3. A ESCOLA DE FEITICEIROS

Gued dormiu ainda essa noite a bordo do Sombra e de manhã cedo despediu-se daqueles seus primeiros camaradas de mar, que alegremente lhe gritavam boa sorte enquanto ele se afastava pelas docas fora. A vila de Thwil não é muito grande, com as suas altas casas a apinharem-se ao longo de umas poucas ruas íngremes e estreitas. Para Gued, porém, parecia uma cidade e, sem saber onde se dirigir, perguntou ao primeiro habitante que encontrou onde poderia encontrar o Guardião da Escola que havia em Roke. O homem olhou-o de viés por um momento e disse:

— O sábio não precisa de perguntar, o tolo pergunta em vão — após o que seguiu o seu caminho.

Gued continuou a subir até que desembocou numa praça, limitada em três lados pelas casas com os seus telhados de ardósia em declive acentuado e, no quarto, pela fachada de um grande edifício, cujas poucas e pequenas janelas ficavam acima do topo das chaminés das casas. O edifício mais parecia uma fortaleza ou castelo, construído com grandes blocos de uma pedra cinzenta. Na praça que dominava estavam armadas as tendas de um mercado e havia muitas idas e vindas de gente. Gued voltou a fazer a sua pergunta a uma velhota com um cesto de mexilhões e logo ela lhe respondeu:

— Nem sempre podes encontrar o Guardião onde ele está, mas por vezes encontrá-lo onde ele não está. — E seguiu caminho, a apregoar os seus mexilhões.

Na parede do grande edifício, perto de uma esquina, havia uma pequena porta de madeira, com muito mau aspecto. Gued dirigiu-se a ela e bateu com força. E disse ao homem idoso que lhe abriu a porta:

— Trago uma carta do Mago Óguion para o Guardião da Escola que há nesta ilha. Quero encontrar o Guardião, mas já não estou para ouvir mais adivinhas nem troças!

— A Escola é aqui — disse o ancião brandamente. — Eu sou o porteiro. Entra, se puderes.

Gued deu um passo em frente. Pareceu-lhe que tinha atravessado a entrada mas afinal permanecia no passeio, onde já antes estava.

Uma vez mais deu um passo em frente e uma vez mais permaneceu do lado de fora da porta. O porteiro, lá de dentro, observava-o benignamente.

Mais do que intrigado, Gued estava furioso, pois aquilo parecia-lhe mais uma maneira de troçar dele. Com a voz e a mão fez o esconjuro de Abrir que já há muito a tia lhe ensinara. Era o mais precioso entre todos os esconjuros que possuía e Gued teceu-o bem naquela ocasião. Porém, não passava de um feitiço de bruxa e o poder que mantinha a porta intransponível nem ao de leve foi abalado.

Quando o esconjuro falhou, Gued permaneceu por longo tempo ali parado, no passeio. Por fim, olhou o ancião que, lá dentro, continuava à espera.

— Não consigo entrar — confessou, embora de má vontade —, a não ser que me ajudes.

A isto o porteiro respondeu:

— Diz o teu nome.

E uma vez mais Gued permaneceu parado e silencioso por algum tempo, porque um homem nunca diz em voz alta o seu próprio nome, a não ser que esteja em causa algo mais que a segurança da sua vida.

Finalmente, disse em voz alta:

— Sou Gued. — E, dando um passo em frente, atravessou a entrada. Porém, embora a luz lhe desse por trás, pareceu-lhe que uma sombra o seguira, colada aos seus calcanhares.

Ao voltar-se, verificou também que a moldura da porta não era de simples madeira, como pensara, mas sim de marfim, sem qualquer junta ou emenda. Soube mais tarde que fora cortada de um dente do Grande Dragão. E a porta que o ancião fechou atrás dele era de corno polido, através do qual a luz do dia transluzia levemente, e na sua face interior via-se, talhada, a Árvore de Mil Folhas.

— Bem-vindo a esta casa, rapaz — disse o porteiro. E, sem mais palavras, conduziu-o através de salas e corredores até um pátio aberto, bem no interior das paredes do edifício. O pátio era parcialmente pavimentado com lajes, mas não tinha telhado e, num pedaço de relvado, uma fonte jorrava água sob árvores jovens e à luz do Sol. Ali se quedou Gued esperando sozinho durante algum tempo. Permaneceu muito quieto, com o coração a bater fortemente, pois parecia-lhe sentir presenças e forças em ação, invisíveis mas reais, ao seu redor, e compreendeu que aquele lugar não era construído apenas com pedra, mas com magia mais forte que a pedra. Encontrava-se na sala mais interior da Casa dos Sages, e ela abria-se para os céus. E subitamente deu pela presença de um homem trajando de branco que o observava através da água que caía da fonte.

Quando os seus olhares se cruzaram, um pássaro cantou alto nos ramos da árvore. Nesse momento, Gued compreendeu o canto da ave e a linguagem da água tombando no tanque da fonte e a forma das nuvens e o início e final do vento que agitava as folhas. Pareceu-lhe que ele próprio era uma palavra dita pela luz do Sol.

E então o momento passou e ele e o mundo ficaram como eram antes, ou quase como antes. Então Gued adiantou-se a ajoelhar perante o Arquimago, estendendo-lhe a carta escrita por Óguion.

O Arquimago Nemmerle, Guardião de Roke, era um homem velho, mais velho, dizia-se, que qualquer homem então em vida. A sua voz trilou como a voz do pássaro quando ele falou, acolhendo Gued bondosamente. O seu cabelo e barba eram brancos, tal como o seu manto, e ao olhá-lo dir-se-ia que tudo o que pudesse ter havido nele de escuro ou de pesado fora retirado pelo lento desgaste dos anos, deixando-o branco e usado como madeira que andasse à deriva na água durante todo um século.

— Os meus olhos estão velhos, rapaz — disse ele na sua voz trêmula —, não consigo ler o que me escreve o teu mestre. Lê-me tu a carta.

Gued decifrou pois e leu em voz alta a escrita, que era em runas da língua Hardic, e não dizia senão isto: Senhor Nemmerle! Envio-vos alguém que, assim o vento sopre de feição, será o maior dos feiticeiros de Gont. A mensagem estava assinada, não com o nome-verdadeiro de Óguion, que Gued nunca aprendera, mas com a runa do mago, a Boca Cerrada.

— Aquele que mantém o tremor de terra à trela foi quem te enviou e por isso és duplamente bem-vindo. O jovem Óguion era-me caro quando, de Gont, veio até nós. E agora fala-me dos mares e dos portentos da tua viagem, rapaz.

— Uma bela viagem, Senhor, não fora pela tempestade de ontem.

— Que navio te trouxe?

— O Sombra, com mercadorias das Andrades.

— Que vontade te enviou aqui?

— A minha.

O Arquimago olhou para Gued, depois desviou a vista e começou a falar numa língua que o rapaz não compreendia, resmungando como é costume em alguém muito, muito velho e cujo siso se vai dispersando por entre os anos e as ilhas. E, no entanto, por entre o resmungo, havia palavras do que o pássaro cantara e do que a água dissera ao cair. Não estava a lançar qualquer encantamento, mas havia um poder na sua voz que perturbou a mente de Gued a tal ponto que o rapaz ficou desnorteado e, por um instante, pareceu-lhe ver-se a si próprio num local estranho, vasto e deserto, sozinho entre sombras. Mas, mesmo assim e durante todo esse tempo, continuava no pátio iluminado pelo sol, ouvindo cair a água da fonte.

Um grande pássaro negro, um corvo de Osskil, veio caminhando pelo terraço empedrado e pela erva. Veio até junto da fímbria do manto do Arquimago e ali ficou, todo negro, com o seu bico semelhante a uma adaga, os seus olhos como seixos polidos, mirando Gued de lado. Por três vezes bicou o bordão branco a que Nemmerle se apoiava e o velho feiticeiro, cessando o seu resmungar, sorriu.

— Vai, rapaz. Corre e brinca — disse finalmente, como se falasse com uma criancinha.

Uma vez mais, Gued dobrou o joelho perante ele. Quando se voltou a erguer, o Arquimago desaparecera. Só o corvo continuava a olhá-lo, estendendo o bico como se quisesse bicar o bordão desaparecido.

Depois falou, no que Gued supôs ser a língua de Osskil.

— Terrenon assbaque! — crocitou. — Terrenon assbaque orrek! — E, tal como viera, assim se foi, no seu andar empertigado. Gued rodou sobre si próprio para abandonar o pátio, perguntando-se para onde ir. Sob o arco da entrada foi abordado por um jovem alto que o acolheu muito cortesmente, com uma inclinação de cabeça.

— Chamam-me Jaspe, filho de Enwit, do domínio de Eolg na Ilha de Havnor. Estou hoje ao teu serviço, para te mostrar a Casa Grande e responder o melhor que puder às tuas perguntas. Como devo chamar-te, Senhor?

E aí afigurou-se a Gued, aldeão montanhês que nunca estivera entre os filhos de nobres e de mercadores ricos, que aquele indivíduo estaria a troçar dele com os seus «serviços» e «senhorias», mais as mesuras e salamaleques. Assim, respondeu secamente:

— Gavião é como me chamam.

O outro aguardou um momento, como se esperasse resposta mais cortês e, não vendo sinais dela, endireitou-se e desviou-se um pouco. Devia ter dois ou três anos mais que Gued, era muito alto, movia-se e comportava-se com rígida elegância, com trejeitos (na opinião de Gued) de bailarino. Envergava um capote cinzento, com o capuz deitado para trás. O primeiro sítio onde levou Gued foi à sala do vestiário, para ali escolher, como aluno da escola, um capote idêntico que lhe ficasse à medida, bem como quaisquer outros artigos de vestuário de que precisasse. Gued envergou o capote cinzento-escuro que escolhera e Jaspe disse:

— Agora és um de nós.

Mas Jaspe tinha uma maneira de falar acompanhada de ligeiro sorriso que levava Gued a tentar descobrir alguma troça oculta nas suas delicadas palavras. Por isso respondeu, carrancudo:

— Serão as roupas que fazem o mago?

— Não — retorquiu o rapaz mais velho. — Embora eu já tenha ouvido dizer que são as maneiras que fazem o homem… Onde queres ir agora?

— Onde tu queiras. Eu não conheço a casa.

Jaspe levou-o consigo pelos corredores da Casa Grande, mostrando-lhe os pátios descobertos e as salas abobadadas, a Sala das Estantes onde eram guardados os livros da antiga ciência e os tomos de runas, o grande Salão da Lareira onde toda a escola se reunia nos dias festivos e, no andar superior, nas torres e sob os telhados, as pequenas celas em que dormiam alunos e Mestres. A de Gued era na Torre Sul, com uma janela que dava para os íngremes telhados da vila de Thwil e, por sobre estes, para o mar.

Tal como as outras celas de dormir, não tinha quaisquer móveis para além de um colchão de palha a um canto.

— Vivemos aqui de uma maneira muito simples — disse Jaspe. — Mas espero que não te incomode.

— Já estou habituado — retorquiu Gued. E depois, tentando mostrar-se à altura daquele jovem tão delicado e desdenhoso, acrescentou: — Suponho que não seria o teu caso, quando para aqui vieste.

Jaspe olhou-o e o seu olhar dizia claramente, sem palavras: «O que poderias tu supor alguma vez acerca daquilo a que eu, filho do Senhor do Domínio de Eolg na Ilha de Havnor, estou ou não habituado?» Mas o que Jaspe disse em voz alta foi apenas:

— Vem por aqui.

Enquanto estavam no andar superior, tinha soado um gongo e desceram ambos para a refeição do meio-dia na Mesa Grande do refeitório, juntamente com uma centena ou mais de rapazes e adolescentes. Cada um servia-se pessoalmente, brincando com os cozinheiros através dos postigos da cozinha que abriam para o refeitório, enchendo o prato de grandes tigelas de comida que fumegavam sobre os peitoris, sentando-se à Mesa Grande nos lugares que mais lhes agradavam.

— Dizem — contou Jaspe a Gued — que, por muitos que se sentem a esta mesa, há sempre lugar.

O certo é que havia espaço, tanto para muitos grupos barulhentos de rapazes que falavam pelos cotovelos e comiam vorazmente, como para indivíduos mais velhos, com os seus mantos cinzentos presos no pescoço com fechos de prata, que se sentavam mais comedidamente aos pares ou sozinhos, de rostos graves e meditativos, como quem tem muito em que pensar.

Jaspe levou Gued a sentar-se junto de um companheiro corpulento chamado Vetch, que pouco falava mas absorvia a comida com um apetite voraz. Tinha o sotaque da Estrema Leste e era muito escuro de pele, não castanho-avermelhado como Gued e Jaspe e a maioria das gentes do Arquipélago, mas castanho-quase-negro. Era simples e pouco delicado de maneiras. Queixou-se do jantar depois de o ter comido, mas em seguida, virando-se para Gued, acrescentou:

— Pelo menos não é uma ilusão, como a maior parte das coisas por aqui. Isto sempre se agarra aos ossos.

Gued não entendeu o que ele poderia querer dizer, mas sentiu uma certa simpatia pelo rapaz e ficou satisfeito por permanecer com eles depois da refeição.

Foram passear pela vila, a fim de Gued aprender a orientar-se por lá. Por poucas e curtas que fossem as ruas de Thwil, viravam e contorciam-se bizarramente por entre as casas de altos telhados e era fácil uma pessoa perder-se nelas. Era uma estranha vila, como estranha era a sua gente, pescadores, trabalhadores e artífices como quaisquer outros, mas tão habituados à feitiçaria, que na Ilha dos Sages está sempre em ação, que eles próprios também já pareciam quase feiticeiros. Falavam (como Gued pudera verificar) por enigmas e nenhum deles piscaria sequer os olhos se visse um rapaz transformar-se em peixe ou uma casa erguer-se de repente nos ares. Tomando tais coisas por brincadeira de estudantes, continuariam a arranjar sapatos ou a desmanchar borregos, como se nada fosse.

Passando pela Porta Traseira e dando a volta pelos jardins da Casa Grande, os três rapazes atravessaram as águas claras do rio, o Thwilburn, por uma ponte de madeira e prosseguiram para norte, por entre bosques e pastagens. O caminho subia, serpenteante. Passaram por carvalhais onde a sombra era densa, mau grado o brilho do sol. Havia um bosque para o lado esquerdo e não muito afastado, mas que Gued nunca conseguia ver perfeitamente. O caminho também nunca lá chegava, embora parecesse estar sempre prestes a fazê-lo. Não era sequer capaz de descortinar de que árvores se tratava. Vetch, reparando em como Gued o fitava, disse suavemente:

— Aquele é o Bosque Imanente. Não podemos lá entrar ainda…

Nas pastagens aquecidas pelo sol, desabrochavam flores amarelas.

— Erva-fagulha — disse Jaspe. — Cresce onde o vento deixou cair as fagulhas do incêndio de Ilien, quando Erreth-Akbe defendeu as Ilhas Interiores contra o Senhor do Fogo.

Soprou uma corola já seca e as sementes, soltando-se, ergueram-se no vento, ao sol, como fagulhas ardentes.

O caminho, sempre subindo, conduziu-os até à base e depois em volta de um grande monte verde, o monte que Gued avistara do navio, ao penetrarem nas águas encantadas da Ilha de Roke. Chegados à encosta, Jaspe deteve-se.

— Na minha terra, em Havnor — disse ele —, ouvi falar muito da feitiçaria gontiana, e sempre bem, por isso durante muito tempo desejei ver como seria. Agora, temos aqui um homem de Gont e estamos na encosta do Cabeço de Roke, cujas raízes se estendem até ao centro da terra. Aqui, todos os encantamentos são fortes. Faz-nos um truque, Gavião. Mostra-nos o teu estilo.

Gued confuso e surpreendido, nada disse.

— De outra vez, Jaspe — interpôs Vetch com o seu modo simples. — Deixa-o sossegado.

— Ora, ele há de ter ou talento ou poder, senão o porteiro não o teria deixado entrar. Por que não havia de o mostrar, agora tanto como de outra vez? Não é verdade, Gavião?

— Tenho os dois, o talento e o poder — disse Gued. — Mostra-me o gênero de coisa de que estás a falar.

— Ilusões, é claro… truques, jogos de aparência. Como este, vê!

Apontando um dedo, Jaspe pronunciou algumas palavras estranhas e no sítio para onde ele apontava, por entre a erva verde da encosta, um fiozinho de água gotejou, cresceu e por fim jorrou uma nascente e a água correu encosta abaixo. Gued meteu a mão na corrente e sentiu-a úmida; bebeu dela e era fresca. E apesar de tudo não matava a sede, pois era apenas ilusão. Com outra palavra, Jaspe fez parar a água e a erva ficou a agitar-se, seca, à luz do Sol.

— Agora é a tua vez, Vetch — disse ele com o seu sorriso insolente.

Vetch coçou a cabeça com ar macambúzio, mas pegou num bocado de terra e começou a cantar desentoadamente sobre ela, enquanto a ia moldando com os seus dedos escuros e apertando-a, esfregando-a, dando-lhe forma. E de súbito o pedacinho de terra tornou-se numa criatura pequena, como um abelhão ou moscardo, que voou zumbindo por sobre o Cabeço de Roke e desapareceu.

Gued quedou-se a olhar, desanimado. Que sabia ele além de simples bruxarias, esconjuros para chamar cabras, curar verrugas, mover cargas pesadas ou consertar bilhas?

— Eu não faço truques como esses — acabou por dizer. Para Vetch, isto fora o suficiente e dispunha-se a seguir caminho. Mas Jaspe perguntou:

— Por que não?

— A feitiçaria não é um jogo. Nós, Gontianos, não a usamos por prazer ou por vaidade — respondeu Gued altivamente.

— Então usam-na porquê…? — inquiriu Jaspe. — Por dinheiro?

— Não…

Mas Gued não conseguia pensar em mais nada que ocultasse a sua ignorância e lhe poupasse o orgulho. Jaspe riu, mas não de modo desagradável. Depois voltou a pôr-se a caminho, conduzindo-os ao redor do Cabeço de Roke. E Gued seguiu-o, taciturno e de coração pesado, sabendo que tinha agido como um tolo e culpando Jaspe por isso.

Nessa noite, enquanto jazia enrolado no seu capote e sobre a enxerga da sua fria cela de pedra sem luz, no extremo silêncio da Casa Grande de Roke, a estranheza do local e todos os esconjuros e encantamentos que ali vira começaram a pesar dolorosamente sobre ele. A escuridão rodeava-o, enchia-o o temor. Só desejava poder estar em qualquer lado que não fosse Roke. Mas Vetch assomou à porta, uma pequena bola azulada de fogo-fátuo a bailar-lhe sobre a cabeça para iluminar o caminho, e perguntou se podia entrar e conversar um bocado. Interrogou Gued sobre Gont e depois falou com carinho das suas próprias ilhas, na Estrema Leste, descrevendo como o fumo das lareiras da aldeia se espalha ao anoitecer por entre as pequena ilhas, com seus nomes pitorescos: Korp, Kopp e Holp, Venway e Vemish, Iffish, Koppish e Sneg. Quando desenhou a forma dessas terras nas pedras do chão com o dedo, para mostrar a Gued como se dispunham, as linhas que ele traçou brilharam muito levemente como se desenhadas com uma varinha de prata, e assim ficaram por um instante antes de se desvanecerem. Vetch estava há três anos na Escola e em breve receberia o título de Mágico. Pensava tanto em praticar as artes menores da magia como um pássaro em voar. Mas havia um talento maior, inato, que ele possuía, a arte da bondade. Nessa noite, e sempre daí em diante, ofereceu e deu a Gued amizade. Uma amizade firme e aberta que Gued não podia deixar de retribuir.

Contudo, Vetch era também amigo de Jaspe, que levara Gued a fazer figura de tolo naquele primeiro dia no Cabeço de Roke. Gued não o conseguia esquecer e, ao que parecia, Jaspe também não, pois falava-lhe sempre com voz delicada e sorriso trocista.

O orgulho de Gued não se deixava abater nem aceitava condescendências. Jurou que havia de provar a Jaspe, e a todos os outros de quem Jaspe era uma espécie de chefe, quão grande o seu poder realmente era — um dia. Porque, com todos os seus belos truques, nenhum deles salvara uma aldeia usando feitiçaria. De nenhum deles Óguion escrevera que havia de ser o maior feiticeiro de Gont.

Assim, reforçando o seu orgulho, aplicou toda a força de vontade ao trabalho que lhe davam, às lições, artes, histórias e talentos ensinados pelos Mestres de Roke com seus mantos cinzentos, os mestres a quem chamavam Os Nove.

Uma parte de cada dia, estudava com o Mestre Chantre, aprendendo os Feitos dos heróis e os Lais de sabedoria, começando com a mais antiga de todas as canções, a Criação de Éa. Depois, com uma dúzia de outros rapazes, praticava com o Mestre Chave-do-Vento as artes do vento e do tempo. Passavam os longos e soalheiros dias da Primavera e início do Verão na baía de Roke, em pequenos barcos, praticando o governar da embarcação pela palavra, o acalmar das vagas, o falar ao vento do mundo e o fazer levantar o vento mágico. Estes são talentos particularmente intrincados e a cabeça de Gued levou não poucas pancadas da barra da vela quando o barco se inclinava contra um vento que de súbito o impelia para trás, ou quando o dele e outro colidiam embora tivessem toda a baía para navegar, ou ainda quando os três rapazes do seu barco iam todos à água, tendo-se a embarcação inundado com uma grande onda involuntariamente formada. Noutros dias, tinham expedições mais calmas em terra, com o Mestre das Ervas, que ensinava as características e as propriedades das coisas que crescem da terra. E havia o Mestre de Mão que ensinava prestidigitação, malabarismo e as artes menores de Mudar.

Gued tinha aptidão para todos estes estudos e, após um mês, passava à frente de rapazes que tinham chegado a Roke um ano antes dele. Em particular, os truques de ilusão eram-lhe tão fáceis que parecia ter nascido já a sabê-los e precisava apenas de ser recordado. O Mestre de Mão era um velhote alegre e simpático, infinitamente encantado com a inteligência e beleza das artes que ensinava. Gued em breve deixou de sentir por ele qualquer temor e continuamente o instava para que lhe ensinasse este esconjuro e mais aquele. E o Mestre sorria sempre e mostrava-lhe o que ele queria. Mas certo dia, com a intenção de finalmente humilhar Jaspe, Gued disse ao Mestre de Mão no Pátio da Aparência:

— Senhor, todas estas encantamentos se parecem muito. Sabendo uma, sabem-se todas. E logo que paramos de tecer o feitiço, a ilusão desvanece-se. Ora, se eu transformar um seixo num diamante — e assim o fez com uma palavra e uma sacudidela do pulso —, o que deverei fazer para que o diamante permaneça um diamante? Como podemos fechar o esconjuro de Mudar e fazer com que dure?

O Mestre de Mão olhou para a jóia que cintilava na mão de Gued, brilhante como a mais preciosa gema no tesouro de um dragão. O velho Mestre murmurou uma palavra, «Tolk», e ali estava de novo o seixo, já não uma preciosidade mas um pedaço grosseiro de pedra cinzenta. O Mestre pegou-lhe e manteve-o na palma da sua própria mão.

— Isto é uma pedra. Tolk na Língua Verdadeira — disse ele, olhando suavemente para Gued. — Um pedaço da pedra de que é feita a Ilha de Roke, um pouco da terra firme em que vivem os homens. É ela própria. Faz parte do mundo. Através da Ilusão-Mudança podes fazer com que pareça um diamante… ou uma flor, uma mosca, um olho, uma labareda… — E a pedra ia mudando de forma para forma, à medida que ele as nomeava, até ser de novo pedra. — Mas isto é mera aparência. A ilusão engana os sentidos do observador, fazendo com que ele veja, ouça e sinta que a coisa mudou. Mas isso não muda a coisa. Para transformares esta pedra num diamante, terás de mudar o seu nome-verdadeiro. E fazer isso, meu filho, mesmo a uma tão ínfima migalha do mundo, significa mudar o mundo. Pode ser feito. Sem dúvida que pode ser feito. Essa é a arte do Mestre da Mudança e há de vir a aprendê-la, quando estiveres pronto a aprendê-la. Mas não deverás mudar uma coisa, seja ela um seixo ou um grão de areia, antes de saberes o bem e o mal que esse ato irá acarretar. O mundo está em harmonia, em Equilíbrio. O poder de Mudar e de Invocar de um feiticeiro pode abalar a harmonia do mundo. E é perigoso, esse poder. É terrivelmente perigoso. Tem de se submeter ao saber e servir a necessidade. Acender uma vela é lançar uma sombra…

Voltou a olhar para o seixo e, falando agora com menos gravidade, acrescentou:

— Uma pedra é também uma coisa boa, sabes? Se as Ilhas de Terramar fossem todas feitas de diamante, bem dura seria a nossa vida aqui. Diverte-te com as ilusões, rapaz, e deixa que as pedras sejam pedras.

Sorriu, mas Gued sentiu-se insatisfeito. Inste-se um mago para que revele os seus segredos e é vê-lo logo a falar, como Óguion, sobre o equilíbrio e o perigo e a escuridão. Mas de certeza que um feiticeiro, um dos que tenham ido além destes truques infantis de ilusão e alcançado as verdadeiras artes de Invocar e Mudar, seria suficientemente poderoso para fazer o que lhe agradasse, equilibrando o mundo como melhor lhe parecesse e afastando as trevas com a sua própria luz.

No corredor, encontrou Jaspe que, desde que as façanhas de Gued tinham começado a ser louvadas em toda a Escola, falava com ele de um modo que parecia mais amigável, mas era mais trocista.

— Pareces taciturno, Gavião — disse-lhe o outro. — Será que te correram mal os truques de malabarismo?

Tentando, como sempre, pôr-se em pé de igualdade com Jaspe, Gued respondeu à pergunta, ignorando o seu tom irônico.

— Estou farto de malabarismos, farto destes truques de ilusão, que só servem para divertir senhores ociosos nos seus castelos e domínios. A única verdadeira magia que até agora me ensinaram aqui em Roke foi fazer fogos-fátuos e algum trabalho com o tempo. O resto não passa de tontice.

— Mas até a tontice é perigosa — retorquiu Jaspe —, nas mãos de um tonto.

Perante isto, Gued voltou-se como se o tivessem esbofeteado e deu um passo na direção de Jaspe. Mas o rapaz mais velho sorriu como se não houvesse qualquer intenção insultuosa nas suas palavras, fez uma inclinação de cabeça à sua rígida e elegante maneira, e foi-se embora.

Ali parado com a raiva a ferver-lhe no coração, vendo Jaspe a afastar-se, Gued jurou a si próprio vencer o seu rival, e não num simples desafio de ilusões, mas num teste de poder. Ali daria as suas provas e humilharia Jaspe. Não ia deixar que aquele indivíduo se ficasse a olhá-lo de cima, elegante, desdenhoso e odiento.

Gued não se deteve a pensar por que seria que Jaspe o podia odiar. Sabia apenas por que odiava Jaspe. Os outros aprendizes cedo tinham percebido que raramente se podiam equiparar a Gued, quer a brincar quer a sério, e diziam dele, uns como louvor e outros por despeito: «É um feiticeiro nato, nunca nos deixará batê-lo.» Só Jaspe nunca o louvara nem evitara, limitando-se simplesmente a olhá-lo de cima, com um ligeiro sorriso. E assim Jaspe era o único que se erguia como seu rival, o único que teria de ser humilhado.

Não via, ou não queria ver, que naquela rivalidade, a que ele se apegava e que alimentava como parte do seu próprio orgulho, houvesse o que quer que fosse do perigo e da escuridão, contra os quais o Mestre de Mão tão brandamente o alertara.

Quando não era a pura raiva que o conduzia, Gued sabia perfeitamente que ainda não estava à altura de Jaspe ou de qualquer dos rapazes mais velhos, e por isso continuou a trabalhar e a comportar-se como de costume. No final do Verão, o trabalho teve um certo decréscimo, pelo que havia mais tempo para diversões, como as corridas de barcos enfeitiçados lá em baixo no porto, demonstrações de ilusão no pátios da Casa Grande e, nas longas noites, nos bosques, loucos jogos de escondidas, em que tanto os que se escondiam como os que procuravam estavam invisíveis e só as vozes se moviam, rindo e gritando, por entre as árvores, seguindo e evitando os rápidos e trêmulos fogos-fátuos. Depois, quando o Outono chegou, entregaram-se de novo às suas tarefas, praticando novas magias. E assim, rápidos, passaram os primeiros meses de Gued em Roke, plenos de paixão e maravilha.

No Inverno foi diferente. Foi enviado com outros sete rapazes através da Ilha de Roke até ao cabo no extremo norte, onde se ergue a Torre Isolada. Ali, sozinho, vivia o Mestre dos Nomes, que era tratado por um nome que não tinha significado em língua alguma, Kurremkarmerruk. Em quilômetros ao redor da torre não havia quintas ou habitações. Soturna, erguia-se sobre as falésias setentrionais, cinzentas rolavam as nuvens sobre o mar invernoso, infindáveis eram as listas, as fileiras, as séries de nomes que os oito pupilos do Mestre dos Nomes tinham de aprender. No meio deles, na ala mais alta da torre, Kurremkarmerruk, sentado num caldeirão alto, ia escrevendo listas de nomes que tinham de ser memorizados antes que a tinta se desvanecesse à meia-noite, deixando de novo o pergaminho em branco. Ali fazia sempre frio, o escuro era muito e o silêncio permanente só era interrompido pelo arranhar da pena do Mestre e, quiçá, pelo suspiro de algum aluno obrigado a aprender, antes da meia-noite, o nome de cada cabo, ponta, baía, estreito, enseada, canal, porto de abrigo, baixios, recifes e rochas das costas de Lossau, uma pequena ilha do Mar de Plen. E se algum estudante se queixava, o Mestre talvez não dissesse nada, limitando-se a aumentar ainda mais a lista, ou poderia dizer: «Aquele que pretende ser Mestre do Mar tem de saber o nome verdadeiro de cada gota de água que há no mar.»

Gued suspirava por vezes, mas nunca se queixava. Via que, naquela poeirenta e infindável questão de aprender o nome-verdadeiro de cada local, coisa e pessoa, se açoitava o poder a que ele aspirava, como uma pedra preciosa no fundo de um poço seco. Porque é nisso que consiste a verdadeira magia, o dar o verdadeiro nome a cada coisa. Assim lhes dissera Kurremkarmerruk, uma vez, na primeira noite que tinham passado na Torre. Não o voltara a repetir, mas Gued recordava cada palavra.

— Muitos magos de grande poder — dissera o Mestre — passaram toda a sua vida na tentativa de descobrir o nome de uma única coisa, um único nome, oculto ou perdido. E mesmo assim as listas não estão completas. Nem o estarão, até ao fim do mundo. Escutem e verão porquê. No mundo sob o Sol e no outro mundo onde não existe Sol, muito há que nada tem a ver com o homem nem com a fala do homem, e há poderes para além do nosso poder. Mas a magia, a verdadeira magia, só é realizada por aqueles seres que falam a língua Hardic de Terramar, ou a Antiga Fala de que ela derivou. Essa é a língua que os dragões falam, a língua falada por Segoy que fez as ilhas do mundo, a língua dos nossos lais e canções, dos nossos esconjuros, encantamentos e invocações. As suas palavras jazem ocultas e modificadas entre as nossas palavras Hardic. Nós chamamos à espuma das ondas sukien. Essa palavra é formada por duas palavras da Antiga Fala, suk, pena, e inien, o mar. Vós tendes de usar o seu nome-verdadeiro na Antiga Fala, que é essa. Qualquer bruxa conhece algumas dessas palavras da Antiga Fala, um mago conhece muitas. Mas há muitas mais, e algumas perderam-se ao longo das idades, e outras foram ocultas, e outras ainda só são conhecidas dos dragões e dos Antigos Poderes da Terra, e algumas há que não são conhecidas por criatura viva alguma. E nenhum homem as pôde aprender a todas, pois, para essa língua, não existe fim. E a razão é esta. O nome do mar é inien, tudo bem. Mas o que nós chamamos Mar Interior tem também o seu próprio nome na Antiga Fala. Dado que nada pode ter dois nomes verdadeiros, inien não pode deixar de significar «todo o mar à exceção do Mar Interior». E, claro, nem sequer significa isso, porque há mares, baías e estreitos sem conta, cada um com o seu próprio nome. Assim, se um Mago-Senhor-do-Mar fosse suficientemente louco para lançar um feitiço de tempestade ou calmaria sobre todo o oceano, esse feitiço teria de conter, não só a palavra inien, mas também o nome de cada extensão, pedaço e parte do mar através de todo o Arquipélago e todas as Estremas exteriores e para além destas até onde os nomes deixam de existir. Deste modo, é precisamente aquilo que nos confere o poder para operar a magia que estabelece os limites desse poder. Um mago só pode controlar o que lhe está próximo, o que ele pode nomear exata e completamente. E é bom que assim seja. Se assim não fora, a maldade dos poderosos ou a loucura dos sábios já há muito teria tentado mudar o que não pode ser mudado, e a Harmonia perder-se-ia. O mar, sem equilíbrio, devastaria as ilhas onde nós tão perigosamente habitamos e, no velho silêncio, todas as vozes e todos os nomes se perderiam.

Gued meditou longamente nestas palavras e elas calaram fundo na sua compreensão. Contudo, a majestade da tarefa não era suficiente para tornar menos árduo e árido o trabalho daquele longo ano na Torre. E, chegado o fim desse ano, Kurremkarmerruk disse-lhe: «Tiveste um bom começo.» E mais nada.

Os feiticeiros falam verdade e era verdade que toda a mestria de Nomes que Gued esforçadamente adquirira naquele ano era meramente o começo do que ele teria de continuar a aprender durante toda a vida. Foi-lhe permitido deixar a Torre Isolada mais cedo que os que tinham vindo com ele, porque aprendera mais depressa. Mas foi esse todo o louvor que recebeu.

Caminhou sozinho para sul, através da ilha, no início do Inverno e ao longo de estradas que não passavam por vila ou aldeia alguma e não eram percorridas por ninguém. Ao chegar a noite, choveu. Não disse qualquer encantamento para afastar de si a chuva porque o tempo de Roke estava na mãos do Mestre Chave-do-Vento e não era permitido nele interferir. Abrigou-se sob um grande salgueiro-chorão e ali, embrulhado no seu capote, pensou no velho mestre Óguion, que provavelmente estaria ainda entregue às suas perambulações outonais sobre os cumes de Gont, dormindo ao relento e com ramos despidos por único teto, a chuva caindo por únicas paredes. E isto fez Gued sorrir, porque pensar em Óguion lhe servia sempre de conforto. Adormeceu com o coração em paz, naquela fria escuridão cheia do murmúrio da água. Acordando com o raiar do sol, ergueu a cabeça. A chuva cessara. Viu, abrigado nas dobras do capote, um animalzinho enroscado a dormir, que ali se metera em busca de calor. Admirou-se ao vê-lo porque era um animal estranho e muito raro, um otaque.

Estas criaturas encontram-se apenas em quatro das ilhas meridionais do Arquipélago — Roke, Ensmer, Pody e Uothort. São pequenos e macios, com caras largas, pêlo castanho-escuro ou malhado e grandes olhos brilhantes. Têm dentes aguçados e um temperamento feroz, pelo que não é hábito tê-los como animais de estimação. Não emitem qualquer chamado ou grito, pois não têm voz alguma. Gued acariciou o bicho que acordou e bocejou, mostrando a pequena língua castanha e os dentes brancos, mas não deu sinais de medo.

— Otaque — pronunciou Gued e logo, recordando os milhares de nomes de animais que aprendera na torre, chamou-o pelo seu nome-verdadeiro na Antiga Fala. — Hoeg! Queres vir comigo?

O otaque sentou-se na palma da sua mão e começou a lavar a pelagem.

Pô-lo sobre o ombro, nas pregas do capuz, e foi aí que o animal viajou. Por vezes, durante o dia, saltava para o solo e escapava-se como uma seta para os bosques, mas voltava sempre para junto de Gued, uma das vezes com um rato do campo que caçara. Gued riu-se e disse-lhe que comesse o rato, porque ele estava a jejuar, sendo aquela a noite do Festival do Regresso-do-Sol. E foi assim que ele passou, no crepúsculo molhado, o Cabeço de Roke e viu brilhantes fogos-fátuos movendo-se rápidos sob a chuva acima dos telhados da Casa Grande, onde finalmente entrou e foi acolhido pelos seus Mestres e companheiros, no grande salão iluminado pelo fogo.

Foi como um regresso ao lar para Gued, que não tinha um lar onde alguma vez regressar. Sentiu-se feliz ao ver tantos rostos seus conhecidos, mais feliz ainda quando Vetch se adiantou para o acolher, com um grande sorriso no rosto escuro. Durante aquele ano, sentira a falta do amigo como só agora se dava conta. Vetch recebera nesse Outono o título de Mágico e não era já um aprendiz, mas isso não ergueu qualquer barreira entre eles. Puseram-se de imediato a conversar e pareceu a Gued ter dito mais a Vetch nessa primeira hora que tudo o que dissera durante todo o longo ano na Torre Isolada.

O otaque continuava empoleirado no seu ombro, aninhando-se na dobra do capuz, quando se sentaram a jantar nas longas mesas postas para o festival no Salão da Lareira. Vetch maravilhou-se com a criaturinha e chegou a estender a mão para a acariciar, mas o otaque, com um estalido dos dentes afiados, tentou mordê-lo. Vetch riu-se.

— Costuma dizer-se, Gavião, que aquele a quem um animal selvagem se afeiçoa é um homem para o qual os Velhos Poderes da pedra e da nascente falarão com voz humana.

— E diz-se que os feiticeiros gontianos mantêm muitas vezes familiares[1] — acrescentou Jaspe, que estava sentado do outro lado de Vetch. — O Senhor Nemmerle tem o seu corvo e dizem as canções que o Mago Vermelho de Ark trazia um javali preso por uma corrente de ouro. Mas nunca ouvi falar de nenhum feiticeiro que andasse com um rato no capuz!

Perante isto, todos riram e Gued riu com os outros. Era uma noite jovial e ele estava contente de ali se encontrar, no calor e na diversão, observando o festival com os seus companheiros. Porém, como tudo o que Jaspe lhe dizia, a facécia fê-lo ranger os dentes.

Nessa noite, o Senhor de O era convidado da escola, sendo ele próprio um mágico de renome. Fora pupilo do Arquimago e voltava por vezes a Roke por ocasião do Festival de Inverno ou, no Verão, para a Longa Dança. Com ele vinha a sua dama, elegante e jovem, brilhante como uma moeda acabada de cunhar, o seu cabelo negro coroado de opalas. Era muito raro que qualquer mulher tomasse assento nas salas da Casa Grande e alguns dos Mestres mais velhos olhavam-na de lado, desaprovadoramente. Mas os homens mais jovens escancaravam os olhos para ela.

— Para uma mulher assim — segredou Vetch para Gued — bem eu teceria vastas encantamentos…

Depois suspirou e riu-se.

— Não passa de uma mulher — replicou Gued.

— A princesa Elfarran não passava de uma mulher — contrapôs Vetch —, e por ela toda a Enlad foi devastada, o Herói-Mago de Havnor morreu e a Ilha de Soléa afundou-se nos mares.

— Histórias velhas — disse Gued. Mas então também ele começou a olhar a Senhora de O, perguntando-se se aquela seria, realmente, essa mortal beleza de que o velhos contos falam.

O Mestre Chantre cantara o Feito do Jovem Rei e todos juntos tinham cantado a Loa do Inverno. Então, quando se fez uma breve pausa antes que todos se levantassem das mesas, Jaspe ergueu-se, dirigiu-se à mesa mais próxima da lareira, onde tinham lugar o Arquimago, os convidados e os Mestres, e falou à Senhora de O. Jaspe não era já um rapaz mas um homem na flor da idade, alto e donairoso, e o seu manto era afivelado a prata junto ao pescoço, pois também ele passara a Mágico nesse ano e o símbolo disso era a fivela de prata. A dama sorriu perante o que ele lhe dizia e as opalas brilharam mais no seu cabelo negro. Então, tendo os Mestres assentido com uma benévola inclinação de cabeça, Jaspe teceu para ela um encanto-ilusão. Feita por ele, uma árvore branca brotou do chão de pedra. Os seus ramos ergueram-se a tocar as altas vigas do teto e em cada rebento de cada ramo brilhou uma maçã dourada, cada uma um sol porque era a Arvore do Ano. Subitamente, um pássaro esvoaçou por entre os ramos, todo branco e com uma cauda que era como neve a cair, e as maçãs, extinguindo-se, transformaram-se em sementes, cada um uma gota de cristal. E quando estas caíram da árvore com um som semelhante ao da chuva, uma doce e inesperada fragrância se espalhou, enquanto a árvore, balouçando levemente, soltava folhas de um fogo róseo e flores brancas, como estrelas. E assim terminou a ilusão. A Senhora de O exprimiu em voz alta o seu prazer e inclinou a cabeça na direção do jovem feiticeiro, em louvor pela sua mestria.

— Vem conosco, vem viver conosco em O-tokne… Não podemos levá-lo, meu Senhor? — perguntou, infantilmente, ao seu severo esposo. Mas Jaspe disse apenas:

— Quando eu tiver aprendido talentos dignos dos meus Mestres nesta escola e dignos do vosso louvor, Senhora, então irei de boa vontade e de boa vontade vos servirei.

E foi assim que Jaspe agradou a todos que ali estavam, à exceção de Gued. Juntou a sua às vozes que exprimiam louvores, mas não o seu coração. Para si próprio, com amarga inveja, disse: «Eu teria feito melhor.» E, depois disso, toda a alegria da festa ficou ensombrada para ele.

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