Harlan parou na passagem do Tempo e imaginou-se em novos caminhos. Havia sido bem simples certa vez. Havia tantas coisas, como ideais, ou ao menos lemas, pelos quais e para os quais viver. Cada estágio da vida de um Eterno tinha uma razão. Como começavam os “Princípios Básicos”?
“A vida de um Eterno pode ser dividida em quatro partes…”
Tudo surgira claramente, porém tudo tinha mudado para ele, e o que estava quebrado não podia se tornar inteiro novamente.
Contudo ele tinha passado fielmente pelas quatro partes da vida de um Eterno. Primeiro, houve um período de quinze anos no qual ele não foi de forma alguma um Eterno, mas apenas um habitante do Tempo. Somente um ser humano fora do Tempo, um Tempista, podia tornar-se Eterno; ninguém podia nascer nessa posição.
Na idade de quinze anos foi escolhido por um cuidadoso processo de eliminação e joeiramento, de cuja natureza não tivera concepção na época. Foi levado além do véu da Eternidade após um último e agoniado adeus à sua família. (Foilhe então deixado claro que nunca retornaria, o que quer que acontecesse. A verdadeira razão disso ele não iria saber antes de muito tempo depois.)
Uma vez dentro da Eternidade, passou dez anos na escola como Aprendiz e, então, graduou-se para iniciar seu terceiro período, como Observador. Foi somente depois disso que se tornou Especialista e um verdadeiro Eterno. A quarta e última parte da vida do Eterno: Tempista, Aprendiz, Observador e Especialista.
Ele, Harlan, tinha passado por tudo isso bastante habilmente. com êxito, poderia ele dizer.
Podia lembrar-se, tão claramente, o momento em que terminaram o Aprendizado, o momento em que se tornaram membros independentes da Eternidade, o momento em que, embora não Especializados, receberam o título legal de “Eternos”.
Podia lembrá-lo. Escola completa, Aprendizado terminado, ele estava em pé com os cinco que com ele completaram o treinamento, com as mãos enganchadas na cintura, as pernas um pouquinho separadas, os olhos voltados para a frente, ouvindo.
O Educador Yarrow estava em uma escrivaninha, falando-lhes. Harlan conseguia lembrar-se bem de Yarrow: um homenzinho intenso, de rubros cabelos desgrenhados, antebraços sardentos e uma expressão de perda nos olhos. (Não era incomum essa expressão de perda nos olhos de um Eterno… a perda do lar e de suas raízes, a inadmitida e inadmissível saudade do século que ele nunca poderia ver.)
Harlan não podia se lembrar das palavras exatas de Yarrow, naturalmente, mas sua essência continuava nítida.
Em substância, Yarrow dissera: — Vocês serão Observadores, agora. Não é uma posição altamente considerada. Os Especialistas a vêem como uma tarefa de criança. Pode ser que vocês, Eternos (ele fez uma pausa deliberada após esta palavra, para dar a cada homem a oportunidade de endireitar o corpo e animar-se diante de tal glória), também pensem assim. Se pensam, vocês são tolos que não merecem ser Observadores.
— Os Computadores não teriam Computação para fazer, os Esboçadores de Vida não teriam vindas para Esboçar, os Sociólogos não teriam sociedades para perfilar, nenhum dos Especialistas teria qualquer coisa para fazer, se não fosse pelo Observador. Sei que já lhes foi dito isso antes, mas quero que estejam bem firmes e claros em suas mentes quanto a isso.
— Serão vocês, jovens, que sairão no Tempo, sob as mais estrênuas condições, para trazer fatos. Fatos frios e objetivos, e não coloridos por suas próprias opiniões e preferências, vocês entendem. Fatos suficientemente precisos para alimentar as máquinas de Computação. Fatos suficientemente definidos para fazer com que as equações sociais se provem satisfatórias. Fatos honestos o bastante para formar-se uma base para Mudanças de Realidade.
— E, lembrem-se disso, também: o período como Observador não é algo para se completar tão rápida e reservadamente quanto possível. É como Observadores que vocês estabelecerão seus graus. Não o que fizeram na escola, mas o que farão como Observadores determinará suas Especialidades e a que ponto subirão nelas. Este será o curso de pós-graduação, Eternos, e falhas nele, mesmo uma pequena falha, colocá-los-á na Manutenção, não importando quão brilhantes suas potencialidades pareçam agora. Isso é tudo.
Ele apertou a mão de cada um deles, e Harlan, sério, dedicado, orgulhoso em sua convicção de que os privilégios de ser um Eterno continham seu maior privilégio na suposição de responsabilidade pela felicidade de todos os seres humanos que estavam ou que algum dia estariam dentro do alcance da Eternidade, estava aprofundado em auto-respeito.
As primeiras tarefas de Harlan foram pequenas e sob orientação cuidadosa, mas ele aguçou sua habilidade no rebolo da experiência em doze séculos, através de doze Mudanças de Realidade.
Em seu quinto ano como Observador, recebeu a categoria de Sênior nesse campo e foi designado para o século 482. Pela primeira vez estaria trabalhando sem supervisão, e o conhecimento deste fato roubou-lhe um pouco de sua autoconfiança quando pela primeira vez se apresentou ao Computador encarregado do Setor.
Este era o Computador Assistente Hobbe Finge, cuja boca enrugada e suspeita e olhos sombrios pareciam ridículos em um rosto tal como o dele. Possuía um botão redondo como nariz e dois botões maiores como bochechas. Precisava apenas de um toque de vermelho e uma franja de cabelos brancos para se converter na figura do mito Primitivo de São Nicolas ou Papai Noel, ou Kriss Kringle[1]. Harlan conhecia todos os três nomes. Duvidava que um Eterno entre cem mil já tivesse ouvido falar de qualquer um deles.
Harlan tinha um tímido e secreto orgulho por esse tipo de conhecimento arcano. Desde seus primeiros dias de escola havia cavalgado os cavalinhos de pau da História Primitiva, para o que o Educador Yarrow o havia encorajado. Harlan tinha se tornado verdadeiramente afeiçoado àqueles séculos pervertidos e estranhos que jaziam, não somente antes do começo da Eternidade, no século 27, mas mesmo antes da invenção do próprio campo Temporal, no século 24. Tinha usado velhos livros e periódicos em seus estudos.
Tinha até mesmo viajado bem abaixo na escala do Tempo, até os mais primitivos séculos da Eternidade, quando podia conseguir permissão, para consultar melhores fontes.
Durante mais de quinze anos tinha conseguido reunir uma notável biblioteca privada, quase toda em impressão em papel. Havia um volume escrito por um homem chamado H. G. Wells, outro por um homem de nome W. Shakespeare e algumas histórias esfarrapadas. Melhor que tudo, havia uma série completa de volumes encadernados de um jornal semanal Primitivo que ocupava espaço excessivo, mas que ele não pudera, por sentimentalismo, suportar a idéia de reduzir a microfilme.
Ocasionalmente perdia-se em um mundo onde vida era vida e morte, morte; onde o homem tomava suas decisões de maneira irrevogável; onde o mal não podia ser evitado, nem o bem, estimulado; e a Batalha de Waterloo, tendo sido perdida, estava perdida de uma vez para sempre. Havia até mesmo um fragmento de poesia que ele entesourava, que determinava que um dedo móvel, uma vez tendo escrito, nunca poderia ser atraído de volta para anular o que havia escrito.
E então era difícil, quase chocante, trazer seus pensamentos de volta à Eternidade e a um universo onde a Realidade era algo flexível e evanescente, algo que homens como ele podiam segurar na palma da mão e moldar em um aspecto melhor.
A ilusão de Papai Noel despedaçou-se quando Hobbe Finge falou-lhe em uma maneira viva e prosaica. — Você pode começar amanhã com um esquadrinhamento rotineiro da Realidade corrente. Quero-o bom, completo e conciso. Não haverá negligências permitidas. Seu primeiro mapa espaço-temporal estará pronto para você amanhã cedo. Entendeu?
— Sim, Computador — respondeu Harlan. Decidiu, a partir daí, que ele e o Computador Assistente Hobbe Finge não se dariam bem, e lastimava-o.
Na manhã seguinte, Harlan recebeu seu mapa em configurações intrincadamente perfuradas, quando emergiram do Computaplex. Usou um decodificador de bolso para traduzi-las em Intertemporal Padrão, em sua ansiedade de não cometer nem mesmo o menor engano bem no começo. Naturalmente, havia atingido o estágio em que podia ler as perfurações diretamente.
O mapa dizia-lhe onde e quando no mundo do século 482 ele poderia ir e onde não poderia, o que poderia e o que não poderia fazer e o que tinha de evitar a todo custo.
Sua presença deveria impor-se apenas sobre aqueles lugares e tempos em que não comprometessem a Realidade.
O século 482 não lhe era confortável. Não era como seu próprio século natal, rigoroso e conformista. Era uma época sem éticas ou princípios, como aqueles que estava acostumado a imaginar. Era hedonista, materialista, mas que um pouco matriarcal. Era a única época (ele verificou isto nos registros da maneira mais esmerada) na qual florescia nascimento ectogênico e, no máximo, quarenta por cento de suas mulheres davam à luz eventualmente, simplesmente acrescentando um óvulo fertilizado ao ovário. O casamento era feito e desfeito por mútuo consentimento e não era reconhecido legalmente como qualquer coisa mais do que um acordo pessoal sem força de ligação. A união visando gravidez era, naturalmente, cuidadosamente diferenciada das funções sociais do casamento e arranjada sobre bases puramente eugênicas.
Em centenas de maneiras Harlan considerou a sociedade defeituosa e conseqüentemente desejou uma Mudança de Realidade. Mais de uma vez ocorreu-lhe que sua própria presença no século, como um homem de outra época, poderia bifurcar sua história. Se sua presença se tornasse bastante importuna em algum ponto importante, um ramal diferente de possibilidade tornar-se-ia real, um ramal no qual milhões de mulheres em busca de prazer se encontrariam transformadas em mães verdadeiras e de coração puro. Elas estariam em uma outra Realidade com todas as lembranças que pertenciam a ela, incapazes de dizer, sonhar ou imaginar que já haviam sido qualquer coisa mais.
Infelizmente, para fazê-lo, teria de transpor os limites do mapa espaço-temporal, e isso era inconcebível. Mesmo que não fosse, transpô-los ao acaso poderia mudar a Realidade em diversas maneiras possíveis. Poderia ser piorada. Somente análise e Computação cuidadosas poderiam estabelecer adequadamente a natureza de uma Mudança de Realidade.
Externamente, quaisquer que fossem suas opiniões particulares, Harlan continuava sendo um Observador, e o Observador ideal era simplesmente um conjunto de feixes de nervos sensitivos ligado a um mecanismo de escrever relatórios. Entre a percepção e o relatório não devia haver intervenção da emoção.
Nesse aspecto, os relatórios de Harlan eram a própria perfeição.
O Computador Assistente Finge chamou-o após seu segundo relatório semanal.
— Congratulações, Observador — disse ele, com uma voz sem entusiasmo — pela organização e clareza de seus relatórios. Mas o que você realmente pensa?
Harlan buscou refúgio em uma expressão tão em branco, como se meticulosamente lascada da madeira nativa do século 95. — Não tenho opiniões pessoais quanto ao assunto — respondeu.
— Oh, vamos. Você é do século 95 e ambos sabemos o que isso significa. Certamente este século o perturba.
Harlan encolheu os ombros. — Algo em meus relatórios o leva a pensar que estou perturbado?
Era quase uma imprudência, e o tamborilar das unhas rudes de Finge sobre a escrivaninha o mostrava. — Responda minha pergunta — disse Finge.
— Sociologicamente — disse Harlan — diversas facetas do século revelam exagero. As últimas três Mudanças de Realidade nas épocas próximas o têm acentuado. Eventualmente, suponho que o caso deveria ser retificado. Exageros nunca são saudáveis.
— Então você se deu ao trabalho de examinar as Realidades anteriores do século.
— Como Observador, devo examinar todos os fatos pertinentes.
Era uma situação de equilíbrio. Harlan, naturalmente, tinha o direito e o dever de examinar aqueles fatos.
Finge devia saber disso. Todos os séculos estavam sendo continuamente sacudidos por Mudanças de Realidade. Nenhuma Observação, por mais meticulosa que fosse, podia ficar por muito tempo sem nova inspeção. Era procedimento padrão na Eternidade ter-se todos os séculos em um estado constante de Observação. E para se Observar adequadamente, devia-se ser capaz de levar em consideração não somente os fatos da Realidade corrente, mas também sua relação com os das Realidades anteriores.
Contudo, a Harlan parecia que essa investigação das opiniões dos Observadores não era simplesmente desagradabilidade da parte de Finge. Este parecia definitivamente hostil.
Em uma outra vez Finge disse a Harlan (tendo-lhe invadido o pequeno escritório para trazer as novas): — Seus relatórios estão criando uma impressão bem favorável no Conselho Geral.
Harlan vacilou, incerto, e então murmurou: — Obrigado.
— Todos concordam que você mostra um grau de penetração incomum.
— Faço o melhor que posso.
— Já conhece o Computador Sênior Twissell? — perguntou Finge subitamente.
— Computador Twissell? — Os olhos de Harlan se arregalaram. — Não, senhor. Por que pergunta?
— Ele parece estar particularmente interessado em seus relatórios.
As bochechas arredondadas de Finge repuxaram-se para baixo amuadamente e ele mudou de assunto. — Parece-me que você elaborou uma filosofia própria, um ponto de vista de História.
A tentação arrastou Harlan firmemente. A vaidade e a cautela lutaram e a primeira ganhou. — Estudei História Primitiva, senhor.
— História Primitiva Na escola?
— Não exatamente, Computador. Por minha conta. É meu… passatempo. É como ver a História ainda em pé, fixa! Ela pode ser estudada em detalhes, ao passo que os séculos da Eternidade estão sempre mudando.
Ele se animou um pouco com esse pensamento.
— É como se fôssemos tomar uma série de poses de um livro-filme e estudar minuciosamente cada uma delas. Veríamos um bocado de coisas que deixaríamos passar se apenas examinássemos o filme à medida que passasse. Creio que isso me ajuda um bocado em meu trabalho.
Finge o fitou com estupefação, arregalou um pouco os olhos e saiu sem mais observações.
Depois disso, trazia ocasionalmente à tona o assunto de História Primitiva e aceitava os relutantes comentários de Harlan, sem expressão decisiva em seu próprio rosto arredondado.
Harlan não estava certo se devia lastimar o caso todo ou se devia considerá-lo como uma maneira possível de acelerar sua própria ascensão.
Decidiu pela primeira alternativa quando, ao passar um dia pelo Corredor A, Finge disse bruscamente e na presença de outros: — Grande Tempo, Harlan, você nunca sorri?
Veio a Harlan o chocante pensamento de que Finge o odiava. Depois disso, seus próprios sentimentos em relação a Finge aproximaram-se de algo como detestação.
Três meses de rastelamento através do século 482 tinham consumido a maior parte de sua preciosa carne, e, quando Harlan recebeu um súbito chamado para comparecer ao escritório de Finge, não ficou surpreso. Estava esperando uma mudança de tarefa. Seu resumo final havia sido preparado dias antes. O século 482 estava ansioso por exportar mais material têxtil à base de celulose para séculos deflorestados, tais como o 1174, mas não desejava aceitar peixe defumado em troca. O resumo continha uma longa lista de tais itens em ordem correta e com análises exatas.
Ele levou consigo o rascunho do resumo.
Mas não foi feita nenhuma menção do século 482. Em vez disso, Finge apresentou-o a um homenzinho mirrado e enrugado, de escassos cabelos brancos e um rosto gnômico, que durante toda a entrevista ficou estampado com um perpétuo sorriso. Variou entre extremos de ansiedade e jovialidade, mas nunca desapareceu completamente. Entre dois de seus dedos amarelados havia um cigarro aceso.
Era o primeiro cigarro que Harlan via, caso contrário teria prestado mais atenção ao homem, menos ao cilindro fumegante, e estado melhor preparado para a apresentação de Finge.
— Computador Sênior Twissell, este é o Observador Andrew Harlan — disse Finge.
Os olhos de Harlan desviaram-se em choque, do cigarro do homenzinho para seu rosto.
— Como vai? — disse o Computador Sênior Twissell, com uma voz aguda. — Então este é o jovem que escreve aqueles excelentes relatórios?
Harlan não encontrou a voz. Laban Twissell era uma lenda, um mito vivo. Laban Twissell era um homem que ele devia ter reconhecido imediatamente. Ele era o Computador saliente da Eternidade, que é uma outra maneira de se dizer que era o mais notável Eterno vivo. Era o decano do Conselho Geral. Havia dirigido mais Mudanças de Realidade do que qualquer homem na História da Eternidade. Ele era… Ele tinha…
A mente de Harlan falhou-lhe completamente. Sacudiu a cabeça com um sorriso apatetado e não disse nada.
Twissell colocou o cigarro na boca, deu rápidas baforadas e afastou-o. — Deixe-nos, Finge. Quero conversar com o rapaz.
Finge levantou-se, murmurou algo e saiu.
— Você parece nervoso, rapaz — disse Twissell. — Não há nada por que estar nervoso.
Mas conhecer Twissell dessa forma era um choque. É sempre desconcertante descobrir que alguém que você imaginou ser um gigante tem na verdade menos de um metro e sessenta e cinco centímetros de altura. Poderia o cérebro de um gênio realmente ajustar-se por detrás da reluzente testa calva e recuada? Seria aguçada inteligência ou apenas bom humor que irradiava dos olhinhos que se apertavam em mil rugas?
Harlan não sabia o que pensar. O cigarro parecia obscurecer todo pequeno esforço de inteligência que conseguia reunir. Retraiu-se visivelmente quando uma lufada de fumaça o alcançou.
Os olhos de Twissell apertaram-se como se estivessem tentando perscrutar através da nuvem de fumaça, e ele disse em dialeto decamilenaí horrivelmente acentuado:
— Sentir-se-ia melhor você se eu em seu próprio dialeto falasse, i-apaz?
Harlan, trazido à súbita iminência de riso histérico, respondeu cuidadosamente: — Falo Intertemporal Padrão perfeitamente bem, senhor.
Disse-o na Intertemporal que ele e todos os outros Eternos em sua presença tinham usado, desde seus primeiros meses na Eternidade.
— Bobagem — disse Twissell imperiosamente. — Não me preocupo com Intertemporal. Meu modo de falar em dialeto decamilenar está mais que perfeito.
Harlan julgou ter-se passado uns quarenta anos desde que Twissell tivera de fazer uso de dialetos locais.
Mas tendo alcançado seu objetivo, para sua própria satisfação, aparentemente, ele mudou para Intertemporal e permaneceu nele. — Oferecer-lhe-ia um cigarro — disse ele — mas estou certo de que você não fuma. O fumo é aprovado apenas em algumas épocas da História. Na verdade, os bons cigarros são feitos somente no século 72, e os meus têm de ser especialmente importado de lá. Dou-lhe esta sugestão para o caso de algum dia você se tornar um fumante. É tudo muito ruim. Na semana passada, fiquei parado no século 123 durante dois dias. Nada de fumo. Quero dizer, nem mesmo no Setor da Eternidade destinado ao século 123. Os Eternos de lá absorveram os costumes. Se eu tivesse acendido um cigarro, teria sido como a queda do céu. Às vezes acho que gostaria de calcular uma grande Mudança de Realidade e eliminar todos os tabus contra o fumo em todos os séculos, fora o que qualquer Mudança de Realidade como essa faria pelas guerras do século 58 ou por uma sociedade de escravos do século 1000. Sempre alguma coisa.
Harlan ficou a princípio confuso e depois ansioso. Certamente estas vivas inaplicabilidades deviam estar escondendo algo.
Ele sentiu sua garganta um pouco apertada. — Posso perguntar por que me procurou, senhor? — disse ele.
— Gosto de seus relatórios, rapaz.
Houve um vislumbre de alegria disfarçado nos olhos de Harlan, mas ele não sorriu. — Obrigado, senhor.
— Têm um toque artístico. Você é intuitivo. Você sente intensamente. Creio que conheço sua posição adequada na Eternidade e vim oferecê-la a você.
Não posso crer, pensou Harlan.
Ele conteve todo o triunfo de sua voz. — É uma grande honra, senhor — disse.
Então o Computador Sênior Twissell, tendo chegado ao fim de seu cigarro, produziu outro na mão esquerda por alguma proeza de prestidigitação e acendeu-o. — Pelo amor do Tempo, rapaz — disse ele entre baforadas — você fala como se recitando versos. Grande honra, bah! Besteira. Bobagem. Diga o que sente em linguagem clara.
Você está satisfeito, hein?
— Sim, senhor — respondeu Harlan cautelosamente.
— Está bem. Você deve estar, Gostaria de ser um Técnico?
— Um Técnico! — exclamou Harlan, pulando da cadeira.
— Sente-se, sente-se. Você parece surpreso.
— Não tinha esperado ser um Técnico, Computador Twissell.
— Não — disse Twissell secamente — de certa forma ninguém espera. Esperam qualquer coisa menos isso. Contudo. Técnicos são difíceis de encontrar e estão sempre em demanda. Nenhum Setor da Eternidade tem o número total de Técnicos que considera suficiente.
— Não creio que eu sirva.
— Você quer dizer que não serve para assumir um cargo que inclui aborrecimento. Por Tempo, se você for devotado à Eternidade, como creio que é, não se importará com isso. Portanto, os tolos o evitarão e você se sentirá condenado ao ostracismo. Você se acostumará a isso. E terá a satisfação de saber-se necessário, e muitíssimo necessário. Para mim.
— Para o senhor! Para o senhor particularmente?
— Sim.
Um princípio de perspicácia entrou no sorriso do velho.
— Você não vai ser apenas um Técnico. Será meu Técnico pessoal. Terá cargo especial. O que isso lhe parece agora?
— Não sei, senhor — respondeu Harlan. — Não posso qualificá-lo.
Twissell sacudiu firmemente a cabeça. — Preciso de você. Preciso exatamente de você. Seus relatórios asseguram-me que você tem o que preciso aqui.
Bateu prontamente na testa com a ponta da unha do indicador.
— Sua ficha como Aprendiz é boa; os Setores para os quais você Observou apresentaram relatórios favoráveis. Finalmente, o relatório de Finge foi o mais conveniente de todos.
Harlan ficou honestamente surpreso. — O relatório do Computador Finge foi favorável?
— Você não o esperava?
— Eu… não sei.
— Bem, rapaz, eu não disse que foi favorável. Disse que foi conveniente. Na verdade, o relatório de Finge não foi favorável. Ele recomendou que você fosse removido de todas as funções relacionadas com Mudanças de Realidade. Sugeriu que não seria seguro conservar você em qualquer lugar, senão na Manutenção.
Harlan enrubesceu. — Quais foram suas razões para dizê-lo, senhor?
— Parece que você tem um passatempo, rapaz. Está interessado em História Primitiva, não?
Gesticulou expansivamente com o cigarro e Harlan, em sua raiva esquecendo de controlar a respiração, inalou uma nuvem de fumaça e tossiu desamparadamente.
Twissell considerou benignamente o acesso de tosse do jovem Observador e disse: — Não é assim?
— O Computador Finge não tinha o direito… — começou Harlan.
— Ora, ora. Contei-lhe o que havia no relatório porque disso depende o propósito para o qual mais preciso de você. Na verdade, o relatório era confidencial e você tem de esquecer que eu lhe disse o que continha. Permanentemente, rapaz.
— Mas o que há de errado no fato de eu estar interessado em História Primitiva?
— Finge acha que seu interesse nisso mostra um forte Desejo-de-Tempo. Entende-me, rapaz?
Harlan entendia. Era impossível deixar de assimilar dialeto psiquiátrico. Especialmente aquela frase. Supunha-se que todos os membros da Eternidade tinham uma forte inclinação, a mais forte por ser oficialmente suprimida em todas as suas manifestações, a voltar, não necessariamente ao seu próprio Tempo, mas ao menos a algum Tempo definido; a se tornar parte de um século, ao invés de continuar sendo um viajante através de todos eles. É claro que na maioria dos Eternos a inclinação permanecia escondida em segurança no inconsciente.
— Não creio que seja esse o caso — disse Harlan.
— Nem eu. Na realidade, acho que seu passatempo é interessante e valioso. Como eu disse, eis por que o quero. Quero que ensine a um Aprendiz que lhe trarei tudo que sabe e tudo que puder aprender sobre História Primitiva. Ao mesmo tempo, você também será meu Técnico pessoal. Começará dentro de alguns dias. Isso lhe é agradável?
Agradável? Ter permissão oficial para aprender tudo que puder sobre os dias anteriores à Eternidade? Estar pessoalmente associado com o mais notável de todos os Eternos? Mesmo o odioso fato da posição de Técnico parecia tolerável sob essas condições.
Sua cautela, contudo, não o abandonou por completo. — Se isso é necessário para o bem da Eternidade, senhor… — disse ele.
— Para o bem da Eternidade? — gritou o gnômico computador em súbita excitação. Atirou a ponta do cigarro com tal energia, que esta atingiu a parede mais distante e caiu em uma chuva de centelhas. — Preciso de você para a existência da Eternidade.