problema!”

Wallace olhou para ela e sorriu:

- Suponho que tenho de organizar alguma coisa para si e para as outras raparigas.

- Nós… “Nós não somos raparigas”,, - começou Paige a dizer. - Ficar-lhe -íamos muito gratas.

- Entretanto, se não quiser vestir-se com as enfermeiras…

- Não sou enfermeira - respondeu Paige com firmeza. - Sou médica.

- Claro, claro. Bem, iremos tratar das vossas acomodações, doutora.

- Obrigada.

Entregou a Paige uma folha de papel:

- Entretanto, este é o seu horário. Ficará de serviço nas próximas vinte e quatro horas, a começar a partir das seis.

- Olhou para o relógio. - O que quer dizer, daqui por meia hora.

Paige olhou para ele, boquiaberta. O dia dela tinha-se iniciado às cinco e meia da manhã: - “Vinte e quatro horas?” - Bom, trinta e seis, na verdade. Uma vez que, de manhã, irá fazer novamente a ronda.

“Trinta e seis horas! Será que irei aguentar?” Em breve iria saber.

Paige foi procurar Kat e Honey.

- Vou ter de esquecer o jantar e o cinema - disse Paige.

- Estou de serviço por trinta e seis horas.

Kat abanou a cabeça:

- Acabámos de receber as nossas más notícias. Eu estarei de serviço amanhã e a Honey na quarta-feira.

- Não vai ser assim tão mau - respondeu Paige, mais animada.

- Soube que existe um quarto de dormir para quem está de serviço. Vou gostar disto.

Estava errada.

Um funcionário acompanhou Paige ao longo do corredor.

- O doutor Wallace informou-me que estarei de serviço durante trinta e seis horas - disse Paige. - Todos os residentes trabalham durante tantas horas?

- Apenas nos primeiros três anos - garantiu-lhe o funcionário. - “Que ótimo!” - Mas terá muitas oportunidades para descansar, doutora.

- Terei?

- Aqui. Este é o quarto de quem está de serviço. - ‘ Abriu a porta e Paige entrou. O quarto fazia lembrar a cela de um monge nalgum mosteiro muito pobre. Continha nada mais do que uma maca com um colchão aos altos e baixos, um lavatório rachado e uma mesinha-de-cabeceira onde se encontrava um telefone. - Pode dormir aqui, nos intervalos das chamadas.

- Obrigada.

As chamadas começaram quando Paige se encontrava na cafetaria, mal tinha começado a jantar.

- Doutora Taylor… SU Três… Doutora Taylor… SU Três.

E estava sempre a ser perseguida por enfermeiras.

- Temos um doente com uma costela partida…

- O senhor Henegan queixa-se de dores no peito…

- O doente da ala dois está com dores de cabeça.

Posso dar-lhe acetominofena…? à meia-noite, Paige tinha acabado de adormecer quando o telefone tocou.

- Apresente-se na SU Um. - Tratava-se de um ferimento causado por faca e, quando Paige acabou de o tratar, já era uma e meia da manhã. Às duas e um quarto foi novamente acordada.

- Doutora Taylor… Sala de Urgências Um. Stat.

Paige respondeu, ensonada:

- Tudo bem. - “O que é que ele disse que significava? Mexe esse cu, filho.”

Fez um esforço por se levantar e percorrer o corredor até à sala de urgências. Tinha dado entrada um doente com a perna partida. Este gritava de dores.

- Façam uma radiografia - ordenou Paige. - E dêem-lhe Demerol, cinquenta miligramas. - Poisou a mão no ombro do doente. - Vai ficar bom.

Procure descansar.

No sistema de altofalantes, uma metálica voz desincorporada disse:

- Doutora Taylor… Ala Três. Stat.

Paige olhou para o doente queixoso, sem vontade de o deixar.

Tornou-se a ouvir a voz:

- Doutora Taylor… Ala Três. Stat.

- Já vou - murmurou Paige. Apressou-se a sair e atravessou o corredor a correr, até à Ala Três. Um doente tinha vomitado, aspirado e estava engasgado.

- Ele não consegue respirar - disse a enfermeira.

- Façam-lhe uma sucção - ordenou Paige. Enquanto verificava o doente a recuperar a respiração, ouviu novamente o seu nome no sistema de altofalantes:

- Doutora Taylor… Ala Quatro. Ala Quatro.

Paige abanou a cabeça e correu para a Ala Quatro, para um doente que gritava de espasmos abdominais. Paige fez-lhe um exame rápido.

- Pode ser uma disfunção intestinal. Façam uma ecografia - disse Paige.

Quando voltou para junto do doente com a perna partida, o analgésico já tinha atuado. Mandou que o levassem para a sala de operações e tratou-lhe da perna. Quando estava a terminar, ouviu de novo o seu nome:

- Doutora Taylor, dirija-se à Sala de Urgências Dois.

Stat.

- A úlcera gástrica da Ala Quatro está a causar dores… às três e meia da manhã:

- Doutora Taylor, o doente do quarto 310 está com uma hemorragia…

Houve um ataque cardíaco numa das alas e Paige ouvia, nervosa, a batida cardíaca do doente quando escutou o seu nome a ser chamado no sistema de altofalantes:

- Doutora Taylor… SU Dois. Stat… Doutora Taylor… SU Dois. Stat.

“Não posso entrar em pânico”, pensou Paige. “Devo manter-me calma.”

Estava assustada. Quem era mais importante, o doente que estava a examinar ou o doente seguinte? - Fique aqui - disse futilmente. - Já volto.

Quando Paige se dirigia à SU Dois, ouviu de novo o seu nome:

- Doutora Taylor… SU Um. Stat… Doutora Taylor…

SU Um. Stat.

“Oh, meu Deus!”, pensou Paige. Teve a sensação de ter sido apanhada no meio de um terrível e interminável pesadelo.

Durante o que sobrou da noite, Paige foi acordada para atender um caso de intoxicação alimentar, um braço partido, uma hérnia hiatal e uma costela partida. Quando conseguiu regressar ao quarto dos médicos de serviço, estava tão exausta que mal conseguia mexer-se. Cambaleou até à maca e mal fechara os olhos o telefone tocou.

Pegou nele, com os olhos fechados:

- Es… tá…

- Doutora Taylor, estamos à sua espera.

- O quê? - Permaneceu deitada, tentando lembrar-se de onde estava.

- A sua ronda está a começar, doutora.

- A minha ronda? - “Esta é uma espécie de brincadeira de mau gosto”, pensou Paige. “É desumano. Não podem obrigar ninguém a trabalhar assim!” Mas estavam à sua espera.

Dez minutos mais tarde, Paige estava de novo a fazer a ronda, meio adormecida. Deu um encontrão no doutor Radnor:

- Perdão - murmurou -, mas não consegui dormir…

Este deu-lhe umas palmadinhas amigáveis no ombro:

- Irá habituar-se a isso.

Quando finalmente Paige saiu de serviço, dormiu durante catorze horas seguidas.

A pressão intensa e o ritmo de trabalho provaram ser de mais para alguns dos residentes, os quais simplesmente desapareceram do hospital. “Isso não irá acontecer comigo,”, jurou Paige.

A pressão era implacável. No final de uma das rendições de Paige, após trinta e seis esgotantes horas, estava tão exausta que não fazia ideia de onde se encontrava.

Cambaleou para o elevador e permaneceu ali, com a mente entorpecida.

Tom Chang aproximou-se dela:

- Sente-se bem?

- Estou bem - murmurou Paige.

- Está com mau aspecto - observou ele.

- Obrigada. Porque é que agem assim connosco? - perguntou Paige.

Chang deu um risinho:

- A teoria é a de que isso nos mantém em contato com os nossos doentes.

Se formos para casa e os deixarmos aqui, não sabemos o que se passa com eles enquanto estivermos fora.

- Tem lógica - anuiu ela. Não tinha nenhuma. - Como é que podemos cuidar deles se estamos a dormir em pé? Chang tornou a rir-se:

- Não sou eu que imponho as regras. É assim que todos os hospitais trabalham. - Olhou para Paige de perto:

- Vai conseguir chegar a casa?

Paige olhou para ele e afirmou arrogantemente:

- Claro que sim.

- Passe bem. - Chang desapareceu pelo corredor abaixo.

Paige esperou que o elevador chegasse. Quando finalmente chegou, ali estava ela em pé, a dormir profundamente.

Dois dias mais tarde, Paige tomava o pequeno-almoço com Kat:

- Queres ouvir uma confissão terrível? - perguntou Paige.

- Por vezes, quando me acordam às quatro da manhã para dar uma aspirina a alguém, vou a cambalear pelo corredor abaixo ainda meio a dormir e passo pelos quartos onde todos os doentes estão bem aconchegados e a ter uma boa noite de sono e fico com vontade de atirar com todas as portas e gritar “Toca a acordar!”

Kat estendeu-lhe a mão:

- Junta-te ao clube.

Os doentes eram de todos os feitios, tamanhos, idades e raças. Uns estavam assustados, outros eram corajosos, gentis, arrogantes, exigentes, compreensivos. Eram seres humanos que sofriam.

A maioria dos médicos eram dedicados aos pacientes.

Tal como em qualquer profissão, havia bons médicos e maus médicos.

Eram jovens e idosos, desajeitados e competentes, atenciosos e desagradáveis. Alguns deles, numa ou noutra altura, assediaram sexualmente Paige. Alguns eram subtis, outros rudes. - de noite, nunca se sente sozinha? Eu sei que eu sinto.

Será que…

- Estas horas matam-nos, não concorda? Sabe que descobri o que me dá energia? Uma boa vida sexual. Porque é que nós…?

- A minha mulher foi passar uns dias fora da cidade.

Tenho uma cabana próximo de Carmel. Este fim-de-semana podíamos…

- E os doentes.

- Então, a senhora é que é a minha médica, hem? Sabe o que havia de me curar…?

- Aproxima-te da cama, querida. Quero ver se isso aí é verdadeiro…

Paige cerrava os dentes e ignorava-os a todos. “Quando eu e o Alfred nos casarmos, isto irá parar.” O simples fato de pensar em Alfred deixou-a radiante. Iria regressar de Äfrica em breve. Em breve.

Uma manhã, antes da ronda, Paige e Kat conversaram sobre o assédio sexual de que estavam a ser alvo.

- Grande parte dos médicos comportam-se como perfeitos cavalhe iros, mas alguns deles parecem julgar que somos gratificações ligadas à profissão e que estamos aqui para os servir - disse Kat. - Não há semana em que pelo menos um dos médicos não me faça convites. “Porque não vem beber um copo a minha casa? Tenho alguns CD’s ótimos.” Ou que na sala de operações, quando estou a ajudar, o cirurgião esfrega o braço no meu peito.

Um tarado disse-me: “Sabe, sempre que peço frango, prefiro a carne escura.”

Paige suspirou:

- Julgam que nos estão a lisonjear tratando-nos como objetos sexuais.

Antes nos tratassem como médicas.

- Muitos deles nem sequer nos querem por perto.

Ou querem-nos foder ou nos querem foder. Sabes, não é justo.

As mulheres são consideradas inferiores até provarem o contrário, e os homens são considerados superiores até provarem ser os merdas que são.

- É a velha teoria machista - disse Paige. - Se fôssemos mais, poderíamos iniciar uma nova teoria feminina.

Paige ouvira falar de Arthur Kaine. Era o assunto da bisbilhotice constante do hospital. Tinha a alcunha do “Dr. 007-autorizado a matar”. Para ele, a solução para qualquer problema era operar e a sua taxa de operações era superior à de qualquer outro médico do hospital.

Também lhe pertencia a maior taxa de mortalidade.

Era careca e baixo, tinha nariz de papagaio e dentes manchados pelo tabaco e bastantes quilos a mais.

Incrivelmente, julgava-se desejado pelas mulheres. Gostava de considerar as novas enfermeiras e residentes femininas como “carne nova”.

Paige Taylor era carne nova. Viu-a na saleta do andar superior e sentou-se à sua mesa, sem ter sido convidado.

- Tenho-a tido debaixo de olho.

Paige levantou a cabeça, espantada:

- Como?

- Sou o doutor Kane. Os meus amigos tratam-me por Arthur.

- A voz soou maliciosa.

Paige pensou em quantos amigos poderia ele ter.

- Como se tem adapado a isto aqui?

A pergunta apanhou Paige desprevenida:

- Eu… Bem, penso eu.

Ele inclinou-se para a frente:

- Este é um hospital grande. É fácil perdermo-nos aqui.

Percebe o que quero dizer?

Paige respondeu cautelosamente:

- Não entendi muito bem.

- Você é demasiado bonita para ser apenas mais um rosto no meio da multidão. Se quiser dirigir-se a qualquer lugar, irá precisar que alguém a ajude. Alguém que conheça os caminhos.

A conversa estava a tornar-se cada vez mais desagradável.

- E o senhor gostaria de me ajudar.

- Correto. - Mostrou os dentes manchados pelo tabaco.

- Porque não falamos disso ao jantar?

- Nada tenho para falar, doutor Kane - respondeu Paige.

- Não estou interessada.

Arthur Kane, com uma expressão maléfica no rosto, ficou a ver Paige levantar-se e ir embora.

Os residentes do primeiro ano de cirurgia encontravam-se em regime de rotação por dois meses, alternando entre obstetrícia, ortopedia, urologia e cirurgia.

Paige aprendeu que era perigoso entrar num hospital de treino durante o Verão devido a doença grave, uma vez que muitos dos médicos internos se encontravam de férias e os doentes ficavam à mercê dos jovens e inexperientes residentes.

Quase todos os cirurgiões gostavam de ter música na sala de operações.

Um dos médicos foi alcunhado de Mozart e outro de Axl Rose, devido aos respectivos gostos musicais.

Por algum motivo, as operações pareciam causar sempre fome a todos.

Falavam constantemente de comida.

Um cirurgião podia estar a meio da remoção de uma vesícula biliar gangrenada de um doente e dizer:

- Ontem jantei muito bem no Bardelli’s. A melhor comida italiana em toda a São Francisco.

- Já experimentaste os bolos de caranguejo do Cypress Club?

- Se gostas de um bom bife, experimenta a House of Prime Rib, na Van Ness.

Entretanto, uma enfermeira estaria a limpar o sangue do doente.

Quando não falavam de comida, os médicos discutiam basebol ou raguebi.

- Viste o jogo do quarenta e nove no domingo passado? Aposto que sentem a falta de Joe Montana. Ele entrava sempre nos dois últimos minutos de jogo.

E lá sairia um apêndice rebentado.

“Kafka”, pensou Paige. “Kafka teria gostado disto.

Às três da manhã, quando Paige dormia no quarto dos médicos de serviço, foi acordada pelo telefone.

Uma voz grossa disse:

- Doutora Taylor… Quarto quatrocentos e desenove… um ataque cardíaco.

Terá de se apressar! - A linha caiu.

Paige sentou-se na borda da cama, lutando contra o sono e procurando erguer-se. “Terá de se apressar!” Foi para o corredor, mas não havia tempo para esperar pelo elevador.

Subiu apressadamente as escadas e atravessou a correr o corredor do quarto andar até ao quarto 419, o coração quase a sair-lhe pela boca. Abriu a porta e ali ficou, a olhar.

O quarto 419 era uma arrecadação.

Kat Hunter estava a fazer a ronda com o Dr. Richard Hutton, um quarentão brusco e rápido. Não ficava mais de dois a três minutos com cada doente, estudando o gráfico para depois dar ordens aos residentes cirúrgicos, de uma forma disparada, de tipo staccato.

- Verifiquem a hemoglobina dela e marquem a operação para amanhã…

- Estejam atentos ao gráfico de temperaturas dele…

- Comparem quatro análises sanguíneas…

- Retirem estes pontos…

- Façam algumas radiografias ao tórax…

Kat e os outros residentes estavam ocupados a anotar tudo, esforçando-se por o acompanharem.

Aproximaram-se de um doente com febres altas, que tinha dado entrada no hospital há uma semana e sido submetido a uma série de análises, sem qualquer resultado.

Quando se encontravam no corredor, Kat perguntou:

- O que se passa com ele?

- É um “SDS” - disse um residente. - “Só Deus sabe.” Fizemos radiografias, ecografias, MRIs, exames à coluna, biopsia ao fígado. Tudo.

Desconhecemos que doença terá.

Avançaram para uma ala onde um jovem, com a cabeça ligada depois de ter sido operado, se encontrava a dormir.

Quando o Dr. Hutton começou a retirar as ligaduras, o doente acordou, sobressaltado:

- O que… O que se passa?

- Sente-se - disse o Dr. Hutton em tom brusco.

O jovem começou a tremer.

“Nunca tratarei assim os meus doentes”, pensou Kat.

O doente seguinte era um homem de cerca de setenta anos, de aspecto saudável. Assim que o Dr. Hutton se aproximou da cama, o doente gritou:

- Gonzo! Vou processá-lo, seu grandessíssimo filho da puta.

- Bem, senhor Sparolini…

- Não me chame senhor Sparolini! Você transformou-me na merda de um eunuco! “É um oximoro”, pensou Kat.

- Senhor Sparolini, o senhor anuiu em fazer-se a vasectomia e…

- Essa ideia foi da minha mulher. Grande sujeito! Esperem até que eu regresse a casa.

Deixaram-no a resmungar sozinho.

- O que é que ele tem? - perguntou um dos residentes.

- O problema dele é ser um velho rabugento. A sua jovem esposa já tem seis filhos e não quer ter mais.

A seguir, era uma rapariga de dez anos. O Dr. Hutton olhou para o gráfico dela:

- Vamos dar-te uma injeão para os bichos maus se irem embora.

Uma enfermeira encheu a seringa e dirigiu-se à rapariga.

- Não! - gritou ela. - Vais magoar-me!

Isto não magoa, querida - garantiu-lhe a enfermeira.

As palavras soaram a eco escuro na mente de Kat.

“Isto não magoa, querida…”. Era a voz do padrasto a sussurrar-lhe na escuridão assustadora.

- Isto é bom. Afasta as pernas. Vamos, sua putinha! - Afastou-lhe as pernas e penetrou nela, à força, o seu membro masculino, tapando-lhe a boca a fim de evitar que gritasse de dor. Ela tinha treze anos. Depois disso, as visitas dele transformaram-se num ritual noturno aterrorizante.

- Tens sorte em ter um homem como eu para te ensinar a foder - dizia-lhe ele. - Sabes o que significa Kat? Significa gato… que persegue ratinhas. E eu quero a sua. - Depois caía-lhe em cima e prendia-a, sem que o choro ou os apelos o fizessem parar.

Kat nunca conheceu o pai. A mãe era uma mulher -a-dias que trabalhava num edifício de escritório, próximo do seu minúsculo apartamento em Gary, Indiana. O padrasto de Kat era um homem grande que se aleijara num acidente num moinho de aço e passava a maior parte do tempo em casa, a beber. Uma noite, quando a mãe de Kat saía para o trabalho, ele entrava no quarto:

- Dizes alguma coisa à sua mãe ou ao teu irmão, e eu mato-o - disse a Kat. “Não posso deixar que ele magoe Mike”, pensou Kat. O irmão era cinco anos mais novo e Kat adorava-o. Ela cuidava dele, protegia-o e até lhe resolvia as brigas. Ele era o seu único motivo de alegria.

Uma manhã, aterrada como estava devido às ameaças do padrasto, decidiu que tinha de contar à mãe tudo o que estava a acontecer. A mãe iria pôr um fim, iria protegê-la.

- Mamã, o teu marido vem todas as noites para a minha cama enquanto estás fora e obriga-me a ter relações.

Por um momento, a mãe ficou a olhar para ela e depois deu-lhe uma bofetada na cara.

- Comoseatreves a inventar mentiras dessas, sua peste! Kat nunca mais tocou no assunto. Apenas ficou em casa por Mike. “Sentir-se-ia perdido sem mim”, pensou ela. Mas quando soube que estava grávida, fugiu para casa de uma tia que vivia em Minneapolis. A partir de então, a sua vida mudou completamente.

- Não precisas de me contar o que aconteceu - dissera-lhe a tia Sophie. - Conheces aquela canção que eles cantam na Sesame Street? “Não é Fácil Ser Verde”? Bem querida, mas também não é fácil ser negro. Tens duas escolhas. Continuas a fugir, a esconder e a culpar o mundo dos teus problemas, ou levantas-te sozinha e decides ser alguém importante.

- O que é que tenho de fazer?

- Tens de saber que és importante. Primeiro, crias na sua mente uma imagem de quem gostarias de ser e o que gostarias de ser, filha. E depois esforças-te por te tornares nessa pessoa.

- Não quero ter este bebê - decidiu Kat. - Quero fazer um aborto.

Este foi calmamente efetuado durante um fim-de-semana, por uma parteira amiga da tia de Kat. Quando tudo acabou, Kat pensou ferozmente: “Nunca mais deixarei que um homem me toque. Nunca mais!”

Para Kat, Minneapolis era um país de fadas. Próximo de quase todas as casas havia lagos, fontes e rios. E havia mais de 320 hectares de zonas verdes. Velejou nos lagos da cidade e fez passeios de barco no Mississípi.

Visitou o Great Zoo com a tia Sophie e passou vários domingos no Valleyfair Amusement Park. Participou em corridas de sacos no Cedar Creek Farm e viu combates de cavaleiros com armadura no Shakopee Renaissance Festival.

A tia Sophie olhou para Kat e pensou: “Esta miúda nunca teve uma infância”.

Kat estava a aprender a divertir-se mas a tia Sophie sentia que bem lá no íntimo da sobrinha, havia um lugar que ninguém conseguia alcançar, uma barreira que ela mesma levantara para não voltar a sofrer.

Fez amizades na escola. Mas nunca com rapazes. As amigas saíam com rapazes, mas Kat era uma solitária e demasiado orgulhosa para explicar a alguém o porquê.

Olhou para a tia, de quem gostava muito.

Kat estava pouco interessada na escola ou em ler livros, mas a tia Sophie alterou tudo isso. A casa estava repleta de livros e o entusiasmo de Sophie relativamente a eles era contagiante.

- Ali há palavras maravilhosas - disse à rapariga.

- Lê e ficarás a saber de onde vens e para onde irás.

Tenho o palpite de que um dia serás famosa, querida. Mas primeiro terás de estudar. Isto é a América. Podes vir a ser tudo o que quiseres. Podes ser negra e pobre, mas também o eram algumas das nossas congressistas e estrelas de cinema, cientistas e heróis desportistas. Um dia teremos um presidente negro. Podes ser tudo o que quiseres.

Tudo depende de você.

Era o começo.

Kat tornou-se na melhor aluna da turma. Era uma leitora ávida. Um dia, na biblioteca da escola, pegou por acaso numa cópia de Arro”smith, de Sinclair Lewis, e ficou fascinada com a história do jovem e dedicado médico.

Leu Promises to Keep de Agnes Cooper, que lhe abriu um mundo novo.

Descobriu que neste mundo havia pessoas que se dedicavam a ajudar os outros, a salvar-lhe s a vida. Um dia, quando Kat regressou da escola, disse à tia Sophie:

- Vou ser médica. E famosa.

Na segunda-feira de manhã, os gráficos de três doentes de Paige tinham desaparecido e ela foi dada como culpada.

Na quarta-feira, Paige foi acordada às quatro da manhã.

Sonolenta, pegou no telefone:

- Doutora Taylor…

Silêncio.

- Está?… Está?…

Ouvia a respiração de alguém no outro lado da linha.

Em seguida, ouviu um click.

Paige permaneceu acordada durante o resto da noite.

De manhã, disse a Kat:

- Ou estou a ficar paranóica ou alguém me odeia. - E contou-lhe o que se passara.

- Por vezes, os doentes guardam rancor aos médicos - disse Kat. - Sabes de alguém que…?

Paige lamentou:

- Dúzias.

- Tenho a certeza de que não é caso para te preocupares.

Paige desejou poder acreditar nisso.

Nos finais do Verão chegou o telegrama mágico. Ali ficou à espera que Paige chegasse ao apartamento, já noite adiantada.

Dizia: “Chego São Francisco ao meio-dia de domingo. Anseio ver-te.

Amor. Alfred.”

Finalmente regressava para junto dela! Paige leu o telegrama vezes sem conta, ficando cada vez mais animada.

Alfred! O nome dele evocava um caleidoscópio confuso de recordações excitantes…

Paige e Alfred cresceram juntos. Os pais faziam parte de uma equipa de médicos da oMs que viajara para países do Terceiro Mundo, a fim de lutarem contra doenças exóticas e virulentas.

Paige e a mãe acompanharam o Dr. Taylor, que chefiava a equipa.

Paige e Alfred tiveram uma infância de fantasia. Na índia, Paige aprendeu a falar hindi. Aos dois anos, sabia que o nome para a cabana de bambu onde viviam era basha. O pai era gorashaib, homem branco, e ela era nani, irmãzinha. Tratavam o pai de Paige como abadhan, o chefe, ou baba, pai.

Quando os pais de Paige não estavam por perto, ela bebia bhanga, uma bebida intoxicante feita com folhas de haxixe, e comia chapati com ghi.

Depois, foram para Äfrica. Partiram para outra aventura.

Paige e Alfred habituaram-se a nadar em rios onde havia crocodilos e hipopótamos. Os animais de estimação eram filhotes de zebras, chitas e cobras. Cresceram em cabanas redondas e sem janelas, feitas de adobe, com chão de terra batida e telhados cónicos de colmo. “Um dia”, prometeu Paige a si própria, “irei viver numa verdadeira casa no meio de uma bonita quinta, com relva verdinha e paliçada branca.” Tanto para os médicos como para as enfermeiras, a vida era dura e frustrante, mas para as duas crianças, viver na terra dos leões, girafas e elefantes era uma aventura constante.

Frequentaram escolas primitivas, feitas de adobes, e, quando não havia uma por perto, tinham precepores.

Paige foi uma criança inteligente e o cérebro era uma esponja que absorvia tudo. Alfred adorava-a.

- Um dia casarei contigo, Paige - disse-lhe quando ela tinha doze anos e ele catorze.

- Também irei casar-me contigo, Alfred.

Eram duas crianças sérias, determinadas em passar o resto da sua vida juntos.

Os médicos da onZs eram homens generosos e dedicados e mulheres devotas ao seu trabalho. Muitas vezes trabalhavam em circunstâncias quase impensáveis. Em Äfrica, tinham de competir com o zeogesha - praticantes de medicina nativa cujos remédios primitivos foram transmitidos de pais para filhos, muitas vezes com efeitos letais.

O remédio tradicional dos Masai para feridas abertas era o olkilorite, uma mistura de sangue de boi, carne crua e essência de uma raiz misteriosa.

O remédio dos Kikuyu para a varíola era obrigar a doença a sair das crianças, batendo-as com paus.

- Têm de parar com isso - dizia-lhe s o Dr. Taylor.

- Isso não ajuda.

- É melhor do que vos deixar espetar agulhas na nossa pele - respondiam eles.

Os dispensários eram mesas alinhadas sob as árvores, onde se efetuavam as operações. Os médicos viam centenas de doentes por dia e havia sempre uma enorme fila à espera de serem vistos - leprosos, nativos com tuberculose, coqueluche, varíola, disenteria.

Paige e Alfred eram inseparáveis. Quando cresceram, fizeram caminhadas até ao mercado, numa aldeia situada a alguns quilómetros. E conversaram sobre planos para o futuro de ambos.

A medicina fez parte da vida de Paige, desde muito cedo.

Aprendeu a cuidar de doentes, a dar injeões e a receitar medicamentos e antecipou formas de ajudar o pai.

Paige gostava do pai. Curt Taylor era o homem mais cuidadoso e generoso que jamais conhecera. Gostava genuinamente das pessoas, dedicando a sua vida a ajudar os que precisassem dele; 4transmitiu essa paixão a Paige.

Apesar das longas horas de trabalho, arranjava sempre tempo para estar com a filha.

Tornou agradável o desconforto dos lugares primitivos onde viveram.

A relação de Paige com a mãe era algo diferente. Esta era uma beldade vinda de uma classe social abastada.

A sua fria indiferença mantinha Paige afastada. Casar com um médico que iria trabalhar para lugares distantes e exóticos tinha-lhe parecido romântico, mas a realidade dura tornara-a numa pessoa amarga. Não era uma mulher calorosa e meiga e, para Paige, parecia estar sempre a queixar-se.

“Porque é que tivemos de vir para este lugar esquecido por Deus, Curt?”; “Aqui as pessoas vivem como animais.

Vamos apanhar algumas das suas terríveis doenças”; “Porque é que não podes praticar medicina nos Estados Unidos e ganhar dinheiro como os outros médicos?”

E de muito mais se queixou ela.

Quanto mais a mãe o criticava, mais Paige gostava do pai.

Quando fez quinze anos, a mãe fugiu com o dono de uma grande plantação de cacau no Brasil.

- Ela não vai voltar, não é? - perguntou Paige.

- Não, querida. Desculpa.

- Fico feliz! - Não foi isso que quis dizer. Estava magoada por a mãe se ter preocupado tão pouco com ela e com o pai, acabando por abandoná-los.

A experiência fez com que Paige se aproximasse ainda mais de Alfred Turner. Jogavam e assistiam juntos a explicações e até partilhavam os sonhos.

- Também vou ser médico quando crescer - confidenciou Alfred. - Havemos de nos casar e iremos trabalhar juntos.

- E teremos muitos filhos!

- Certo. Se voce quiser…

Na noite em que Paige fez dezeseis anos, a sua perpétua intimidade emocional atingiu uma nova dimensão.

Numa pequena aldeia da Äfrica Oriental, os médicos tinham sido chamados de urgência devido a uma epidemia e só Paige, Alfred e uma cozinheira ficaram no acampamento.

Jantaram e foram-se deitar. Mas, a meio da noite, Paige foi acordada pelo som distante e ensurdecedor de animais em fuga.

Manteve-se deitada e, à medida que o tempo passava e o som se aproximava, começou a sentir medo.

A respiração tornou-se mais acelerada. Ninguém sabia quando é que o pai e os outros iriam regressar.

Sentou-se. A tenda de Alfred encontrava-se a poucos metros de distância.

Aterrorizada, levantou-se, afastou o pano da porta e correu para a tenda de Alfred.

Este dormia.

- Alfred!

Sentou-se e despertou imediatamente:

- Paige? Aconteceu alguma coisa?

- Tenho medo. Posso deitar-me um bocado contigo?

- Claro. - Ficaram deitados a ouvir os animais a passarem a grande velocidade.

Em poucos minutos, o som começou a desaparecer.

Alfred teve consciência do calor emanado pelo corpo de Paige ali deitado junto ao seu.

- Paige, acho que é melhor regressares à sua tenda.

Paige sentiu a dureza do membro masculino pressionado contra si.

Todas as necessidades físicas que se foram formando dentro deles subiram rapidamente à superfície.

- Alfred.

- Sim? - A voz soou rouca.

- Vamo-nos casar, não é?

- Sim.

- Então não há problema.

Os sons da selva à sua volta desapareceram e começaram a explorar e descobrir um mundo que ninguém mais possuía senão eles. Eram os primeiros amantes do mundo e sentiram-se glorificados com tal milagre.

Ao amanhecer, Paige rastejou até à tenda dela e pensou, feliz: “Já sou uma mulher ”.

De tempos em tempos, Curt Taylor sugeria que Paige regressasse aos Estados Unidos para viver com o tio na sua bela casa de Deerfield, no norte de Chicago.

- Porquê? - perguntava Paige.

- Para que possas vir a ser uma senhorinha bem formada.

- Sou uma senhorinha bem formada.

- As senhorinhas bem formadas não brincam com macacos selvagens nem tentam montar zebras bebês.

A resposta dela era sempre a mesma:

- Não vou deixar-te.

Quando Paige fez dezesete anos, a equipa da oMs foi para uma aldeia da selva na Äfrica do Sul, a fim de lutarem contra uma epidemia de tifo. Para agravar a situação, pouco depois dos médicos terem chegado rebentou a guerra entre duas tribos locais. Curt Taylor foi aconselhado a ir-se embora.

- Não posso, por Deus. Tenho doentes que morrerão se eu os abandonar.

Quatro dias depois, a aldeia foi atacada. Paige e o pai esconderam-se na sua pequena cabana, ouvindo lá fora a gritaria e a fuzilaria.

Paige estava aterrorizada;

- Vão-nos matar!

O pai abraçou-a:

- Eles não nos farão mal, querida. Estamos aqui para os ajudar. Sabem que somos amigos.

E tinha razão.

O chefe de uma das tribos entrara na cabana com alguns dos seus guerreiros:

- Não se preocupem. Nós proteger-vos-emos. - E assim o fizeram.

As lutas e os tiros finalmente pararam, mas, de manhã, Curt Taylor tomara uma decisão.

Enviou um telegrama ao irmão: “Paige segue no próximo avião. Enviarei os pormenores. Por favor, vai buscá-la ao aeroporto.”

Paige ficou furiosa quando soube da notícia. Soluçava fortemente quando foi levada para o pequeno e empoeirado aeroporto onde um Piper Club esperava para a levar para uma cidade onde pudesse apanhar um avião para Joanesburgo.

- Estás a mandar-me embora porque queres ver-te livre de mim! - disse a chorar.

O pai abraçou-a fortemente:

- Amo-te acima de tudo, querida. Vou sentir sempre a sua falta. Mas em breve regressarei aos Estados Unidos e ficaremos juntos de novo.

- Prometes?

- Prometo.

Alfred também estava lá para se despedir de Paige.

- Não te preocupes - disse a Paige. - Irei buscar-te assim que puder.

Esperas por mim?

Depois de tantos anos, era uma pergunta estúpida.

- É claro que sim.

Três dias depois, quando o avião aterrou no Aeroporto O’Hare de Chicago, lá estava o tio Richard à espera de Paige. Esta ainda não o conhecia.

Apénas sabia que era um homem de negócios muito rico cuja esposa tinha falecido há já muitos anos. “É o membro da família mais bem sucedido”, dizia-lhe sempre o pai.

As primeiras palavras do tio deixaram Paige boquiaberta:

- Paige, lamento ter de te dizer isto, mas acabei de saber que o teu pai foi assassinado numa luta nativa.

Num só instante, todo o seu mundo desaparecera.

A dor era tão intensa que ela julgou não ser capaz de a suportar. “Não deixarei que o meu tio me veja a chorar”, decidiu Paige. “Não deixarei.

Não devia ter saído de lá.

Vou regressar.”

No trajeto para casa, Paige viu através da janela o enorme trânsito da cidade.

- Detesto Chicago.

- Porquê, Paige?

- É uma selva.

Richard não permitiu que Paige regressasse a Äfrica para assistir ao funeral do pai e isso enfureceu-a.

Tentou que ela compreendesse:

- Paige, o teu pai já foi enterrado. Não há motivo para regressares.

Contudo, havia um motivo: Alfred estava lá.

Alguns dias após a chegada de Paige, o tio sentou-se com ela para falarem do futuro.

- Nada tenho para conversar - informou-lhe Paige.

- Vou ser médica.

Aos vinte e um anos Paige terminou o liceu, concorreu a dez universidades de medicina e foi aceite por todas elas.

Escolhe u uma de Bóston.

Foram precisos dois dias para conseguir falar com Alfred, por telefone, no Zaire, onde trabalhava em tempo parcial numa unidade da oMs.

Quando Paige lhe deu as notícias, ele respondeu:

- Que bom, querida. Já pouco falta para acabar o meu curso de medicina.

Ficarei uns tempos com a onzs, mas dentro de alguns anos iremos exercer juntos a nossa profissão.

“Juntos.,” A palavra mágica.

- Paige, estou ansioso por te ver. Se puder ausentar-me por alguns dias, poderás encontrar-te comigo no Havai? Não houve a menor hesitação:

- Sim.

E ambos conseguiram. Mais tarde, Paige só imaginava o quão difícil deveria ter sido a viagem de Alfred, mas este nunca o mencionou.

Passaram juntos três incríveis dias num pequeno hotel de Havai, chamado Sunny Cove, e foi como se nunca tivessem estado afastados um do outro.

Paige pensou em pedir a Alfred que regressasse a Bóston com ela, mas sabia que seria muito egoísta se o fizesse. O trabalho que ele estava a fazer era demasiado importante.

No último dia que passaram juntos, quando se vestiam, Paige perguntou:

- Para onde serás enviado, Alfred?

- Gâmbia, ou talvez Bangladesh.

“Para salvar vidas, para ajudar os que precisam desesperadamente dele.”

Abraçou-se a ele com força e fechou os olhos. Não o queria deixar partir.

Como se lhe tivesse lido os pensamentos, ele disse:

- Nunca irei permitir que me deixes.

Paige começou a faculdade de medicina e tanto ela como Alfred correspondiam-se regularmente. Onde quer que estivesse, Alfred conseguia telefonar a Paige no dia do aniversário e no Natal. Próximo do Ano Novo, quando Paige estava no segundo ano de medicina, Alfred telefonou:

- Paige?

- Querido! Onde estás?

- No Senegal. Calculo que são apenas cerca de treze mil quilómetros do Hotel Sunny Cove.

Foi preciso um minuto para que entendesse o significado.

- Quer dizer…?

- Podes encontrar-te comigo no Havai no Ano Novo?

- Oh, sim! Sim!

Alfred atravessou quase metade do mundo para se encontrar com ela e desta vez a magia foi ainda maior.

‘ O tempo parara para ambos.

- No próximo ano tomarei a direão da minha própria equipa da oMs - disse Alfred. - Quando terminares os estudos, vamos casar…

Conseguiram juntar-se mais uma vez e quando isso não era possível, as cartas encurtavam o tempo e o espaço.

Todos aqueles anos trabalhou como médico nos países do Terceiro Mundo, tal como o seu pai e o de Paige, fazendo o trabalho maravilhoso que eles tinham feito. Agora, finalmente, regressava de vez para ela.

Quando Paige leu pela quinta vez o telegrama de Alfred, pensou: “ Vem para São Francisco!

Kat e Honey estavam nos respectivos quartos, a dormir. Paige acordou-as:

- Alfred chega em breve! Falta pouco tempo! Estará aqui no domingo!

- Que maravilha - murmurou Kat. - Porque não me acordas só no domingo? Acabei de me deitar.

Honey reagiu melhor. Sentou-se e disse:

- Que bom! Estou ansiosa por o conhecer. Há quanto tempo não o vês?

- Dois anos - respondeu Paige -, mas mantivemo-nos sempre em contato.

- És uma rapariga sortuda - suspirou Kat. - Bem, já estamos todas acordadas. Vou fazer café.

As três sentaram-se à mesa da cozinha.

- Porque não fazemos uma festa ao Alfred? - sugeriu Honey.

- Uma espécie de festa de “Boas-vindas ao Noivo”,?

- É uma boa ideia - concordou Kat.

- Vamos torná-la numa verdadeira celebração… com bolo, balões… e até fogo de artifício!

- Faremos aqui o jantar para ele - disse Honey.

Kat abanou a cabeça:

- Já provei dos teus pratos. Vamos encomendar comida de fora.

Faltavam ainda quatro dias para o domingo e passaram todo o tempo livre a falar da chegada de Alfred. Por milagre, as três estavam de folga no domingo.

No sábado, Paige conseguiu ir a um salão de beleza.

Fez algumas compras e adquiriu, radiante, um vestido novo.

- Fico bem? Acham que ele irá gostar?

- Ficas sensacional! - garantiu Honey. - Espero que ele te mereça.

Paige sorriu: - Espero que eu o mereça. Vocês irão gostar dele. Ele é fantástico!

No domingo, o elaborado almoço que elas encomendaram estava disposto na mesa de jantar, com uma garrafa de champanhe gelado. Nervosas, as mulheres permaneceram à espera que Alfred chegasse.

Às duas horas, a campainha tocou e Paige correu para a porta e abriu-a. Ali estava Alfred. Com um aspecto um tanto cansado e ligeiramente mais magro. Mas era o seu Alfred. Ao seu lado encontrava-se uma morena que aparentava ter cerca de trinta anos.

- Paige! - exclamou Alfred.

Paige atirou-se-lhe ao pescoço. Depois, voltou-se para Honey e para Kat e disse com orgulho:

- Este é Alfred Turner. Alfred, estas são as minhas companheiras, Honey Taft e Kat Turner.

- Muito prazer - disse Alfred, voltando-se para a mulher que estava ao seu lado. - E esta é Karen Turner, minha mulher.

As três mulheres ficaram paralisadas.

Paige disse lentamente:

- A sua mulher?

- Sim. - disse, franzindo as sobrancelhas. - Não… não recebeste a minha carta?

- Carta?

- Sim. Enviei-a há várias semanas.

- Não…

- Oh. Eu… lamento sinceramente. Expliquei tudo na minha… mas é claro, se não a recebeste a… - A voz começou a desaparecer. - Lamento sinceramente, Paige.

Nós os dois estivemos tanto tempo afastados que eu… e depois conheci a Karen… e sabes como é…

- Eu sei como é - respondeu Paige, ainda não refeita.

Voltou-se para Karen e forçou um sorriso: - Eu… espero que ambos sejam felizes.

- Obrigada.

Houve um silêncio embaraçoso.

Karen disse:

- Acho que é melhor irmos embora, querido.

- Sim, acho melhor - respondeu Kat.

Alfred passou a mão pelos cabelos:

- Lamento muito, Paige. Eu… bem… adeus.

- Adeus, Alfred.

As três mulheres ali ficaram a ver partir o casal recém-casado.

- Que grande filho da puta! - disse Kat. - Mas que ato de malvadez.

Os olhos de Paige encheram-se de lágrimas.

- Eu… ele não queria… quero dizer… deve ter explicado tudo na carta.

Honey abraçou Paige:

- Devia haver uma lei que permitisse que todos os homens fossem castrados.

- Brindo a isso - afirmou Kat.

- Desculpem - disse Paige. Correu para o quarto e fechou a porta atrás de si.

Não saiu de lá o resto do dia.

Durante os meses seguintes, Paige poucas vezes esteve com Kat e Honey.

Tomavam juntas um pequeno-almoço rápido na cafetaria e às vezes cruzavam-se nos corredores.

Comunicavam-se principalmente através de notas deixadas no apartamento.

- O jantar está no frigorífico.

- O microndas está desligado.

- Desculpem, não tive tempo para limpar tudo.

- Que tal irmos as três jantar fora no sábado? O horário impossível continuou a ser castigador, pondo à prova a resistência de todos os residentes.

Paige agradeceu a pressão. Não lhe sobrava tempo para pensar em Alfred e no maravilhoso futuro que tinham planejado juntos.

No entanto, não conseguia esquecê-lo.

O que ele fizera tinha-a enchido de uma dor que se recusava a abandoná-la.

Ela torturava-se com o jogo fútil de “e se?”.

E se eu tivesse ficado com o Alfred em Äfrica? E se ele tivesse vindo para Chicago comigo? E se ele não tivesse conhecido a Karen? E se…?

Uma sexta-feira, quando Paige foi ao vestiário para vestir a bata, nesta estava escrita a palavra “cabra” com marcador preto.

Na manhã seguinte, quando Paige foi procurar o bloco de notas, não conseguiu encontrá-lo. Todos os seus apontamentos tinham desaparecido.

“Talvez o tenha pousado noutro lugar”, pensou Paige.

Mas não conseguia acreditar nisso.

O mundo fora do hospital deixara de existir. Paige sabia que o Iraque estava a atacar o Kuwait e que isso tinha sido abafado pelos cuidados exigidos por um doente de quinze anos com leucemia. No dia em que as Alemanhas Oriental e Ocidental se uniram, Paige estava ocupada a tentar salvar a vida de um doente diabético. Margaret Thatcher demitiu-se de primeira-ministro da Grã-Bretanha, mas, ainda mais importante, o doente do 214 tinha voltado a andar.

O que tornou tudo suportável foram os médicos com quem Paige trabalhava. Com algumas excepções, tinham-se dedicado a sarar os outros, aliviando-lhe s as dores e salvando-lhe s a vida.

Paige assistiu aos milagres que eles efetuavam todos os dias e isso fê-la sentir-se orgulhosa.

A pressão maior vinha da SU. A sala de urgências estava constantemente cheia de pessoas, que sofriam de todas as formas imaginárias de traumas.

As prolongadas horas no hospital e as pressões causavam tensão nos médicos e enfermeiras que ali trabalhavam. A taxa de divórcios entre os médicos era extraordinariamente elevada e as relações extraconjugais eram comuns.

Tom Chang era um dos que tinham problemas. Falou disso a Paige durante a pausa para um café.

- Consigo suportar as horas - confidenciou Chang -, mas a minha mulher não consegue. Queixa-se que já não me vê e que sou um estranho para a minha filhinha.

Ela tem razão. Não sei o que fazer.

- A sua mulher já visitou o hospital?

- Não.

- Porque não a convidas para almoçar, Tom? Deixa-a ver o que fazes aqui e a importância que isso tem.

Chang animou-se:

- Boa ideia. Obrigado, Paige. Vou fazer isso. Gostaria que a conhecesses.

Queres almoçar connosco?

- Com todo o prazer.

A mulher de Chang, Sye, era uma encantadora jovem de beleza clássica.

Chang mostrou-lhe o hospital e depois almoçaram com Paige na cafetaria.

Chang disse a Paige que Sye nascera e fora criada em Hong Kong.

- Gosta de São Francisco? - perguntou Paige.

Houve um breve silêncio:

- É uma cidade interessante - respondeu Sye, delicadamente -, mas sintome como se fosse uma estranha aqui. É uma cidade demasiado grande e barulhe nta.

- Mas, segundo me disseram Hong Kong também é grande e barulhe nta.

- Sou de uma pequena aldeia situada a uma hora de Hong Kong.

Ali não há barulho nem automóveis e todos se conhecem uns aos outros. - Olhou para o marido:

- Lá, Tom, eu e a nossa filhinha éramos muito felizes.

Tudo é muito bonito na ilha de Lamma. Possui praias de areia branca e pequenas quintas e muito próximo encontra-se uma pequena aldeia de pescadores, Sak Kwu Wan. É muito pacífica.

- A voz soou muito nostálgica:

- Eu e o meu marido ficávamos juntos a maior parte do tempo, tal como deve estar uma família. Aqui, nunca o vejo.

Paige respondeu:

- Senhora Chang, sei que neste momento tudo é difícil para si, mas dentro de alguns anos Tom poderá abrir o seu próprio consultório e então tudo será mais fácil.

Tom Chang pegou na mão da mulher:

- Vês? Tudo ficará bem, Sye. Terás de ter paciência.

- Eu compreendo - respondeu ela, mas não havia convicção na voz.

Enquanto conversavam entrou um homem na cafetaria e, quando este parou junto à porta, Paige apenas conseguiu ver-lhe a parte de trás da cabeça. O coração começou a bater mais depressa. Ele voltou-se. Era um completo estranho.

Chang olhava para Paige:

- Sentes-te bem?

- Sim - mentiu Paige. “Tenho de o esquecer. Tudo acabou.” No entanto, as recordações de todos aqueles maravilhosos anos, o divertimento, a excitação, o amor que tinham um pelo outro… “Como é que eu esqueço tudo isso? Será que consigo persuadir um dos médicos daqui a fazer-me uma lobotomia?

Numa das correrias, Paige encontrou-se com Honey no corredor. Esta arfava e parecia preocupada.

- Está tudo bem? - perguntou Paige.

Honey tentou sorrir:

- Sim. Tudo bem. - E continuou a correr.

Recentemente, Honey fora designada para assistir um médico de nome Charles Isler, conhecido no hospital como militar severo.

No primeiro dia de rondas de Honey, ele dissera:

- Tenho estado ansioso por trabalhar consigo, doutora Taft.

O doutor Wallace falou-me do seu registo espetacular na escola de medicina. Foi-me dito que vai praticar medicina interna.

- Sim.

- Muito bem. Então, tê-la-ei aqui por mais três anos.

Começaram a ronda.

O primeiro doente era um jovem mexicano. O Dr. Isler ignorou os outros residentes e voltou-se para Honey:

- Penso que este será um caso interessante para si, doutora Taft. O doente possui todos os sinais e sintomas clássicos: anorexia, perda de peso, paladar metálico, fadiga, anemia, hiperirritabilidade e descoordenação.

Como diagnosticaria? - sorriu, expetante.

Por um momento, Honey olhou para ele:

- Bem, podem ser uma série de coisas, não é assim? O Dr. Isler olhou para ela, confuso:

- É um caso claro de…

Um dos outros residentes interrompeu:

- Envenenamento por chumbo?

- Exato - respondeu o Dr. Isler.

Honey sorriu:

- Claro. Envenenamento por chumbo.

O Dr. Isler voltou-se novamente para Honey:

- Como o trataria?

Honey respondeu evasivamente:

- Bem, existem vários métodos de tratamento, não é assim? Um outro residente afirmou:

- Se o doente esteve exposto por muito tempo, deverá ser tratado como um caso potencial de encefalopatia.

O Dr. Isler anuiu:

- Exato. É isso que estamos a fazer. Estamos a corrigir a desidratação e os distúrbios por eletrólitos e a administrar-lhe terapia de quelação.

O doente seguinte era um homem de cerca de oitenta anos.

Tinha os olhos vermelhos e as pálpebras praticamente coladas.

- Daqui a pouco iremos tratar-lhe dos olhos - garantiu-lhe o Dr. Isler. - Como se sente?

- Oh, não estou tão mal assim para um velho.

O Dr. Isler puxou o cobertor a fim de destapar os joelhos e tornozelos inchados. Havia lesões nas solas dos pés.

Voltando-se para os residentes:

- O inchaço é causado pela artrite. - Olhou para Honey: - Em combinação com as lesões e a conjuntivite, tenho a certeza que sabe qual é o diagnóstico.

Honey respondeu lentamente:

- Bem, pode ser… sabe…

- É a síndroma de Reiter - afirmou um dos residentes. - A causa é desconhecida. Normalmente é acompanhada de febres baixas.

O Dr. Isler anuiu:

- Exatamente. - Olhou para Honey: - Qual é o seu prognóstico?

- O prognóstico?

O residente respondeu:

- O prognóstico é incerto. Pode ser tratado com anti-inflamatórios.

- Muito bem - elogiou o Dr. Isler.

Visitaram uma dúzia de doentes e, quando terminaram, Honey perguntou ao médico:

- Poderei falar um momento a sós consigo, doutor Isler?

- Sim. Venha ao meu gabinete.

Quando já se encontravam comodamente sentados, Honey começou:

- Sei que ficou desapontado comigo.

- Admito que fiquei um pouco surpreendido por…

- Eu sei, doutor Isler. - interrompeu Honey. - Não dormi a noite passada.

Para dizer a verdade, fiquei tão satisfeita por trabalhar consigo que eu… não consegui dormir.

Olhou para ela, surpreendido:

- Oh. Compreendo. Sabia que tinha de haver uma explicação para… quero dizer, o seu registo da faculdade de medicina era tão fantástico. O que a fez decidir ser médica? Por momentos Honey baixou a cabeça e depois respondeu, suavemente:

- Tive um irmão mais novo que ficou aleijado num acidente.

Os médicos fizeram tudo o que puderam para o salvar… mas vi-o morrer.

Durou muito tempo e senti-me inútil. Foi então que decidi passar a minha vida a ajudar os outros a melhorar.

- Os olhos encheram-se de lágrimas.

“É tão vulnerável”,, pensou Isler.

- Estou satisfeito por termos tido esta conversa.

Honey olhou para ele e pensou: “Ele acreditou em mim.

Numa outra zona da cidade, jornalistas e pessoal da televisão esperavam na rua por Lou Dinetto quando este saiu do tribunal, sorrindo e acenando de forma imponente para os que ali se encontravam. Estavam dois guardacostas ao seu lado: um alto e magro, conhecido por o Sombra, e o outro de aspecto pesado, chamado Rhino.

Como sempre, elegante e dispendiosamente, Lou Dinetto vestia um fato de seda cinzenta com camisa branca, gravata azul e sapatos de pele de crocodilo. As suas roupas tinham de ser cuidadosamente talhadas para o fazerem parecer bem alinhado, uma vez que era baixo e corpulento, com pernas arqueadas.

Tinha sempre um sorriso e um gracejo pronto para a imprensa e estes gostavam de o citar. Dinetto tinha sido indiciado e julgado três vezes por acusações que iam de incêndio premeditado a chantagem e assassinato, livrando-se de todas elas.

Naquele momento, quando ele saía do tribunal, um dos jornalistas gritou:

- Sabia que ia ser absolvido, senhor Dinetto? Dinetto deu uma gargalhada:

- Claro que sabia. Sou um homem de negócios inocente. O Governo não sabe fazer mais nada senão perseguir-me. Essa é uma das razões por que os nossos impostos são tão elevados.

Uma câmara de televisão estava apontada para ele. Ao saber-se focado, Lou Dinetto deixou de sorrir.

- Senhor Dinetto, pode explicar porque é que duas testemunhas que iriam depor contra si no julgamento por assassinato não compareceram?

- É claro que posso - disse Dinetto. - Eram cidadãos honestos que decidiram não prestar falsos testemunhos.

- O Governo afirma que o senhor é o chefe da mafia da costa ocidental e que foi o senhor que organizou…

- A única coisa que eu organizei foi o lugar onde as pessoas se sentam no meu restaurante. Quero que todos se sintam confortáveis. - Sorriu para o grupo de jornalistas. - A propósito, esta noite estão todos convidados para jantar e beber à borla no restaurante.

Avançou em direão ao passeio, onde uma limusina preta o esperava.

- Senhor Dinetto…

- Senhor Dinetto…

- Senhor Dinetto…

- Vejo-vos logo à noite no meu restaurante, rapazes e raparigas. Todos sabem onde fica.

E Lou Dinetto entrou no carro, acenando e sorrindo.

Rhino fechou a porta da limusina e sentou-se no banco da frente. O Sombra sentou-se ao volante.

- Foi fantástico, patrão! - disse Rhino. - O senhor sabe mesmo bem como manobrar-lhe s o rabo.

- Aonde vamos? - perguntou o Sombra.

- Para casa. Sabia-me bem tomar um banho quente e comer um bom bife.

O carro partiu.

- Não gostei daquela pergunta sobre as testemunhas - disse Dinetto. - Têm a certeza de que eles nunca…

- A não ser que consigam falar debaixo de água, patrão.

Dinetto anuiu:

- Muito bem.

O carro atravessou veloz a Fillmore Street. Dinetto perguntou:

- Viram o olhar do advogado de acusação quando o juiz se retirou…?

De repente, surgiu um pequeno cão mesmo à frente da limusina. O Sombra virou rapidamente o volante para evitar atropelá-lo e travou a fundo. O carro subiu o passeio e bateu num poste de eletricidade. Rhino bateu com a cabeça no pára-brisas.

- Que merda está fazendo? - gritou Dinetto. - Está a tentando matar-me?

O Sombra ficou a tremer:

- Desculpe, patrão. Apareceu um cão à frente do carro…

- E voce decidiu que a vida dele era mais importante do que a minha? Seu parvalhão!

Rhino gemia. Voltou-se para trás e Dinetto viu sangue a correr de um corte grande na testa.

- Por amor de Deus! - gritou Dinetto. - Vê o que fizeste!

- Estou bem - murmurou Rhino.

- Uma merda é que estás! - Dinetto virou-se para o Sombra.

- Leva-o ao hospital.

O Sombra retirou o carro do passeio.

- O Embarcadero fica a alguns quarteirões daqui. Vamos levá-lo às urgências.

- Certo, patrão.

Dinetto voltou a recostar-se no assento:

- Um cão - disse desgostosamente. - Meu Deus!

Kat estava nas urgências quando Dinetto, o Sombra e Rhino entraram.

Rhino sangrava muito.

Dinetto chamou Kat:

- Hei, você aí!

Kat levantou a cabeça:

- Está a falar comigo?

- Com quem julga que estou a falar? Este homem está a sangrar. Trate imediatamente dele.

- Há meia dúzia de pessoas à frente dele - disse rapidamente Kat. - Terá de esperar pela sua vez.

- Não vai esperar nada - respondeu Dinetto. - Você vai cuidar já dele.

Kat dirigiu-se a Rhino e examinou-o. Pegou num pedaço de algodão e pressionou-o contra o corte.

- Mantenha-o aí. Já volto.

- Disse-lhe que cuidasse já dele - disse Dinetto bruscamente.

Kat voltou-se para Dinetto:

- Esta é a ala de urgências do hospital. Sou a médica de serviço. Por isso, fique calado ou saia.

O Sombra disse:

- Minha senhora, não sabe com quem está a falar.

É melhor fazer o que lhe foi dito. Este é o senhor Lou Dinetto.

- Uma vez que as apresentações terminaram - disse Dinetto, impacientemente -, cuide do meu homem.

- O senhor tem problemas de audição - respondeu Kat. - Vou dizer mais uma vez. Fique calado ou saia daqui. Preciso de trabalhar.

Rhino afirmou:

- Não pode falar com…

Dinetto voltou-se para ele:

- Cala-te! - Olhou novamente para Kat e o tom de voz mudou.

- Ficar-lhe -ia grato se tratasse dele o mais depressa possível.

- Farei os possíveis. - Kat sentou Rhino numa maca.

- Deite-se. Regressarei em breve. - Olhou para Dinetto. - Há cadeiras ali ao canto.

Dinetto e o Sombra ficaram a vê-la dirigir-se para a outra ponta da sala de urgências para cuidar dos doentes que ali se encontravam à espera.

- Meu Deus! - disse o Sombra. - Nem sequer sabe quem é o senhor.

- Penso que não iria alterar nada. Ela tem tomates.

Quinze minutos mais tarde, Kat regressou para junto de Rhino e examinouo.

- Não há contussões - afirmou. - Teve sorte. Mas o corte é feio.

Dinetto ficou a ver Kat suturar habilmente a testa de Rhino.

Quando Kat terminou, disse:

- Deve sarar bem. Volte aqui dentro de cinco dias para retirar os pontos.

Dinetto aproximou-se e examinou a testa de Rhino:

- Ficou um ótimo trabalho.

- Obrigada - respondeu Kat. - Bem, se me derem licença…

- Espere um momento - disse Dinetto. Voltou-se para o Sombra. - Dá-lhe uma nota cê.

O Sombra tirou do bolso uma nota de cem dólares:

- Tome.

- A Caixa fica lá fora.

- Isto não é para o hospital. É para si:

- Não, obrigada.

Dinetto ficou a ver Kat afastar-se e começar a tratar de outro doente.

O Sombra aventou:

- Talvez não seja o suficiente, patrão.

Dinetto abanou a cabeça:

- Ela é uma tipa independente. Gosto disso. - Ficou calado por momentos. - O doutor Evans vai-se reformar, não é?

- Sim.

- Certo. Quero que descubras tudo sobre esta médica.

- Para quê?

- Influência. Acho que ela poderá vir a ser muito útil.

Os hospitais são governados por enfermeiras. Margaret Spencer, a enfermeira-chefe, trabalhava no Embarcadero desde há vinte anos e sabia onde estavam enterrados todos os corpos - literal e figurativamente. A enfermeira Spencer estava encarregada do hospital e os médicos que não aceitavam esse fato metiam-se em sarilhos.

Sabia quais eram os médicos que se drogavam ou bebiam, quais os incompetentes e quais os que mereciam o seu apoio.

Sob o seu controlo estavam todas as enfermeiras-estudantes, enfermeiras registradas e enfermeiras das salas de operações.

Era Margaret Spencer quem as designava para as várias cirurgias e, dado que estas variavam entre indispensáveis e incompetentes, era melhor que os médicos se dessem bem com ela. Tinha poderes para designar uma auxiliar de limpeza para assistir a uma complicada remoção renal ou, se simpatizasse com o médico, enviar a sua enfermeira mais competente para o ajudar numa simples tonsilectomia.

Entre os muitos preconceitos de Margaret Spencer, estava a antipatia para com médicas e negros.

Jat Hunter era uma médica negra.

Kat passava um mau bocado. Nada era abertamente dito ou feito e, contudo, a discriminação surgia de maneira demasiado subtil para ser apontada. As enfermeiras que mandava chamar não estavam disponíveis e as que lhe eram designadas eram quase incompetentes. Frequentemente, Kat era enviada para examinar doentes clínicos masculinos com doenças venéreas.

Aceitou os primeiros casos como rotina, mas quando lhe foram dados meia dúzia para examinar num único dia, ficou desconfiada.

Num interválo para o almoço, disse a Paige: -Já assististe muitos homens com doenças venéreas? Por um momento, Paige ficou pensativa: - um, na semana passada. Um empregado do hospital.

“Vou ter de resolver isto de alguma maneira” - pensou Kat.

A enfermeira Spencer tinha planejado livrar-se da Dra. Hunter dificultando-lhe a vida de tal maneira que esta seria obrigada a desistir, mas não contara com a dedicação ou a habilidade de Kat. Pouco a pouco, Kat foi ganhando a confiança dos colegas com quem trabalhava e dos doentes. Mas a verdadeira oportunidade surgiu devido ao que acabou por ser conhecido no hospital como a famosa chantagem do sangue de porco.

Um dia, durante a ronda da manhã, Kat trabalhava com um residente chefe, chamado Dundas. Encontravam-se junto à cabeceira de um doente inconsciente.

- O senhor Levy sofreu um acidente de automóvel - informou Dundas aos residentes mais novos. - Perdeu muito sangue e necessita de uma transfusão imediata.

Neste momento, o hospital não tem sangue suficiente. Este homem tem família mas esta recusa-se a doar-lhe sangue. É revoltante.

Kat perguntou:

- Onde está a família dele?

- Na sala de espera das visitas - respondeu o Dr. Dundas.

- Permite-me que fale com eles? - perguntou Kat.

- Não vai adiantar nada. Já falei com eles. Já tomaram a decisão.

Quando a ronda terminou, Kat dirigiu-se à sala de espera das visitas. A esposa do homem e filhos já grandes encontravam-se lá. O filho vestia um solidéu e trajes rituais judeus.

- Senhora Levy? - perguntou Kat, dirigindo-se à mulher.

Esta levantou-se:

- Como está o meu marido? O médico vai operá-lo?

- Sim - respondeu Kat.

- Bem, não nos peça para doarmos sangue. Atualmente é muito perigoso por causa da sida e tudo o mais.

- Senhora Levy - disse Kat -, não se apanha sida por doação de sangue.

Não é posssível…

- Não me diga! Eu leio os jornais. Sei o que é.

Kat estudou-a por um momento:

- Já percebi isso. Bom, está bem, senhora Levy. Neste momento o hospital não tem sangue suficiente, mas nós já solucionámos o problema.

- Que bom.

- Vamos dar ao seu marido sangue de porco.

Mãe e filho olharam chocados para Kat:

- O quê?

- Sangue de porco - disse Kat, alegremente. - Provavelmente não irá fazerlhe mal. - E começou a afastar-se.

- Um momento, por favor! - suplicou a mulher.

Kat parou:

- Sim?

- Eu, am… dêem-nos algum tempo, por favor.

- Com certeza.

Quinze minutos mais tarde, Kat foi ter com o Dr. Dundas:

- Não tem de se preocupar mais com a família do senhor Levy.

Todos eles estão dispostos a doar sangue.

No hospital, a história transformou-se imediatamente numa lenda. Os médicos e enfermeiras que antes ignoravam Kat, arranjaram maneira de falar com ela.

Alguns dias mais tarde, Kat entrou no quarto particular de Tom Leonard, um doente com úlcera. Este comia um enorme almoço que trouxera consigo, depois de o ter adquirido numa casa de comestíveis muito próxima.

Kat aproximou-se da cama:

- O que está a fazer?

Ele ergueu a cabeça e sorriu:

- A comer um almoço decente, para variar. É servida? Há muito aqui.

Kat chamou uma enfermeira.

- Sim, doutora?

- Tire esta comida daqui. O senhor Leonard está sob dieta rigorosa do hospital. Não leu o gráfico?

- Sim, mas ele insistiu…

- Retire tudo, por favor.

- Eh! Espere um momento! - protestou Leonard.

- Não consigo comer a papa que este hospital me dá!

- Vai comer, se quiser livrar-se da sua úlcera. - Kat voltou-se para a enfermeira: - Leve isto daqui.

Trinta minutos mais tarde, Kat foi chamada ao gabinete do administrador.

- Mandou-me chamar, doutor Wallace?

- Sim. Sente-se. Tom Leonard é um dos seus doentes, não é assim?

- Exato. Hoje, à hora do almoço, apanhei-o a comer uma sanduíche de carne muito condimentada com picles e salada de batata, cheia de especiarias, e…

- E tirou-a das mãos.

- Claro.

Wallace inclinou-se na cadeira:

- Doutora, provavelmente não deu conta de que Tom Leonard faz parte do quadro supervisor do hospital. Queremos que ele se sinta bem. Percebe o que quero dizer? Kat olhou para ele e disse, obstinadamente:

- Não, senhor.

Ele pestanejou:

- O quê?

- Parece-me a mim que a maneira de manter Tom Leonard feliz é ajudá-lo a ser saudável. Nunca ficará curado se encher o estômago até rebentar.

Benjamin Wallace forçou um sorriso:

- Porque não o deixamos tomar essa decisão? Kat levantou-se:

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