Era, olhando-se para trás, um período idílico que se seguia. Centenas de coisas aconteceram naquelas fisiosemanas, e todas se confundiram inextricavelmente na memória de Harlan, depois, fazendo o período parecer ter durado muito mais do que durara. A coisa idílica dele era, naturalmente, as horas que ele podia passar com Noys, e isso lançava ardor em tudo o mais.
Item Um: No século 482, ele empacotou lentamente os seus bens pessoais; suas roupas e filmes e, mais que tudo, seus queridos volumes delicadamente manuseados de revistas do Primitivo. Ele supervisionou ansiosamente o retorno deles à sua estação permanente no século 575.
Finge estava às suas costas quando o último deles foi levantado para dentro da caldeira de carga pelos homens da Manutenção.
Escolhendo as palavras com imperturbável trivialidade, Finge disse: — Deixando-nos, pelo que vejo.
Seu sorriso era largo, mas seus lábios estavam cuidadosamente fechados, de maneira que só o mais leve traço de dentes ficava à vista. Ele ficou com as mãos juntas nas costas e seu corpo atarracado balançou para a frente nas palmas dos pés.
Harlan não fitou seu superior. Murmurou um monótono: — Sim, senhor.
Finge disse: — Comunicarei ao Computador Sênior Twissell a respeito da maneira inteiramente satisfatória pela qual você desempenhou suas tarefas Observacionais no século 482.
Harlan não conseguiu forçar-se a proferir nem mesmo uma palavra mal-humorada de agradecimento. Permaneceu em silêncio.
Finge continuou, numa voz subitamente muito mais baixa: — Não comunicarei, por ora, sua recente tentativa de violência contra mim.
Embora seu sorriso permanecesse e seu olhar continuasse branco, havia em torno dele um ar de cruel satisfação.
Harlan levantou os olhos repentinamente e disse: — Como queira, Computador.
Item Dois: Ele se restabeleceu no século 575.
Sentiu-se feliz por ver aquele corpo pequeno, coroado por aquele rosto gnômico e enrugado. Estava até mesmo feliz por ver o cilindro branco e fumegante repousando entre dois dedos manchados e sendo levantado rapidamente em direção à boca de Twissell.
— Computador — disse Harlan.
Twissell, emergindo de seu escritório, fitou Harlan vagamente, por um momento, sem reconhecê-lo. Seu rosto estava perturbado e seus olhos piscavam de fadiga.
— Ah, Técnico Harlan — disse ele. — Terminou seu trabalho no século 482?
— Sim, senhor.
O comentário de Twissell foi estranho. Ele olhou seu relógio, que, como qualquer outro da Eternidade, estava ajustando para fisiotempo, dando o número dos dias, assim como o horário do dia, e disse: — Precisamente, meu rapaz, precisamente. Magnífico. Magnífico.
Harlan sentiu seu coração dar um pequeno pulo. Quando tinha visto Twissel pela última vez, não teria sido capaz de entender o sentido daquela observação. Agora sentia-se capaz. Twissell estava cansado, ou não teria chegado tão perto da essência das coisas, talvez. Ou o Computador poderia ter sentido ser a observação tão enigmática a ponto de sentir-se seguro, apesar de sua proximidade da essência.
Harlan disse, falando tão casualmente quanto pôde, para evitar que sua observação parecesse ter qualquer ligação com o que Twissell havia acabado de dizer: — Como está meu Aprendiz?
— Ótimo, ótimo — disse Twissell, com apenas metade da mente, aparentemente concentrada em suas palavras. Deu uma rápida tragada no diminuto tubo de tabaco, cedeu em um rápido aceno de despedida e retirou-se às pressas.
Item três: o Aprendiz.
Parecia mais velho. Pareceu haver nele um maior sentimento de maturidade, quando estendeu a mão e disse: — É um prazer vê-lo de volta, Harlan.
Ou seria que, onde antes Harlan estivera consciente de Cooper apenas como aluno, ele agora parecia mais do que um Aprendiz. Ele agora parecia um gigantesco instrumento nas mãos dos Eternos. Naturalmente, ele não podia deixar de ganhar uma nova estatura aos olhos de Harlan.
Harlan tentou não demonstrar isso. Eles estavam nos próprios aposentos de Harlan, e o Técnico deleitava-se com as superfícies de porcelana creme ao seu redor, satisfeito por estar fora do salpico adornado do século 482. Se tentava, como podia, associar o barroco extravagante do século 482 com Noys, somente conseguia associá-lo com Finge. A Noys ele associava um crepúsculo róseo e acetinado e, estranhamente, a leve austeridade dos Setores dos Séculos Obscuros.
Ele falou precipitadamente, quase como se estivesse ansioso por esconder seus pensamentos perigosos: — Bem, Cooper, o que estiveram eles fazendo com você, enquanto estive fora?
Cooper sorriu, alisou acanhadamente o seu bigode curvado com um dedo e disse: — Mais matemática. Sempre matemática.
— Sim? Coisas bem avançadas, agora, suponho.
— Bem avançadas.
— E que tal?
— Por enquanto, é tolerável. É bastante fácil, sabe. Eu gosto, mas agora eles estão realmente complicando.
Harlan concordou com um gesto e sentiu certa satisfação. — Matrizes de Campo Temporal e tudo aquilo?
Mas Cooper, com suas cores um pouco vivas, voltou-se para os volumes empilhados nas prateleiras e disse: — Voltemos aos Primitivos. Tenho algumas perguntas.
— Sobre o quê?
— Vida de cidade no século 23. Los Angeles, especialmente.
— Por que Los Angeles?
— É uma cidade interessante. Não acha?
— É, mas vamos atingi-la no século 21, então. Ela estava em seu apogeu, no século 21.
— Oh, experimentemos o século 23.
— Bem, por que não? — disse Harlan.
Seu rosto estava impassível, mas se a impassividade pudesse ter sido arrancada, teria havido uma rispidez em torno dele. Sua grande e intuitiva suposição era mais do que uma suposição. Tudo estava conferindo claramente.
Item Quatro: pesquisa. Dupla pesquisa.
Por si mesmo, a princípio. A cada dia, com olhos esquadrinhantes, ele examinava os relatórios da mesa de Twissell. Os relatórios diziam respeito às várias Mudanças de Realidade que estavam sendo planejadas ou sugeridas. As cópias chegavam para Twissell rotineiramente, desde que ele era um membro do Conselho Geral, e Harlan sabia que ele não acharia falta de uma. Procurou primeiro a Mudança vindoura no século 482. Em segundo lugar, procurou outras Mudanças, quaisquer outras Mudanças, que pudessem ter uma falha, uma imperfeição, alguma divergência da excelência máxima, que pudesse ser visível aos seus próprios olhos treinados e talentosos de Técnico.
No sentido mais estrito da palavra, os relatórios não eram para o seu estudo, mas Twissell raramente estava em seu escritório, naqueles dias, e ninguém mais estava apto a interferir com o Técnico pessoal de Twissell.
Esta era uma parte de sua pesquisa. A outra realizou-se na seção de biblioteca do Setor do século 575.
Pela primeira vez ele se aventurou fora daquelas porções da biblioteca que, comumente, monopolizavam sua atenção. No passado, ele havia freqüentado a seção de história Primitiva (bem pobre, na verdade, de maneira que a maioria de suas referências e materiais de informação tiveram de ser obtidas no distante passado do terceiro milênio, como era apenas natural, é claro). Para uma extensão ainda maior, ele havia rebuscado as prateleiras destinadas à Mudança de Realidade, sua teoria, sua técnica e história; uma excelente coleção (a melhor da Eternidade, fora a da própria seção Central, graças a Twissell), da qual ele se havia tornado dono total.
Agora ele passeava curiosamente entre as outras prateleiras de filmes. Pela primeira vez, Observou (no sentido de O maiúsculo) as prateleiras destinadas ao próprio século 575; suas geografias, que variavam pouco de Realidade para Realidade, suas histórias, que variavam mais, e suas sociologias, que variavam ainda mais. Estes não eram os livros ou relatórios sobre o século escritos por Eternos Observadores e Computadores (com esses ele estava familiarizado), mas pelos próprios Tempistas.
Havia trabalhos de literatura do século 575, e estes estimulavam lembranças de tremendos argumentos que ouvira a respeito dos valores das Mudanças alternadas. Seria esta obra prima alterada ou não? Em caso afirmativo, como? Como as Mudanças passadas afetavam as obras de arte?
Por falar nisso, poderia algum dia haver concordância geral a respeito de arte? Poderia ela ser algum dia reduzida a termos quantativos acessíveis à avaliação mecânica pelas máquinas de Computação?
Um Computador chamado August Sennor era o principal oponente de Twissell nesses assuntos. Harlan, movido pelas exaltadas denúncias do homem e seus pontos de vista, havia lido alguns dos documentos de Sennor e tinha-os achado surpreendentes.
Sennor perguntou publicamente e, para Harlan, desconcertantemente, se uma nova Realidade não poderia conter uma personalidade, dentro de si própria, análoga à de um homem que houvesse sido recolhido para a Eternidade em uma Realidade anterior. Ele analisou então a possibilidade de um Eterno encontrar seu análogo no Tempo, conhecendo-o ou não, e especulou os resultados em cada caso. (Isto chegou bem perto de um dos mais fortes temores da Eternidade, e Harlan tremeu e apressou-se inquietamente para terminar a discussão.) E, naturalmente, eles discutiram detalhadamente o destino da literatura e da arte em vários tipos e classificações de Mudanças de Realidade.
Mas Twissell não teria nenhuma das últimas. — Se os valores da arte não podem ser computados — gritaria ele para Harlan — então de que adianta discutir sobre isso?
E os pontos de vista de Twissell, Harlan sabia, eram compartilhados pela grande maioria do Conselho Geral.
Contudo, agora, Harlan estava diante das prateleiras designadas aos romances de Eric Linkollew, normalmente descrito como o escritor proeminente do século 575, e pensando. Contou quinze diferentes coleções de “Obras completas”, cada uma delas, indubitavelmente, retirada de uma Realidade diferente. Cada uma era de alguma forma diferente, ele tinha certeza. Uma coleção era notadamente menor do que todas as outras, por exemplo. Centenas de Sociólogos, imaginou ele, deviam ter escrito análises das diferenças entre as coleções, em termos do conhecimento sociológico de cada Realidade, e com isso obtiveram status.
Harlan passou para a ala da biblioteca que era destinada aos inventos e instrumentação dos vários anos do século 575. Muitos deles, Harlan sabia, haviam sido eliminados do Tempo e permaneceram intatos, como produto do talento humano, somente na Eternidade. O homem tinha de ser protegido de sua própria notabilíssima mente técnica.
Isso mais do que qualquer outra coisa. Nem um fisioano se passava sem que em algum lugar do Tempo a tecnologia nuclear se aproximasse demais do perigo e tivesse de ser afastada.
Ele retornou à biblioteca propriamente dita e às prateleiras de matemática e histórias matemáticas. Seus dedos deslizaram sobre títulos individuais e, após alguma reflexão, ele tirou meia dúzia das prateleiras e assinalou-os.
Item Cinco: Noys.
Esta era a parte do interlúdio realmente importante e toda a parte idílica.
Em suas horas livres, quando Cooper não estava, quando ele poderia comumente ter estado comendo em solidão, lendo em solidão, dormindo em solidão, esperando em solidão pelo próximo dia — ele ia para as caldeiras.
De todo o coração, ele estava grato pela posição de Técnico na sociedade. Ele estava agradecido, como nunca sonhara que pudesse estar, pela maneira pela qual era evitado.
Ninguém interrogava o seu direito de estar numa caldeira, nem se importava se ele a ajustava para cima ou para baixo. Nenhum olhar curioso o seguia, nenhuma mão desejosa se oferecia para ajudá-lo, nenhuma boca tagarela discutia isso com ele.
Ele podia ir onde e quando lhe agradasse.
— Você mudou, Andrew — disse Noys. — Céus, você mudou.
Ele a fitou e sorriu. — Em que aspecto, Noys?
— Você está sorrindo, não está? Este é um dos aspectos. Você nunca se olha no espelho e se vê sorrindo?
— Tenho medo. Eu diria: “Não posso ser assim feliz. Estou doente. Estou delirando. Estou confinado em um hospício, vivendo em sonhos e inconsciente disso.”
Noys inclinou-se para ele para beliscá-lo. — Sente alguma coisa?
Ele puxou a cabeça dela para si e sentiu-se banhado em seus cabelos escuros e suaves.
Quando eles se separaram, ela disse ansiosamente:
— Você mudou nesse ponto, também. Você ficou ótimo, nesse ponto.
— Tenho um bom professor — começou Harlan, e parou bruscamente, temendo que isso implicaria desprazer por pensar sobre as várias pessoas que poderiam ter sido as qualidades de tão bom professor.
Mas o sorriso dela não pareceu perturbado por tal pensamento. Eles haviam comido, e ela parecia delicada e ardentemente adorável nas roupas que ele havia trazido.
Ela seguiu seus olhos e tocou de leve a saia, tirando-a do leve abraço que esta dava em sua coxa. — Gostaria que você não fosse, Andrew — disse ela. — Eu realmente gostaria que você não fosse.
— Não há perigo — disse ele despreocupadamente.
— Há perigo. Agora não seja tolo. Posso passar com o que está aqui até… até que você faça arranjos.
— Por que não você deveria ter suas próprias roupas e adornos?
— Porque não pagam a pena de você ir à minha casa no Tempo e ser apanhado. E se fizerem a Mudança enquanto você estiver lá?
Ele saiu dessa com dificuldade. — Ela não me apanhará — e depois animado — além disso, meu gerador de pulso conserva-me em fisiotempo, de maneira que a Mudança não pode me afetar, vê?
Noys suspirou. — Não vejo. Não acho que algum dia entenderei isso tudo.
— Não há nada para entender.
E Harlan explicou e explicou com grande animação, e Noys ouviu, com olhos cintilantes que nunca revelavam de todo se ela estava totalmente interessada, ou divertida, ou, talvez, um pouco de ambos.
Era uma grande adição à vida de Harlan. Havia alguém com quem conversar, alguém com quem discutir sua vida, suas façanhas e pensamentos. Era como se ela fosse uma porção dele, mas uma porção suficientemente separada para exigir diálogo como comunicação, ao invés de pensamento. Ela era uma porção suficientemente separada para ser capaz de responder imprevisivelmente através de processos de pensamento independentes. Estranho, pensou Harlan, como se podia Observar um fenômeno social tal como o matrimônio e, contudo, desaperceber-se de uma verdade tão vital a respeito. Poderia ele ter previsto, por exemplo, que seriam os interlúdios apaixonados que ele depois associaria menos freqüentemente com o idílio?
Ela se aconchegou na curva de seu braço e disse:
— Como vai indo a sua matemática?
— Quer dar uma olhada num pouco dela? — disse Harlan.
— Não vá me dizer que você a leva por aí com você.
— Por que não? A viagem de caldeira leva tempo. Não se pode desperdiçá-lo, você sabe.
Ele se soltou, tirou do bolso um pequeno expositor, inseriu o filme e sorriu ternamente quando ela o colocou nos olhos.
Ela lhe devolveu o expositor com um chacoalhar de cabeça. — Nunca vi tantos rabiscos. Desejaria poder ler seu Intertemporal Padrão.
— Na verdade — disse Harlan — a maioria dos rabiscos que você mencionou não são Intertemporal, apenas anotações matemáticas.
— Você as entende, entretanto, não entende?
Harlan detestava fazer qualquer coisa que desiludisse a franca admiração dos olhos dela, mas foi forçado a dizer:
— Não tanto quanto eu gostaria. Contudo, estive assimilando matemática suficiente para conseguir o que quero. Não tenho de entender tudo para ser capaz de ver um buraco suficientemente grande na parede, por onde empurrar uma caldeira de carga.
Ele jogou o expositor para o ar, apanhou-o com um movimento rápido de mão e colocou-o numa mesinha.
Os olhos de Noys seguiram-no ansiosamente e uma súbita idéia acorreu a Harlan.
— Pai Tempo! — disse ele. — Você não pode ler Intertemporal naquilo.
— Não. É claro que não.
— Então, a biblioteca do Setor daqui é inútil para você. Nunca pensei nisso. Você deve ter seus próprios filmes do século 482.
— Não. Não quero nenhum — disse ela rapidamente.
— Você os terá — disse ele.
— Honestamente, não os quero. É tolice arriscar…
— Você os terá! — disse ele.
Pela última vez, ele ficou diante da fronteira imaterial que separava a Eternidade da casa de Noys no século 482. Ele pretendera que a vez anterior tivesse sido a última. A Mudança estava quase sobre eles, agora, um fato que ele não havia dito a Noys, pelo respeito decente que teria tido pelos sentimentos de qualquer pessoa, quanto mais daquelas que amava.
Contudo, não era uma decisão difícil de se tomar, esta viagem adicional. Em parte, era bravata, para brilhar diante de Noys, trazer-lhes os livros-filme, tirando-os da boca do leão; em parte, era um forte desejo (como era a frase Primitiva?) “tostar a barba do Rei da Espanha”, se é que podia referir-se assim ao Finge imberbe.
Então, também, teria uma vez mais a oportunidade de saborear a atmosfera misteriosamente atraente de uma casa condenada.
Havia sentido isso antes, quando entrara nela cuidadosamente durante o período de tolerância concedido pelos mapas espaço-temporais. Havia sentido isso quando perambulara pelos quartos, ajuntando roupas, pequenos objetos d'art, estranhos recipientes e instrumentos de penteadeiras de Noys.
Houve o silêncio sombrio de uma Realidade condenada que havia simplesmente passado para a ausência física de ruído. Não havia maneira de Harlan predizer sua análoga numa nova Realidade. Poderia ser uma pequena casa suburbana ou uma residência da rua de uma cidade. Ela poderia ser neutra, com indômita capoeira substituindo o terreno plano no qual ela se situava. Poderia, concebivelmente, não mudar muito. E (Harlan retocou vivamente o seu pensamento) poderia ser habitada pela análoga de Noys ou, naturalmente, poderia não ser.
Para Harlan, a casa já era um fantasma, um espectro prematuro que tinha começado suas assombrações antes que tivesse realmente morrido. E porque a casa, como era, significava muito para ele, achou que se ressentia por seu desaparecimento e lamentava-o.
Uma vez, somente, em cinco viagens, tinha havido qualquer som para quebrar o silêncio, durante suas rondas. Ele estava na copa, então, agradecido à tecnologia daquela Realidade e século por ter tornado os serventes antiquados e removido um problema. Tinha escolhido, lembrava-se ele, entre as latas de alimentos preparados e estava acabando de decidir que possuía o suficiente para uma viagem e que Noys ficaria certamente satisfeita por intercalar na dieta básica substanciosa, mas não diversificada, fornecida pelo Setor vazio, um pouco de seus próprios alimentos. Ele até riu alto ao pensar que há não muito tempo atrás tinha achado a dieta dela decadente.
Foi no meio da risada que ele ouviu um som distinto de palmas. Ele gelou!
O som tinha vindo de algum lugar atrás dele e, no momento do choque, durante o qual ele não tinha se movido, o perigo menor de ser aquilo um arrombador ocorreu-lhe em primeiro lugar, e o perigo maior de ser um Eterno investigando ocorreu-lhe em segundo.
Não poderia ser um arrombador. O período todo do mapa espaço-temporal, o período de tolerância e tudo, tinha sido meticulosamente afastado e separado de outros períodos similares do Tempo por causa da falta de fatores complicantes. Por outro lado, abstraindo Noys, ele havia introduzindo uma micromudança (talvez não tão micro assim).
Com o coração aos pulos, ele se forçou a voltar-se. Pareceu-lhe que a porta atrás de si acabara de fechar-se, movendo-se o último milímetro necessário para trazê-la ao nível da parede.
Ele reprimiu o impulso de abrir aquela porta, de rebuscar a casa. Em posse das guloseimas de Noys, ele retornou à Eternidade e esperou dois dias inteiros por repercussões, antes de aventurar-se na distante escala ascendente. Não houve nenhuma e, eventualmente, ele esqueceu o incidente.
Mas agora, enquanto ajustava os controles para entrar no Tempo esta última vez, pensou nele novamente. Ou talvez fosse a expectativa da Mudança, agora quase sobre ele, que o pilhou. Olhando para trás, no momento posterior, ele sentiu que fora um ou outro que fizera com que ele ajustasse os controles erradamente. Não pôde pensar em nenhuma outra explicação.
O mal ajustamento não manifestou efeitos imediatos. Visou a sala correta e Harlan entrou diretamente na biblioteca de Noys.
Ele mesmo havia-se tornado bem decadente, agora, para não ser completamente repelido pela obra que entrava no desígnio dos estojos de filme. A inscrição dos títulos misturava-se com a filigrana intricada, até que se tornou atraente, mas quase ilegível. Era um triunfo da estética sobre a utilidade.
Harlan tirou alguns livros das prateleiras, ao acaso, e ficou surpreso. O título de um deles era História Social e Econômica de Nossos Tempos.
Por qualquer razão, este era um lado de Noys ao qual ele havia prestado pouca atenção. Certamente, ela não era estúpida e, contudo, nunca lhe ocorrera que ela poderia estar interessada em coisas sérias. Ele teve o impulso de ver um pouco da História Social e Econômica, mas reprimiu-o. Ele a encontraria na biblioteca do Setor do século 482, se alguma vez a desejasse. Finge tinha, sem dúvida, saqueado as bibliotecas daquela Realidade para os registros da Eternidade, meses atrás.
Ele pôs aquele filme para um lado, examinou o resto rapidamente, selecionou a ficção e um pouco do que parecia literatura leve de não-ficção. Esses e dois visores de bolso, ele acondicionou cuidadosamente numa mochila.
Foi nesse ponto que, uma vez mais, ele ouviu um som na casa. Não havia engano, desta vez. Não foi um ruído curto de origem indeterminada. Foi uma risada, a risada de um homem. Ele não estava sozinho na casa.
Não estava consciente de que havia deixado cair a mochila. Por um vertiginoso segundo, pôde pensar somente que estava encurralado!