9. IFFISH

Gued passou três dias naquela aldeia da Mão Ocidental, a recuperar e aprontando um barco construído agora não já de encantamentos e despojos do mar, mas de boa madeira, bem pregada e calafetada, com o seu próprio mastro e vela, para lhe permitir navegar facilmente e dormir quando precisasse. Como a maioria dos barcos do Norte e das Estremas, era construído com tábuas sobrepostas e presas umas às outras com cavilhas para o fortalecer contra a fúria do mar alto. Era robusto e bem estruturado em todas as suas partes. Gued reforçou-lhe a madeira com encantamentos profundamente tecidas, pois pensava que talvez tivesse de ir longe naquele barco. Fora concebido para levar a bordo dois ou três homens e o velho que fora seu dono afirmou que ele e os seus irmãos tinham atravessado com ele mar alto e mau tempo e a embarcação sempre se comportara galhardamente.

Ao contrário do arguto pescador de Gont, este velho, por temor e respeito pelos seus poderes mágicos, teria dado o barco a Gued. Mas este pagou-lhe à boa maneira de feiticeiro, curando-lhe os olhos das cataratas que estavam prestes a cegá-lo. Então o velho, regozijando-se, disse-lhe:

— Demos ao barco o nome de Maçarico, mas chama-lhe tu Vê-longe, pinta-lhe olhos aos lados da proa e a minha gratidão irá olhando por ti dessa madeira cega, livrando-te de rochedos e recifes. Porque eu já esquecera quanta luz há no mundo até que tua mão deste de novo.

Gued fez ainda outros trabalhos nesses dias passados na aldeia, sob as íngremes florestas da Mão, à medida que o poder voltava a ele. Esta gente era parecida com a que ele conhecera em rapaz, no Vale do Norte de Gont, embora mais pobres ainda que esses. Entre eles sentia-se em casa, como nunca se sentiria nos palácios dos abastados, e conhecia-lhes as amargas necessidades sem precisar de perguntar. Assim, lançou encantamentos de curar e defender sobre crianças aleijadas ou doentes, e de crescer e prosperar sobre os rebanhos dos aldeões, rebanhos de cabras e ovelhas só pele e osso. Apôs a runa Simn em fusos e teares, em remos de barcos, em utensílios de bronze e de pedra que lhe trouxeram, para que cumprissem bem a sua tarefa. E inscreveu na trave-mestra das cabanas a runa Pirr que protege a casa e quem lá vive contra o fogo, o vento e a loucura.

Quando o seu barco, Vê-longe, ficou pronto e bem fornecido de água e peixe seco, permaneceu ainda mais um dia na ilha para ensinar ao seu jovem chantre o Feito de Morred e o Lai Havnoriano. É muito raro que algum navio do Arquipélago faça escala nas Mãos, pelo que canções compostas cem anos antes eram novidades para aqueles aldeões e ansiavam por ouvir cantos acerca de heróis. Estivesse Gued livre do que se lhe impusera e alegremente ali teria ficado durante uma semana ou um mês a cantar-lhes o que sabia, para que os grandes cantos fossem conhecidos numa nova ilha. Mas não era livre de o fazer e, na manhã seguinte, fez-se às ondas, dirigindo-se diretamente para sul, por sobre os vastos mares da Estrema. Porque para sul se dirigira a sombra. Para o saber não necessitava de lançar nenhum sortilégio de achar. Sabia-o apenas, tão seguramente como se houvesse um fino cordão a desenrolar-se entre ambos e a mantê-los ligados, por mais milhas e mares e terras que entre eles houvesse. Por isso seguiu seguro, sem pressa e sem esperança, no caminho que lhe era forçoso seguir, e o vento de Inverno impelia-o para sul.

Um dia e uma noite navegou pelo mar solitário e, no segundo dia, chegou a uma pequena ilha que lhe disseram chamar-se Vemish. As gentes no pequeno porto olhavam-no de soslaio e em breve o seu bruxo acorreu apressadamente. Olhou atentamente para Gued e logo, com uma vênia, disse numa voz a um tempo pomposa e aduladora:

— Senhor Feiticeiro! Perdoa a minha temeridade e faz a honra de aceitar de nós tudo o que necessites para a tua viagem: alimentos, bebida, pano de velas, corda. A minha filha está neste preciso momento a levar para o teu barco um par de galinhas acabadas de assar. Porém, acho prudente que prossigas o teu caminho e partas daqui tão depressa quanto aches conveniente. As pessoas estão algo consternadas e temerosas. É que não há muito, no dia antes de ontem foi avistada uma pessoa que atravessava a nossa humilde ilha, a pé, de norte para sul, e não se vira barco algum que a trouxesse a bordo, nem se viu barco algum que com ela partisse, e não se via que ela projetasse sombra. E aqueles que se cruzaram com essa pessoa dizem-me que tinha algumas semelhanças contigo.

Perante isto, Gued fez também uma vênia e, voltando costas, regressou às docas de Vemish e logo se fez ao mar, sem sequer olhar para trás. Não ganharia nada em assustar os ilhéus nem em fazer do seu mágico um inimigo. Preferia voltar a dormir em pleno mar e refletir sobre as notícias que o mágico lhe dera e o tinham deixado não pouco perplexo.

O dia chegou ao fim e a noite passou, com uma chuva fria a sussurrar sobre as ondas, e passou também o cinzento amanhecer. O suave vento norte continuava a impelir o Vê-longe. De tarde, a chuva e a névoa foram levadas pelo vento e o Sol pôde brilhar de quando em quando. E, já perto do fim do dia, Gued viu, mesmo a atravessar-se no seu rumo, os baixos montes azulados de uma grande ilha, clara sob a luz de Inverno que ia esmorecendo. O fumo das lareiras, azul, pegava-se aos telhados de lousa das pequenas vilas que se estendiam entre os montes, um cenário bem agradável depois da vastidão sempre igual do mar.

Gued seguiu uma frota de pesca que regressava ao porto e, subindo as ruas da vila no entardecer dourado do Inverno, foi dar com uma estalagem chamada O Harrekki, onde a luz do lume, a cerveja leve e as costeletas de carneiro grelhadas lhe aqueceram o corpo e a alma. Sentados à mesa da estalagem havia alguns outros viajantes, comerciantes da Estrema Leste, mas a maioria dos homens presentes eram habitantes da vila que ali tinham vindo em busca de cerveja, novidades e conversa. Não eram gente rude e tímida como os pescadores das Mãos, mas verdadeiros vilões, vivos e ponderados. Certamente perceberam que Gued era um feiticeiro, mas nada se disse a esse respeito, a não ser a referência feita pelo estalajadeira em conversa (e se ele era conversador) ao fato de que aquela vila, Ismay, tinha a sorte de compartilhar com outras vilas da ilha um inestimável tesouro, um grande feiticeiro treinado na Escola de Roke, que recebera o seu bordão das próprias mãos do Arquimago e que, embora ausente da vila naquele momento, vivia na sua casa ancestral, ali mesmo em Ismay, que, por conseguinte, não tinha necessidade de qualquer outro praticante das Grandes Artes.

— Como se costuma dizer, dois bordões na mesma vila ainda acabam à bordoada, pois não é assim, Senhor? — acrescentou ainda o estalajadeira, sorridente e bonacheirão.

Gued ficou assim a saber que como feiticeiro andante, dos que pretendem usar a magia como meio de vida, não era ali desejado. Tivera, pois, a rejeição sem rodeios em Vemish e agora aquela, mais branda, em Ismay, e perguntava-se onde estariam os modos gentis da Estrema Leste, de que lhe tinham falado. A ilha onde estava era Iffish, e nela nascera o seu amigo Vetch. Mas não lhe parecia um lugar tão hospitaleiro como Vetch o descrevera.

E no entanto bem via como os rostos eram, na verdade, amigáveis. O que se passava era que aquela gente pressentia o que ele sabia ser verdade. Que ele estava posto à parte deles, desligado deles à força, que levava sobre si uma maldição e tinha de seguir uma coisa de treva. Ele era como um vento frio perpassando através da sala iluminada pelo lume, uma ave negra trazida de terras estranhas por uma tempestade. Quanto mais depressa voltasse a partir, levando consigo o seu destino maléfico, tanto melhor para aquela gente.

— Vou numa demanda. — disse ao estalajadeira. — Ficarei apenas uma ou duas noites. — Havia tristeza no seu tom de voz.

O estalajadeira, lançando um olhar ao grande bordão de teixo encostado a um canto, nada disse desta feita, mas encheu a tigela de Gued com cerveja castanha até a espuma escorrer para fora.

Gued sabia que devia passar apenas aquela noite em Ismay. Não era bem vindo ali, nem em parte alguma. Tinha de seguir para onde estava obrigado a ir. Mas estava farto do mar gélido e vazio, sem uma voz que lhe falasse. Disse a si próprio que passaria aquele dia em Ismay e que de manhã partiria. Dormiu, pois, até tarde. Ao acordar, caía uma neve fina. Vagueou ociosamente pelas ruelas e congostas da vila, só para ver as pessoas entregues aos seus afazeres. Viu crianças embrulhadas em capas de peles, brincando aos castelos de neve e fazendo bonecos de neve. Ouviu bisbilhoteiras tagarelando pelas portas abertas, de um lado para o outro da rua. Observou o bronzeiro no seu trabalho e um rapazinho de cara avermelhada a suar no esforço de bombear ar para as mangas do fole. Através de janelas, por onde se coava uma claridade esbatida entre dourado e vermelho, enquanto o curto dia ia escurecendo, viu mulheres a fiar, voltando-se de vez em quando para falarem ou sorrirem ao marido, a um filho, no doce calor dentro de casa. Gued viu todas essas coisas de fora e separado delas, sozinho, e o coração pesava-lhe no peito, embora não quisesse admitir para si próprio que estava triste. Ao cair da noite, permaneceu ainda nas ruas, relutante em regressar à estalagem. Ouviu um homem e uma rapariga a falarem jovialmente um com o outro, ao passarem por ele rua abaixo em direção à praça principal, e de súbito voltou-se, porque reconhecera a voz do homem.

Seguiu-os e alcançou-os, pondo-se ao lado deles na luz de fim de crepúsculo, avivada apenas pelo brilho distante de lanternas acesas. A rapariga deu um passo atrás, mas o homem olhou-o de frente e depois ergueu de repelão o bordão que trazia, colocando-o entre eles como uma barreira a afastar a ameaça de um ato maldoso. E isso era mais do que Gued podia suportar. A sua voz tremeu ao dizer:

— Pensei que me reconhecerias, Vetch.

Mesmo então, Vetch hesitou ainda por um momento.

— É claro que te conheço — disse. E, baixando o bordão, apertou a mão de Gued e rodeou-lhe os ombros com um abraço. — É claro que te conheço! Bem-vindo, meu amigo, bem-vindo! Que modo tão triste de te acolher, como se fosses um fantasma a surgir-me por trás… e eu que tenho esperado por ti, que te tenho procurado…

— Então és tu o feiticeiro de que tanto se gabam em Ismay? Calculei…

— Ah, sim, sou o feiticeiro deles. Mas escuta-me, deixa-me dizer por que foi que não te reconheci, rapaz. Talvez te tenha procurado com demasiado afinco. Há três dias atrás… Estavas aqui, em Iffish, há três dias atrás?

— Cheguei ontem.

— Há três dias, numa rua de Quor, a aldeia que fica ali em cima nos montes, vi-te. Quer dizer, vi uma representação de ti, ou uma imitação de ti, ou simplesmente um homem que se parece contigo. Ia à minha frente, a sair da povoação, e precisamente quando o notei, virou uma curva do caminho. Chamei mas não tive resposta, segui-o e não encontrei ninguém. Nem rastos, mas o chão estava gelado, duro. Foi uma coisa muito estranha e agora, ao ver-te sair assim das sombras, pensei que estava outra vez a enganar-me. Perdoa-me, Gued…

Pronunciara o nome-verdadeiro de Gued muito suavemente, de modo a que a rapariga, que estava à espera a pequena distância atrás dele, o não ouvisse.

Gued falou igualmente em voz baixa para usar o nome-verdadeiro do amigo:

— Não tem importância, Estarriol. Mas este sou eu e estou muito contente por te ver…

Vetch terá talvez ouvido mais que satisfação na voz de Gued. Ainda não tirara o braço dos ombros de Gued e disse-lhe então, na Verdadeira Fala:

— Vens da escuridão e perturbado, Gued, mas mesmo assim a tua vinda alegra-me.

Depois prosseguiu em Hardic, com o seu sotaque da Estrema:

— Anda, vem para casa conosco, pois para casa vamos, é tempo de sair do escuro! Esta é a minha irmã, a mais nova da família, mais bonita que eu, como se vê, mas muito menos esperta. Mil-em-rama lhe chamam, como a planta. Mil-em-rama, este é o Gavião, o melhor de todos nós e meu amigo.

— Senhor Feiticeiro — cumprimentou-o a rapariga e, cora muito decoro, fez pequenas reverências com a cabeça e tapou os olhos com as mãos em sinal de respeito, como é costume das mulheres na Extrema Leste. Quando não estavam ocultos, os seus olhos eram límpidos, tímidos e curiosos. Teria talvez catorze anos de idade e era escura de pele como o irmão, mas muito delgada e esbelta. Agarrado à sua manga, com duas asas e garras, trazia um dragão que não seria maior que a mão dela.

Seguiram juntos pela rua escura e Gued comentou enquanto caminhavam:

— Em Gont diz-se que as mulheres gontianas são corajosas, mas nunca ali vi nenhuma donzela que usasse um dragão como pulseira.

A isto, Mil-em-rama riu-se e logo retorquiu:

— Isto é só um harrekki. Não há harrekkis em Gont?

Depois ficou envergonhada por momentos e voltou a tapar os olhos.

— Não, nem dragões. Então essa criatura não é um dragão?

— Um pequenino, que vive nos carvalhos e se alimenta de vespas, minhocas e ovos de pardal. Não cresce mais que isto. Oh, Senhor, o meu irmão falou-me tantas vezes do bicho que tinhas, aquele selvagem, o otaque… Ainda o tens?

— Não. Já não.

Vetch voltou-se para ele como para fazer uma pergunta, mas reteve-se e nada perguntou até muito mais tarde, quando ambos se encontraram sozinhos, à beira do buraco do lume, em pedra, da casa de Vetch.

Se bem que fosse o feiticeiro principal de toda a ilha de Iffish, Vetch escolhera para seu lar Ismay, a pequena vila onde nascera, vivendo com o irmão e a irmã mais novos. O pai vivera do comércio marítimo e fora pessoa de alguns meios, sendo a casa espaçosa e bem construída, com grande abundância de louças, tecidos finos e vasilhas de bronze e latão em prateleiras e armários trabalhados. A um canto da sala principal encontrava-se uma grande harpa taoniana, a outro, um tear para tapeçaria de Yarrow, com a armação embutida de marfim. Ali, Vetch, apesar das suas calmas e simples maneiras, era não só um poderoso feiticeiro, mas ainda um senhor na sua própria casa. Havia um par de velhos servidores, prosperando com a fortuna da casa, o irmão, um moço jovial, e Mil-em-rama, rápida e silenciosa como um peixinho, que serviu a ceia aos dois amigos, comeu com eles, ouvindo-os falar, e depois se retirou discretamente para o seu quarto. Ali, todas as coisas tinham boas fundações, eram pacíficas e seguras. E Gued, olhando em redor de si para a sala iluminada pelo fogo, disse:

— É assim que um homem deve viver. E suspirou.

— Bom, é uma maneira — disse Vetch. — Há outras. Agora, rapaz, diz-me, se podes, que coisas se aproximaram de ti e de ti se afastaram desde a última vez que falamos, há dois anos. E diz-me em que jornada vais, pois bem vejo que, desta vez, não irás ficar muito tempo conosco.

Gued disse-lhe e, quando ele acabou, Vetch ficou por longo tempo silencioso, a ponderar o que ouvira. Depois disse:

— Irei contigo, Gued.

— Não.

— Acho que sim.

— Não, Estarriol. Isto não é tarefa nem desgraça que te incumba. Sozinho comecei este percurso maléfico, sozinho lhe darei fim. Não quero que mais ninguém tenha de sofrer por isso e tu menos que qualquer outro, tu que tentaste travar a minha mão e impedir-me a ação maléfica logo no início de tudo isto, Estarriol…

— O orgulho foi sempre dono do teu espírito — disse-lhe o amigo sorrindo, como se falassem de algum assunto de somenos importância para ambos. — Agora, pensa. É a tua demanda, certamente, mas se a demanda não for a bom fim, não deveria haver um outro contigo que trouxesse aviso para o Arquipélago? Porque, então, a sombra teria um poderio terrível. E se derrotares a coisa, não deveria estar outro contigo que viesse relatar tudo ao Arquipélago, para que o Feito fosse conhecido e celebrado em canto? Sei que não posso ser de qualquer utilidade para ti. Mas, mesmo assim, penso que devia ir contigo.

Instado desta maneira, era impossível a Gued recusar o amigo, mas disse:

— Não devia ter ficado aqui hoje. Sabia-o, mas fiquei.

— Os feiticeiros não se encontram por acaso, rapaz — disse Vetch. — E afinal, como há pouco disseste, eu estava contigo no princípio da tua jornada. Está, pois, certo que a acompanhe até ao final.

Lançou mais lenha no lume e, durante algum tempo, deixaram-se ficar a olhar para o fogo. Por fim, Gued quebrou o silêncio para dizer:

— Há alguém de quem não voltei a ouvir falar desde aquela noite no Cabeço de Roke e, na Escola, não tive coragem para perguntar por ele. Por Jaspe, quero dizer.

— Nunca chegou a receber o seu bordão. Deixou Roke nesse mesmo Verão e foi para a Ilha de O, para ser mágico na casa do Senhor, em Otokne. Para além disso, não sei mais nada acerca dele.

Voltaram a ficar em silêncio, olhando o fogo e gozando (já que a noite era agreste) o calor nas pernas e no rosto, sentados no rebordo largo da cova do fogo, com os pés quase dentro das brasas.

Por fim, em voz muito baixa, Gued disse:

— Há uma coisa que temo, Estarriol. E temo-a mais se fores comigo quando eu partir. Lá, nas Mãos, no fundo da calheta voltei-me contra a sombra, que estava ao alcance das minhas mãos, e agarrei-a… tentei agarrá-la. E não havia nada que eu pudesse segurar. Não foi possível derrotá-la. Fugiu, segui-a. Mas isso pode acontecer e voltar a acontecer outra vez. Não tenho poder sobre a coisa. Não haverá talvez morte nem triunfo no final desta demanda, nada para ser cantado, nenhum fim. Pode acontecer que eu tenha de passar a minha vida a correr de mar em mar e de terra em terra, numa infindável e vã empresa, a sombra de uma demanda.

— Arreda! — exclamou Vetch, ao mesmo tempo que voltava a mão esquerda no gesto que afasta a má possibilidade de que se falou. Apesar de todos os seus sombrios pensamentos, aquilo trouxe um sorriso aos lábios de Gued, pois é um encantamento mais própria de crianças que de um feiticeiro. Em Vetch continuava a haver aquela grande inocência de camponês. E, no entanto, ele era também penetrante, sagaz, com a capacidade de ir direito ao cerne de qualquer questão. E Vetch voltou a falar. — Esse é um pensamento soturno e, espero bem, falso. Julgo, pelo contrário, que aquilo que vi começar, posso ver acabar. De alguma maneira, aprenderás a sua natureza, o seu ser, o que aquilo é, e assim o chegarás a agarrar, a sujeitar, a vencer. Se bem que essa seja uma bem difícil questão, o que aquilo poderá ser… Aí está uma coisa que me preocupa, não conseguir percebê-la. Ao que parece, a sombra tomou agora a tua forma, ou pelo menos uma espécie de semelhança contigo, tal como a viram em Vemish e como eu a vi aqui em Iffish. Como pode isso ser? E porquê? E por que é que nunca aconteceu no Arquipélago?

— Costuma dizer-se: «As regras não são as mesmas, nas Estremas.»

— Pois dizem e é bem verdade, posso afirmá-lo. Há bons encantamentos que eu aprendi em Roke e que aqui não têm poder ou saem todas ao contrário. E há outras que resultam aqui e de que nem ouvi falar em Roke. Cada terra tem os seus próprios poderes e quanto mais nos afastamos das Terras Interiores, tanto menos podemos avaliar esses poderes e como dominá-los. Mas não penso que tenha sido só isso a produzir esta mudança na sombra.

— Nem eu. Penso que, quando deixei de fugir e me voltei contra ela, essa ação da minha vontade sobre ela deu-lhe forma, embora essa mesma ação a impedisse de se apoderar da minha força. Todas as minhas ações encontram eco nela. É a minha criatura.

— Em Osskil disse o teu nome e assim impediu qualquer feitiçaria que pudesses ter usado contra ela. Mas então, nas Mãos, por que não voltou a fazer o mesmo?

— Não sei. Talvez seja só da minha fraqueza que ela consegue a força para falar. E é quase com a minha língua que fala, pois senão como teria sabido o meu nome? Sim, como teria sabido o meu nome? Tenho dado voltas à cabeça com isto, por todos os mares que naveguei desde que saí de Gont e não encontro resposta. Talvez ela não consiga falar de todo, na sua própria forma ou ausência dela, mas só com uma língua de empréstimo, como um gebbeth. Não sei.

— Então terás de redobrar de cuidado se a voltares a encontrar em forma de gebbeth.

— Creio… — retorquiu Gued, estendendo as mãos para o lume como se um frio interior o tivesse percorrido — creio que não. Está agora ligada a mim como eu a ela. Não pode libertar-se de mim o suficiente para aprisionar qualquer outro homem e esvaziá-lo de vontade e de ser, como fez a Skiorh. Pode possuir-me. Se alguma vez eu voltar a enfraquecer e a tentar escapar-lhe, se se quebrar o elo entre nós, possuir-me-á. E, no entanto, quando a segurei com toda a força que tinha, tornou-se um mero vapor e escapou-me… Portanto, voltará a fazê-lo e, contudo, não poderá realmente escapar, pois posso sempre voltar a encontrá-la. Estou ligado àquela coisa imunda e cruel e sempre o estarei, a não ser que consiga aprender a palavra que a domina, o seu nome.

Cismando, o amigo perguntou:

— Mas há nomes no reino das sombras?

— Guencher, o Arquimago, disse-me que não. Mas a opinião do meu mestre Óguion é diferente.

— «Infindáveis são as discussões dos magos» — citou Vetch, com um sorriso que tinha muito de esgar.

— Aquela que servia o Antigo Poder em Osskil jurou que a Pedra me diria o nome da sombra, mas a isso dou pouca fé.

No entanto, houve também um dragão que se ofereceu para trocar esse nome pelo seu, para se livrar de mim. E tem-me passado pela cabeça que, onde os magos discutem, talvez os dragões sejam sábios.

— Sábios, sim, mas cruéis. Mas que dragão vem a ser esse? Não me disseste que tinhas andado a falar com dragões desde a última vez que nos vimos.

Ficaram a conversar até tarde, nessa noite, e embora voltassem sempre ao amargo assunto do que Gued tinha pela frente, o prazer de estarem juntos a tudo se sobrepôs, porque o afeto entre ambos era forte e inabalável, e nem o tempo nem o acaso poderiam alterá-lo.

De manhã, Gued acordou sob o teto do amigo e, ainda ensonado, sentiu um grande bem-estar, como se se encontrasse num lugar totalmente defendido de perigos e males. Durante todo o dia, um pouco dessa paz sonhada permaneceu colado aos seus pensamentos e encarou-o, não como um bom prenúncio, mas como uma oferta. Parecia-lhe quase evidente que, ao deixar aquela casa, iria também deixar o último abrigo que lhe era dado conhecer e assim, enquanto aquele pequeno sonho durasse, seria feliz nele.

Tendo assuntos a tratar antes de partir de Iffish, Vetch dirigiu-se a outras aldeias da ilha com o rapaz que o servia como aprendiz de feiticeiro. Gued ficou com Mil-em-rama e o irmão desta, chamado Marre, nome que ali se dá à torda-mergulheira, e que em idade ficava entre ela e Vetch. Não parecia ser muito mais que um rapazinho, porque não havia nele qualquer dom ou sinal de poder mágico e nunca estivera em lado algum, a não ser Iffish, Tok e Holp, levando uma vida fácil e sem problemas. Gued observava-o com espanto e alguma inveja, tal como o rapaz observava Gued. Tanto para este como para Marre parecia muito estranho que o outro, sendo tão diferente, tivesse, no entanto, a mesma idade, dezenove anos. Gued maravilhava-se com o fato de alguém que já vivera dezenove anos poder ser tão descuidado. Ao admirar o rosto agradável e jovial de Marre, sentia-se pessoalmente esgalgado e desagradável à vista, sem adivinhar sequer que Marre lhe invejava até as cicatrizes que lhe marcavam o rosto, pensando que seriam os vestígios das garras de um dragão e a verdadeira runa e sinal de um herói.

Os dois jovens eram, pois algo tímidos um com o outro mas, quanto a Mil-em-rama, em breve perdeu o temor respeitoso que sentira por Gued, na medida em que estava na sua própria casa e como senhora dela. Gued era muito simpático para com ela e muitas foram as perguntas que ela lhe fez, porque Vetch, lamentava-se ela, nunca lhe contava nada. Manteve-se muito atarefada durante aqueles dois dias, fazendo bolos secos de trigo para os viajantes levarem, embrulhando peixe e carne secos e outras vitualhas do mesmo gênero para aprovisionarem o barco, até que Gued lhe disse que parasse, pois não estava nos seus planos navegar sem paragem até Selidor.

— Onde fica Selidor?

— Muito longe daqui, na Estrema Oeste, onde os dragões são tão comuns como ratos.

— Então o melhor é ficar na Estrema Leste, onde os dragões são pequenos como ratos. Então aí tens a tua carne. Tens a certeza de que chega? Escuta, eu não percebo. Tu e o meu irmão são dois grandes feiticeiros. Acenam com a mão, resmungam umas palavras e a coisa aparece feita. Então por que é que ficam com fome? No mar, quando chega a hora da ceia, por que é que não dizem «Empada de carne!» e a empada aparece e vocês comem-na?

— Bem, podíamos fazer isso. Mas não temos grande vontade de comer as palavras, como se costuma dizer. «Empada de carne!» não é mais que palavras, no fim de contas… Podemos torná-la bem cheirosa, saborosa e até capaz de nos encher, mas continua a ser palavras. Engana o estômago e não dá forças a quem tem fome.

— Então os feiticeiros não são cozinheiros — interpôs Marre, que estava sentado do outro lado da lareira da cozinha, a gravar a tampa de uma caixa de madeira preciosa. Era, de seu ofício, entalhador, se bem que não muito zeloso.

— Nem os cozinheiros são feiticeiros, ai de mim — disse Mil-em-rama, pondo-se de joelhos a ver se a última fornada de bolos que coziam nos tijolos da lareira já estaria a tomar cor. — Mas ainda não percebo, Gavião. Já vi o meu irmão, e até o aprendiz, a iluminar um sítio escuro só por pronunciarem uma palavra. E a luz resplandece, é brilhante, não é uma palavra mas uma luz autêntica que nos pode alumiar os passos.

— Sim — respondeu Gued. — A luz é um poder. Um grande poder pelo qual existimos, mas que existe para além das nossas necessidades, em si própria. A luz do Sol e a luz das estrelas são tempo e tempo é luz. Sob a luz do Sol, nos dias e nos anos, a vida existe. Num lugar escuro, a vida pode invocar a luz, dizendo o seu nome. Mas, geralmente, quando vês um feiticeiro invocar ou chamar pelo nome alguma coisa, algum objeto que faz aparecer, isso já não é o mesmo. Não está a invocar um poder maior que ele próprio, e o que aparece é apenas uma ilusão. Invocar uma coisa que não se encontra de modo algum ali, chamá-la dizendo o seu nome-verdadeiro, isso é grande mestria e não se usa levianamente. Nem meramente por causa da fome. Mil-em-rama, o teu dragãozinho roubou um bolo.

Mil-em-rama estivera tão atenta a ouvir, com os olhos pregados em Gued enquanto ele falava, que não vira o seu harrekki descer sorrateiramente do seu quente poleiro na pega da chaleira suspensa em cima do fogo e deitar as garras a um bolo de trigo maior que ele próprio. A rapariga agarrou na criaturinha coberta de escamas, colocou-a num joelho e começou a dar-lhe pedacinhos de bolo, enquanto ponderava o que Gued lhe dissera.

— Portanto, tu nunca irias invocar uma empada de carne verdadeira, não fosses perturbar aquilo de que o meu irmão está sempre a falar… esqueço-me do nome…

— Equilíbrio — replicou Gued sobriamente, pois bem via que ela estava a tratar o assunto muito a sério.

— Sim, mas quando naufragaste, saíste daquele lugar num barco que era quase todo feito de encantamentos e ele não metia água. Também era uma ilusão?

— Bem, em parte era uma ilusão porque não me sinto seguro vendo o mar através de grandes buracos no meu barco, de maneira que os remendei tendo em vista o aspecto da coisa. Mas a robustez do barco não era ilusão nem invocação. Era antes feita com outro gênero de arte, um encantamento de prender. A madeira estava presa num todo, numa coisa inteira, um barco. O que é um barco senão uma coisa que não deixa entrar água?

— Já tive de tirar água de alguns que deixavam — disse Marre.

— Pois, e o meu também deixava, a não ser que eu estivesse constantemente a refazer a encantamento.

Debruçou-se do seu lugar ao canto, tirou um bolo de cima dos tijolos e o fez saltar nas mãos.

— Agora também eu roubei um bolo.

— Então queimaste os dedos. E quando estiveres morto de fome nessas águas ermas, entre as ilhas lá de longe, vais pensar nesse bolo e dizer: «Ah se eu não tivesse roubado aquele bolo, bem o podia comer agora, ai de mim!» E eu vou comer o do meu irmão que é para ele ficar a morrer de fome contigo.

— E assim se mantém o Equilíbrio — fez notar Gued enquanto pegava num bolo quente e meio cozido e se punha a mastigá-lo, o que a fez soltar uma risada e engasgar-se. Mas logo, pondo-se de novo muito séria, disse:

— Só queria perceber realmente o que me dizes. Sou muito estúpida.

— Irmãzinha — disse Gued —, eu é que não tenho jeito para explicar. Se tivéssemos mais tempo…

— Vamos ter mais tempo — retorquiu Mil-em-rama. — Quando o meu irmão voltar para casa, voltarás com ele e ficas cá pelo menos durante algum tempo, não ficas?

— Se puder — respondeu ele mansamente.

Houve uma pequena pausa. Depois Mil-em-rama perguntou, olhando o harrekki que trepava de regresso ao seu poleiro:

— Diz-me só uma coisa, se não for um segredo. Que outros grandes poderes existem, além da luz?

— Não é segredo. Todo o poder é apenas um na sua fonte e no seu final, creio eu. Anos e distâncias, estrelas e candeias, água e vento e feitiçaria, a perícia na mão de um homem e a sabedoria na raiz de uma árvore, todos surgem em conjunto. O meu nome, o teu e o nome-verdadeiro do Sol, ou uma nascente de água, ou unia criança que não nasceu ainda, tudo são sílabas da grande palavra que está a ser muito lentamente pronunciada pelo brilho das estrelas. Não há outro poder. Não há outro nome.

Parando o movimento da faca sobre a madeira que estava a trabalhar, Marre perguntou:

— Então e a morte?

A rapariga escutava atentamente, o negro cabelo a brilhar na cabeça inclinada.

— Para que uma palavra seja pronunciada — respondeu Gued lentamente — é necessário que haja silêncio. Antes e depois. — E logo, levantando-se, acrescentou: — Mas eu não tenho o direito de falar destas coisas. A palavra que por direito me cabia dizer, disse-a mal. Melhor é que me reduza ao silêncio. Não voltarei a falar. Talvez não haja verdadeiro poder senão a treva.

E, deixando o lugar junto ao lume e o calor da cozinha, envergou o manto e saiu sozinho para as ruas, sob o chuvisco frio do Inverno.

— Há uma maldição sobre ele — disse Marre, a vê-lo sair, com uma expressão algo temerosa no rosto.

— Julgo que esta viagem que ele vai empreender o pode conduzir à morte — disse a rapariga —, e ele teme isso, mas no entanto vai.

Ergueu a cabeça como se observasse, através das chamas vermelhas do lume, o percurso de um barco que chegara sozinho sobre os mares de Inverno e partira de novo, singrando os mares solitários. Depois, por um momento, os seus olhos encheram-se de lágrimas, mas nada mais disse.

Vetch regressou a casa no dia seguinte e foi apresentar as suas despedidas aos notáveis de Ismay, que não tinham o mínimo desejo de o ver partir para o mar no meio do Inverno, numa demanda mortal que nem sequer era sua. Mas por muito que o censurassem, não havia absolutamente nada que pudessem fazer para o impedir. Já farto daqueles anciãos que o importunavam com as suas críticas, Vetch disse-lhes:

— Sou vosso, pela origem, pelos costumes e pelas obrigações a que me comprometi perante vós. Sou o vosso feiticeiro. Mas já é tempo que recordeis que, embora eu seja um servidor, não sou o vosso servo. Quando estiver livre para voltar, voltarei. Até lá, adeus.

Ao nascer do dia, com a luz acinzentada a erguer-se do mar para leste, os dois jovens partiram no Vê-longe do porto de abrigo de Ismay, erguendo sob o vento norte uma vela castanha de um tecido bem forte. No cais, Mil-em-rama ficou a vê-los partir, tal como as esposas e as irmãs ficam em todas as costas de Terramar, vendo os seus homens partir para o mar, e não acenam com as mãos, nem erguem a voz em adeus, mas ficam de pé, recolhidas nos seus mantos com capuz, cinzentos ou castanhos, nessas costas que, vistas do barco, se vão tornando cada vez mais pequenas, enquanto cresce a extensão de água entre este e aquelas.

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