Isaac Asimov O fim da eternidade

1. TÉCNICO

Andrew Harlan pisou dentro da caldeira. Seus lados eram perfeitamente redondos e ela se ajustava confortavelmente dentro de um eixo vertical composto de barras largamente espaçadas, que tremeluziam numa neblina invisível, dois metros acima da cabeça de Harlan. Este tomou os controles e acionou calmamente a alavanca de partida da caldeira.

Ela não se moveu.

Harlan não esperava que ela o fizesse. Não esperava nenhum movimento; nem para cima nem para baixo, esquerda ou direita, para frente ou para trás. Contudo, os espaços entre as barras tinham-se fundido numa claridade acinzentada, que era sólida ao toque, porém imaterial para tudo o mais. E havia a pequena agitação em seu estômago, o leve (psicossomático?) traço de vertigem que lhe revelavam que tudo que a caldeira continha, inclusive ele, estava se precipitando para cima na escala do Tempo, através da Eternidade.

Ele tinha embarcado na caldeira no século 575; a base de operações o nomeara dois anos antes. Na época, o século 575 tinha sido o mais distante na escala do Tempo em que ele já tinha viajado. Agora estava dirigindo-se ao século 2456.

Sob circunstâncias normais, ele poderia ter-se sentido um pouco perdido com a perspectiva. Seu século nativo era no distante passado, o século 95, para ser exato.

Era um século rigidamente restringido de poder atômico, levemente rústico, amigo de madeira natural como material para construção, exportadores de certas bebidas destiladas aceitáveis em quase todas as épocas e importadores de sementes de trifólio. Apesar de que Harlan não estivera no século 95 desde que entrara para o treinamento especial e se tornara um Aprendiz, com a idade de quinze anos, havia sempre aquele sentimento de perda quando alguém deixava o “lar”. No século 2456, estaria aproximadamente a duzentos e quarenta milênios de sua época natal, e esta distância é considerável, mesmo para um Eterno calejado.

Sob circunstâncias normais, tudo seria assim.

Mas naquele exato momento Harlan estava com um péssimo ânimo para pensar em qualquer coisa, senão no fato de que seus documentos pesavam em seu bolso e seu plano pesava em seu coração. Estava um pouco assustado, um pouco tenso, um pouco confuso.

Foram suas mãos, atuando por si mesmas, que trouxeram a caldeira para o lugar adequado no século correto.

Era estranho que um Técnico sentisse tensão ou nervosismo por alguma coisa. Foi o que disse o Educador Yarrow certa vez:

“Acima de tudo, um Técnico deve ser imparcial. A Mudança de Realidade que ele inicia pode mudar as vidas de cerca de cinqüenta bilhões de pessoas. Um milhão ou mais delas poderiam ser tão drasticamente afetadas, a ponto de serem consideradas novos indivíduos. Sob estas condições, uma atitude emocional é uma desvantagem evidente.”

Harlan tirou da mente a lembrança da voz seca de seu professor, com um quase selvagem chacoalhar de cabeça. Naqueles dias, não tinha nunca imaginado que ele tivesse o peculiar talento para aquela mesma posição. Mas a emoção tinha-o atacado, afinal de contas. Não pelos cinqüenta bilhões de pessoas. O que significava para ele, no Tempo, cinqüenta bilhões de pessoas? Havia apenas uma. Uma só pessoa.

Apercebeu-se de que a caldeira estava imóvel e, com uma pequena pausa para coordenar seus pensamentos e situar-se dentro da estrutura mental impessoal e fria que um Técnico deve ter, saiu. A caldeira de que saiu, naturalmente, não era a mesma que aquela em que havia embarcado, no sentido de que não era composta dos mesmos átomos. Não se preocupou com isso mais do que um Eterno se preocuparia. Preocupar-se com a mística da viagem no Tempo, antes que com o simples fato dela existir, era característica de um Aprendiz, de um recém-chegado à Eternidade.

Deteve-se novamente diante da cortina ilimitadamente fina de não-Espaço e não-Tempo que o separava, de um lado, da Eternidade, e do outro, do Tempo normal.

Este seria um Setor da Eternidade completamente novo para ele. Conhecia-o de uma maneira superficial, naturalmente, tendo verificado no Manual Temporal. Entretanto, não havia substituto para a situação atual, e ele se firmou para o choque inicial de ajustamento.

Ajustou os controles; uma coisa simples no passar para a Eternidade (e bastante complicada no passar para o Tempo: um tipo de passagem que era relativamente menos freqüente). Atravessou a cortina e encontrou-se ofuscado pela claridade. Automaticamente levantou a mão para proteger os olhos.

Somente um homem o encarou. A princípio, Harlan pôde ver somente sua silhueta.

— Sou o Sociólogo Kantor Voy — disse o homem. — Imagino que você seja o Técnico Harlan.

Harlan fez que sim com a cabeça e disse: — Pai Tempo! Não é ajustável este tipo de ornamentação?

Voy olhou ao redor e disse tolerantemente: — Refere-se às películas moleculares?

— Certamente — respondeu Harlan. O Manual as havia mencionado, mas não dizia nada a respeito de uma insana confusão de reflexos de luz.

Harlan percebeu ser a sua contrariedade totalmente razoável. O século 2456 estava orientado para a matéria, assim como a maioria dos séculos, de maneira que ele tinha o direito de esperar uma compatibilidade básica desde o princípio. Não teria nada da total confusão (para qualquer um nascido orientado para a matéria) dos vórtices de energia dos séculos 300, ou das dinâmicas de campo dos séculos 600. No século 2456, para conforto do Eterno comum, a matéria era usada para tudo, desde as paredes aos pregos.

Para ser exato, havia matéria e matéria. Um membro de um século orientado para a energia não poderia compreender isso. Para ele, toda a matéria poderia parecer como sendo variações menores de um objeto que era grosseiro, pesado e bárbaro. Para Harlan, orientado para a matéria, contudo, havia madeira, metal (subdivisões, nebuloso e claro), plástico, silicatos, concreto, couro e assim por diante.

Mas- matéria consistindo unicamente de espelhos!

Esta foi sua primeira impressão do século 2456. Qualquer superfície brilhava e refletia a luz. Em todo lugar estava a ilusão de completa lisura; o efeito de uma película molecular. E em seu sempre repetido reflexo, no do Sociólogo Voy, no de qualquer coisa que ele pudesse ver, em fragmentos e inteiro, em todos os ângulos, havia confusão. Extravagante confusão e náusea!

— Sinto muito — disse Voy — é o costume do século, e o Setor encarregado dele acha de boa praxe adotar os costumes onde forem praticáveis. Você se acostumará a isso depois de algum tempo.

Voy caminhou rapidamente sobre os pés de um outro Voy de cabeça para baixo, que o imitou passo por passo. Adiantou-se para acionar o indicador de contato-cabelo e baixou-o para o ponto de origem, numa escala espiral.

Foram-se os reflexos; desvaneceu-se a estranha luz. Harlan sentiu-se novamente em seu mundo.

— Se você vier comigo agora… — disse Voy. Harlan seguiu por um corredor vazio que, como ele sabia, devia ter sido, momentos atrás, uma confusão de luz artificial e reflexos, subindo por uma rampa, atravessando uma ante-sala e entrando num escritório.

Durante toda a pequena jornada, nenhum ser humano fora visto. Harlan estava tão acostumado a isso e aceitava tanto o fato, que teria ficado surpreso, quase chocado, se a silhueta de uma figura humana tivesse atingido seus olhos. Não havia dúvida de que se havia espalhado a notícia de que um Técnico estava vindo por ali. Mesmo Voy conservou distância, e quando, acidentalmente, a mão de Harlan esbarrou em sua luva, Voy se retraiu com visível espanto.

Harlan estava vagamente surpreso com o toque de amargura que sentiu com tudo isso. Tinha pensado que a concha que havia criado em volta de seu espírito fosse mais grossa, mais suficientemente insensível do que aquilo. Se estava enganado, se sua casca tinha ficado mais fina, poderia haver somente uma razão para isso.

Noys!

O Sociólogo Kantor Voy inclinou-se para a frente diante do Técnico, no que pareceu uma maneira bastante amável, mas Harlan notou automaticamente que estavam sentados em lados opostos do longo eixo de uma mesa razoavelmente grande.

— Estou satisfeito por ter aqui um Técnico de sua reputação interessado em nosso pequeno problema — disse Voy.

— Sim — respondeu Harlan, com a fria impessoalidade que as pessoas esperariam dele. — Tem seus pontos de interesse.

(Seria ele suficientemente impessoal? Certamente seus motivos reais deviam ser aparentes, sua culpa soletrada em gotas de suor em sua testa.)

Ele removeu de um bolso interno o resumo frustrado da Mudança de Realidade projetada. Era a mesma cópia que havia sido enviada ao Conselho Geral um mês antes. Através de sua afinidade com o Computador Sênior Twissell (o Twissell, ele mesmo), Harlan tivera pouca dificuldade em deitar as mãos nela.

Antes de desenrolar a folha, deixando-a cair sobre o tampo da mesa, onde seria atraída por um suave campo magnético, Harlan pausou por um momento.

A película molecular que cobria a mesa estava subjugada, mas não a zero. Seu olhar fixou-se no movimento de seu braço, e por um instante o reflexo de seu próprio rosto pareceu fitá-lo sombriamente do tampo da mesa. Ele tinha trinta e dois anos, mas parecia mais velho. Não precisava que lho dissessem. Podia ser em parte o seu rosto alongado e sobrancelhas escuras sobre olhos mais escuros que lhe davam a expressão sombria e olhar frio associados com a caricatura do Técnico nas mentes de todos os Eternos. Podia ser apenas sua própria realização por ser um Técnico.

Mas então agitou a folha sobre a mesa e retomou o assunto.

— Não sou Sociólogo, senhor.

Voy sorriu. — Isso parece formidável. Quando se começa por expressar falta de competência em dado campo, normalmente implica que se seguirá uma opinião positiva naquele campo, quase que imediatamente.

— Não — disse Harlan — não uma opinião. Apenas um pedido. Admiro-me se o senhor não olhar este resumo e ver se cometeu um pequeno engano em algum lugar dele.

Voy pareceu imediatamente sério. — Espero que não — disse.

Harlan conservou um braço sobre o encosto da cadeira e o outro no colo. Não devia deixar nenhuma das duas mãos tamborilar dedos impacientes. Não devia morder os lábios. Não devia mostrar seus sentimentos de forma alguma.

Depois que toda a orientação de sua vida tinha se modificado tanto, ele estivera observando os resumos das Mudanças de Realidade projetadas, à medida que passavam pelo esfalfante mecanismo administrativo do Conselho Geral. Como Técnico pessoalmente nomeado pelo Computador Sênior Twissell, podia arranjá-lo com uma leve flexão de éticas profissionais. Particularmente com a atenção de Twissell presa sempre mais firmemente em seu próprio projeto esmagador. (As narinas de Harlan se dilataram. Agora sabia um pouco sobre a natureza daquele projeto.)

Harlan não tivera garantia de que sempre encontraria o que procurava em um tempo razoável. Quando tinha examinado a primeira vez a Mudança de Realidade projetada 2456-2781, Número Serial V-5, estivera meio inclinado a acreditar que seus poderes de raciocínio estavam desvirtuados por querer. Durante um dia inteiro ele tinha conferido e reconferido equações e relações em uma viva incerteza, misturada com crescente excitação e uma amarga gratidão por lhe ter sido ensinado ao menos psico-matemática elementar.

Então Voy repassou aquelas mesmas configurações de furos com um olhar meio perplexo, meio preocupado.

— Parece-me — começou ele — eu disse parece-me que isto tudo está perfeitamente em ordem.

— Chamo sua atenção — disse Harlan — particularmente para a questão das características de namoro da sociedade da Realidade atual deste século. Isto é sociologia e, portanto, de sua responsabilidade, creio. Eis por que procurei o senhor quando cheguei, antes de alguém mais.

Voy estava agora carrancudo. Estava polido, mas então com um frio comportamento. — Os observadores designados para nosso Setor — disse ele — são altamente competentes.

Tenho toda a certeza de que aqueles designados a esse projeto forneceram dados corretos. Tem prova em contrário?

— De forma alguma, Sociólogo Voy. Aceito os dados deles. É do desenvolvimento dos dados que duvido. O senhor não tem um complexo-tensor alternado, neste ponto, se os dados de namoro são levados propriamente em consideração?

Voy pareceu admirado, e então uma expressão de alívio passou por ele visivelmente. — Naturalmente, Técnico, naturalmente, mas isso se reduz a uma identidade. Há um ramal de pequenas dimensões sem afluentes em nenhum dos lados. Espero que me desculpe por usar linguagem pitoresca ao invés de expressões matemáticas precisas.

— Aprecio isso — disse Harlan secamente. — Não sou mais Computador do que um Sociólogo.

— Muito bem, então. O complexo-tensor alternado a que se refere, ou a bifurcação da estrada, como poderíamos dizer, é insignificante. Os desvios juntam-se novamente em uma única estrada. Não havia nem mesmo qualquer necessidade de mencioná-lo em nossas recomendações.

— Se o diz, senhor, submetê-lo-ei a melhor julgamento. Contudo, há ainda a questão da M.M.N.

O Sociólogo retraiu-se diante das iniciais, como Harlan sabia que faria. M.M.N.: Mínima Mudança Necessária. Nisto o Técnico era superior. Um Sociólogo podia considerar-se acima de críticas por parte de seres inferiores em qualquer coisa que envolvesse as análises matemáticas das infinitas Realidades possíveis no Tempo, mas em questão de M.M.N. o Técnico era supremo.

Compute mecânico não adiantava. O maior Computaplex já construído, manejado pelo Computador Sênior mais inteligente e experiente já nascido, não podia fazer melhor do que indicar as áreas nas quais a M.M.N. poderia ser encontrada. Era então o Técnico, examinando os dados, que decidia quanto a um ponto exato dentro daquela área.

Um bom Técnico raramente errava. Um ótimo Técnico nunca errava.

Harlan nunca errava.

— Agora, a M.M.N. recomendada por seu Setor — disse Harlan (falava fria e calmamente, pronunciando a Linguagem Intertemporal Padrão em sílabas precisas) — envolve indução de um acidente no espaço e a morte imediata, por meios bem horríveis, de doze ou mais homens.

— Inevitável — disse Voy, encolhendo os ombros.

— Por outro lado — disse Harlan — sugiro que a M.M.N. possa ser reduzida ao mero deslocamento de um receptáculo de uma coluna para outra. Aqui!

Seu dedo alongado apontou. A unha branca e bem cuidada de seu indicador traçou uma leve marca ao longo de uma fileira de perfurações. Voy considerou as coisas com uma dolorosa mas silenciosa intensidade.

— Isso não altera a situação com vantagem para sua bifurcação considerada? — perguntou Harlan. — Isso não tira vantagem da bifurcação de menor probabilidade, mudando-a para quase certeza, e isso então não, conduz…

— Virtualmente à M.R.D. — murmurou Voy.

— Exatamente à Máxima Resposta Desejada — afirmou Harlan.

Voy levantou os olhos, com sua face escura contorcendo-se por algo entre desapontamento e raiva. Harlan distraidamente notou que havia um espaço entre os grandes incisivos superiores do homem, que lhe dava a expressão de um coelho, totalmente em desacordo com a força contida de suas palavras.

— Suponho que terei notícias do Conselho Geral? — perguntou Voy.

— Não creio. Pelo que sei, o Conselho Geral não sabe disso. Pelo menos, a Mudança de Realidade projetada foi-me passada sem comentário.

Ele não explicou a palavra “passada”, nem Voy perguntou.

— Você descobriu esse erro, então?

— Sim.

— E não o comunicou ao Conselho Geral?

— Não.

Alívio a princípio, e então um endurecimento do semblante. — Por que não?

— Pouquíssimas pessoas poderiam ter evitado este erro. Senti que poderia corrigi-lo antes que o dano fosse feito. Agi assim. Por que ir mais além?

— Bem… obrigado, Técnico Harlan. Você tem sido um amigo. O erro do Setor que, como você diz, era praticamente inevitável, teria parecido injustificavelmente mau no relatório.

— Naturalmente — continuou ele após um momento de pausa — em vista das alterações em personalidade a serem induzidas por esta Mudança de Realidade, a morte de alguns homens como preliminar é de pouca importância.

Ele não parece realmente agradecido — pensou Harlan imparcialmente. Ele provavelmente se ressente disso.

Se parar para pensar, ressentir-se-á ainda mais de ser salvo de uma queda de posição por um Técnico. Se eu fosse um Sociólogo, ele me apertaria a mão, mas não apertará a mão de um Técnico. Defende a condenação de uma dúzia de pessoas à asfixia, mas não tocará um Técnico.

E porque seria fatal esperar e deixar o ressentimento aumentar, Harlan disse sem demora: — Espero que sua gratidão se estenda o suficiente para que seu Setor faça uma pequena tarefa para mim.

— Uma tarefa?

— Uma questão de Esboço de Vida. Tenho os dados necessários aqui comigo. Tenho também os dados para uma Mudança de Realidade sugerida no século 482. Quero saber o efeito da Mudança sobre o padrão de probabilidades de um certo indivíduo.

— Não estou bem certo — disse o Sociólogo lentamente — de tê-lo entendido. Certamente você tem as facilidades para fazê-lo em seu próprio Setor?

— Tenho. Contudo, aquilo em que estou empenhado é uma pesquisa pessoal que não desejo que apareça nos relatórios por enquanto. Seria difícil tê-la executado em meu próprio Setor sem… — ele gesticulou uma conclusão incerta para a sentença incompleta.

— Então você a quer concluída, mas não por canais oficiais — disse Voy.

— Quero-a feita confidencialmente. Quero uma resposta confidencial.

— Bem, nessas circunstâncias, é muito regular. Não posso concordar.

Harlan franziu as sobrancelhas. — Não mais irregular do que minha omissão quanto a comunicar seu erro ao Conselho Geral. O senhor não fez objeção quanto a isso.

Se vamos ser estritamente regulares em um caso, devemos ser tão estritos e regulares no outro. O senhor me compreende, creio?

A expressão do rosto de Voy era prova positiva disso. Ele ofereceu sua juda. — Posso ver os documentos?

Harlan relaxou um pouco. O principal obstáculo tinha sido vencido. Observou ansiosamente enquanto a cabeça do Sociólogo inclinava-se sobre as folhas que ele havia trazido.

Somente então o Sociólogo falou. — Por Tempo, esta é uma pequena Mudança de Realidade.

Harlan aproveitou a oportunidade e improvisou. — Sim. Pequeníssima, creio. Eis sobre o que é o argumento. Está abaixo de diferença crítica, e selecionei um indivíduo como caso-teste. Naturalmente, seria antidiplomático usar as facilidades de nosso próprio Setor até que eu estivesse certo de estar correta.

Voy não respondeu e Harlan parou. Seria inútil levar as coisas além do ponto de segurança.

Voy levantou-se. — Passarei isso adiante para um de meus Esboçadores de Vida. Nós a conservaremos em segredo. Você entende, no entanto, que isso não é para ser tomado como abertura de um precedente.

— Naturalmente que não.

— E se não se importa, gostaria de ver efetuar-se a Mudança de Realidade. Creio que você nos favorecerá, conduzindo pessoalmente a M.M.N.

Harlan acenou afirmativamente. — Assumirei toda a responsabilidade.

Duas das telas da câmara de observação estavam em funcionamento quando eles entraram. Os engenheiros já as tinham focalizado nas coordenadas exatas no Espaço e no Tempo e então haviam saído. Harlan e Voy estavam a sós na sala resplandecente. (O arranjo de película molecular era perceptível, e até mesmo um pouco mais que perceptível, mas Harlan estava olhando para as telas.)

Ambas as cenas estavam imóveis. Elas poderiam ter sido cenas mortas, já que retratavam instantes matemáticos do Tempo.

Um cenário estava em cor nítida e natural; era a sala de máquinas do que Harlan sabia ser uma aeronave experimental. Uma porta estava semicerrada, e um reluzente sapato de um material vermelho e semitransparente era apenas visível pelo espaço que sobrava. Ele não se movia. Nada se movia. Se se pudesse tornar o cenário suficientemente minucioso para retratar as partículas de poeira do ar, elas não teriam se movido.

— Durante duas horas e trinta e seis minutos após o instante retratado — disse Voy — esta sala de máquinas continuará vazia. Isto é, na Realidade corrente.

— Eu sei — murmurou Harlan. Ele estava calçando suas luvas e já seus olhos rápidos estavam memorizando a posição do receptáculo crítico em sua coluna, medindo os degraus até ele, estimando a melhor posição para a qual transferi-lo. Ele lançou um rápido olhar à outra tela.

Se a sala de máquinas, estando na área descrita como “presente” com respeito àquele Setor da Eternidade no qual agora se encontravam, era clara e em cor natural, a outra cena, estando uns vinte e cinco século no “futuro”, levava o brilho azulado que todas as cenas do “futuro” deviam ter.

Era um porto espacial. Um céu profundamente azul, edifícios de metal exposto azulados sobre solo azul-esverdeado. Um cilindro azul de desenho estranho, repleto de saliências, jazia em primeiro plano. Dois outros iguais estavam ao fundo. Todos os três apontavam narizes fendidos para cima, com a rachadura mordendo fortemente as partes vitais da nave.

Harlan franziu os sobrolhos. — São fantásticos.

— Eletrogravitantes — disse Voy. — O 2481 é o único século a desenvolver viagens especiais eletrogravitantes. Nada de propelentes, nada de ciência nuclear.

É um invento esteticamente agradável. É uma pena termos de mudá-lo. Uma pena.

Seus olhos fixaram-se em Harlan com distinta desaprovação. Os lábios de Harlan comprimiram-se. Desaprovação, naturalmente! Por que não? Ele era o Técnico.

Para ser exato, tinha sido algum Observador quem havia introduzido os detalhes de adicionamento de drogas. Tinha sido algum Estatístico quem havia demonstrado que recentes Mudanças tinham aumentado o índice de adicionamento, que até agora era o mais alto de toda a Realidade corrente do homem. Algum Sociólogo, talvez o próprio Voy, tinha-o interpretado dentro do perfil psiquiátrico de uma sociedade. Finalmente, algum Computador tinha executado a Mudança de Realidade necessária para reduzir o adicionamento a um nível seguro e descoberto que, como efeito secundário, as viagens espaciais eletrogravitantes deveriam sofrer. Uma dúzia, uma centena de homens de todos os graus da Eternidade haviam participado disso.

Mas então, enfim, um Técnico tal como ele devia entrar em cena. Seguindo as direções que todos os outros haviam combinado em lhe dar, devia ser ele a iniciar a verdadeira Mudança de Realidade. E então todos os outros o olhariam com insolente acusação. Seus olhares diriam: “Você, não nós, destruiu essa coisa maravilhosa.”

E por isso, eles o condenariam e o evitariam. Passariam suas próprias culpas para seus ombros e o desprezariam.

— Naves não são o que importa — disse Harlan asperamente. — Estamos preocupados com aquelas coisas.

As “coisas” eram pessoas, tolhidas pela espaçonave, como a Terra e a sociedade da Terra estão sempre tolhidas pelas dimensões físicas do vôo espacial.

Eram pequenas marionetes em bandos, aquelas pessoas. Seus braços e pernas minúsculos estavam em posições erguidas e como que artificiais, apanhados no instante morto do Tempo.

Voy encolheu os ombros.

Harlan estava ajustando o “pequeno gerador de campo em torno do pulso esquerdo. — Mandemos fazer esta tarefa.

— Um minuto. Quero entrar em contato com o Esboçador de Vida e saber quanto tempo levará a tarefa para você. Também quero mandar fazer esta tarefa.

Suas mãos manejaram habilmente um pequeno contato móvel e seu ouvido escutou astutamente a configuração de cliques que voltavam. (Uma outra característica deste Setor da Eternidade, pensou Harlan: códigos sonoros em cliques; inteligentes, mas afetados como as películas moleculares.)

— Ele diz que não levará mais de três horas — disse Voy finalmente. — A propósito, também ele se admira do nome da pessoa envolvida. Noys Lambert. É uma mulher, não é?

Houve um nó na garganta de Harlan. — Sim.

A boca de Voy torceu-se em um lento sorriso. — Parece interessante. Gostaria de conhecê-la; coisa nunca vista antes. Não houve mulheres neste Setor durante meses.

Harlan não se fiou em responder. Fitou o Sociólogo por um momento e voltou-se bruscamente.

Se havia um defeito na Eternidade, envolvia mulheres. Ele soubera para que era a falha, desde quase sua primeira entrada na Eternidade, mas sentiu-a pessoalmente apenas naquele dia em que encontrou Noys pela primeira vez. Desde aquele momento tinha sido um caminho fácil para esta, no qual ele permanecia infiel ao seu juramento como Eterno e a tudo em que tinha acreditado.

Para quê?

Para Noys.

E não estava envergonhado. Era aquela que realmente o acalentava. Ele não estava envergonhado. Não sentia culpa pelo crescendo de crimes que havia cometido, aos quais esta última adição do uso imoral de Esboço de Vida confidencial poderia somar-se apenas como uma pequena falta.

Faria a pior coisa entre suas piores, se fosse necessário.

Pela primeira vez veio-lhe o pensamento específico e claro. E embora o repelisse com horror, sabia que, uma vez tendo vindo, não retornaria.

O pensamento era simplesmente este: ele arruinaria a Eternidade, se tivesse de fazê-lo.

O pior era que ele sabia que tinha o poder de fazê-lo.

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