8. A CAÇADA

Gued partira de Re Albi, estrada abaixo, no escuro invernal antes da madrugada e, não era ainda meio-dia, alcançou o Porto de Gont. Óguion fornecera-o com decentes roupas de Gont, polainas, camisa e veste de couro e linho, para substituir os luxos osskilianos, mas Gued mantivera, para a sua jornada de Inverno, o senhoril manto forrado com pele de pellauí. Assim ataviado, de mãos vazias salvo o escuro bordão que o igualava em altura, chegou às Portas da Cidade, e os soldados, que se recostavam contra os dragões nela esculpidos, não precisaram de olhar mais que uma vez para reconhecerem nele o feiticeiro. Desviaram as suas lanças e deixaram-no passar sem qualquer pergunta, olhando-o enquanto ele seguia rua abaixo.

Nos cais e na Casa da Guilda do Mar, informou-se sobre navios que pudessem estar de partida para norte ou ocidente, para Enlad, Andrad, Oranéa. Todos lhe responderam que nenhum iria partir do Porto de Gont naquela altura, tão perto do Regresso-do-Sol, e na Guilda do Mar disseram-lhe que nem sequer os barcos de pesca sairiam pelos Braços da Falésia com tempo tão pouco de fiar.

Ofereceram-lhe de jantar ali mesmo, na despensa da Guilda do Mar. É muito raro que um feiticeiro tenha de pedir que o alimentem. Sentou-se durante algum tempo junto daqueles estivadores, carpinteiros e fazedores de tempo, tirando prazer da sua lenta e esparsa conversação, a sua resmungante fala gontiana. Havia nele um grande desejo de permanecer ali, em Gont, renunciando a todas as feitiçarias e aventuras, esquecendo todo o poder e todo o horror, para viver em paz como outro homem qualquer, no querido chão da sua terra natal. Era esse o seu desejo, mas outra a sua vontade. Não se demorou muito na Guilda do Mar, nem na cidade, depois de se certificar de que não iriam sair navios do porto. Iniciou uma caminhada ao longo da costa da baía até chegar à primeira das pequenas aldeias a norte da Cidade de Gont e ali foi interrogando os pescadores até encontrar um que tinha um barco para vender.

O pescador era um velho obstinado. O barco, com pouco mais de três metros e construído com tábuas sobrepostas, estava tão empenado e cheio de fendas que mal poderia fazer-se ao mar, o que não o impediu de pedir por ele elevado preço, ou seja, a encantamento de segurança no mar lançada sobre o seu barco, ele próprio e o filho. Porque os pescadores gontianos nada temem, nem sequer feiticeiros, mas apenas o mar.

Esse encantamento de segurança no mar, muito valorizada no Arquipélago Setentrional, nunca salvou homem algum do vento ou das vagas da tormenta, mas, lançada por alguém que conheça os mares locais, a manobra de um barco e a perícia do marinheiro, tece ao redor do pescador alguma segurança para o seu dia-a-dia. Gued teceu o encantamento bem e com honestidade, trabalhando nela toda essa noite e o dia seguinte, nada omitindo, seguro e paciente, embora durante todo esse tempo o seu espírito estivesse sob o império do medo e os seus pensamentos percorressem escuros caminhos, procurando imaginar como lhe iria aparecer a sombra da próxima vez, e quando, e onde. Quando a encantamento ficou pronta e foi lançada, estava muito fatigado. Dormiu essa noite na cabana do pescador, numa cama suspensa feita de tripa de baleia, e acordou de manhã a cheirar a peixe seco. Dirigiu-se então para a angra sob o Monte de Cortanorte onde se encontrava o seu novo barco.

Empurrou-o para as águas calmas junto ao embarcadouro e logo começou a entrar-lhe água, lenta e suavemente. Saltando para o barco, ágil como um gato, Gued pôs-se a endireitar as tábuas empenadas e cavilhas apodrecidas, trabalhando tanto com ferramentas como com sortilégios, tal como costumava fazer com Petchvarri em Baixo Torning. A gente da aldeia agrupou-se em silêncio, não muito perto, observando a rapidez das suas mãos, ouvindo a suavidade da sua voz. Também este trabalho ele fez bem e pacientemente, até ficar acabado e o barco selado e seguro. Depois colocou o bordão que Óguion lhe dera a servir de mastro, deu-lhe firmeza com encantamentos e, no topo, colocou ao atravessado um metro de boa madeira. A partir dessa madeira e para baixo, teceu no tear do vento uma vela de sortilégios, uma vela quadrada, branca como a neve no pico de Gont, acima dele.

Perante isto, as mulheres que o observavam suspiraram de inveja. Depois, de pé junto ao mastro, Gued ergueu levemente o vento mágico. O barco avançou por sobre a água, rodando em direção aos Braços da Falésia, através da grande baía. Quando os silenciosos e atentos pescadores viram aquele barquinho esburacado deslizar com a sua vela tão rápido e direito como um maçarico alçando vôo, ergueram na praia um grande clamor, aplaudindo, rindo, batendo os pés. E Gued, olhando para trás por um momento, pôde vê-los aclamando-o, sob a massa denteada do Monte de Cortanorte, sobre o qual se erguiam até às nuvens os alvos campos da Montanha.

Navegou através da baía e, por entre os Braços da Falésia, saiu para o mar de Gont, fixando aí a sua rota no sentido noroeste para passar a norte de Oranéa, invertendo o caminho por onde viera. Não tinha outro plano ou estratégia para além de voltar atrás na sua rota. Seguindo o seu vôo como falcão através dos dias e ventos de Osskil, a sombra tanto podia vaguear como vir a direito, era impossível sabê-lo. Porém, a não ser que se tivesse retirado uma vez mais e completamente para o reino dos sonhos, não deixaria de ver Gued aproximando-se abertamente, pelo mar aberto, ao seu encontro.

E no mar desejava encontrá-la, se tinha mesmo de ser. Não saberia dizer exatamente por que era assim, mas assolava-o um terror de voltar a enfrentar aquela coisa em terra firme. Do mar erguem-se tempestades e monstros, mas não poderes maléficos. O mal é da terra. E não há mar, nem corrente de rio, nem nascente, no tenebroso domínio onde Gued em tempos estivera. A morte é o lugar seco. Embora o mar em si fosse para ele um perigo, no tempo tormentoso da estação, tal perigo e alteração e instabilidade afiguravam-se uma defesa e uma oportunidade. E quando viesse a encontrar a sombra, naquele extremo final da sua loucura, pensava, talvez pudesse pelo menos agarrar a coisa no momento em que ela o agarrasse, arrastando-a com o peso do seu corpo e o peso da sua própria morte para a profunda escuridão do profundo mar, de onde, assim presa, não pudesse voltar a erguer-se. Desse modo, pelo menos, a sua morte poria fim ao mal que, vivo, ele libertara.

Navegou pois por um mar alteroso, sobre o qual as nuvens pendiam e se amontoavam em vastos e lúgubres véus. Não fez erguer vento de magia algum, antes se servindo do vento do mundo, que soprava penetrantemente de noroeste. E enquanto manteve a substância da sua vela tecida de sortilégios, a maior parte das vezes com uma única palavra sussurrada, a própria vela se virava a apanhar o vento. Não tivera ele usado essa rangia e ter-se-ia visto em dificuldades para manter o instável barquinho numa tal rota e em mar tão encapelado. E lá prosseguiu, mantendo-se vivamente atento para todas as direções. A mulher do pescador dera-lhe dois pães grandes e uma bilha de água e, algumas horas decorridas, quando chegou à vista do Rochedo de Kameber, a única ilha entre Gont e Oranéa, comeu, bebeu e dirigiu gratamente o pensamento para a silenciosa mulher de Gont que lhe dera o alimento. E ainda para além do tênue vislumbre de terra continuou navegando, alterando agora o rumo mais para oeste, sob o frio e a umidade de um chuvisco que, em terra, seria talvez um ligeiro nevão. Não se ouvia qualquer som, a não ser o ranger fraco da embarcação e o leve marulhar das ondas contra o costado. Nem barco nem ave passou por ele. Nada se movia para além do incessante mover das ondas e o derivar das nuvens, as nuvens que Gued recordava vagamente fluindo ao seu redor quando ele, como falcão, voara para leste, seguindo o mesmo rumo que agora percorria para oeste. E então olhara para baixo, para o mar cinzento, tal como olhava agora para cima, para o céu cinzento.

Olhava para diante e adiante nada via. Ergueu-se, enregelado, cansado daquele olhar e espreitar para a névoa vazia.

— Vem de uma vez — murmurou —, vem, Sombra, de que estás à espera?

Mas não houve resposta, não houve um mover mais sombrio entre as sombrias névoas e ondas. E no entanto estava cada vez mais seguro de que a coisa não estava longe, procurando-o às cegas, seguindo-lhe o rasto frio. E de repente lançou um grande brado:

— Estou aqui, eu, Gued, o Gavião, e invoco a minha sombra! O barco rangeu, as ondas murmurejaram, o vento silvou um pouco na vela branca. Os momentos seguiram-se aos momentos. E Gued esperava ainda, a mão direita apoiada no mastro de teixo do seu barco, os olhos fitos no chuvisco gélido que caía lentamente em cordas irregulares através do mar, vindo de norte. E os momentos seguiam-se aos momentos. Depois, muito longe, no meio da chuva e por sobre a água, viu aproximar-se a sombra.

Abandonara o corpo de Skiorh, o remador osskiliano, e não era já como gebbeth que o seguia através dos ventos e por cima do mar. E também não assumia aquela forma de sombra-fera com que a vira no Cabeço de Roke e nos seus sonhos. No entanto, e mesmo sob a luz do dia, tinha agora uma forma. Ao perseguir Gued e na luta com ele na charneca, dele retirara poder, aspirando-o para dentro de si própria. E pode suceder ainda que o fato de a ter invocado, em voz alta e à luz do dia, lhe tivesse conferido ou forçado a adquirir uma certa forma e aparência. Sem dúvida havia agora nela alguma semelhança com um homem, embora, sendo sombra, não projetasse sombra. E assim foi chegando sobre o mar, saindo das Fauces de Enlad na direção de Gont, uma coisa indistinta e mal formada caminhando dificilmente nas ondas, espreitando por entre o vento conforme se aproximava. E a chuva fria passava através dela.

Porque estava meio cega pela luz do dia e porque ele próprio a chamara, Gued viu-a antes que ela o visse. Conhecia-a, tal como ela o conhecia, entre todos os seres, todas as sombras.

Na terrível solidão do mar de Inverno, Gued viu a coisa que temia. O sopro do vento parecia afastá-la do barco, e as ondas corriam sob este perturbando-lhe a visão, e a cada momento parecia estar mais perto. Não saberia dizer se se movia ou não. Mas agora já o vira. Embora nada houvesse na sua mente para além do horror e medo do seu toque, a dor fria e negra que ia exaurindo a sua vida, mesmo assim Gued esperou, imóvel. E de súbito, erguendo fortemente a voz, chamou o vento mágico forte e inesperado a enfunar-lhe a vela branca e o seu barco galgou as ondas cinzentas direito àquela coisa aterrorizante suspensa no vento.

No silêncio mais total, a sombra, vacilando, voltou-se e fugiu.

Para norte, de onde o vento soprava, se dirigiu. E para de onde o vento soprava seguiu o barco de Gued, a rapidez da sombra contra a arte mágica, a chuva e a ventania contra ambas. E o jovem bradou ordens ao seu barco, à vela e ao vento e às ondas na sua frente, tal como o caçador grita aos seus cães quando o lobo corre visivelmente à sua frente, e trouxe àquela vela tecida de sortilégios um vento que teria despedaçado qualquer vela de pano e levou o seu barco por sobre o mar como se fora um pedaço de espuma, cada vez mais perto da coisa que fugia.

Então a sombra rodou descrevendo um semicírculo e, logo parecendo mais frouxa e indistinta, menos semelhante a um homem e mais como mero fumo levado pelo vento, voltou para trás e correu com as rajadas, como se se dirigisse a Gont.

Usando a mão e a magia, Gued inverteu o rumo e o barco saltou como um golfinho fora da água, balouçando com aquela rápida reviravolta. Mais rápido que antes prosseguiu, mas a sombra era cada vez mais indistinta ao olhar de Gued. A Chuva, envolta com saraiva e neve, açoitou-lhe furiosamente as costas e a face esquerda, não o deixando ver mais que a uns cem metros para a frente. Dentro em breve, com a tempestade a engrossar, deixou de avistar a sombra. No entanto, Gued estava seguro do rumo que ela seguia, como se fosse o de um animal em vez do rasto de um espectro fugindo sobre a água. Embora o vento soprasse agora de feição, manteve o cantante vento mágico na vela, e flocos de espuma saltavam da proa do barco, que ia batendo o mar no seu progresso.

Durante muito tempo caça e caçador mantiveram o seu célere e estranho curso, e o dia ia escurecendo rapidamente. Gued sabia que, à grande velocidade a que navegara durante as últimas horas, devia estar agora a sul de Gont, dirigindo-se para além da ilha para Spevy ou Torheven, ou quiçá ainda para além dessas ilhas pelo mar aberto da Estrema. Não o saberia dizer. Nem lhe dava cuidado. Caçava, seguia o rasto, o medo corria na sua frente.

De súbito, avistou por um momento a sombra, não muito longe dele. O vento do mundo tinha vindo a abrandar e a neve e a chuva da tempestade tinham dado lugar a ura nevoeiro frio, esparso e que se ia tornando mais espesso. Foi através desse nevoeiro que teve um vislumbre da sombra, fugindo agora um pouco para a direita do seu rumo. Falou ao vento e à vela, moveu a cana do leme e prosseguiu no que, mais uma vez, era uma perseguição às cegas. O nevoeiro adensava-se rápido, como que fervendo e rasgando-se quando encontrava o vento mágico, fechando-se em toda a volta do barco, uma palidez informe que amortecia a luz e a vista. Exatamente quando Gued pronunciava a primeira palavra de um encantamento de clarear, viu de novo a sombra, ainda para a direita do seu curso, mas muito próxima e avançando lentamente. O nevoeiro atravessava-lhe a cabeça vaga e sem feições, no entanto com o feitio da de um homem, só que deformada e em mudança constante, como a sombra desse homem. Uma vez mais Gued fez guinar o barco, pensando que teria dado com o inimigo em terra. Mas nesse mesmo instante a sombra desvaneceu-se e foi o seu barco que deu em terra, despedaçando-se de encontro aos baixios que o nevoeiro lhe ocultara da vista. Quase foi lançado borda fora, mas antes conseguiu agarrar-se ao bordão que lhe servia de mastro, antes que nova onda rebentasse sobre ele. E foi uma grande vaga que arrancou o barco da água e deu com ele em cima de um rochedo, do mesmo modo que um homem poderia erguer e esmagar uma concha de caracol.

Forte e cheio de magia era o bordão que Óguion afeiçoara. Não se quebrou e, boiando como um madeiro seco, cavalgou as águas. Continuando a segurá-lo, Gued foi puxado para trás quando a rebentação escorreu do baixio, de modo que ficou em água profunda e, até que viesse a onda seguinte, a salvo de embater nas rochas. Os olhos cegos do sal, sufocando, tentou manter a cabeça fora de água e lutar contra a tremenda força de sucção do mar. Um pouco para o lado dos rochedos havia uma praia de areia que ele entreviu uma ou duas vezes enquanto tentava nadar para se libertar do encher da próxima onda. Com toda a sua força e o poder do bordão a ajudá-lo esforçou-se por alcançar a praia. Não conseguiu aproximar-se. O ir e vir da rebentação lançavam-no de um lado para o outro como um trapo e a frialdade do mar profundo rapidamente lhe roubou o calor do corpo, enfraquecendo-o até ele já não poder mover os braços. Perdera de vista tanto os rochedos como a praia e nem sabia para que lado estava virado. Em seu redor havia apenas o tumultuar da água, e por baixo e por cima dele, cegando-o, estrangulando-o, afogando-o.

Uma onda, enchendo ao aproximar-se de terra sob o nevoeiro esparso, pegou nele, fez rolar uma e outra vez, acabando por lançá-lo como um pau à deriva para cima da areia.

E ali se quedou prostrado. Agarrava ainda com ambas as mãos o bordão de teixo. Ondas menores arrastaram-se até ele, tentando trazê-lo de novo praia abaixo ao retirarem-se. A névoa abria para logo voltar a fechar sobre ele. Mais tarde, açoitou-o uma bátega de neve derretida.

Passado muito tempo, moveu-se. Ergueu-se sobre as mãos e os joelhos e começou lentamente a rastejar pela praia acima, afastando-se da beira do mar. Fazia agora noite escura, mas ele dirigiu um sussurro ao bordão e uma tênue luz de fogo-fátuo brilhou, envolvendo-o. Tendo a luz para se guiar, esforçou-se por avançar, a pouco e pouco, subindo em direção às dunas. Estava tão moído, quebrado e enregelado que aquele rastejar através da areia molhada, no escuro cheio do assobiar do vento, do estrondear do oceano, foi a empresa mais árdua que até aí tivera de empreender. Por uma ou duas vezes lhe pareceu que o grande ruído do mar e do vento morria, que a areia molhada se tornava em pó seco debaixo das suas mãos, e sentiu o brilho imóvel de estranhos astros sobre o seu dorso. Mas não ergueu a cabeça, continuou a gatinhar e, pouco depois, voltou a ouvir a sua própria e ofegante respiração, voltou a sentir o vento áspero lançando-lhe a chuva contra o rosto.

O movimento trouxe de novo, e finalmente, um pouco de calor ao seu corpo e, depois de ter rastejado até ao cimo das dunas, onde as rajadas de vento e chuva eram menos fortes, conseguiu pôr-se de pé. Com a palavra obteve do bordão uma luz mais forte, porque o mundo era de um negrume total, e depois prosseguiu apoiando-se ao bordão, vacilando, parando aqui e ali, durante meia milha para o interior. Depois, no cimo de uma duna, voltou a ouvir o mar, um som novamente forte e não atrás de si, mas em frente. As dunas voltavam a descer para uma outra costa. Aquilo não era uma ilha, mas sim um mero banco de areia no meio do oceano.

Estava demasiado esgotado para desesperar, mas soltou uma espécie de soluço e ficou para ali, desnorteado, apoiado ao seu bordão, durante longo tempo. Depois, persistentemente, voltou para a esquerda de modo a pelo menos ter o vento pelas costas e arrastou os pés pela alta duna abaixo, procurando alguma depressão por entre as ervas esgarçadas, dobradas pelo vento e debruadas de gelo, onde pudesse conseguir algum abrigo. Ao erguer o bordão para ver o que tinha diante de si, entreviu uma débil claridade no extremo do círculo de luz do fogo-fátuo, uma parede de madeira molhada pela chuva.

Era uma cabana ou telheiro, uma construção pequena e insegura como se tivesse sido feita por uma criança. Gued bateu na porta baixa com o seu bordão. Permaneceu fechada. Abriu-a com um empurrão e entrou, quase precisando de se dobrar em dois para o fazer. Mesmo dentro da cabana, não lhe foi possível endireitar-se. Carvões acesos libertavam o seu brilho vermelho no buraco do fogo e, ao seu tênue clarão, Gued viu um homem de longo cabelo branco, que se agachava aterrorizado de encontro à parede do fundo, e mais alguém, não saberia dizer se homem ou mulher, que o espreitava de dentro de um montão de farrapos ou peles, caído no chão.

— Não vos vou fazer mal — murmurou Gued.

Não responderam. Olhou para um e para outro. O medo esvaziara-lhes os olhos de expressão. Quando pousou o bordão, aquele que estava sobre o monte de trapos escondeu-se, gemendo. Gued tirou o manto, pesado de água e gelo, despiu-se e pôs a roupa em monte por sobre o buraco do lume.

— Dêem-me qualquer coisa para me embrulhar — pediu. Estava rouco e mal podia falar, de tal maneira lhe batiam os dentes e o sacudiam longos arrepios. Se é que o ouviram, nenhum dos velhos respondeu. Estendeu o braço e apanhou um trapo do monte em cima da cama. Em tempos, teria sido uma pele de cabra, mas agora era apenas uma coisa esfarrapada e cheia de gordura preta. A pessoa que estava debaixo do montão de farrapos gemeu de medo, mas Gued não lhe prestou atenção. Esfregou-se até ficar seco e depois sussurrou:

— Não têm lenha? Ateia um bocado o lume, velho. Vim ter contigo por necessidade, não vos quero fazer mal.

Mas o velho não se moveu, olhando-o numa espécie de transe de medo.

— Percebes o que digo? Não falas Hardic? — E depois de uma pausa, pronunciou: — Kargad?

A essa palavra, o velho acenou de imediato que sim, uma só vez, como uma velha e triste marionete. Mas como aquela era a única palavra que Gued conhecia da língua karguiana, a conversa ficou por ali. Descobriu lenha empilhada de encontro a uma parede, ateou ele próprio o lume, e depois, por gestos, pediu água, pois a água do mar que engolira deixara-o agoniado e tinha a boca seca de sede. Sempre encolhido de medo, o velho apontou uma grande concha que continha água e empurrou para perto do lume uma outra em que se via tiras de peixe secas ao fumeiro. E assim, de pernas cruzadas e bem junto ao fogo, Gued bebeu, comeu um pouco e, à medida que as forças e o raciocínio lhe voltavam, começou a interrogar-se onde estaria. Mesmo com o vento mágico, não lhe teria sido possível ter navegado toda a distância até às Terras de Kargad. Aquela ilhota devia ficar ao largo, na Estrema, a leste de Gont, mas ainda a oeste de Karego-At. Parecia-lhe estranho que houvesse gente a habitar um local tão pequeno e desolado, uma mera tira de areia. Seriam talvez náufragos. Mas, de momento, estava demasiado cansado para se pôr a pensar nisso.

Ia voltando o manto para o calor e a pele de pellauí secava depressa. Logo que a lã do forro ficou pelo menos quente, se não totalmente seca, enrolou-se no manto e estendeu-se junto ao fogo.

— Durmam, durmam, pobre gente — disse ele aos seus silenciosos anfitriões e, deitando a cabeça no chão de areia, deixou-se dormir.

Três noites passou ele naquela ilhota sem nome, porque na primeira manhã, ao acordar, não havia músculo que não lhe doesse, estava febril e sentia-se mal. Todo aquele dia e a noite que se lhe seguiu permaneceu deitado junto ao fogo como um toro levado pelas ondas. No outro dia acordou, ainda entorpecido e dorido, mas recuperado. Voltou a envergar as suas roupas encrustadas de sal, pois não havia água doce suficiente para as lavar, e, saindo para a manhã cinzenta e ventosa, observou aquele lugar para onde a sombra o arrastara ao engano.

Era uma faixa de areia e rochedos, com uma milha de largura máxima e um pouco maior no sentido do comprimento, debruada em toda a volta de baixios e rochedos. Sobre ela não crescia qualquer árvore ou arbusto, nem plantas para além das ervas esgarçadas, dobradas pelo vento. A cabana erguia-se numa depressão das dunas e o velho e a mulher viviam ali sozinhos, na extrema desolação do mar vazio. A cabana fora construída, melhor dizendo, empilhada com tábuas e ramos trazidos pelo mar. Tiravam a água, salobra, de um pequeno poço ao lado da cabana. Por alimento tinham peixes e moluscos, crus ou secos, e algas dos rochedos. As peles em farrapos da cabana e uma pequena provisão de agulhas de osso e anzóis, bem como os tendões para linhas de pesca e para rodar o pau de fazer fogo, não vinham de cabras como Gued pensara a princípio, mas de focas malhadas. E na realidade aquele era o tipo de lugar onde as focas se dirigem para criar os seus filhotes no Verão. Mas mais ninguém demanda um tal lugar. Os velhos temiam Gued não porque o julgassem um espírito, não por se tratar de um feiticeiro, mas simplesmente porque era um homem. Tinham esquecido que havia outras pessoas no mundo.

O temor taciturno do velho nunca esmoreceu. Quando pensava que Gued se iria aproximar o suficiente para o tocar, logo se afastava manquejando, olhando para trás com um franzir de sobrancelhas por baixo das farripas da sua cabeleira de um branco sujo. A princípio, a mulher soltara queixumes e escondera-se debaixo do seu montão de farrapos sempre que Gued se movia. Mas, quando ele ficara estendido e num quase sono febril na escura cabana, vira-a agachar-se para o olhar com uma expressão estranha, parada e andante. E, mais tarde ainda, dera-lhe água a beber. Mas quando ele se sentou para receber a concha das suas mãos, assustara-se e deixara-a cair, entornando toda a água, e depois chorou e limpou os olhos ao seu longo cabelo de um branco-acinzentado.

Agora observava-o, enquanto ele trabalhava lá em baixo na praia, afeiçoando madeira dada à costa e pranchas do seu próprio barco, que as ondas tinham também trazido, para fazer um novo barco, usando a grosseira enxó de pedra do velho e um encantamento de prender. Não se tratava de uma reparação nem de construir um barco, pois não dispunha de madeira capaz que chegasse, e tinha de prover todas as suas necessidades com pura feitiçaria. Contudo, a velha observava não tanto o seu maravilhoso trabalho, mas mais a ele próprio, e sempre com aquela mesma expressão ansiosa nos olhos. Passado um bocado, afastou-se e depois regressou com uma oferta, uma mão-cheia de mexilhões que apanhara nas rochas. Gued comeu-os tal como ela lhos dera, molhados de água do mar e crus, e agradeceu-lhe. Parecendo ganhar coragem, a velha foi até a cabana e voltou trazendo de novo alguma coisa nas mãos, desta feita um volume embrulhado num farrapo. Timidamente, sempre com os olhos postos no seu rosto, desembrulhou o que trazia e ergueu-o para que ele o visse.

Era um vestido de bebê, de brocado de seda, avolumado por um sem-fim de minúsculas pérolas, manchado de sal, amarelecido pelos anos. No pequeno corpete as pérolas estavam dispostas numa forma que Gued conhecia. A dupla flecha dos Irmãos-Deuses do Império de Kargad, encimada por uma coroa de rei.

A anciã, enrugada e suja, coberta por uma espécie de saco mal cosido de pele de foca, apontou para o pequeno vestido de seda e depois para si própria, e sorriu. Um sorriso doce e sem sentido, como o de uma criança. De qualquer esconderijo cosido à saia do vestido, retirou um pequeno objeto e estendeu-o para Gued. Era um pedaço de metal escurecido, talvez um bocado de alguma jóia quebrada, o semicírculo de um anel partido. Gued olhou-o, mas ela fez-lhe um gesto para que o tomasse e não desistiu enquanto ele não lhe fez a vontade. Depois acenou a cabeça e voltou a sorrir. Dera-lhe um presente. Mas quanto ao vestido, embrulhou-o cuidadosamente no mesmo farrapo gordurento e dirigiu-se manquejando para a choupana, a guardar a bela peça de roupa.

Gued colocou o anel quebrado no bolso da sua túnica quase com o mesmo cuidado, porque o seu coração estava pleno de dó. Adivinhava agora que aqueles dois deviam ser filhos de alguma casa real do Império de Kargad. Um tirano ou usurpador, temendo verter sangue real, enviara-os para serem abandonados numa ilha que não viesse nos mapas, longe de Karego-At, para lá viverem ou morrerem. Um teria sido talvez um rapaz de oito ou dez anos e o outro uma bebê saudável e forte, com um vestido de seda e pérolas. E ali tinham vivido e continuado a viver, sozinhos, durante quarenta anos, cinqüenta anos, num rochedo no meio do oceano, o príncipe e a princesa da Desolação.

Mas se era verdade ou não o que julgava adivinhar, só o veio a saber quando, anos mais tarde, a busca do anel de Erreth-Akbe o levou até às Terras de Kargad e aos Túmulos de Atuan.

A sua terceira noite na ilha terminou com um calmo e pálido nascer do Sol. Era o dia do Regresso-do-Sol, o dia mais curto do ano. O seu pequeno barco de madeira e magia, de restos e sortilégios, estava pronto. Tentara dizer aos anciãos que os levaria para qualquer terra, Gont ou Spevy ou as Torikles. Tê-los-ia mesmo deixado nalguma costa solitária de Karego-At, se lho tivessem pedido, embora as águas karguianas não fossem lugar seguro onde um natural do Arquipélago se devesse aventurar. Mas por nada deixariam a sua estéril ilha. A velha parecia não entender o que ele pretendia significar com os seus gestos, as suas calmas palavras. O velho compreendia, mas recusava. Toda a memória que tinha de outras terras e de outros homens era um pesadelo infantil de sangue, de gigantes, de gritos de dor. Gued discernia isso no seu rosto, enquanto o ancião sacudia e voltava a sacudir a cabeça.

E assim, nessa manhã, Gued encheu uma bolsa de pele de foca com água do poço e, dado que não podia agradecer aos velhos o fogo e o alimento, nem tinha um presente que pudesse dar à anciã como desejaria, fez o que lhe foi possível e lançou um encantamento sobre aquela fonte salgada e pouco de fiar. E a água subiu através da areia, tão doce e clara como a de qualquer nascente de montanha nos cumes de Gont, e nunca voltou a faltar. E é por isso que esse lugar vem hoje nos mapas e ostenta um nome, Ilha da Água de Nascente, que os marinheiros lhe deram. Mas a cabana desapareceu e as tempestades de muitos Invernos não deixaram sinal dos dois que ali viveram as suas vidas solitárias e solitariamente ali morreram.

Mantiveram-se escondidos na choupana, como se tivessem medo de o observar, quando Gued avançou com o barco, partindo do arenoso extremo sul da ilhota. Deixou que o vento do mundo, soprando firmemente de norte, enchesse a sua vela tecida de sortilégios e singrou rápido por sobre o mar.

Ora esta busca de Gued era estranha empresa, pois, como muito bem sabia, ele era um caçador que tanto desconhecia o que seria a coisa que caçava, como onde poderia estar em toda Terramar. Tinha de a perseguir por cálculo, por palpite, à sorte, tal como ela o perseguira. Ambos estavam cegos para o ser do outro, com Gued tão desorientado por sombras impalpáveis como a sombra se desorientava com a luz do dia e as coisas sólidas. Para Gued havia apenas uma certeza, a de que era agora verdadeiramente o caçador e não a presa. Porque a sombra, depois de o ter iludido, lançando-o contra as rochas, poderia tê-lo tido à sua mercê durante todo o tempo em que ele permanecera meio morto estendido na costa e, depois, quando errara no meio da escuridão sobre as dunas varridas pela tempestade. Mas a sombra não esperara para aproveitar a oportunidade. Enganara-o e logo se pusera em fuga, sem se atrever já a enfrentá-lo. E por aqui via que Óguion tinha tido razão. A sombra não podia sugar-lhe poder enquanto ele permanecesse de frente para ela. Portanto, ele tinha de continuar a afrontá-la, a persegui-la, por muito que o seu rastro estivesse frio ao longo daqueles vastos mares e nada tivesse para o guiar senão o acaso afortunado do vento do mundo soprando para sul e uma tênue noção ou palpite no seu espírito de que sul ou leste era a direção certa a seguir.

Antes de cair a noite, avistou ao longe, à sua esquerda, a longa e imprecisa linha costeira de um grande território que deveria ser Karego-At. Encontrava-se precisamente nas rotas marítimas daquela gente bárbara, de pele branca. Manteve-se vivamente atento à presença de qualquer navio longo ou galé karguianos, ao mesmo tempo que recordava, enquanto ia navegando no avermelhado do entardecer, aquela manhã da sua adolescência na aldeia de Dez Amieiros, os guerreiros emplumados, o fogo, a bruma. E ao pensar naquele dia viu de repente, com um baque no coração, como a sombra o iludira com a sua própria ilusão, trazendo aquela bruma a rodeá-lo no mar como se a trouxesse do seu próprio passado, cegando-o para o perigo e impelindo-o enganosamente para a morte.

Manteve a sua rota para sudeste e a terra foi-lhe desaparecendo da vista à medida que a noite se estendia sobre a orla oriental do mundo. Os côncavos das ondas estavam cheios de escuridão enquanto as cristas brilhavam ainda no reflexo rosa-claro vindo de ocidente. Gued cantou em voz alta a Loa do Inverno e todos os cantos que conseguiu recordar do Feito do Jovem Rei, pois eram cantados no Festival do Regresso-do-Sol. A sua voz era clara, mas quase nada no vasto silêncio do mar. O escuro da noite chegou rápido e, com ele, as estrelas de Inverno.

Durante toda aquela noite, a mais longa do ano, ele permaneceu acordado, observando as estrelas a nascerem à sua esquerda, a girarem sobre a sua cabeça, a afundarem-se nas longínquas e negras águas à direita, e sempre com o longo vento do Inverno a levá-lo para sul sobre um mar invisível. Só por um momento, de vez em quando, lhe foi possível adormecer, mas para logo acordar com um estremeção. Aquele barco em que navegava não era, a bem dizer, um verdadeiro barco, mas uma coisa mais que por metade formada de encantamentos e feitiçaria, não passando o resto de meras pranchas e madeira levada pelo mar que, se ele deixasse abrandar os encantamentos de dar forma e de prender que lançara sobre elas, em breve se iriam soltar e espalhar, partindo à deriva como um pequeno conjunto de destroços sobre as ondas. E também a vela, toda ela tecida de magia e ar, pouco tempo suportaria o vento se ele adormecesse, antes se tornaria ela própria um breve sopro de vento. Os encantamentos de Gued eram eficazes e poderosas, mas quando a matéria sobre a qual agem tais sortilégios é escassa, o poder que os mantém ativos tem de ser renovado a cada momento. E assim Gued não dormiu naquela noite. Teria progredido com mais facilidade e rapidez sob a forma de falcão ou golfinho, mas Óguion aconselhara-o a não mudar de forma e ele conhecia o valor dos conselhos de Óguion. Portanto, continuou a navegar para sul e a longa noite passou lentamente, até que o raiar do primeiro dia do novo ano veio iluminar todo o mar.

Pouco depois do nascer do Sol, avistou terra à sua frente, mas só muito devagar se aproximava dela. Com a madrugada, o vento do mundo amainara. Ergueu um pouco de vento mágico para a sua vela, a fim de o levar até àquela terra. A sua vista, o temor entrara de novo nele, o medo penetrante que o impelia a voltar costas, a fugir. E seguiu esse mesmo medo como um caçador segue os sinais, as pegadas largas, arredondadas, com garras, do urso que, a qualquer momento, podia saltar sobre ele de dentro dos maciços de arbustos. Porque estava agora perto. Sabia-o.

Era uma terra de aspecto estranho a que se ia erguendo do mar à medida que ele se aproximava mais e mais. O que de longe parecera ser uma única montanha escarpada dividia-se afinal em várias arestas longas e íngremes, talvez ilhas separadas, entre as quais o mar passava em estreitos braços ou canais. Gued debruçara-se sobre muitas cartas e mapas na torre do Mestre dos Nomes em Roke, mas respeitavam na sua maior parte ao Arquipélago e aos mares interiores. Mas agora estava na Estrema Oriental e não sabia que ilha poderia ser aquela. Nem isso lhe dava muito que pensar. Medo era o que havia à sua frente, o que se açoitava escondendo-se dele ou esperando por ele nas encostas e florestas da ilha, e direito a esse medo dirigiu o barco.

Já os montes coroados de árvores, escuros, ensombravam da sua enorme altura o barco cá em baixo. A espuma das vagas que se quebravam contra as falésias rochosas era soprada em borrifos de encontro à vela, ao mesmo tempo que o vento mágico o levava, entre dois grandes cabos, para um braço de mar, como uma rua marítima que se desenrolava em frente dele, penetrando fundo na ilha, com uma largura que não excedia o comprimento de duas galés. O mar, confinado, encapelava-se e batia contra as íngremes falésias. Não havia praias, pois os montes mergulhavam diretamente na água que o frio reflexo dos seus cumes escurecia. Ali não havia vento, mas um grande silêncio.

A sombra conduzira-o ao engano, primeiro para a charneca de Osskil, depois, no meio do nevoeiro, de encontro às rochas. Haveria agora um terceiro embuste? Fora ele que impelira a coisa até ali, ou fora ela que ali o atraíra, para uma armadilha? Não o sabia. Sabia apenas que sentia o tormento do temor, e que tinha de seguir em frente e fazer o que se dispusera a fazer, perseguir o mal, seguir o seu próprio terror até à fonte de onde brotara. Comandou o barco com grande cuidado, olhando atentamente para a frente e para trás, para cima e para baixo dos montes em ambos os lados. Deixara a luz do Sol do novo dia atrás de si, no mar aberto. Aqui tudo era escuridão. A abertura entre as paredes rochosas parecia-lhe, ao olhar para trás, uma porta longínqua e fulgurante. Acima dele, os montes erguiam-se altos, cada vez mais altos, à medida que ele se aproximava da base da montanha de onde nasciam e que a rua de água se ia estreitando. Apurou a vista para diante, para a escura fenda, e para a direita e a esquerda, até ao cimo das grandes encostas, esburacadas de cavernas, inçadas de penedos, a que se apegavam árvores com as raízes meias no ar. Nada se movia. E agora estava a alcançar o fim da enseada, uma massa de rocha elevada, nua e rugosa, de encontro à qual, reduzidas até à largura de uma pequena angra, as últimas ondas marinhas batiam debilmente. Penedos tombados, troncos apodrecidos e as raízes de árvores nodosas deixavam apenas uma estreita passagem por onde conduzir o barco. Uma armadilha, uma escura armadilha sob a base da montanha silenciosa, e ele estava dentro dessa armadilha. Nada se movia em frente ou acima dele. Reinava uma quietude de morte. E não podia avançar mais.

Fez virar o barco, conduzindo-o cuidadosamente com encantamento e o seu remo de recurso, não fosse ele embater nas rochas submersas ou ficar enredado nas raízes e ramos estendidos sob a água, até ficar de novo de frente para o exterior. E estava prestes a erguer um vento que o levasse de volta para de onde viera, quando subitamente as palavras do esconjuro se gelaram nos seus lábios e sentiu o coração arrefecer dentro de si. Olhou para trás, por cima do ombro. A sombra estava atrás dele, dentro do barco.

Tivesse ele perdido um só instante e estaria perdido. Mas estava pronto e lançou-se a agarrar e manter a coisa que vacilava e tremia ali, ao alcance dos seus braços. Não havia feitiço que o ajudasse agora, mas apenas a sua própria carne, a sua própria vida, contra a não-vida. Sem pronunciar uma só palavra, atacou e o barco mergulhou e oscilou com o seu súbito virar-se e lançar-se em frente. Uma dor correu-lhe pelos braços acima, atingiu-lhe o peito, tirando-lhe a respiração, um frio gélido encheu-o todo e os seus olhos cegaram. Mas nas suas mãos que tinham agarrado a sombra nada havia — trevas, ar.

Cambaleou para a frente, agarrando-se ao mastro a impedir a queda, e a luz voltou aos seus olhos. Viu a sombra afastar-se arrepiadamente dele, diminuir de volume e logo expandir-se enormemente acima dele, acima da vela, por um instante. Depois, como fumo no vento, recuou e fugiu, informe, ao longo da água e em direção à entrada clara, entre as falésias.

Gued caiu de joelhos. O barquinho, remendado a sortilégios, mergulhou de novo a proa, reergueu-se, balouçou até se equilibrar e derivar por sobre as ondas inquietas. O feiticeiro acocorou-se dentro dele, dormente, vazio de pensamentos, lutando por respirar, até que por fim o frio da água, crescendo sob as suas mãos, o avisou de que tinha de cuidar do barco, pois os encantamentos que o mantinham inteiro estavam a enfraquecer. Ergueu-se, agarrando-se ao bordão que lhe servia de mastro, e refez a encantamento de prender o melhor que lhe foi possível. Estava gelado e exausto. As mãos e os braços doíam-lhe cruelmente e não havia poder nele. Desejou deitar-se ali, naquele sítio escuro onde montanha e mar se encontravam, e dormir, dormir, sobre o incansável ondular da água.

Não saberia dizer se aquele cansaço era um bruxedo lançado sobre ele pela sombra, ao fugir, ou se seria fruto da amarga frialdade do seu toque, ou meramente da fome, da falta de dormir e do dispêndio de forças. Mas lutou contra esse cansaço, forçando-se a erguer um ligeiro vento mágico para a vela e a seguir pelo escuro braço do mar, para onde a sombra fugira.

Todo o terror se fora. Toda a alegria se fora. Não se tratava já de uma caçada. Agora não era presa nem caçador. Pela terceira vez se tinham encontrado e tocado. Por sua própria vontade, voltara-se para a sombra, tentando agarrá-la com as suas mãos vivas. Não a mantivera presa, mas forjara entre ambos um laço, um elo sem qualquer ponto de ruptura. Não havia necessidade de perseguir a coisa, de lhe procurar o rasto, nem a sua fuga lhe serviria de nada. Nenhum deles podia escapar. Quando alcançassem o tempo e o local para o seu último encontro, encontrar-se-iam.

Mas até esse tempo, e em qualquer outro lugar que não esse, não mais voltaria a haver repouso ou paz para Gued, de noite ou de dia, em terra ou no mar. Sabia agora, e era duro sabê-lo, que a sua tarefa não era desfazer o que fizera, mas acabar o que começara.

Saiu velejando de entre as escuras falésias e sobre o mar era manhã alta e brilhante, com um brando vento a soprar de norte.

Bebeu a água que restava na bolsa de pele de foca e dirigiu o barco ao redor da ponta mais ocidental da ilha, chegando a uma vasta passagem entre aquela e uma segunda ilha que ficava para oeste. Reconheceu então o lugar, trazendo à memória cartas marítimas da Estrema Oriental. Eram as Mãos, um par de isoladas ilhas que estendem os seus dedos montanhosos para norte, na direção das Terras de Kargad. Navegou entre ambas e, enquanto a tarde se ensombrava com nuvens de tempestade vindas de norte, alcançou a costa no lado meridional da ilha mais a ocidente. Vira que ali existia uma pequena aldeia, acima da praia, onde um rio se despenhava em direção ao mar, e pouco se lhe dava o acolhimento que pudesse ter, desde que conseguisse água, o calor do lume e sono.

Os aldeões eram gente rude e tímida, atemorizados pelo bordão de feiticeiro, desconfiados de um rosto estranho, mas hospitaleiros para alguém que chegava sozinho, por sobre o mar, à frente de uma tempestade. Deram-lhe água e carne em abundância, o conforto do lume aceso e o conforto de vozes humanas falando a sua própria língua Hardic. E por fim, e ainda melhor, deram-lhe água quente, para lavar de si o frio e o sal do mar, e uma cama onde pôde enfim dormir.

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