Agora sei o que quero.

- Sim?

- Quero ver a sua casa.

Noe Valley pertencia a outro século. Era um oásis colorido, no coração de uma das mais cosmopolitas cidades do mundo.

A casa de Jason era um reflexo dele - confortável, arrumada e encantadora.

Conduziu Paige pela casa:

- Aqui é a sala de estar, a cozinha, a casa de banho das visitas, a biblioteca… - Olhou para ela e disse: - O quarto fica lá em cima. Queres vêlo?

Paige respondeu baixinho:

- Quero muito.

Subiram até ao quarto. O coração de Paige batia desordenadamente. Mas o que estava a acontecer parecia inevitável. “Devia ter sabido desde o início”, pensou.

Paige nunca soube quem tinha dado o primeiro passo, mas subitamente encontravam-se nos braços um do outro e os lábios de Jason estavam sobre os seus, parecendo ser a coisa mais natural do mundo. Começaram a despir-se e ambos pareciam estar cheios de pressa. Pouco depois, estavam na cama e ele fazia amor com ela.

- Meu Deus - sussurrou ele. - Amo-te tanto.

- Eu sei - brincou Paige. - Desde que te mandei vestir uma bata branca.

Depois de terem feito amor, Paige disse:

- Gostava de passar a noite aqui.

Jason sorriu:

- E não me vais odiar de manhã?

- Prometo.

Paige passou a noite com Jason, a conversar… a fazer amor… a conversar.

De manhã, fez-lhe o pequeno-almoço.

Jason ficou a vê-la e disse:

- Não sei como tive tanta sorte, mas obrigada.

- Eu é que sou a sortuda - respondeu-lhe Paige.

- Sabes uma coisa? Ainda não recebi a resposta ao meu pedido.

- Terás uma resposta esta tarde.

Nessa tarde, chegou ao escritório de Jason um mensageiro com um sobrescrito. Dentro, encontrava-se o cartão que Jason tinha enviado com a casa-modelo.

Minha ()

Nossa (x)

Coloca uma cruz.

Lou Dinetto ia ter alta do hospital. Kat foi ao quarto dele para se despedir.

Rhino e o Sombra estavam lá.

Quando entrou, Dinetto voltou-se para eles e ordenou:

- Desapareçam!

Kat ficou a vê-los deixarem o quarto. Dinetto olhou para ela e disse:

- Fico em dívida para consigo.

- Não me deve nada.

- É esse o valor que dá à minha vida? Soube que se vai casar.

- Exato.

- Com um médico.

- Sim.

- Bem, diga-lhe para cuidar bem de si, ou terá de se haver comigo.

- Dir-lhe -ei.

Houve uma pequena pausa:

- Lamento o que sucedeu a Mike.

- Ele vai ficar bom - disse Kat. - Tive uma longa conversa com ele. Ficará bem.

- Ainda bem. - Dinetto estendeu-lhe um sobrescrito volumoso:

- Um pequeno presente de casamento para si.

Kat abanou a cabeça:

- Não, obrigada.

- Mas…

- Cuide bem de si.

- Você, também. Sabe uma coisa? A senhora é uma mulher às direitas.

Vou dizer-lhe algo que quero que se lembre sempre.

Se alguma vez precisar de um favor, seja ele qual for, venha ter comigo.

Entendido?

- Entendido.

Sabia que ele dizia a verdade. E também sabia que nunca iria ter com ele.

Durante as semanas que se seguiram, Paige e Jason falavam por telefone três ou quatro vezes ao dia e viam-se sempre que ela não estava de serviço.

O hospital estava mais movimentado do que nunca.

Paige tinha estado de serviço trinta e seis horas cheias de urgências. Tinha acabado de adormecer no quarto dos médicos de serviço quando foi acordada pela campainha do telefone.

Encostou o auscultador ao ouvido: - ‘Tou?

- Doutora Taylor, pode vir ao quarto quatrocentos e vinte e dois, stat?

Paige procurou despertar. “Quarto 422. Um dos doentes do Dr. Barker.

Lance Kelly. Tinha acabado de fazer uma substituição da válvula mitral.

Qualquer coisa deve ter corrido mal.” Paige levantou-se e saiu para o corredor deserto. Decidiu não esperar pelo elevador e subiu as escadas a correr. “Talvez seja apenas uma enfermeira nervosa. Se for grave, telefonarei ao Dr. Barker”, pensou.

Entrou no quarto 422 e ficou à entrada, a olhar.

O doente tentava respirar e gemia. A enfermeira voltou-se para Paige, obviamente aliviada:

- Não sabia o que fazer, doutora. Eu…

Paige correu para junto da cama.

- O senhor vai ficar bom - disse, tentando tranquilizá-lo.

Tomou-lhe o pulso. A pulsação estava bastante irregular e rápida. A válvula mitral estava a funcionar mal.

- Vamos dar-lhe um sedativo - ordenou Paige. A enfermeira estendeu uma seringa e Paige injetou-a numa veia.

Paige voltou-se para a enfermeira: - Peça à enfermeira-chefe para reunir uma equipa operatória, stat. E mande chamar o doutor Barker!

Quinze minutos mais tarde, Kelly estava na mesa de operações. A equipa era constituída por duas enfermeiras-assistentes, uma auxiliar e dois residentes. Havia um monitor colocado ao alto do canto da sala, para mostrar o ritmo cardíaco, o ECG e a pressão arterial.

O anestesista entrou e Paige teve vontade de o insultar.

A maioria dos anestesistas do hospital eram médicos peritos, mas Herman Koch era uma excepção. Paige já tinha trabalhado com ele antes e tentava evitá-lo o mais possível.

Não confiava em Koch. Agora, não tinha outra opção.

Viu-o prender um tubo à garganta do doente, enquanto ela desdobrava um pedaço de papel com uma janela recortada e o colocava sobre o peito do doente.

- Metam um fio na veia jugular - pediu Paige.

Koch anuiu:

- Certo.

Um dos residentes perguntou:

- Qual é o problema?

- Ontem o doutor Barker substituiu a válvula mitral.

Penso que rebentou. - Paige olhou para o Dr. Koch. - Já está inconsciente?

Koch anuiu:

- A dormir como se estivesse em casa, na sua própria cama.

“Quem me dera que você estivesse” pensou Paige.

- O que é que está a utilizar?

- Propofol.

Ela concordou:

- Está bem.

Viu Kelly ser ligado ao pulmão artificial para que ela pudesse efetuar o desvio cardiopulmonar. Paige estudou os monitores da parede. Pulsação 140… saturação de oxigénio no sangue 92 por cento… pressão arterial


80/60.


- Vamos - disse.

Um dos residentes ligou a música.

Paige aproximou-se da mesa de operações, colocada sob mil e cem watts de luz quente, e pediu à enfermeira-assistente:

- Bisturi, por favor.

A operação começou.

Paige retirou todas as ligações externas que tinham sido feitas no dia anterior. Em seguida, cortou desde a base do pescoço até à extremidade inferior do esterno, enquanto um residente limpava o sangue com compressas de gaze.

Cuidadosamente, atravessou as camadas de gordura e músculo e, à sua frente, surgiu o coração, que batia irregularmente.

- Aqui está o problema - disse Paige. - O átrio está perfurado. O sangue está a acumular-se em volta do coração, comprimindo-o. - Paige olhou para o monitor da parede. A pressão tinha caído perigosamente.

- Aumentem a intensidade - ordenou Paige.

A porta da sala de operações abriu-se para dar passagem a Lawrence Barker. Aproximou-se de um dos lados para ver o que estava a acontecer.

Paige perguntou:

- Doutor Barker. Quer fazer…?

- A operação é sua.

Paige verificou rapidamente o que Koch estava a fazer: -Tenha cuidado.

Vai anestesiá-lo de mais, merda! Tenha calma!

- Mas eu…

- Ele entrou em choque! A pressão está a cair!

- Que quer que faça? - perguntou Koch, impotente.

“Devias saber”, pensou Paige furiosa.

- Dê-lhe lidocaína e epinefrina! Já! - gritou.

- Certo.

Paige viu Koch pegar numa seringa e injetá-la no doente.

Um residente olhou para o monitor e disse em voz alta:

- A pressão arterial está a cair.

Paige tentava freneticamente estancar o sangue. Olhou para Koch e disse:

- Intensidade a mais! Disse-lhe para…

O ruído da batida cardíaca no monitor tornou-se subitamente caótico.

- Meu Deus! Alguma coisa correu mal!

- Passem-me o desfibrilador! - gritou Paige.

A enfermeira auxiliar retirou o desfibrilador do carrinho de mão, abriu duas almofadas esterilizadas e aplicou-as no devido lugar. Rodou os botões para as carregar e, dez segundos mais tarde, entregou-as a Paige.

Esta pegou nas almofadas e colocou-as diretamente sobre o coração de Kelly. O corpo do doente deu um solavanco e depois caiu.

Paige tentou novamente, esperando que ele voltasse a viver, esperando que ele voltasse a respirar. Nada. O coração continuou parado: um órgão morto e inútil.

Paige estava furiosa. O seu papel na operação tinha sido bem sucedido, mas Koch anestesiara de mais o doente.

Enquanto Paige aplicava o desfibrilador no corpo de Lance Kelly pela terceira e inútil vez, o Dr. Barker aproximou-se da mesa de operações e voltou-se para Paige:

- Você matou-o.

Jason estava a meio de uma reunião de design quando a secretária informou:

- A doutora Taylor está ao telefone. Digo que lhe ligará mais tarde?

- Não, eu atendo. - Paige levantou o telefone. - Paige? -Jason… preciso de ti! - soluçava.

- O que foi que aconteceu?

- Podes vir ao meu apartamento?

- Claro. Vou já para aí. - Levantou-se. - A reunião está terminada. Amanhã de manhã continuaremos.

Meia hora mais tarde, Jason chegava ao apartamento.

Paige abriu-lhe a porta e atirou-se ao pescoço dele. Tinha os olhos vermelhos de chorar.

- O que foi que aconteceu? - perguntou Jason.

- É horrível! O doutor Barker disse que eu… eu matei um doente e, sinceramente, não tive a culpa! - A voz começou a fugir. - Não consigo suportar mais nenhuma das suas…

- Paige - disse Jason, suavemente -, tu contaste-me como ele é sempre mau. É o caráter dele.

Paige abanou a cabeça:

- É mais do que isso. Tem tentado obrigar-me a abandonar tudo, desde o dia em que comecei a trabalhar com ele. Jason, se ele fosse um mau médico e pensasse que eu não servia para nada, não me importaria tanto; mas o homem é brilhante. Tenho de respeitar a sua opinião.

Penso somente que não sou suficientemente boa para isto.

- Disparate - disse Jason, zangado. - Claro que és boa. Toda a gente com quem conversei me disse que és uma médica maravilhosa.

- Mas não Lawrence Barker.

- Esquece o Barker.

- Vou esquecer - disse Paige. - Vou deixar o hospital.

Jason abraçou-a.

- Paige, sei que gostas de mais da sua profissão para desistires dela.

- Não vou desistir. Só não quero ver mais aquele hospital.

- Jason tirou o lenço e limpou as lágrimas de Paige.

- Perdoa-me por te incomodar com tudo isto - disse Paige. - é para isso que servem os futuros maridos, não é? Conseguiu sorrir:

- Gosto de ouvir isso. Está bem. - Paige respirou fundo.

- Já me sinto melhor. Obrigada por teres conversado comigo.

Telefonei ao doutor Wallace e disse-lhe que me retirava. Vou agora falar com ele.

- Vemo-nos logo ao jantar.

Paige atravessou os corredores do hospital, sabendo que os via pela última vez. Ali estavam os sons familiares e as pessoas a correrem ao longo dos corredores, de um lado para o outro. Para ela, tinha-se transformado mais num lar do que aquilo que imaginava. Lembrou-se de Jimmy e de Chang, bem como de todos os médicos maravilhosos com quem tinha trabalhado.

O querido Jason a fazer a ronda com ela na sua bata branca.

Passou pela cafetaria, onde ela, Honey e Kat tinham tomado centenas de pequenos-almoços e pela sala de reuniões, onde tentaram fazer uma festa.

Os corredores e os quartos estavam repletos de tantas recordações. “Vou ter saudades disto”, pensou, “mas recuso-me trabalhar debaixo do mesmo teto que aquele monstro.”

Dirigiu-se ao gabinete do Dr. Wallace. Ele esperava-a.

- Bem, devo dizer que a sua chamada telefônica surpreendeu-me, Paige!

Está completamente decidida?

- Sim.

Benjamin Wallace suspirou:

- Muito bem. Antes de ir, o doutor Barker quer vê-la.

- Eu é que o quero ver. - Toda a fúria reprimida subiu à superfície.

- Ele está no laboratório. Bem… boa sorte.

- Obrigada. - Paige começou a caminhar em direão ao laboratório.

O Dr. Barker estava a examinar alguns exemplares sob o microscópio, quando Paige entrou. Ele levantou a cabeça.

- Disseram-me que decidiu deixar o hospital.

- Exato. Finalmente conseguiu o que queria.

- E o que foi que eu quis? - perguntou Barker.

- Quis-me fora daqui desde o primeiro momento em que me viu.

Bem, venceu. Já não consigo lutar mais contra si. Quando disse que matei o doente, eu… - a voz de Paige começou a falhar.

- Penso que é um sádico filho da puta com coração de pedra e eu odeio-o.

- Sente-se - disse o Dr. Barker.

- Não. Não tenho mais nada para dizer.

- Bom, mas eu tenho. Quem diabo julga que…? Parou subitamente e começou a ficar sufocado.

Enquanto Paige olhava horrorizada, ele agarrou-se ao peito e conseguiu sentar-se na cadeira, com o rosto torcido para um lado num grito pavoroso.

Paige aproximou-se de imediato:

- Doutor Barker! - Pegou no telefone e gritou: - Código vermelho! Código vermelho!

O Dr. Peterson disse:

- Sofreu um enfarte massivo. É muito cedo para dizer se irá conseguir superar.

“A culpa é minha”, pensou Paige. “Quis que morresse.” Sentiu-se miserável.

Voltou ao gabinete do Dr. Wallace:

- Lamento o que sucedeu - disse Paige. - Era um bom médico.

- Sim. É lamentável. Muito… - Wallace estudou-a por momentos. - Paige, se o doutor Barker não puder exercer mais, não quer pensar em continuar cá?

Paige hesitou:

- Sim. Claro.

No gráfico lia-se: “John Cronin, sexo masculino, raça branca, idade 70.

Diagnóstico: Tumor cardíaco.” Paige ainda não conhecia John Cronin.

Estava marcado para uma cirurgia cardíaca. Ela entrou no quarto juntamente com uma enfermeira e um médico auxiliar. Sorriu cortesmente e saudou:

- Bom dia, senhor Cronin.

Tinham acabado de retirar os tubos e havia marcas de adesivo à volta da boca. As garrafas IV estavam suspensas sobre a cabeça e a tubagem fora inserida no braço esquerdo.

Cronin olhou para Paige:

- Quem diabo é a senhora?

- Sou a doutora Taylor. Vou examiná-lo e…

- O diabo é que vai! Mantenha a merda das suas mãos longe de mim.

Porque é que não me mandaram um verdadeiro médico? O sorriso de Paige desvaneceu-se:

- Sou cirurgiã cardíaca. Vou fazer tudo o que puder para que volte a ficar bem.

- A senhora vai operar o meu coração?

- Exato. Eu…

John Cronin olhou para o médico auxiliar e disse:

- Por amor de Deus, isto é o melhor que este hospital pode fazer?

- Garanto-lhe que a doutora Taylor é bastante qualificada - respondeu o médico.

- Também o meu cu.

Paige perguntou em tom seco:

- Quer mandar vir o seu próprio cirurgião?

- Não tenho nenhum. Não posso pagar o que eles pedem. Vocês médicos são todos iguais. Só vos interessa o dinheiro. Querem lá saber das pessoas.

Para vocês, nós somos apenas uns pedaços de carne, não é assim?

Paige tentava conservar a calma:

- Sei que neste preciso momento o senhor está nervoso, mas…

- Nervoso? Só porque me vai cortar o coração? - gritou.

- Sei que vou morrer na mesa de operações. Você vai matar-me e espero que a condenem por assassinato!

- Basta! - disse Paige.

Ele sorriu maliciosamente:

- Não ficaria bem na sua ficha se eu morresse, não é, doutora? Talvez resolva deixar que me opere.

Paige sentiu que começava a arfar. Voltou-se para a enfermeira:

- Quero um eletrocardiograma e um painel químico. - Olhou pela última vez para John Cronin e, em seguida, voltou-se e saiu do quarto.

Quando Paige regressou uma hora mais tarde com os relatórios dos exames, John Cronin afirmou:

- Oh, a puta está de volta!

Paige operou John Cronin às seis horas da manhã seguinte.

Assim que o abriu, soube que não havia esperança.

O problema principal não era o coração. Os órgãos de Cronin apresentavam sinais de melanoma.

Um residente disse:

- Oh, meu Deus! Que podemos fazer?

- Podemos rezar para que não viva assim muito tempo.

Quando Paige saiu da sala de operações, uma mulher e dois homens esperavam-na no corredor. A mulher tinha trinta e muitos anos. Era ruiva, estava demasiado maquilhada e usava um perfume barato e muito intenso.

Trazia um vestido justo, que acentuava a sua figura volupuosa.

Os homens estavam na casa dos quarenta anos e eram ambos ruivos. Para Paige, os três pareciam fazer parte de um grupo de circo.

A mulher disse a Paige:

- A doutora Taylor é a senhora?

- Sim.

- Sou a senhora Cronin. Estes são os meus irmãos.

Como está o meu marido?

Paige hesitou. Disse, cuidadosamente:

- A operação correu tão bem quanto esperávamos.

- Oh, graças a Deus! - disse melodramaticamente a Sra.

Cronin, limpando os olhos com um lenço. - Morreria se acontecesse algo a John!

Paige sentiu que estava a presenciar uma cena de teatro, representada por uma atriz barata.

- Já posso ver o meu querido?

- Ainda não, senhora Cronin. Ele está na sala de recuperação. Sugiro que regresse amanhã.

- Voltarei. - Voltou-se para os homens: - Venham daí, filhos.

Paige ficou a vê-los afastarem-se. “Pobre John Cronin”, pensou.

Paige recebeu o relatório na manhã seguinte. O cancro tinha-se disseminado por todo o corpo do doente. Já era demasiado tarde para um tratamento de irradiação.

O oncologista disse a Paige:

- Só nos resta tentar fazer com que se sinta confortável.

Vai ter dores infernais.

- Quanto tempo lhe resta?

- Uma a duas semanas no máximo.

Paige foi visitar John Cronin nos cuidados intensivos.

Estava a dormir. Já não era um homem amargo e mordaz, mas um ser humano a lutar desesperadamente pela vida.

Estava ligado ao pulmão artificial e a ser alimentado por via intravenosa.

Paige sentou-se ao lado, a observá-lo. Parecia cansado e derrotado. “É um dos azarados,, pensou Paige.

“Mesmo com todos os milagres da medicina, nada podemos fazer para o salvar.” Paige tocou-lhe suavemente no braço. Após algum tempo, saiu.

Mais tarde, Paige tornou a visitar John Cronin. Já não estava ligado ao pulmão artificial. Quando abriu os olhos e viu Paige, perguntou ainda tonto:

- A operação já terminou, hem?

Paige sorriu tranquilizadoramente:

- Sim. Passei por aqui só para saber se se sente confortável.

- Confortável? - desdenhou. - O que é que isso lhe interessa?

Paige afirmou:

- Por favor. Não vamos brigar.

Cronin ficou silencioso, estudando-a:

- O outro médico disse-me que você fez um bom trabalho. - Paige nada disse. - Tenho cancro, não é?

- Sim.

- Qual é a gravidade?

A pergunta colocou um dilema que todos os cirurgiões tinham de enfrentar, mais cedo ou mais tarde.

Paige respondeu:

- É bastante grave.

Houve um longo silêncio.

- E a irradiação ou quimioterapia?

- Lamento. Faria com que se sentisse ainda pior e isso não ajudaria em nada.

- Compreendi. Bem… tive uma vida boa.

- Tenho a certeza que sim.

- Talvez julgue que não, olhando para mim agora; mas tive muitas mulheres.

- Acredito.

- Sim. mulheres… bons bifes… bons charutos… É casada?

- Não.

- Devia ser. Todos deviam casar. Fui casado. Duas vezes.

Primeiro, durante trinta e cinco anos. Ela era uma mulher maravilhosa.

Morreu de ataque cardíaco.

- Lamento.

- Está tudo bem - suspirou. - Depois fui obrigado a casar com uma bimba.

Ela e os seus dois famintos irmãos. Errei por ter sido tão estúpido, julgo eu.

O cabelo ruivo dela excitava-me. Ela é cá um pedaço de mulher.

- Tenho a certeza que ela…

- Sem ofensas, mas sabe porque é que estou nesta merda de hospital? Foi ela quem me trouxe para cá. Não queria gastar dinheiro com um hospital particular. - Olhou para Paige.

- Quanto tempo tenho ainda?

- Quer ouvir a verdade?

- Não… sim.

- De uma a duas semanas.

- Meu Deus! As dores vão piorar, não é?

- Vou tentar mantê-lo o mais confortável possível, senhor Cronin.

- Trate-me por John.

- John.

- A vida é uma merda, não é?

- O senhor disse que teve uma boa vida.

- Tive. Torna-se cómico saber que tudo acabou. Para onde julga que vamos?

- Não sei.

Forçou um sorriso:

- Dir-lhe -ei quando lá chegar.

- Vem aí o medicamento. Posso fazer alguma coisa para o tornar mais confortável? -” Sim. Volte logo à noite para conversar comigo.

Era a folga de Paige e ela estava exausta.

- Voltarei mais logo.

Quando nessa noite Paige foi visitar John Cronin, este estava acordado.

- Como se sente?

Ele estremeceu:

- Terrível. Nunca suportei muito bem as dores. Acho que sou um fracalhote.

- Eu compreendo.

- Sei que já conhece a Hazel, hem?

- Hazel?

- A minha mulher. A bimba. Ela e os irmãos vieram ver-me.

Disseram-me que tinham falado consigo.

- Sim.

- Ela é boazona, não é? Tenho a certeza que me meti num monte de sarilhos por causa dela. Estão só à espera que eu bata a bota.

- Não diga isso.

- É verdade. A única razão por que Hazel se casou comigo foi por dinheiro.

Para dizer a verdade, não me importei muito.

Passámos juntos muitos bons momentos na cama, mas depois ela e os irmãos começaram a ficar gananciosos. Estavam sempre a querer mais.

Os dois ficaram ali num confortável silêncio.

- Já lhe disse que costumava viajar muito?

- Não.

- Sim. Estive na Suécia… Dinamarca… Alemanha. Já esteve na Europa?

Lembrou-se do dia em que fora à agência de viagens.

“Estou ansiosa por conhecer Londres. Paris é para onde gostaria de ir.

Quero passear ao luar numa gôndola em Veneza.

- Não. Nunca.

- Devia ir.

- Talvez vá um dia.

- Julgo que não ganha muito dinheiro a trabalhar num hospital como este, hem?

- Ganho o suficiente.

Anuiu para si mesmo:

- Sim. Tem de ir à Europa. Faça-me um favor. Vá a Paris… fique no Crillon, jante no Maxim, peça um bife grande e alto e uma garrafa de champanhe e, quando estiver a comer esse bife e a beber o champanhe, quero que pense em mim. Faze-me esse favor?

Paige respondeu lentamente:

- Um dia farei isso.

John Cronin estudou-a:

- Muito bem. Agora estou cansado. Voltará amanhã para conversar comigo?

- Voltarei - respondeu Paige.

John Cronin adormeceu.

Ken Mallory acreditava piamente na dona sorte e, depois de ter conhecido os Harrisons, passou a acreditar ainda mais que esta estava do seu lado. Era impensável que um homem tão rico quanto Alex Harrison fosse alguma vez parar ao Embarcadero County Hospital. “Fui eu quem lhe salvou a vida e ele pretende demonstrar a sua gratidão”, pensou Mallory, jubiloso.

Tinha pedido a um amigo que lhe fornecesse informações sobre os Harrisons.

- A palavra rico nem sequer o define bem - disse o amigo.

- É uma dúzia de vezes mais rico do que qualquer milionário. E tem uma filha muito bonita. Já foi casada três ou quatro vezes. A última, com um conde.

- Já conheces os Harrisons?

- Não. Não se misturam com zés-ninguém.

Um sábado de manhã, Alex Harrison telefonou a Ken Mallory.

- Ken, acha que estarei em forma para dar um jantar daqui a uma semana?

- Se não abusar, não vejo qualquer objeão - respondeu Mallory.

Alex Harrison sorriu:

- Ainda bem. Você é o convidado de honra.

Mallory sentiu-se subitamente excitado. “O velho sentiu mesmo o que disse.” - Bem… obrigado.

- Lauren e eu contamos consigo às sete e meia do próximo sábado à noite. - E deu a Mallory uma morada na Nob Hill.

- Lá estarei - afirmou Mallory. “Podem ter a certeza! “ Tinha prometido levar Kat ao teatro nessa noite, mas seria fácil cancelar. Recebera o dinheiro da aposta e gostara de ter relações sexuais com ela. Várias vezes por semana, conseguiram escapar para um dos quartos para médicos de serviço ou um dos quartos vazios do hospital, para o apartamento dele ou para o dela. “O fogo dela estivera muito tempo guardado”, pensou Mallory, alegremente, mas quando a explosão surgiu… uau! Bem, um destes dias terei de lhe dizer arrivederci”.

Quando chegou o dia do jantar em casa dos Harrisons, Mallory telefonou a Kat:

- Más notícias, querida.

- O que se passa, amor?

- Um dos médicos está doente e pediram-me que o substituísse. Lamento, mas vamos ter de cancelar a saída de hoje.

Kat não quis que percebesse o seu desapontamento nem o quanto queria estar com ele. Disse em voz normal:

- Esse é o negócio dos médicos, não é?

- Sim. Hei-de compensar-te.

- Não tens de me compensar de nada - disse, calorosamente.

- Amo-te.

- Ken, quando vamos falar de nós?

- O que queres dizer com isso?

Sabia exatamente a resposta. Um compromisso. Eram todas iguais.

“Utilizam a rata como isca, na esperança de convencer um parvalhão a passar a vida com elas.,” Bem, ele era demasiado esperto para cair numa dessas. Quando chegasse o momento, terminaria tudo, tal como já tinha feito uma dúzia de vezes.

Kat perguntou:

- Não achas que devíamos marcar a data, Ken? Tenho muitos planos a fazer.

- Claro. Faremos isso.

- Pensei em Junho. O que é que achas? “Não queiras saber o que é que eu acho. Se jogar as cartas certas haverá um casamento, mas não será contigo.” - Falaremos disso mais tarde, querida. Agora tenho mesmo de ir.

A casa dos Harrisons era uma mansão só vista em cinema, situada num vasto terreno muito bem cuidado.

A casa por si só parecia nunca mais acabar. Estavam lá cerca de duas dúzias de convidados e, no enorme salão de visitas, tocava uma orquestra.

Quando Mallory entrou, Lauren correu a cumprimentá-lo. Trazia um vestido de seda de ombros caídos.

Apertou a mão de Mallory e disse:

- Bem-vindo, convidado de honra. Fico feliz por aqui estar.

- Também eu. Como está o seu pai?

- Muito vivo, graças a si. O senhor é um verdadeiro herói nesta casa.

Mallory sorriu modestamente:

- Apenas cumpri o meu dever.

- Julgo que é isso que Deus diz todos os dias. - Pegou-lhe na mão e começou a apresentá-lo aos outros convidados.

Estes pertenciam à alta sociedade. Encontravam-se ali o governador da Califórnia, o embaixador francês, um juiz do Supremo Tribunal e uma dúzia de outras pessoas, como políticos, artistas e grandes homens de negócios.

Mallory sentia o poder na sala e isso causou-lhe um calafrio.

“É aqui que eu pertenço”, pensou. “Exatamente aqui, no meio desta gente.”

O jantar foi delicioso e elegantemente servido. No final da noite, quando os convidados começaram a sair, Harrison disse a Mallory:

- Não tenha pressa de sair, Ken. Gostaria de falar consigo.

- Com todo o prazer.

Harrison, Lauren e Mallory foram para a biblioteca.

Harrison sentou-se numa cadeira próximo da filha.

- Quando no hospital lhe disse que achava que tinha um grande futuro, disse-o sinceramente.

- Agradeço muito a sua confidência, sir.

- Devia estar a praticar clínica privada.

Mallory sorriu, autodesvalorizando-se:

- Infelizmente, não é assim tão fácil, senhor Harrison. É preciso muito tempo para se obter prática e eu…

- Vulgarmente, sim. Mas você não é um homem vulgar.

- Não compreendo.

- Quando terminar a residência, o pai quer montar-lhe a sua própria clínica - disse Lauren.

Por um momento Mallory ficou sem saber o que dizer. Era fácil de mais.

Sentiu que estava a viver um sonho maravilhoso.

- Eu… nem sei o que dizer.

- Tenho vários amigos muito ricos. Já falei sobre si com alguns deles.

Garanto-lhe que será famoso no minuto em que pendurar a sua tabuleta.

- Pai, os advogados penduram tabuletas - disse Lauren.

- É claro. De qualquer modo, gostaria de o financiar.

Está interessado?

Mallory tinha dificuldade em respirar:

- Bastante. Mas… não sei quando poderei pagar-lhe.

- Você não entendeu. Eu é que estou a pagar-lhe. Você não irá ficar a dever-me nada.

Lauren olhou melancólica para Mallory:

- Por favor, diga sim.

- Seria estúpido se recusasse, não seria?

- Exato - respondeu Lauren, suavemente. - E tenho a certeza de que não é estúpido.

A caminho de casa, Ken Mallory estava eufórico. “É o máximo que vais conseguir”, pensou. Mas estava errado.

Tornou-se ainda melhor.

Lauren telefonou-lhe:

- Espero que não se importe de misturar os negócios com o prazer.

Sorriu para si próprio:

- De modo algum. O que tem em mente?

- Há uma festa de caridade no próximo sábado à noite. Quer acompanharme? “Oh, filha, vou acompanhar-te durante toda a noite.

- Com todo o prazer. - Estava de serviço no sábado à noite, mas iria telefonar a dizer que estava doente e eles teriam de arranjar alguém que o substituísse.

Mallory era um homem que acreditava em planejamento antecipado e o que lhe estava a acontecer agora ultrapassava os seus mais remotos sonhos.

Dentro de poucos dias seria introduzido no círculo social de Lauren e a sua vida daria um enorme passo em frente. Iria dançar com ela metade da noite e esperar que os dias de hospital passassem. Cada vez havia mais queixas do seu trabalho, mas ele não se importava com isso.

“Em breve estarei fora daqui”, disse para consigo.

A ideia de deixar aquele medonho hospital estatal e possuir a sua própria clínica era suficientemente excitante, mas Lauren era o bónus que a dona sorte lhe tinha dado.

Kat estava a tornar-se um estorvo. Mallory tinha de estar sempre a arranjar desculpas para não a ver. Quando ela o pressionava, ele respondia:

- Querida, estou louco por ti… claro que quero casar contigo, mas neste momento eu… - e inventava uma quantidade de desculpas.

Foi Lauren quem sugeriu que os dois passassem o fim-de-semana na casa de campo da família, em Big Sur. Mallory adorou a ideia. “Está tudo a correr num mar de rosas”, pensou. “Vou ser o dono de todo este mundo!”

A casa situava-se no meio de colinas cobertas de pinheiros e era uma construção de madeira, azulejos e pedra, virada para o oceano Pacífico.

Tinha um amplo quarto de casal, oito quartos para convidados, uma espaçosa sala de estar com lareira de pedra, uma piscina interior e um enorme tanque de água quente.

Tudo cheirava a dinheiro antigo.

Quando entraram, Lauren virou-se para Mallory e disse:

- Dei o fim-de-semana de folga aos empregados.

Mallory sorriu:

- Bem pensado.

Abraçou-a e acrescentou, suavemente:

- Estou louco por ti.

- Demonstra-me - afirmou Lauren.

Passaram o dia na cama e Lauren era quase tão insaciável como Kat.

- Estás a acabar comigo! - disse Mallory a rir.

- Ainda bem. Quero que não consigas fazer amor com mais ninguém. - Sentou-se na cama. - Não existe mais ninguém, existe, Ken?

- Claro que não - respondeu Mallory com sinceridade. - Para mim, não existe mais ninguém no mundo senão tu. Estou apaixonado por ti, Lauren. - Tinha chegado o momento de se atirar, de resolver o seu futuro de uma vez por todas. Uma coisa era ser um médico famoso com clínica própria e outra era ser o genro de Alex Harrison.

- Quero casar contigo.

Susteve a respiração, até ouvir a resposta dela.

- Oh, sim, querido - respondeu Lauren. - Sim.

No apartamento, Kat tentava desesperadamente encontrar Mallory. Ligou para o hospital.

- Lamento, doutora Hunter, mas o doutor Mallory não está de serviço e não responde ao telebip.

- Ele não disse onde poderia ser encontrado?

- Não temos aqui nada.

Kat desligou o telefone e voltou-se para Paige:

- Pressinto que lhe aconteceu alguma coisa. Caso contrário, já me teria ligado.

- Kat, pode haver centenas de motivos por ainda não te ter ligado. Talvez tivesse de sair subitamente da cidade, ou…

- Tens razão. Tenho a certeza que haverá uma boa desculpa.

Kat olhou para o telefone e desejou que tocasse.

Quando Mallory regressou a São Francisco, telefonou para o hospital para falar com Kat.

- A doutora Hunter não está de serviço - informou a recepcionista.

- Obrigado. - Mallory ligou para o apartamento.

Kat estava lá.

- Olá, querida!

- Ken! Onde estiveste? Tenho estado preocupada contigo.

Liguei para todo o lado à sua procura…

- Tive uma urgência familiar - disse lentamente.

- Desculpa. Não pude avisar-te. Tive de sair da cidade.

Posso ir aí?

- Sabes que sim. Fico feliz por saber que estás bem.

Eu…

- Daqui a meia hora. - Pousou o auscultador e pensou, feliz: “Chegou o momento”, disse, “de falar de muitas coisas. Kat querida, foi muito bom, mas…, sabes como é.”

Quando Mallory chegou ao apartamento, Kat agarrou-se-lhe ao pescoço:

- Tive tantas saudades tuas! - Não lhe podia dizer como tinha estado tão desesperadamente preocupada. Os homens detestavam esse tipo de coisas.

Afastou-se um pouco:

- Querido, pareces absolutamente exausto.

Mallory suspirou:

- Estou acordado há vinte e quatro horas. “Essa parte é verdade”, pensou.

Kat abraçou-o:

- Pobrezinho. Queres que te arranje alguma coisa?

- Não, estou bem. Tudo o que preciso é de uma boa noite de sono. Vamos sentar-nos, Kat. Temos de ter uma conversa.

- Sentou-se no sofá, ao lado dela.

- Passa-se alguma coisa? - perguntou Kat.

Mallory respirou fundo.

- Kat, ultimamente tenho pensado muito em nós.

Ela sorriu:

- Também eu. Tenho novidades para te dar…

- Não, espera. Deixa-me acabar. Kat, acho que estamos a precipitar os acontecimentos. Acho… acho que te pedi em casamento demasiado cedo.

Ela ficou pálida:

- Que… que estás tu a dizer?

- Estou a dizer que acho que devíamos adiar tudo.

Ela sentiu que o chão lhe fugia. Tinha dificuldade em respirar.

- Ken, não podemos adiar nada. Vou ter um filho teu.

Paige chegou a casa à meia-noite, esgotada. Tivera um dia exaustivo. Nem sequer conseguira almoçar e ao jantar comera apenas sanduíches entre as operações. Caiu na cama e adormeceu instantaneamente. Foi acordada pela campainha do telefone.

Tonta de sono, pegou no aparelho e automaticamente olhou para o relógio da mesinha-de-cabeceira. Eram três da manhã.

- Doutora Taylor? Peço desculpa por incomodá-la, mas um dos seus doentes insiste em que a quer ver imediatamente.

A garganta de Paige estava tão seca que mal podia falar.

- Já saí de serviço - murmurou. - Não consegue arranjar mais alguém…?

- Ele não fala com mais ninguém. Diz que tem de ser a senhora.

- Quem é?

- John Cronin.

Endireitou-se:

- Que foi que aconteceu?

- Não sei. Recusa falar com mais alguém a não ser consigo.

- Está bem - disse, fatigada. - Vou já.

Trinta minutos mais tarde, Paige chegou ao hospital.

Foi diretamente ao quarto de John Cronin. Ele estava deitado, mas acordado. Tinha tubos ligados ao nariz e aos braços.

- Obrigado por ter vindo. - A voz soou fraca e rouca.

Paige sentou-se numa cadeira ao lado da cama. Sorriu:

- Não faz mal, John. De qualquer modo, não tinha mais nada para fazer a não ser dormir. O que é que posso fazer por si, que mais ninguém neste imenso hospital poderia ter feito?

- Quero que converse comigo.

Paige resmungou:

- A esta hora? Pensei que fosse alguma emergência.

- É. Quero partir.

Ela abanou a cabeça:

- Isso é impossível. Não pode ir para casa agora. Não poderia receber o tipo de tratamento…

Ele interrompeu-a:

- Não quero ir para casa. Quero partir.

Olhou para ele e disse lentamente:

- O que é que está a dizer?

- Você sabe o que estou a dizer. Os medicamentos já não atuam. Não consigo suportar esta dor. Quero acabar com tudo.

Paige inclinou-se para a frente e pegou-lhe na mão: -John, não posso fazer isso. Vou dar-lhe um…

- Não. Estou farto, Paige. Quero ir para onde quer que seja e não quero ficar aqui a sofrer assim. Já estou farto.

- John…

- Quanto tempo me resta? Alguns dias mais? Já lhe disse, não suporto bem as dores. Estou aqui deitado como um animal encurralado, cheio destes malditos tubos.

O meu corpo está a ser consumido por dentro. Isto não é viver; é morrer.

Por amor de Deus, ajude-me!

Contorceu-se todo devido a um espasmo súbito.

Quando tornou a falar, a voz estava ainda mais fraca.

- Ajude-me… por favor…

Paige sabia o que tinha a fazer. Tinha de comunicar o pedido de John Cronin a Wallace Benjamin. Ele passá-lo-ia à comissão administrativa.

Esta iria reunir um grupo de médicos para estudar o estado de Cronin e depois tomariam uma decisão.

Depois disso, teria de ser aprovado pelo…

- Paige… a vida é minha. Deixe-me fazer com ela o que me apetecer.

Ela olhou para a figura indefesa que gemia de dores.

- Imploro-lhe…

Ela pegou-lhe na mão e segurou-a durante um longo tempo.

Quando falou, disse:

- Está bem, John. Fá-lo-ei.

Ele conseguiu sorrir ligeiramente:

- Sabia que podia contar consigo.

Paige inclinou-se e deu-lhe um beijo na testa:

- Feche os olhos e tente dormir.

- Boa noite, Paige.

- Boa noite, John.

John Cronin suspirou e fechou os olhos, com um sorriso beatífico no rosto.

Paige ficou a vê-lo, pensando naquilo que estava prestes a fazer. Lembrouse de como tinha ficado horrorizada no seu primeiro dia de rondas com o Dr. Radnor. “Há seis semanas que ela está em coma. Os sinais vitais estão a falhar. Nada mais podemos fazer por ela. Vamos desligar a máquina esta tarde.

Que mal há em libertar um ser humano do sofrimento? Lentamente, como se estivesse a caminhar debaixo de água, Paige levantou-se e dirigiu-se a um armário do canto, onde estava guardado um frasco de insulina para ser utilizado em caso de emergência. Pegou no frasco e ficou a olhar para ele.

Em seguida, abriu-o. Encheu uma seringa de insulina e aproximou-se de John Cronin. Ainda tinha tempo para recuar.

“Estou aqui deitado como um animal encurralado… Isto não é viver; é morrer. Por amor de Deus, ajude-me!” Paige inclinou-se para a frente e, lentamente, injetou a insulina no sistema IV ligado ao braço de Cronin.

- Durma bem - sussurrou Paige. Nem sequer tinha percebido que soluçava.

Paige foi para casa e ficou acordada o resto da noite, a pensar no que tinha acabado de fazer.

Às seis horas da manhã, recebeu uma chamada telefônica de um dos residentes do hospital.

- Lamento dar-lhe uma má notícia, doutora Taylor.

O seu doente John Cronin morreu de ataque cardíaco esta manhã, muito cedo.

O médico de serviço nessa manhã era o Dr. Arthur Kane.

Numa das vezes que Ken Mallory fora ver uma ópera, tinha adormecido.

Nessa noite estava a ver Rigoletto no São Francisco Opera House, com todo o prazer. Estava sentado num camarote com Lauren Harrison e o pai.

Durante um intervalo, no vestíbulo da casa de ópera, Alex Harrison apresentou-o a um grande número de amigos.

- Este é Ken Mallory, meu futuro genro e médico brilhante.

Ser genro de Alex Harrison era suficiente para o tornar brilhante.

Depois do espetáculo, os Harrisons e Mallory foram cear na elegante sala de jantar principal do Hotel Fairmont. Mallory gostou da deferência com que o maitre tratou Alex Harrison quando os conduziu ao lugar. “Daqui em diante, poderei entrar em lugares como este”, pensou Mallory, “e todos irão saber quem sou”.

Depois de terem feito os pedidos, Lauren disse:

- Querido, acho que devíamos fazer uma festa para anunciar o nosso noivado.

- É uma boa ideia! - afirmou o pai. - Será uma festa à altura. O que é que acha, Ken?

Soou uma campainha de alerta na mente de Mallory.

Uma festa de noivado significaria publicidade. “Primeiro, tenho de terminar tudo com Kat. Algum dinheiro e o assunto ficará arrumado.”

Mallory amaldiçoou a aposta estúpida que fizera. Por uns meros dez mil dólares, talvez todo o seu brilhante futuro estivesse em risco. Imaginava o que aconteceria se tentasse explicar a existência de Kat aos Harrisons.

“A propósito, esqueci-me de dizer que já estou comprometido com uma médica do hospital. Ela é negra…” Ou: “Querem ouvir uma coisa engraçada? Apostei dez mil dólares com os rapazes do hospital que conseguiria foder esta médica negra…”; Ou: “Já tenho um casamento planejado…” “Não”, pensou, “tenho de descobrir uma forma de afastar Kat.”

Olhavam na expectativa para Mallory, que sorriu:

- Uma festa, parece-me uma ideia maravilhosa.

Lauren acrescentou, entusiasticamente:

- Ainda bem. Vou fazer os preparativos. Vocês homens nem calculam o trabalho que dá organizar uma festa.

Alex Harrison voltou-se para Mallory:

- Já dei um empurrão em seu favor, Ken.

- Sir?

- Gary Gitlin, o diretor do North Shore Hospital, é um velho companheiro de golfe. Falei-lhe de si e ele disse-me que não via qualquer inconveniente em sabê-lo integrado no hospital. Isso é bastante prestigioso, sabe? Por outro lado, vou tratar da sua própria clínica.

Mallory escutou, sentindo uma enorme euforia.

- Maravilhoso.

- É claro que são precisos alguns anos para construir uma clínica verdadeiramente lucrativa, mas penso que conseguirá fazer duzentos ou trezentos mil dólares no primeiro ou segundo ano.

“Duzentos ou trezentos mil dólares! Meu Deus! Pensou Mallory. “Diz isso como se fossem amendoins.”,

- Isso… seria muito bom, sir.

Alex Harrison sorriu:

- Ken, uma vez que vou ser seu sogro, deixemos os sir de fora. Trate-me por Alex.

- Certo, Alex.

- Sabes, nunca fui uma noiva de Junho - disse Lauren. - Junho está bem para ti, querido?

Lembrou-se da voz de Kat: “Não achas que devíamos marcar a data?

Pensei em Junho.”

Mallory apertou a mão de Lauren.

- Por mim está tudo bem. - “Isso dá-me bastante tempo para resolver o assunto com Kat”, decidiu. Sorriu para si. “Vou oferecer-lhe algum do dinheiro que ganhei por a ter levado para a cama.” - Temos um iate no Sul de França - dizia Alex. - Vocês gostariam de passar a lua-de-mel na Riviera Francesa? Podem ir de avião até ao nosso Gulfstream.

Um iate. A Riviera Francesa. Era como o sonho tornado realidade. Mallory olhou para Lauren.

- Passaria a lua-de-mel com Lauren em qualquer lugar.

Alex Harrison concordou:

- Bem, parece que está tudo resolvido. - Sorriu para a filha: - Vou sentir saudades, querida.

- Não me está a perder, pai. Está a ganhar um médico! Alex Harrison concordou:

- E um muitíssimo bom. Nunca poderei agradecer o suficiente por ter salvo a minha vida, Ken.

Lauren afagou a mão de Mallory:

- Agradeço-lhe por si.

- Ken, porque não almoçamos juntos na próxima semana? - perguntou Alex Harrison. - Poderemos escolher um local decente para o seu consultório, talvez no Post Building, e marcar-lhe -ei um encontro com Gary Gitlin. Muitos dos meus amigos estão ansiosos por o conhecer.

- Acho melhor repetir isso, pai - sugeriu Lauren e voltou-se para Ken. - Tenho conversado sobre ti com as minhas amigas e também elas não vêem o momento de te conhecerem; só que eu não lhe s vou permitir isso.

- Só estou interessado em ti - respondeu Mallory, calorosamente.

Quando entraram no seu Rolls-Royce com motorista, Lauren perguntou:

- Onde podemos deixar-te, querido?

- No hospital. Tenho de ver alguns doentes. - Não tinha a intenção de ver qualquer doente. Kat estava de serviço no hospital.

Lauren afagou-lhe o queixo:

- Meu pobre querido. Trabalhas demasiado.

Mallory suspirou:

- Não tem importância. Desde que ajude os outros…

Mallory foi rapidamente ao vestiário dos médicos e trocou o casaco de jantar.

Encontrou Kat na ala geriátrica.

- Olá, Kat.

Estava zangada:

- Tínhamos um encontro a noite passada, Ken.

- Eu sei. Desculpa. Não pude aparecer e…

- É a terceira vez numa semana. O que se passa? Ela estava a tornar-se um impecilho.

- Kat, tenho de falar contigo. Há por aí algum quarto vazio? Pensou por momentos:

- Saiu um doente do quarto trezentos e quinze. Vamos para lá.

Começaram a atravessar o corredor. Uma enfermeira aproximou-se deles.

- Doutor Mallory! O doutor Peterson tem andado à sua procura. Ele…

- Diga-lhe que estou ocupado. - Pegou no braço de Kat e conduziu-a até ao elevador.

Quando chegaram ao terceiro andar, percorreram silenciosamente o corredor e entraram no quarto 315. Mallory fechou a porta atrás deles.

Estava a arfar. Todo o seu futuro dourado dependia dos próximos minutos.

Pegou na mão de Kat. Chegara o momento de ser sincero.

- Kat, sabes que sou louco por ti. Nunca senti por ninguém o que sinto por ti. Mas, querida, a ideia de termos agora um filho… bem… não vês que é o momento errado? ‘Quero dizer… ambos trabalhamos dia e noite, não ganhamos o suficiente para…

- Mas cá nos arranjaremos - afirmou Kat. - Amo-te, Ken, e eu…

- Espera. Só estou a pedir para adiar tudo por uns tempos.

Deixa-me terminar o estágio no hospital e começar a praticar clínica privada em qualquer lugar. Talvez regressemos para o leste. Dentro de alguns anos já estaremos em condições para casar e ter um filho.

- Dentro de alguns anos? Mas já te disse que estou grávida.

- Eu sei, querida, mas só passaram quantos… dois meses? Ainda tens muito tempo para fazer um aborto.

Kat olhou para ele, chocada:

- Não! Não farei nenhum aborto. Quero que nos casemos imediatamente.

Já.

“Temos um iate no Sul de França. Gostariam de passar a lua-de-mel na Riviera Francesa? Podem ir de avião até ao nosso Guljstream.” -Já disse a Paige e a Honey que nos vamos casar.

Elas serão as minhas damas de honor. E já lhe s contei tudo sobre o bebê.

Mallory sentiu um calafrio a percorrer-lhe o corpo. As coisas estavam a fugir do seu controlo. Se os Harrisons soubessem disto, acabariam consigo.

- Não o devias ter feito.

- Porque não?

Mallory forçou um sorriso:

- Quero manter privada a nossa vida particular. - “Vou montar a sua própria clínica… Deve conseguir fazer duzentos a trezentos mil dólares no primeiro ou segundo ano.” - Kat, vou pedir-te pela última vez. Fazes um aborto? - Esperava que ela dissesse sim e fez a pergunta tentando esconder o desespero que sentia.

- Não.

- Kat…

- Não posso, Ken. Contei-te o que senti no aborto que fiz quando era garota. Jurei que nunca mais passaria pelo mesmo.

Não me peças isso.

E foi nesse momento que Ken Mallory percebeu que não podia correr riscos. Não havia alternativa. Teria de a matar.

Todos os dias Honey sentia-se ansiosa por ver o doente do quarto 316.

Chamava-se Sean Kelly e era um irlandês bem-parecido, de cabelos e olhos negros muito brilhantes.

Honey calculava que ele tivesse cerca de quarenta anos.

Quando o conheceu numa das rondas, olhou para o gráfico dele e disse:

- Vejo que está aqui devido a uma colecistectomia.

- Pensei que me fosse tirar a vesícula biliar.

Honey sorriu:

- É a mesma coisa.

Sean fixou nela os seus olhos negros:

- Podem tirar tudo o que quiserem, menos o meu coração. Esse pertencelhe .

Honey desatou a rir:

- Os elogios hão-de levá-lo a todos os lados.

- Assim o espero, querida.

Sempre que Honey tinha tempo, ia ao quarto para conversar com Sean. Era encantador e divertido.

- Vale a pena ser operado só para a ter por perto, queridinha.

- Não está nervoso por causa da operação? - perguntou.

- Não, se for você a operar, amor.

- Não sou cirurgiã. Sou interna.

- Os internos têm permissão para jantar com os seus doentes?

- Não. Há uma regra contra isso.

- Os internos cumprem sempre as regras?

- Sempre - respondeu Honey a sorrir.

- Acho-a bonita - disse Sean.

Nunca ninguém lhe tinha dito isso. Ficou corada.

- Obrigada.

- Você faz-me lembrar o orvalho fresco da manhã nos campos de Killarney.

- Já esteve na Irlanda? - perguntou Honey.

Ele riu-se:

- Não, mas prometo-lhe que iremos até lá juntos. Verá.

Era uma ridícula bajulação irlandesa e, no entanto…

Quando nessa tarde foi ver Sean, Honey perguntou:

- Como se sente?

- Melhor, só de a ver. Já pensou no nosso jantar?

- Não - disse Honey. Estava a mentir.

- Pensei que, depois da minha operação, a pudesse convidar.

Não é comprometida, casada ou qualquer coisa estúpida dessas, é?

Honey sorriu:

- Nada dessas coisas estúpidas.

- Ainda bem! Nem eu. Quem havia de me querer? “Muitas mulheres”, pensou Honey.

- Se gosta de comida caseira, acontece que sou boa cozinheira.

- Veremos.

Quando foi ver Sean na manhã seguinte, ele disse: -Tenho um pequeno presente para si. - E entregou-lhe uma folha de papel de desenho. Nele estava um esboço leve e idealizado de Honey.

- Está lindo! - disse Honey. - Você é um artista maravilhoso! - E subitamente lembrou-se das palavras da médium: “Você vai apaixonar-se.

Ele é artista.” Olhou de forma estranha para Sean.

- Passa-se algo de errado?

- Não - respondeu Honey, lentamente. - Não.

Cinco minutos mais tarde, Honey entrava no quarto de Frarlces Gordon. A médium estava sempre a ser readmitida para fazer uma série de exames.

- Aqui vem a virgem!

Honey perguntou:

- Lembra-se de me ter dito que iria apaixonar-me por alguém… por um artista?

- Sim.

- Bem, eu… eu penso que acabei de o conhecer.

Frances Gordon sorriu:

- Vê? As estrelas nunca mentem.

- Pode… pode falar-me um pouco sobre ele? Sobre nós?

- Existem cartas de tarot naquela gaveta além. Pode trazer-mas, por favor?

Quando Honey entregou as cartas, pensou: “Isto é ridículo! Não acredito nisto!”

Frances Gordon estava a espalhar as cartas. Abanava constantemente a cabeça, abanava e sorria e subitamente parou.

O rosto ficou pálido.

- Oh, meu Deus! - Olhou para Honey.

- O que é… que aconteceu? - perguntou Honey.

- Este artista. Diz que já o conhece?

- Penso que sim.

A voz de Frances Gordon soou triste:

- Pobre homem. - Fitou Honey. - Lamento… lamento muito.

Sean Reilly tinha a operação marcada para a manhã do dia seguinte.

Oito e quinze da manhã. O Dr. William Radnor já se encontrava na SO dois a preparar-se para a operação.

Oito e vinte e cinco da manhã. Um camião que transportava o carregamento semanal de sacos de sangue parou na entrada das urgências do Embarcadero County Hospital. O condutor levou os sacos para o banco de sangue, situado na cave. Eric Foster, o médico residente de serviço, estava a tomar café com uma bonita e jovem enfermeira, de nome Andrea.

- Onde quer isto? - perguntou o condutor.

- Deixe-os aí - respondeu Foster, apontando para um canto.

- Certo. - O condutor poisou os sacos e puxou de um formulário. - Preciso do seu autógrafo.

- Certo. - Foster assinou o formulário. - Obrigado.

- Não tem de quê. - E o condutor saiu.

Foster virou-se para Andrea:

- Onde estávamos?

- Estavas a dizer-me como sou adorável.

- Exato. Se não fosses casada, andaria atrás de ti - disse o residente. - Nunca sais por aí?

- Não. O meu marido é pugilista.

- Oh. Tens alguma irmã?

- Na realidade, tenho.

- Ela é tão bonita quanto tu?

- Ainda mais.

- Como é que se chama?

- Marilyn.

- Porque não saímos os quatro numa destas noites? Enquanto conversavam, a máquina de telefax começou a fazer barulho. Foster ignorou-a.

Oito e quarenta e cinco da manhã. O Dr. Radnor começou a operar Sean Reilly. No início, tudo correu bem.

A sala de operações funcionou como uma máquina bem oleada, conduzida por profissionais que sabiam o que estavam a fazer.

Nove e cinco da manhã. O Dr. Radnor atingiu o canal cístico.

Até esse momento, a operação correra como mandavam os livros.

Quando começou a extirpar a vesícula biliar, a mão escorregou-lhe e o bisturi cortou uma artéria. O sangue começou a correr.

- Meu Deus! - disse, tentando parar a hemorragia.

O anestesista avisou em voz alta:

- A pressão arterial acaba de cair para noventa e cinco. Vai entrar em estado de choque!

Radnor voltou-se para a enfermeira auxiliar:

- Mande vir mais sangue para cima, stat!

- Imediatamente, doutor.

Nove e seis da manhã. O telefone tocou no banco de sangue.

- Não te vás embora - disse Foster a Andrea. Passou pela máquina de fax, que tinha parado de fazer barulho, e atendeu o telefone: - Banco de sangue.

- Precisamos de quatro unidades do tipo O para a sala de operações dois, stat.

- Certo.

Foster desligou o telefone e dirigiu-se ao canto onde fora depositado o novo sangue. Pegou em quatro sacos e colocou-os na prateleira superior do carro de transporte metálico, utilizado em caso de emergência. Tornou a verificar os sacos.

“Tipo O”, disse em voz alta. Mandou chamar um funcionário.

- O que se passa? - perguntou Andrea.

Foster olhou para o horário à sua frente.

- Parece que um dos doentes está a dar trabalho ao doutor Radnor.

Nove e dez da manhã. O funcionário entrou no banco de sangue.

- Que temos aqui?

- Leve isto à sala de operações dois. Estão à espera.

Ficou a ver o funcionário afastar-se com o carro e depois voltou-se para Andrea:

- Fala-me da sua irmã.

- Também é casada.

- Oh…

Andrea sorriu:

- Mas sai de vez em quando.

- Sai mesmo?

- Estou só a brincar. Tenho de voltar para o trabalho, Eric.

Obrigada pelo café.

- De nada. - Ficou a vê-la sair e pensou: “Que cu tão bom!”

Nove e doze da manhã. O funcionário esperava pelo elevador que o levaria ao segundo andar.

Nove e treze da manhã. O Dr. Radnor tentava tudo por tudo para minimizar a catástrofe.

- Onde está o maldito sangue?

Nove e quinze da manhã. O funcionário bateu à porta da SO dois e a enfermeira auxiliar abriu-a.

- Obrigada - disse. Levou os sacos para a sala. - Aqui está, doutor.

- Comecem a fazer a transfusão. Rápido!

No banco de sangue, Eric Foster terminou o café enquanto pensava em Andrea. “Todas as mulheres bonitas são casadas.

Quando se dirigiu à secretária, passou pela máquina de fax.

Puxou a mensagem e leu:

Chamada de Alerta 687, Junho 25: Glóbulos Vermelhos, Plasma Fresco Congelado. Unidades CB83711, CB800007. Community Blood Bank of California, Arizona, Washington, Oregon. Foram distribuídos produtos sanguíneos repetidamente examinados e provado serem reativos ao Anticorpo HIV tipo 1.

Olhou um momento para o fax, depois aproximou-se da secretária e pegou na fatura que assinara quando os sacos de sangue foram entregues. Olhou para o número desta. O número do alerta era idêntico.

- Oh, meu Deus! - disse. Pegou no telefone. - Ligue-me para a sala de operações dois, rápido!

Atendeu uma enfermeira.

- Daqui fala o banco de sangue. Acabei de mandar para cima quatro unidades do tipo O. Não utilizem! Vou já mandar outro sangue.

A enfermeira respondeu:

- Lamento mas já é demasiado tarde.

O Dr. Radnor deu a notícia a Sean Reilly.

- Foi um erro - disse Radnor. - Um erro terrível.

Dava tudo para que não tivesse acontecido.

Sean olhou para ele, chocado:

- Meu Deus! Vou morrer.

- Só saberemos se é HIV positivo dentro de seis a oito semanas. E mesmo que seja, isso não significa necessariamente que irá ter sida. Iremos fazer tudo o que pudermos.

- Que mais poderão fazer por mim que já não tenham feito? - perguntou Sean em tom amargo. - Sou um homem morto.

Quando Honey soube da notícia, ficou arrasada.

Lembrou-se das palavras de Frances Gordon. “Pobre homem.”

Sean Reilly estava a dormir quando Honey entrou no quarto.

Sentou-se ao lado da cama durante muito tempo, a olhar para ele.

Quando abriu os olhos, viu Honey:

- Sonhei que estava a sonhar e que não ia morrer.

- Sean…

- Veio ver o cadáver?

- Por favor, não fale assim.

- Como é que isto pôde acontecer? - gritou.

- Alguém cometeu um erro, Sean.

- Meu Deus, não quero morrer de sida!

- Algumas pessoas com HIV nunca sofrem de sida.

Os Irlandeses são tipos com sorte!

- Quem me dera poder acreditar em si.

Honey pegou na mão dele e disse:

- Tem de acreditar.

- Não sou homem para rezar - disse Sean -, mas pode ter a certeza de que passarei a fazê-lo a partir deste momento.

- Rezarei consigo - afirmou Honey.

Ele sorriu de esguelha:

- Julgo que podemos esquecer aquele jantar, eh?

- Oh, não. Não se livra dele com essa facilidade. Estou ansiosa por isso.

Estudou-a por momentos:

- Está a dizer a verdade, não está?

- Pode crer que sim! Aconteça o que acontecer. Lembre-se, prometeu levarme à Irlanda.

- Sentes-te bem, Ken? - perguntou Lauren. - Pareces tenso, querido.

Estavam sós na ampla biblioteca de Alex Harrison.

Uma criada e o mordomo tinham servido um jantar de seis pratos e, durante a refeição, ele e Alex Harrison (Trate-me por Alex”) tinham conversado sobre o seu brilhante futuro.

- Porque estás tão tenso? “Porque a puta de uma negra grávida espera que me case com ela. Porque a qualquer momento irá espalhar-se a notícia do nosso noivado e ela ficará a saber e deitará tudo por terra.

Porque todo o meu futuro poderá ser destruído.” Pegou na mão de Lauren:

- Acho que estou a trabalhar de mais. Para mim, os meus doentes não são apenas doentes, Lauren. São seres que sofrem e eu não consigo deixar de me preocupar com eles.

Ela afagou-lhe o rosto:

- Essa é uma das coisas que adoro em ti, Ken. Preocupas-te tanto.

- Acho que foi por isso que nasci.

- Oh, esqueci-me de te dizer. O editor social da Chronicle e um fotógrafo vêm cá na segunda-feira para fazerem uma entrevista.

Foi como um soco no estômago.

- Há alguma possibilidade de poderes estar aqui comigo, querido? Querem tirar-te uma fotografia.

- Gostaria… de poder, mas tenho muito trabalho marcado no hospital. - O raciocínio corria veloz. - Lauren, achas boa a ideia de dar uma entrevista agora? Quero dizer, não devíamos esperar até…?

Lauren deu uma gargalhada:

- Não conheces a imprensa, querido. São como sanguessugas.

Não, é melhor acabar com isso de uma vez.

“Segunda-feira!

Na manhã seguinte, Mallory encontrou Kat num quarto Utilitário. Parecia cansada e abatida. Não trazia maquilhagem e o cabelo não estava enrolado. “Lauren nunca sairia assim”, pensou Mallory.

- Olá, querida!

Kat não respondeu.

Mallory abraçou-a:

- Tenho pensado muito em nós, Kat. Ontem à noite nem consegui dormir.

Para mim, não existe mais ninguém.

Tu tinhas razão e eu estava errado. Acho que a notícia foi uma espécie de choque para mim. Quero que tenhas o nosso filho.

Reparou no brilho súbito que surgiu no rosto de Kat.

- Sentes mesmo o que dizes, Ken?

- Podes crer que sim.

Atirou-se ao pescoço dele:

- Graças a Deus! Oh, querido. Estava tão preocupada. Não sei o que faria sem ti.

- Não tens de te preocupar com isso. Daqui em diante, tudo vai ser maravilhoso. - “Nem calculas como.” - Estou de folga no domingo à noite.

Estás livre?

Apertou-lhe a mão:

- Farei tudo para estar livre. - ótimo! Jantaremos num lugar sossegado e depois iremos para sua casa, para uma última bebida. Achas que consegues livrar-te de Paige e Honey?

Quero estar sozinho contigo.

Kat sorriu:

- Não há problema. Não calculas como me fizeste feliz. Já alguma vez te disse o quanto te amo?

- Eu também te amo. Mostrar-te-ei quanto no domingo à noite.

Analisando tudo de novo, Mallory decidiu que o plano era infalível. Tinhao preparado até ao mais pequeno pormenor. De maneira alguma poderia ser acusado da morte de Kat.

Era demasiado arriscado conseguir o que queria da farmácia do hospital, pois a segurança tinha sido reforçada depois do caso de Bowman. Assim, no domingo de manhã muito cedo, Mallory foi procurar uma farmácia longe das redondezas onde morava.

Grande parte delas estavam fechadas ao domingo. Percorreu várias até encontrar uma que estivesse aberta.

O farmacêutico atrás do balcão disse:

- Bom dia. Posso servi-lo?

- Sim. Vou ver um doente nesta zona e quero aviar-lhe uma receita. - Tirou o bloco de receitas e escreveu algo.

O farmacêutico sorriu:

- Atualmente, poucos são os médicos que fazem visitas domiciliárias.

- Eu sei. É pena, não é? Já ninguém se preocupa. - Entregou a folha de papel ao farmacêutico.

Este leu e anuiu com a cabeça:

- Isto leva apenas alguns minutos.

- Obrigado.

Primeiro passo.

Nessa tarde, Mallory deu um salto ao hospital. Não esteve lá mais de dez minutos e, quando saiu, transportava um pequeno pacote.

Segundo passo.

Mallory tinha combinado encontrar-se com Kat no Trader Vic para jantar e já estava à espera quando ela chegou. Viu-a aproximar-se da mesa e pensou: “É a última ceia, puta.

Levantou-se e sorriu-lhe calorosamente:

- Olá, boneca. Estás linda. - Teve de se render: tinha um aspecto sensacional. “Poderia ter sido modelo.

E é ótima na cama. Tudo o que lhe falta”, pensou Mallory, “são cerca de vinte milhões de dólares, mais coisa ou menos coisa”.

Kat percebeu mais uma vez como as outras mulheres do restaurante olhavam para Ken, invejando-a. Mas ele só tinha olhos para ela. Era o velho Ken, amoroso e atencioso.

- Que tal foi o teu dia? - perguntou ele.

- Tive muito trabalho - suspirou Kat -, três operações de manhã e duas à tarde. - Inclinou-se para a frente. - Sei que ainda é muito cedo, mas podia jurar que senti o bebê a dar um pontapé quando estava a vestir-me.

Mallory sorriu:

- Talvez queira sair cá para fora.

- Devíamos fazer uma ecografia para saber se é rapaz ou rapariga. Nessa altura, já poderei começar a comprar-lhe as roupinhas.

- Boa ideia.

- Ken, podemos marcar a data de casamento? Gostaria de casar o mais depressa possível.

- Não há problema - respondeu Mallory com a maior das facilidades. - Podemos pedir uma licença para a próxima semana.

- Maravilhoso! - De repente, teve uma ideia: - Talvez pudéssemos tirar uns dias para irmos a qualquer lado passar a nossa lua-de-mel. Num sítio não muito longe… até Oregon ou Washington.

“Errado, querida. Eu estarei em lua-de-mel em Junho, no meu iate e na Riviera Francesa.

- A ideia parece-me ótima. Vou falar com Wallace.

Kat apertou-lhe a mão:

- Obrigada - disse baixinho. - Serei para ti a melhor esposa do mundo.

- Tenho a certeza disso. - Mallory sorriu: - Agora come os teus legumes.

Queremos que o bebê seja saudável, não é assim?

Saíram do restaurante às nove da noite. Quando se aproximavam do prédio onde Kat vivia, Mallory perguntou:

- Tens a certeza que Paige e Honey não estarão em casa?

- Certifiquei-me disso - respondeu Kat. - Paige está de serviço no hospital e disse a Honey que queríamos estar sozinhos.

“Merda!”

Kat notou a expressão no rosto dele:

- Aconteceu alguma coisa?

- Não, querida. Já te tinha dito, gosto de manter a nossa privacidade! - “Preciso de ter cuidado”, pensou.

“Muito cuidado.” - Vamos depressa.

A impaciência dele excitou Kat.

Já no apartamento, Mallory pediu:

- Vamos para o quarto.

- Parece-me uma ótima ideia - concordou Kat.

Mallory viu Kat despir-se e pensou: “Ainda tem um corpo magnífico. Um bebê iria estragá-lo.” - Não te despes, Ken?

- Claro. - Lembrou-se do dia em que ela o fez despir-se e depois o abandonou. Bem, iria pagar por isso.

Tirou lentamente a roupa. “Saberei fazer teatro?” pensou. Quase tremia de nervoso. “O que vou fazer é culpa dela. Não minha. Dei-lhe a oportunidade de voltar atrás e ela foi demasiado estúpida em não ter aceite.” Deitou-se ao seu lado na cama e sentiu-lhe o corpo contra o seu.

Começaram a acariciar-se um ao outro e ele sentiu que estava a ficar excitado. Penetrou nela e ela começou a gemer de prazer.

- Oh, querido… é tão bom - Ela começou a mover-se cada vez mais depressa. - Sim… sim… oh, meu Deus!… Não pares…

- O seu corpo começou a mover-se bruscamente, em seguida estremeceu e permaneceu imóvel nos seus braços.

Virou-se para ele e perguntou, ansiosa:

- Você…?

- Claro - mentiu Mallory. Estava demasiado tenso.

- Que tal uma bebida?

- Não. Não devo beber. O bebê…

- Mas, amor, isto é uma celebração. Uma bebida curta não vai fazer mal.

Kat hesitou:

- Está bem. Uma muito curta. - Kat começou a levantar-se.

Mallory impediu-a:

- Não, não. Você fica na cama, “mamã,”. Tens de te habituar a seres mimada.

Kat olhou para Mallory enquanto este se dirigia à sala de estar e pensou: “Sou a mulher com mais sorte do mundo! Mallory aproximou-se do pequeno bar e deitou um pouco de uísque em dois copos. Espreitou o quarto para se certificar de que não podia ser visto e depois dirigiu-se ao sofá, onde pousara o casaco. Tirou um pequeno frasco do bolso e deitou o conteúdo na bebida de Kat. Regressou ao bar, misturou a bebida e cheiroua.

Não havia qualquer odor. Levou os dois copos para o quarto e entregou um a Kat.

- Vamos fazer um brinde ao nosso filho - pediu Kat.

- Certo. Ao nosso filho.

Ken viu Kat tomar um gole da bebida.

- Havemos de encontrar algures um bom apartamento - disse ela, com ar sonhador. - Montarei um berçário. Vamos estragar o nosso filho com mimos, não vamos? - Deu outro gole.

Mallory concordou:

- Absolutamente. - Examinou-a. - Comosesente?

- Maravilhosa. Tenho estado tão preocupada connosco, querido, mas agora já não estou.

- Ainda bem - afirmou Mallory. - Não tens desepreocupar com nada.

Os olhos de Kat estavam a ficar pesados.

- Não - disse. - Não tenho de me preocupar com nada. - As palavras começaram a fugir. - Ken, sinto-me esquisita.

- Começava a desfalecer.

- Não devias ter ficado grávida.

Olhou para ele, espantada:

- O quê?

- Estragaste tudo, Kat.

- Estraguei…? - Tinha dificuldade em concentrar-se.

- Meteste-te no meu caminho.

- Quê…” - Ninguém se mete no meu caminho.

- Ken, sinto-me tonta.

Ficou ali, a vê-la.

- Ken… ajuda-me, Ken… - A cabeça caiu sobre a almofada.

Mallory olhou de novo para o relógio. Ainda tinha muito tempo.

Honey foi a primeira a chegar ao apartamento e a encontrar o corpo mutilado de Kat caído numa poça de sangue no chão da casa de banho, de frios azulejos brancos.

A seu lado, uma cureta suja de sangue. Tinha-se esvaído em sangue pelo ventre.

Honey permaneceu ali em estado de choque.

- Oh, meu Deus! - A voz soou como um sussurro estrangulado.

Ajoelhou-se ao lado do corpo e, a tremer, colocou o polegar contra a carótida. Não havia pulsação.

Honey correu para a sala de estar, pegou no telefone e discou 115.

Uma voz masculina respondeu;

- Um-um-cinco, urgências.

Honey ficou paralisada, incapaz de falar.

- Um-um-cinco, urgências… Está lá…?

- So… corro! Eu… está aqui… - Engasgara-se com as suas próprias palavras.

- El… ela está morta.

- Quem está morta, miss?

- Kat.

- A sua gata (em inglês, cat) morreu?

- Não! - gritou Honey. - Kat está morta. Mande alguém para cá, imediatamente.

- Minha senhora…

Honey desligou o telefone. Com os dedos a tremer, discou o número do hospital.

- A doutora Taylor. - A voz parecia um murmúrio de agonia.

- Um momento, por favor.

Honey apertou o telefone e esperou dois minutos até ouvir a voz de Paige:

- Doutora Taylor.

- Paige! Tens… tens de vir imediatamente para casa!

- Honey? O que aconteceu?

- A Kat está… morta.

- O quê? - A voz de Paige soou incrédula. - Como? -Parece… parece que tentou fazer ela mesma um aborto.

- Oh, meu Deus! Está bem. Estarei aí o mais depressa possível.

Quando Paige chegou ao apartamento, estavam lá dois polícias, um detetive e um inspetor. Honey estava no quarto dela, com uma grande dose de calmantes. O inspetor estava inclinado sobre o corpo nu de Kat. O detetive levantou a cabeça quando Paige entrou na casa de banho ensanguentada.

- Quem é a senhora?

Paige olhou para o corpo sem vida. Estava pálida.

- Sou a doutora Taylor. Vivo aqui.

- Talvez a senhora possa ajudar-me. Sou o inspetor Burns.

Já tentei falar com a outra senhora que vive aqui.

Está histérica. O médico deu-lhe um calmante.

Paige desviou o olhar da terrível cena que estava no chão.

- O que… que deseja saber?

- Ela morava aqui?

- Sim.

“Vou ter o filho de Ken. Até que ponto será bom?” - Parece que ela tentou livrar-se da criança e estragou tudo - disse o detetive.

Paige ficou ali, com a cabeça a rodar. Quando conseguiu falar, disse:

- Não acredito nisso.

O inspetor Burns estudou-a por momentos:

- Porque é que não acredita nisso, doutora?

- Ela queria ter o bebê. - Começava de novo a pensar com clareza. - O pai é que não queria.

- O pai?

- O doutor Ken Mallory. Trabalha no Embarcadero County Hospital. Não queria casar-se com ela. Oiça, Kat é… era… - tornava-se doloroso dizer que “era” - médica. Se ela quisesse fazer um aborto, de modo algum tentaria fazê-lo ela própria na casa de banho. - Paige abanou a cabeça. - Aqui há algo errado.

O médico levantou-se, afastando-se do corpo.

- Talvez tivesse tentado sozinha por não querer que mais ninguém soubesse da existência do bebê.

- Isso não é verdade. Foi ela quem nos contou.

O inspetor Burns olhou para Paige e perguntou:

- Ela passou a noite sozinha?

- Não. Tinha um encontro com o doutor Mallory.

Ken Mallory estava deitado, a rever cuidadosamente os acontecimentos dessa noite. Reviu todos os passos, certificando-se de que não havia pontas soltas. “Perfeito” decidiu. Permaneceu deitado, a pensar no porquê da polícia levar tanto tempo a chegar e, enquanto pensava nisso, a campainha tocou. Mallory deixou-a tocar três vezes e depois levantou-se, vestiu um roupão e dirigiu-se à sala de estar.

Aproximou-se da porta:

- Quem é? - A voz soou ensonada.

Alguém perguntou:

- Doutor Mallory?

- Sim.

- Inspetor Burns. Departamento da Polícia de São Francisco.

- Departamento da Polícia? - Deu à voz o tom de surpresa exato. Mallory abriu a porta.

O homem que ali se encontrava mostrou o distintivo.

- Posso entrar?

- Sim. O que se passa?

- Conhece uma doutora Hunter?

- Claro que sim. - Surgiu-lhe no rosto uma expressão de alarme. - Aconteceu alguma coisa a Kat?

- Esteve com ela esta noite?

- Sim. Meu Deus! Diga-me o que aconteceu! Ela está bem?

- Lamento, mas tenho uma má notícia. A doutora Hunter morreu.

- Morreu? Não posso acreditar. Como?

- Aparentemente, tentou fazer sozinha um aborto e correu mal.

- Oh, meu Deus! - disse Mallory. Afundou-se numa cadeira.

- A culpa é minha.

O inspetor examinava-o:

- Sua a culpa?

- Sim. Eu… A doutora Hunter e eu íamos casar. Disse-lhe que achava que não era muito boa ideia ter um filho agora.

Quis esperar e ela concordou. Sugeri-lhe que fosse para o hospital para cuidarem dela, mas ela deve ter decidido… não… não consigo acreditar.

- A que horas saiu, doutor Mallory?

- Deviam ser cerca das dez horas. Deixei-a à porta e parti.

- Não entrou no apartamento?

- Não.

- A doutora Hunter falou sobre o que tinha planejado fazer?

- Quer dizer, sobre o…? Não. Nem uma única palavra.

O inspetor Burns tirou um cartão do bolso.

- Doutor, se se lembrar de mais alguma coisa que possa ser útil, agradeçolhe que me telefone.

- Com certeza. Eu… nem calcula o choque que isto foi.

Paige e Honey passaram toda a noite acordadas, a conversar sobre o que sucedera a Kat, a rever tudo uma e outra vez, sem conseguirem acreditar.

Às nove horas, apareceu o inspetor Burns.

- Bom dia. Quis comunicar-lhe s de que falei ontem à noite com o doutor Mallory.

- Ele está a mentir - assegurou Paige. Ficou pensativa:

- Espere! Encontraram algum vestígio de sêmen no corpo de Kat?

- Sim, de fato encontraram.

- Bem, então - disse Paige, excitada -, isso prova que ele está a mentir. Ele levou-a mesmo para a cama e…

- Esta manhã fui falar com ele sobre isso. Diz que tiveram relações antes de saírem para jantar.

- Oh. - Não iria desistir. - As impressões digitais dele estarão na cureta que utilizou para a matar. - A voz soou ansiosa. - Encontrou impressões digitais?

- Sim, doutora - respondeu, pacientemente. - Eram dela.

- Isso é imp… Espere! Então, ele usou luvas e quando terminou, colocou as impressões dela na cureta. O que é que acha?

- Acho que alguém andou a ver demasiados episódios da série televisiva Crime, Disse ele.

- O senhor não acredita que Kat foi assassinada, não é?

- Lamento, mas não.

- Já fizeram a autópsia?

- Sim.

- E?

- O médico classificou a morte de acidental. O doutor Mallory disse-me que ela decidiu não ter o bebê, por isso aparentemente ela…

- Foi para a casa de banho e golpeou-se a si própria? - interrompeu Paige. - Por amor de Deus, inspetor! Ela era médica, uma cirurgiã! De modo algum faria uma coisa dessas a si própria.

O inspetor Burns perguntou, pensativamente:

- Acha que Mallory a persuadiu a fazer um aborto, tentou ajudá-la e depois saiu quando as coisas correram mal? Paige abanou a cabeça:

- Não. Não podia ter acontecido assim. Kat nunca teria concordado. Ele matou-a premeditadamente. - Estava a pensar em voz alta: - Kat era forte.

Teria de estar inconsciente para que ele… conseguisse fazer o que fez.

- A autópsia não apresenta sinais de pancada ou de qualquer outra coisa que pudesse tê-la deixado inconsciente. Nenhuma nódoa negra na garganta…

- Havia vestígios de soníferos ou…?

- Nada. - Reparou na expressão do rosto de Paige.

- Não me parece que tivesse sido um assassinato. Julgo que a doutora Hunter fez um mau juízo e… desculpe.

Viu-o dirigir-se para a porta.

- Espere! - disse Paige. - O senhor tem um motivo.

Ele voltou-se.

- Nem por isso. Mallory diz que ela concordou em fazer o aborto. Isso não nos deixa muita coisa, não é?

- Deixa-vos com um assassinato - respondeu Paige, insistentemente.

- Doutora, o que não temos é qualquer prova. É a palavra dele contra a da vítima e esta morreu. Lamento imenso.

Paige viu-o retirar-se.

“Não deixarei que Ken Mallory se escape desta”, pensou, desesperada.

Jason foi visitar Paige.

- Soube o que aconteceu - disse. - Nem consigo acreditar! Como é que ela foi capaz de fazer o que fez?

- Não foi ela - disse Paige. - Foi assassinada. - E contou a Jason a conversa que tivera com o inspetor Burns” - A Polícia não vai fazer nada quanto a este assunto. Pensam que foi um acidente. Jason, foi por minha culpa que Kat morreu. - sua culpa?

- Além do mais, fui eu que a persuadi a sair com Mallory.

Ela não queria. Tudo começou com uma brincadeira estúpida e ela depois… apaixonou-se por ele. Oh, Jason!

- Não podes sentir-te culpada por isso - disse com firmeza.

Paige olhou em volta, desolada:

- Não consigo continuar a viver neste apartamento.

Tenho que sair daqui.

Jason abraçou-a:

- Vamo-nos casar imediatamente.

- Ainda é muito cedo. Quero dizer, Kat nem sequer foi…

- Eu sei. Esperaremos uma ou duas semanas.

- Está bem.

- Amo-te, Paige.

- Também te amo, querido. Não é estúpido? Sinto-me culpada porque tanto Kat como eu nos apaixonamos, mas ela está morta e eu estou viva.

A fotografia surgiu na primeira página do San Francisco Chronicle de terça-feira. Mostrava Ken Mallory a sorrir, com o braço à volta de Lauren Harrison. No título lia-se: “Herdeira vai casar com médico.”

Paige olhou, incrédula. Kat tinha morrido há apenas dois dias e Ken Mallory já anunciava o seu noivado com outra mulher! Embora estivesse sempre a prometer casar-se com Kat, já estava a planejar fazê-lo com mais alguém.

“Foi por isso que matou Kat. Para a afastar do caminho!”

Paige pegou no telefone e discou o número da Polícia.

- O inspetor Burns, por favor.

Pouco depois, conversava com o inspetor.

- Sou a doutora Taylor.

- Sim, doutora.

- Já viu a fotografia que está no Chronicle desta manhã?

- Sim.

- Bem, aí está o seu motivo! - exclamou Paige. - Ken Mallory teve de calar Kat antes que Lauren Harrison soubesse da existência dela. O senhor tem de o prender. - Estava quase a gritar ao telefone.

- Espere aí. Acalme-se, doutora. Talvez tenhamos um móbil, mas, como lhe disse, não temos a menor prova.

A senhora mesmo disse que a doutora Hunter teria de estar inconsciente para que Mallory pudesse fazer-lhe o aborto.

Depois de ter falado consigo, conversei novamente com o nosso patologista legal. Não havia qualquer sinal de pancada que pudesse ter causado inconsciência.

- Então ele deve ter-lhe dado um sedativo - insistiu Paige.

- Provavelmente hidrato de cloral. Atua rapidamente e…

O inspetor Burns respondeu, pacientemente:

- Doutora, não havia vestígios de hidrato de cloral no organismo. Lamento, lamento sinceramente, mas não podemos prender um homem só porque se vai casar. Tinha mais alguma coisa para me dizer? “Tudo.

- Não - disse Paige. Furiosa, desligou e sentou-se a pensar.

“Mallory tem de ter dado alguma droga a Kat.

O lugar onde ele a poderia ter adquirido mais facilmente era a farmácia do hospital.”

Quinze minutos mais tarde, Paige estava a caminho do Embarcadero County Hospital.

Pete Samuels, o farmacêutico-chefe, estava atrás do balcão.

- Bom dia, doutora Taylor. Em que posso ajudá-la?

- Penso que o doutor Mallory esteve aqui há alguns dias atrás e levou um medicamento. Ele disse-me o nome, mas esqueci-me qual era.

Samuels franziu as sobrancelhas:

- Não me lembro de ter visto aqui o doutor Mallory há pelo menos um mês.

- Tem a certeza?

Samuels anuiu:

- Absoluta. Lembrar-me-ia dele. Conversamos sempre sobre futebol.

Paige ficou deprimida.

- Obrigada.

“Deve ter entregue uma receita numa outra farmácia.” Paige sabia que a lei obrigava a que todas as receitas de narcóticos fossem feitas em triplicado - uma cópia para o doente, outra para ser enviada ao Bureau of Controlled Substances e uma terceira para os ficheiros da farmácia.

“Algures”, pensou Paige, “Ken Mallory passou uma receita.

Existem provavelmente duzentas ou trezentas farmácias em São Francisco.

Não tinha qualquer possibilidade de descobrir a receita. O mais provável era que Mallory a tivesse aviado pouco antes de ter assassinado Kat.

Isso teria acontecido num sábado ou num domingo. Se foi no domingo, talvez haja uma possibilidade”, animou-se ela.

“Poucas são as farmácias que abrem ao domingo. Isso diminui a lista.”

Subiu ao gabinete onde se guardavam as folhas de serviço e examinou a correspondente a sábado. O Dr. Mallory tinha estado de serviço nesse dia e, assim sendo, a hipótese era de ele ter aviado a receita no domingo.

Quantas farmácias estavam abertas ao domingo em São Francisco?

Paige levantou o telefone e ligou para a associação de farmácias.

- Daqui fala a doutora Taylor - disse Paige. - No domingo passado, uma amiga minha entregou uma receita numa farmácia.

Ela pediu-me para levantar os medicamentos, mas não consigo lembrar-me do nome da farmácia. Será que me podem ajudar?

- Bem, não sei como, doutora. Se não sabe…

- Grande parte das farmácias estão fechadas ao domingo, não é assim?

- Sim, mas…

- Agradecia que me fornecessem uma lista das que abrem.

Houve uma pausa.

- Bem, se isso é importante…

- É muito importante - garantiu-lhe Paige.

- Aguarde um momento, por favor.

Na lista constavam trinta e seis farmácias, espalhadas pela cidade. Teria sido mais simples se ela pudesse ter pedido ajuda à Polícia, mas o inspetor Burns não acreditava nela.

“Honey e eu teremos de fazer isto sozinhas”, decidiu.

Explicou a Honey o que tinha em mente.

- É realmente um caso difícil, não é? - disse Honey.

- Nem sequer sabes se ele passou a receita no domingo.

- É a nossa única esperança. - “E também de Kat.” - Vou verificar as de Richmond, Marina, North Beach, Upper Market, Mission e Potrero; tu verificas as da zona de Excelsior, Ingleside, Lake Merced, Western Addition e Sunset.

Na primeira farmácia onde entrou, Paige identificou-se e disse:

- Um colega meu, o doutor Ken Mallory, esteve aqui no domingo para aviar uma receita. Ele foi para fora da cidade e pediu-me para levantar mais uma dose do medicamento, mas esqueci-me do nome. Importa-se de verificar, por favor?

- Doutor Ken Mallory? É só um momento. - Regressou minutos mais tarde.

- Lamento, no domingo não aviámos qualquer receita do doutor Mallory.

- Obrigada.

Paige obteve a mesma resposta nas quatro farmácias seguintes.

Honey não estava a ter melhor sorte.

- Sabe, temos aqui milhares de receitas.

- Sei, mas esta foi no domingo.

- Bem, não temos nenhuma receita desse tal doutor Mallory.

Lamento.

As duas passaram o dia a ir de farmácia em farmácia.

Ambas estavam a ficar desencorajadas. Só no final da tarde, pouco antes da hora de fecho, é que Paige encontrou o que procurava numa pequena farmácia do distrito de Potrero.

O farmacêutico disse:

- Oh, sim, aqui está. Doutor Ken Mallory. Lembro-me dele. Ia fazer uma visita médica a um doente. Fiquei impressionado porque atualmente poucos são os médicos que fazem isso.

“Um residente nunca faz visitas médicas.” - A receita era para quê?

Paige ficou em suspense.

- Hidrato de cloral.

Quase tremia de excitação:

- Tem a certeza?

- Pelo menos, é o que diz aqui.

- Quem era o doente?

Ele olhou para a cópia da receita e disse:

- Spyros Levathes.

- Importa-se de me dar uma cópia dessa receita? - perguntou Paige.

- De modo algum, doutora.

Uma hora mais tarde, Paige encontrava-se no gabinete do inspetor Burns.

Pousou a receita na secretária.

- Aqui está a sua prova - disse Paige. - No domingo, o doutor Mallory foi a uma farmácia longe do local onde vive e aviou esta receita de hidrato de cloral. Ele deitou o hidrato de cloral na bebida de Kat e, quando ela ficou inconsciente, esfaqueou-a de forma a parecer acidental.

- Existe apenas um problema, doutora Taylor. Não havia qualquer vestígio de hidrato de cloral no organismo dela.

- Tem de haver. O seu patologista cometeu um erro.

Peça-lhe para verificar de novo.

O inspetor começava a perder a paciência:

- Doutora…

- Por favor! Sei que tenho razão.

- A senhora está a fazer com que todos percam tempo.

Paige sentou-se à frente, com os olhos fixos nele.

O inspetor suspirou:

- Está bem. Vou falar outra vez com ele. Talvez tenha cometido mesmo um erro.

Jason foi buscar Paige para jantarem juntos.

- Vamos jantar em minha casa - disse. - Tenho uma coisa que gostaria que visses.

Durante o trajeto, Paige contou a Jason tudo o que descobrira.

- Hão-de descobrir o hidrato de cloral no organismo dela - disse Paige. - E Ken Mallory há-de receber o que bem merece.

- Lamento tanto tudo isto, Paige.

- Eu sei. - Pegou na mão dele e encostou-a à sua própria cara. - Graças a Deus que existes.

O carro parou em frente à casa de Jason.

Paige olhou pela janela e deu um salto. À volta do relvado havia uma vedação branca.

Estava sozinha no apartamento, com as luzes apagadas. Ken Mallory utilizou a chave que Kat lhe tinha dado e dirigiu-se rapidamente ao quarto.

Paige ouviu os passos na sua direão mas, antes de se poder mover, já ele saltara sobre ela e colocara as mãos em volta do pescoço.

- Sua cabra! Estás a tentar destruir-me. Bem, não vais vasculhar mais nada.

- Começou a apertar com mais força. - Fui mais esperto do que todos vós, não fui? - As mãos apertaram ainda mais. - Ninguém conseguirá provar que matei Kat.

Ela tentou gritar, mas era impossível respirar. Lutou para se libertar e, subitamente, acordou. Estava sozinha no seu quarto. Paige sentou-se na cama, a tremer.

Passou o resto da noite acordada, à espera da chamada do inspetor Burns.

Esta chegou às dez da manhã.

- Doutora Taylor?

- Sim. - Susteve a respiração.

- Acabei de receber o terceiro relatório do patologista legal.

- E? - O coração começou a bater mais depressa.

- Não havia nenhum vestígio de hidrato de cloral ou de qualquer outro sedativo no organismo da doutora Hunter.

Nenhum.

Isso era impossível! Tinha de ser. Não havia sinais de pancada ou qualquer outra coisa que a tivesse deixado inconsciente. Nenhuma nódoa negra na garganta. Nada daquilo fazia sentido. Kat tinha de estar inconsciente quando Mallory a matou. O patologista legal estava errado.

Paige decidiu ir falar ela própria com o patologista.

O Dr. Dolan estava irritado:

- Não gosto que duvidem assim - disse. - Verifiquei três vezes. Disse ao inspetor Burns que não havia qualquer vestígio de hidrato de cloral em nenhum dos órgãos dela, e realmente não havia.

- Mas…

- Mais alguma coisa, doutora?

Paige olhou para ele, desolada. Tinha perdido a sua última esperança. Ken Mallory iria safar-se do assassinato que cometera.

- Julgo… que não. Se não encontrou nenhum produto químico no organismo dela, eu não…

- Não disse que não tinha encontrado nenhum produto químico.

Olhou um momento para ele:

- Encontrou alguma coisa?

- Apenas um vestígio de tricloroetileno. Na descrição lia-se: “Um líquido volátil, incolor e transparente, com a gravidade específica de 1,47 a 59 graus F. E um hidrocarbono halogenizado, com a fórmula química Ccl2, CHCl.

E finalmente, no último minuto, ela encontrou o que procurava. “Quando o hidrato de cloral se metaboliza produz tricloroetileno como subproduto.” - Inspetor, está aqui a doutora Taylor.

- Outra vez? - Sentiu vontade de não a receber. Estava obcecada com a ideia do assassinato. Tinha de acabar com aquilo. - Mande-a entrar. - Quando Paige entrou no gabinete, ele adiantou-se: - Olhe, doutora, acho que isto já foi longe de mais. O doutor Dolan queixou-se de que…

- Eu sei como é que Ken Mallory fez tudo! - A voz soou bastante excitada.

- Havia tricloroetileno no organismo de Kat.

Ele anuiu:

- O doutor Dolan disse-me isso - concordou Burns. - Mas também me disse que não podia tê-la deixado inconsciente.

Ele…

- O hidrato de cloral transforma-se em tricloroetileno! - disse Paige, triunfante. - Mallory mentiu quando disse que não regressou com Kat ao apartamento. Colocou o hidrato de cloral na bebida dela. Não tem sabor quando misturado com álcool e leva apenas alguns minutos a atuar.

Depois, quando ela ficou inconsciente, matou-a e fez com que parecesse um aborto mal sucedido.

- Doutora, peço desculpa pelo que vou dizer, mas isso é muita especulação junta.

- Não, não é. Ele escreveu a receita para um doente chamado Spyros Levathes, mas nunca lhe deu.

- Como sabe isso?

- Porque não podia. Verifiquei o Spyros Levathes.

Sofre de erythropoietir porphyria.

- O que é isso?

- É um problema metabólico genético. Causa fotossensibilidade e lesões, hipertensão, taquicardia e alguns outros sintomas desagradáveis. É o resultado de um gene defeituoso.

- Ainda não compreendo.

- O doutor Mallory não deu hidrato de cloral ao doente porque matá-lo-ia!

O hidrato de cloral é contra-indicado para a porphyria. Teria causado convulsões imediatas.

Pela primeira vez, o inspetor Burns ficou impressionado.

- A senhora trabalhou mesmo bem, não foi? Paige continuou:

- Porque é que Ken Mallory iria a uma farmácia distante aviar uma receita a um doente que sabia que não podia tomar esse medicamento? O senhor tem de o prender.

Tinha as mãos apoiadas na secretária:

- Não é assim tão simples.

- O senhor tem de…

O inspetor Burns levantou uma mão:

- Está bem. Digo-lhe o que irei fazer. Entrarei em contato com o gabinete do promotor público e verei se acham que temos aqui um caso.

Paige sabia que tinha feito tudo o que podia.

- Obrigada, inspetor.

- Falarei consigo depois.

Assim que Paige Taylor saiu, o inspetor Burns ficou a pensar na conversa.

Não havia qualquer prova insofismável contra o Dr. Mallory, mas apenas a suspeita de uma mulher persistente. Reviu os poucos fatos que possuía.

O Dr. Mallory tinha-se comprometido com Kat Hunter.

Dois dias depois de ela ter morrido, estava comprometido com a filha de Alex Harrison. Interessante, mas não contra a lei.

Mallory dissera que deixara a Dra. Hunter à porta do apartamento e que não entrara. Foi encontrado sêmen no corpo dela, mas ele deu uma explicação plausível para isso.

Depois surgiu o hidrato de cloral. Mallory tinha aviado uma receita desse medicamento para um doente que, se o tivesse tomado, morreria. Era culpado de assassinato? Ou não?

Burns chamou a secretária através do intercomunicador.

- Bárbara, marque-me uma reunião com o promotor público para esta tarde.

Estavam quatro homens no gabinete, quando Paige entrou: o promotor público, o seu assistente, um homem chamado Warren e o inspetor Burns.

- Obrigada por ter vindo, doutora Taylor - agradeceu o promotor público. - O inspetor Burns falou-me do seu interesse na morte da doutora Hunter.

Admiro isso. A doutora Hunter era sua companheira e a senhora quer que a justiça seja cumprida.

“Então, apesar de tudo, vão prender Ken Mallory!” - Sim - afirmou Paige. - Não há qualquer dúvida.

O doutor Mallory matou-a. Quando o prenderem, ele…

- Lamento, mas não podemos fazer isso.

Paige ficou pálida a olhar para ele:

- O quê?

- Não podemos prender o doutor Mallory.

- Mas porquê?

- Não temos caso.

- É claro que têm! - exclamou Paige. - O tricloroetileno prova que…

- Doutora, no tribunal, a ignorância da lei não é desculpa.

Mas ignorância em medicina é.

- Não compreendo.

- É simples. Significa que o doutor Mallory poderia afirmar que cometeu um erro ou que não sabia que efeitos o hidrato de cloral causaria ao doente com porphyria.

Ninguém conseguiria provar que estava a mentir. Isso pode provar que é um péssimo médico, mas não provaria que é culpado de assassinato.

Paige olhou para ele, frustrada:

- Vai deixá-lo escapar do que fez?

Ele estudou-a por momentos:

- Vou dizer-lhe o que pretendo fazer. Já conversei sobre este assunto com o inspetor Burns. Se nos autorizar, enviaremos alguém ao seu apartamento para ir buscar os copos do bar. Se encontrarmos vestígios de hidrato de cloral, daremos o passo seguinte.

- E se ele os lavou?

O inspetor Burns respondeu, secamente:

- Não acredito que ele tivesse tempo para utilizar detergente. Se tiver apenas passado os copos por água, descobriremos o que estamos à procura.

Duas horas mais tarde, o inspetor Burns falava ao telefone com Paige.

- Fizemos uma análise clínica de todos os copos do bar, doutora - disse Burns. Paige estava tão desapontada que ficou estática. - Encontrámos um com vestígios de hidrato de cloral.

Paige fechou os olhos e fez uma silenciosa oração de agradecimento.

- E havia impressões digitais nesse copo. Vamos compará-las com as do doutor Mallory.

Paige sentiu uma onda de excitação.

O inspetor continuou:

- Quando a matou, se realmente a matou, calçava luvas para que as suas impressões digitais não fossem encontradas na cureta. Mas não podia ter servido a bebida com as luvas calçadas e talvez não as tivesse quando voltou a colocar os copos no lugar, depois de os ter passado por água.

- Não - disse Paige. - Não podia, pois não? - tenho de admitir que, no início, não acreditei que a sua teoria resultasse nalguma coisa. Agora penso que o doutor Mallory pode ser o nosso homem. Mas prová-lo vai ser outro assunto. - E continuou. - O promotor público tem razão. Será difícil levar Mallory a tribunal.

Ainda pode afirmar que a receita era para o doente dele.

Não existe qualquer lei contra um erro médico. Não vejo como…

- Espere aí! - disse Paige, excitada. - Acho que sei como!

Ken Mallory ouvia o que Lauren dizia ao telefone.

- O pai e eu encontrámos um escritório que vais adorar, querido! É uma suite magnífica do Post Building quatrocentos e noventa. Vou contratar uma recepcionista para ti; alguém que não seja muito bonita.

Mallory deu uma gargalhada:

- Não tens desepreocupar com isso, doçura. Para mim, não existe mais ninguém no mundo senão tu.

- Estou ansiosa que o vejas. Consegues sair agora?

- Saio dentro de duas horas.

- Maravilha! Porque não me vens buscar a casa?

- Está bem. Estarei aí. - Mallory desligou o telefone. “É impossível tornarse melhor do que isto”, pensou.

“Existe não um deus mas uma deusa, e ela adora-me.” Ouviu o seu nome no sistema de altofalantes: “Dr. Mallory… Quarto 430… Dr. Mallory…

Quarto 430.” Deixou-se ficar sentado a sonhar acordado e a pensar no futuro dourado que o esperava. “Uma suite magnífica do Post Building 490, cheio de velhas ricas e ansiosas por lhe atirarem o seu dinheiro.”

Ouviu de novo o seu nome. “Dr. Mallory… Quarto 430.” Suspirou e levantou-se. “Muito em breve estarei longe desta maldita casa de loucos”, pensou.

E dirigiu-se ao quarto 430.

Um residente esperava-o no corredor, junto ao quarto.

- Julgo que temos aqui um problema - disse. - É um dos doentes do doutor Peterson, mas o doutor não está aqui. Tive uma discussão com um dos outros médicos.

Entraram. Estavam mais três pessoas no quarto: um homem deitado, uma enfermeira e um médico que Mallory nunca tinha visto antes.

O residente apresentou-os:

- Este é o doutor Edwards. Precisamos dos seus conselhos, doutor Mallory.

- Qual é o problema?

O residente explicou:

- Este doente sofre de erythropoietic porphyria e o doutor Edwards insiste em dar-lhe um sedativo.

- Não vejo onde está o problema.

- Obrigado - disse o Dr. Edwards. - O homem não dorme há quarenta e oito horas. Receitei-lhe hidrato de cloral para que possa descansar e…

Mallory olhou para ele, incrédulo:

- Está louco? Isso pode matá-lo! Teria convulsões, taquicardia e provavelmente acabaria por morrer. Onde diabo estudou medicina?

O homem olhou para Mallory e respondeu calmamente:

- Não estudei. - Puxou do distintivo. - Trabalho no Departamento de Polícia de São Francisco, Homicídios.

- Voltou-se para o homem que estava deitado.

- Capou tudo?

O homem retirou um gravador colocado debaixo da almofada:

- Tudo.

Mallory olhava de um para o outro, de sobrancelhas franzidas:

- Não compreendo. O que é isto? O que se passa? O inspetor voltou-se para ele:

- Doutor Mallory, o senhor está preso pelo assassinato da doutora Kat Hunter.

Na primeira página do San Francisco Chronicle lia-se: MÉDICO PRESO NUM TRIâNGULO AMOROSO. A história por baixo era bastante longa, para relatar em pormenor os fatos lúridos do caso.

Mallory leu o jornal na cela. Atirou com ele para o chão.

O companheiro de cela disse:

- Tudo indica que foste apanhado em cheio, amigo.

- Não acredite nisso - disse Mallory, confidencialmente.

- Tenho bons conhecimentos e eles irão contratar o melhor advogado do mundo. Sairei daqui dentro de vinte e quatro horas. Só tenho de fazer um telefonema.

Os Harrisons liam o jornal à mesa do pequeno-almoço.

- Meu Deus! - exclamou Lauren. - Ken! Não posso acreditar! O mordomo aproximou-se com o tabuleiro do pequeno-almoço.

- Desculpe, Miss Harrison. O doutor Mallory está ao telefone. Julgo que está a telefonar da cadeia.

- Eu atendo.

Lauren começou a levantar-se da mesa.

- Você fica aqui a tomar o pequeno-almoço - disse Alex Harrison com firmeza. Virou-se para o mordomo:

- Não conhecemos nenhum doutor Mallory.

Paige leu o jornal enquanto se vestia. Mallory iria ser castigado pelo terrível ato que cometera, mas isso não causou satisfação a Paige. Nada do que lhe pudessem fazer traria Kat de volta.

A campainha da porta soou e ela foi atender. Deparou-se-lhe um estranho.

Vestia fato escuro e trazia uma pasta.

- Doutora Taylor?

- Sim…

- Chamo-me Roderick Pelham. Sou advogado da Rothman Rothman.

Posso entrar?

Paige estudou-o, confusa:

- Sim.

Ele entrou no apartamento.

- O que deseja de mim?

Viu-o abrir a pasta e retirar alguns papéis.

- Tem conhecimento, claro, de que é a principal beneficiária do testamento de John Cronin?

Paige ficou branca a olhar para ele:

- De que é que está a falar? Deve haver algum erro.

- Oh, não existe qualquer erro. O senhor Cronin deixou-lhe a soma de um milhão de dólares.

Paige afundou-se na cadeira, estupefata, tentando lembrar-se.

“Tem de ir à Europa. Faça-me um favor. Vá a Paris… fique no Crillon, jante no Maxim’s, peça um bife grande e espesso e uma garrafa de champanhe e, quando estiver a comer o bife e a beber o champanhe, quero que pense em mim.” - Se fizer o favor de assinar aqui, poderemos tratar de toda a papelada necessária.

Paige levantou a cabeça:

- Eu… não sei o que dizer. Eu… ele tinha família.

- De acordo com os termos do testamento, eles receberão apenas o restante dos bens, que não perfazem uma importância muito grande.

- Não posso aceitar isto - disse-lhe Paige.

Pelham olhou para ela, surpreendido:

- Porque não?

Não soube responder. John Cronin tinha querido que ela ficasse com esse dinheiro.

- Não sei. De… certa maneira, isso parece-me pouco ético.

Ele era meu doente.

- Bem, vou deixar o cheque aqui consigo. A senhora poderá decidir o que fazer com ele. Assine aqui, por favor.

Paige assinou o papel ainda confusa.

- Adeus, doutora.

Acompanhou-o à porta e sentou-se a pensar em John Cronin.

A notícia da herança de Paige era tema de conversa em todo o hospital. Por um lado, Paige desejara que ninguém soubesse do assunto. Ainda não tinha decidido o que fazer com o dinheiro.

“Não me pertence”, pensou. “Ele tinha família.”

Paige ainda não estava emocionalmente apa a regressar ao trabalho, mas os doentes precisavam dela. Tinha uma operação marcada para essa manhã.

Arthur Kane esperava por Paige no corredor. Nunca mais tinham falado um com o outro, desde o incidente das radiografias invertidas. Embora Paige não tivesse provas de que fora Kane, o acontecimento tinha-a marcado profundamente.

- Olá, Paige. Vamos esquecer tudo o que se passou.

O que diz a isso?

Paige encolhe u os ombros: - Está bem.

- Não acha terrível o caso de Ken Mallory? - perguntou.

- Sim - respondeu Paige.

Kane olhou para ela, pelo canto do olho:

- Consegue imaginar um médico a matar deliberadamente um ser humano?

É horrível, não acha?

- Sim. - “A propósito - disse - parabéns. Soube que é milionária.

- Não vejo…

- Tenho bilhe tes para a peça de teatro desta noite, Paige.

Pensei que pudéssemos ir os dois.

- Obrigada - agradeceu Paige. - Estou comprometida com outra pessoa.

- Então, sugiro que quebre o compromisso.

Olhou para ele, surpreendida:

- Como disse?

Kane aproximou-se mais dela:

- Mandei fazer uma autópsia a John Cronin.

Paige sentiu que o coração batia mais depressa:

- Sim?

- Não morreu de ataque cardíaco. Alguém lhe deuuma dose excessiva de insulina. Acho que esse alguém em particular não contou com uma autópsia.

A boca de Paige ficou subitamente seca.

- Você estava presente quando ele morreu, não estava? Hesitou:

- Sim.

- Só eu sei disso e só eu tenho o relatório. - Deu-lhe uma palmadinha no ombro. - E a minha boca está selada. Agora, quanto aos bilhe tes desta noite…

Paige afastou-se dele:

- Não!

- Tem a certeza de que sabe o que está a fazer? Respirou fundo:

- Sim. Agora, se me der licença… - E afastou-se.

Kane olhou para ela e o rosto endureceu. Deu meia volta e dirigiu-se ao gabinete do Dr. Benjamin Wallace.

O telefone acordou-a à uma da manhã, no apartamento.

- Foste outra vez muito malandra.

Era de novo a mesma voz rouca, tentando disfarçar falando num sussurro, mas desta vez Paige reconheceu-a.

“Meu Deus”, pensou, eu tinha razão em ter medo.

Na manhã seguinte, quando Paige chegou ao hospital, dois homens esperavam-na.

- Doutora Paige Taylor?

- Sim.

- Tem de nos acompanhar. Está presa pelo assassinato de John Cronin.

Era o último dia do julgamento de Paige. Alan Penn, o advogado de defesa, expunha o seu sumário ao júri.

- Senhoras e senhores, já ouviram muitos testemunhos acerca da competência ou incompetência da doutora Taylor. Bom, a juíza Young dirvos- á que não é esse o assunto que se está a tratar neste julgamento. Tenho a certeza que, para cada médico que não aprovou o trabalho dela, poderíamos arranjar uma dúzia que aprovou. Mas não se trata disso.

“Paige Taylor está a ser julgada pela morte de John Cronin.

Admitiu tê-lo ajudado a morrer. Fê-lo porque ele sofria muito e porque lhe pediu que o fizesse. Isso é eutanásia, cada vez mais aceite em todo o mundo. No ano passado, o Tribunal Superior de Califórnia defendeu o direito de um adulto mentalmente competente recusar ou exigir a retirada de qualquer tipo de tratamento médico.

É o indivíduo que tem de viver ou morrer durante o curso do tratamento escolhido ou rejeitado. - Olhou para o rosto dos jurados: - A eutanásia é um crime de compaixão, de misericórdia, e atrevo-me a dizer que acontece de uma ou outra maneira em hospitais de todo o mundo.

O advogado de acusação apela à pena de morte. Não o deixem confundir o assunto. Nunca houve pena de morte para a eutanásia. Sessenta e três por cento dos Americanos acreditam que a eutanásia devia ser legal e, em dezoito estados deste país, é legal. A pergunta é: temos o direito de obrigar doentes indefesos a viver com dores, forçá-los a manterem-se vivos e a sofrer? A pergunta tornou-se complicada devido aos grandes avanços ocorridos na tecnologia médica. Entregámos a máquinas os cuidados a ter com os doentes. As máquinas não são misericordiosas. Se um cavalo partir uma pata, acabamos com o seu sofrimento dando-lhe um tiro. Com um ser humano, condenamo-lo a metade da vida, o que é infernal.

“A doutora Taylor não decidiu quando é que John Cronin deveria morrer.

John Cronin é que decidiu. Não confundam o caso; o que a doutora Taylor fez foi um ato de misericórdia.

Assumiu toda a responsabilidade desse ato. Mas podem ter a certeza de que ela nada sabia da herança que lhe fora deixada.

O que fez, fê-lo num espírito de compaixão. John Cronin era um homem de coração fraco com um cancro incurável que se espalhara por todo o corpo, causando-lhe agonia. Perguntem-se a vós próprios. Nessas circunstâncias, gostariam de continuar a viver? Obrigado. - Deu meia volta, regressou à mesa e sentou-se ao lado de Paige.

Venable levantou-se e aproximou-se do júri:

- Compaixão? Misericórdia? - Olhou para Paige, abanou a cabeça e tornou a virar-se para o júri: - Senhoras e senhores, exerço direito em tribunais há mais de vinte anos e devo dizer-lhe s que, durante todos esses anos nunca, mas nunca, vi um caso tão claro de assassinato deliberado a sangue-frio e só por dinheiro.

Paige, tensa e pálida, escutava cada palavra.

- A defesa falou de eutanásia. Será que a doutora Taylor fez o que fez por compaixão? Não acredito.

A doutora Taylor e outros testemunharam que o senhor Cronin tinha apenas mais alguns dias de vida. Porque é que ela não o deixou viver esses dias? Talvez tenha sido porque a doutora Taylor receou que a senhora Cronin viesse a saber das alterações ao testamento do marido, e assim acabou com o problema.

“É uma coincidência bastante notável que, imediatamente após o senhor Cronin ter alterado o testamento e deixado à doutora Taylor a soma de um milhão de dólares, ela lhe dê uma dose excessiva de insulina para o matar.

“Uma e outra vez, a ré condenou-se a si mesma com as suas próprias palavras. Afirmou que tinha um relacionamento amigável com John Cronin, que ele gostava dela e a respeitava.

Mas ouviram testemunhas afirmarem que ele odiava a doutora Taylor, que a chamou de “aquela puta” e lhe disse para manter a merda das suas mãos longe dele.

Gus Venable olhou novamente para a ré. Notava-se um ar de desespero no rosto de Paige. Voltou-se para o júri:

- Um advogado testemunhou que a doutora Taylor disse, sobre o milhão de dólares que lhe tinham sido deixados: “É pouco ético. Ele era meu doente.” Mas aceitou o dinheiro. Precisava dele. Tinha em casa uma gaveta cheia de revistas de viagens…

Paris, Londres, a Riviera.

E não se esqueçam de que ela não voltou à agência de viagens depois de receber o dinheiro. Oh, não. planejou essas viagens antes. Tudo o que precisava era de dinheiro e de uma oportunidade; e John Cronin forneceu ambas as coisas. Um homem indefeso e moribundo a quem podia controlar.

Tinha à sua mercê um homem que admitiu estar a sofrer muito… isto é, estar em agonia, segundo o que ela mesmo admitiu. Quando se sofre assim, pode-se imaginar como é difícil pensar com clareza. Não sabemos como é que a doutora Taylor persuadiu John Cronin a alterar o testamento, retirando a família a quem amava e tornando-a na sua principal beneficiária. O que realmente sabemos é que a chamou para junto de si nessa noite fatal. De que é que falaram? Terá ele oferecido um milhão de dólares para que ela acabasse com o seu sofrimento? É uma possibilidade que temos de encarar. Em qualquer dos casos, foi um assassinato a sanguefrio.

“Senhoras e senhores, sabem quem foi a testemunha mais redundante de todas, durante este julgamento? - Apontou um dedo acusador a Paige: - A própria ré!

Ouviram-na testemunhar que nunca violara o sagrado juramento de Hipócrates, mas mentiu. Ouvimos testemunhos de que ela fizera uma transfusão ilegal e mais tarde falsificara o registo. Afirmou nunca ter morto qualquer doente à excepção de John Cronin, mas ouvimos testemunhos de que o doutor Barker, um médico respeitado por todos, a acusara de ter morto um seu doente.

“Infelizmente, senhoras e senhores, Lawrence Barker sofreu um enfarte e não pode estar aqui hoje para testemunhar contra a ré. Mas permitam que vos recorde a opinião que o doutor Barker tinha da ré. Este é o doutor Peterson, que testemunha sobre um doente a quem a doutora Taylor operou.

Leu a transcrição: - “O doutor Barker entrou na sala de operações durante a cirurgia?” - “Sim.” E o doutor Barker disse alguma coisa?

- Resposta: “Voltou-se para a doutora Taylor e disse: Você matou-o.

- Esta é da enfermeira Berry. “Conte algumas coisas específicas que ouviu o doutor Barker dizer à doutora Taylor.

- Resposta: “Disse que ela era incompetente… Noutra altura afirmou que não a deixaria operar o seu cão.” Gus Venable levantou a cabeça:

- Ou existe alguma conspiração, onde todos estes médicos e enfermeiras de boa reputação mentem acerca da ré, ou a doutora Taylor é uma mentirosa.

Não só mentirosa, como patologicamente…

A porta do fundo da sala de tribunal abriu-se, dando passagem a um ajudante. Parou um momento à entrada, tentando tomar uma decisão. Em seguida, percorreu a passagem entre as cadeiras e aproximou-se de Gus Venable.

- Sir…

Gus Venable voltou-se, furioso:

- Não vê que eu…?

O ajudante segredou-lhe ao ouvido.

Gus Venable olhou para ele, abismado:

- O quê? Isso é maravilhoso.

A juíza Young inclinou-se para a frente e disse muito baixinho:

- Perdoem a interrupção, mas o que estão exatamente a fazer?

Gus Venable virou-se para a magistrada, excitado:

- Meritíssima, acabei de ser informado que o doutor Lawrence Barker está no lado de fora desta sala. Veio numa cadeira de rodas, mas está em condições de testemunhar. Gostaria de o chamar ao banco das testemunhas.

Levantou-se um murmúrio na sala.

Alan Penn levantou-se:

- Protesto! - gritou. - A acusação está a meio do seu sumário. Não há motivo para chamar uma nova testemunha numa hora tão tardia. Eu…

A juíza Young bateu com o martelo:

- Queiram fazer o favor de se aproximarem da tribuna.

Penn e Venable dirigiram-se à tribuna.

- Isto é bastante irregular, meritíssima. Oponho-me…

A juíza Young disse:

- Tem razão quando diz ser irregular, doutor Penn, mas está enganado quando diz não haver motivo. Posso citar uma dúzia de casos por todo o país, onde as testemunhas materiais foram autorizadas a testemunhar em circunstâncias especiais. Na realidade, se está tão interessado em motivos, deverá ler o caso que teve lugar nesta sala há cinco anos. Aconteceu que fui eu a juíza.

Alan Penn engoliu em seco:

- Isso significa que vai autorizar que ele testemunhe? A juíza Young ficou pensativa:

- Uma vez que o doutor Barker é uma testemunha material para este caso e estava impossibilitado de testemunhar mais cedo, no interesse da justiça vou permitir que ele apresente o seu testemunho.

- Excepção! Nada prova que a testemunha é competente para testemunhar.

Exijo uma equipa de psiquiatras…

- Doutor Penn, nesta sala de tribunal, nós não exigimos. Nós pedimos. - Voltou-se para Gus Venable. - Pode mandar entrar a sua testemunha.

Alan Penn permaneceu imóvel, sentindo-se derrotado.

“Acabou tudo”, pensou. “Tudo se desmoronou.” Gus Venable virou-se para o ajudante.

- Mande entrar o doutor Barker.

A porta abriu-se lentamente e o Dr. Lawrence Barker, numa cadeira de rodas, entrou na sala de tribunal. Tinha a cabeça inclinada e num dos lados do rosto notava-se um ligeiro rito.

Todos olharam para a figura pálida e frágil a ser empurrada até à frente da sala. Quando passou por Paige, levantou a cabeça e olhou para ela.

Nada havia de amigável no seu olhar, o que fez com que Paige se lembrasse das suas últimas palavras: “Quem raio julga que…?”

Quando Lawrence Barker já se encontrava perante o banco, a juíza Young inclinou-se para a frente e perguntou gentilmente:

- Doutor Barker, está em condições de testemunhar hoje? Quando Barker falou, mal se lhe ouviam as palavras:

- Estou, meritíssima.

- Está totalmente ciente do que se passa nesta sala de tribunal?

- Sim, meritíssima. - Olhou para onde Paige estava sentada.

- Aquela mulher está a ser julgada pelo assassinato de um doente.

Paige estremeceu. “Aquela mulher!”

A juíza Young tomou a decisão. Virou-se para o almoxarife.

- Por favor, pode fazer a testemunha prestar juramento? Depois de o Dr.

Barker ter prestado juramento, a juíza Young disse:

- Pode ficar na cadeira, doutor Barker. A acusação poderá prosseguir e irá permitir que a defesa contra-interrogue.

Gus Venable sorriu:

- Obrigado, meritíssima. - Aproximou-se da cadeira de rodas.

- Doutor, não vamos empatá-lo muito tempo e o tribunal agradece-lhe sinceramente que tenha vindo testemunhar nestas circunstâncias tão penosas. Tem conhecimento de algum dos testemunhos que aqui foram apresentados durante o último mês? O Dr. Barker anuiu:

- Tenho seguido o caso pela televisão e através dos jornais e ficado enojado com tudo.

Paige tapou a cara com as mãos.

Era tudo o que Gus Venable podia fazer para esconder a sensação de triunfo.

- Tenho a certeza de que muitos de nós se sentem da mesma maneira, doutor - disse a acusação, respeitosamente.

- Vim aqui porque quero que a justiça seja feita.

Venable sorriu:

- Exatamente. Tal como nós.

Lawrence Barker respirou fundo e, quando falou, a voz soou cheia de fúria:

- Então, por que raio levou a doutora Taylor a julgamento? Venable julgou ter percebido mal:

- Como disse?

- Este julgamento é uma farsa!

Paige e Alan Penn olharam-se entre si, abismados.

Gus Venable empalideceu:

- Doutor Barker…

- Não me interrompa - afirmou Barker. - O senhor utilizou o testemunho de muitas pessoas tendenciosas e invejosas para atacar uma cirurgiã brilhante. Ela…

- Um momento! - Venable começava a entrar em pânico. - Não é verdade que criticou as capacidades da doutora Taylor de tal forma que a deixou pronta para deixar o Embarcadero Hospital?

- Sim.

Gus Venable começou a sentir-se melhor:

- Bem, então - disse em tom benevolente - como pode afirmar que Paige Taylor é uma médica brilhante?

- Porque acontece que é a verdade.

Barker virou-se para olhar para Paige e, quando tornou a falar, conversava com ela como se estivessem somente duas pessoas na sala:

- Algumas pessoas nascem para ser médicas. Você é uma dessas raridades.

Desde o início que percebi como você era capaz.

Dificultei-lhe a vida, talvez de mais, porque você era boa.

Fui duro para si porque quis que fosse mais dura consigo mesma. Quis que fosse perfeita porque, na nossa profissão, não existe espaço para erros.

Nenhum.

Paige olhava para ele, mesmerizada, com a mente às voltas.

Tudo estava a acontecer muito depressa.

A sala ficou silenciosa.

- Nunca permitiria que deixasse o hospital.

Gus Venable começava a sentir que a vitória lhe fugia.

A sua grande testemunha tinha-se tornado no seu pior pesadelo.

- Doutor Barker… foi testemunhado que o senhor acusou a doutora Taylor de ter morto o seu doente Lance Kelly. Como…?

- Disse-lhe isso porque ela era a cirurgiã encarregada.

Era a sua grande responsabilidade. Na realidade, o anestesista é que causou a morte de Kelly.

Nesse momento, a sala ficou em alvoroço.

Paige ficou boquiaberta.

O Dr. Barker continuou a falar lentamente, mas com esforço:

- E quanto ao fato de John Cronin lhe ter deixado dinheiro, a doutora Taylor nada sabia disso. Eu próprio falei com o senhor Cronin. Disse-me que iria deixar essa quantia à doutora Taylor porque odiava a família e também me disse que iria pedir-lhe que o libertasse da sua agonia. Eu concordei.

Houve um enorme alvoroço entre os espectadores.

Gus Venable permaneceu ali, com uma expressão de fúria.

Alan Penn ergueu-se:

- Meritíssima, peço que este assunto seja encerrado.

A juíza Young bateu com o martelo:

- Silêncio! - gritou. Olhou para os dois advogados:

- Venham ao meu gabinete.

A juíza Young, Alan Penn e Gus Venable encontravam-se no gabinete da magistrada.

Gus Venable estava em estado de choque: -Eu… nem sei o que dizer. Ele está obviamente doente, meritíssima. Está confuso. Quero uma equipa de psiquiatras para o examinar e…

- Não pode querer tudo, Gus. Tudo indica que o seu caso se transformou em fumo. Vamos evitar-lhe mais situações embaraçosas, está bem? Vou retirar a acusação de assassinato e encerrar o caso. Alguma objeão?

Houve um silêncio prolongado. Finalmente, Venable concordou: -Julgo que não.

A juíza Young afirmou:

- Bem decidido. Vou dar-lhe um conselho. Nunca, mas nunca chame uma testemunha sem saber o que ela irá dizer.

O tribunal estava novamente em sessão. A magistrada disse:

- Senhoras e senhores membros do júri, obrigada pelo vosso tempo e paciência. O tribunal vai retirar todas as acusações. A ré está livre.

Paige virou-se para atirar um beijo a Jason e depois correu até onde o Dr.

Barker estava sentado. Ajoelhou-se e abraçou-o.

- Não sei como lhe agradecer - sussurrou.

- Em primeiro lugar, nunca devia ter-se envolvido nesta confusão - resmungou. - Que coisa tão estúpida para se fazer.

Vamos sair daqui e vamos a qualquer lado onde possamos conversar.

A juíza Young ouviu. Levantou-se e disse:

- Pode utilizar o meu gabinete, se quiser. É o mínimo que podemos fazer.

Só Paige, Jason e o Dr. Barker se encontravam no gabinete da juíza.

O Dr. Barker disse:

- Lamento que não me tivessem deixado vir aqui mais cedo.

Sabem como são estes malditos médicos.

Paige estava prestes a romper em lágrimas:

- Não sei como dizer o que…

- Então, não diga nada! - replicou ele, grosseiramente.

Paige estudou-o, lembrando-se subitamente de algo.

- Quando é que falou com John Cronin?

- O quê?

- O senhor ouviu-me. Quando é que falou com John Cronin?

- Quando?

Ela respondeu lentamente:

- O senhor nem sequer viu John Cronin. Não o conheceu.

Surgiu um ligeiro sorriso nos lábios de Barker:

- Não. Mas conheço-a a si.

Paige inclinou-se para a frente e deu-lhe um forte abraço.

- Não seja piegas - resmungou. Olhou para Jason.

- Às vezes torna-se piegas. Cuide bem dela, ou terá de se haver comigo.

Jason respondeu:

- Não se preocupe, sir. Cuidarei bem dela.

Paige e Jason casaram-se no dia seguinte. O Dr. Barker foi o padrinho.

Epílogo Paige Curtis abriu um consultório particular e está filiada no prestigioso North Shore Hospital. Paige utilizou o milhão de dólares que John Cronin lhe deixara para criar em Äfrica uma fundação médica em nome do pai.

Lawrence Barker partilha um escritório com Paige, como consultor de cirurgia. Arthur Kane viu a sua licença ser-lhe retirada pela Ordem dos Médicos de Califórnia.

Jimmy Ford recuperou totalmente e casou-se com Betsy. Deram à sua primeira filha o nome de Paige.

Honey Taft foi viver para a Irlanda com Sean Reilly e trabalha como enfermeira em Dublin.

Sean Reilly é um artista famoso e não apresenta quaisquer sintomas de sida, pelo menos por enquanto.

Mike Hunter foi condenado a prisão por assalto à mão armada e ainda cumpre a pena.

Alfred Turner juntou-se a um grupo da Park Avenue e tem tido bastante êxito.

Benjamin Wallace foi despedido do cargo de administrador do Embarcadero County Hospital.

Lauren Harrison casou-se com um tenista profissional.

Lou Dinetto foi condenado a quinze anos de cadeia por fuga aos impostos.

Ken Mallory foi condenado a prisão perpétua. Uma semana após a chegada de Dinetto, Mallory foi encontrado morto à punhalada na sua cela.

O Embarcadero Hospital ali continua, à espera do próximo terremoto.


Fim

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