— Por quê? Por quê?
Twissell olhou desamparadamente do medidor para o Técnico, seus olhos refletindo a frustração embaraçada de sua voz.
Harlan levantou a cabeça. Tinha apenas uma palavra a dizer. — Noys!
— A mulher que você trouxe para a Eternidade? — perguntou Twissell.
Harlan sorriu com amargura e nada disse.
— O que tem ela a ver com isso? — perguntou Twissell.
— Grande Tempo! Não o entendo, rapaz.
— O que há para entender? — Harlan ardeu de tristeza.
— Por que o senhor finge ignorância? Tive uma mulher. Fui feliz e ela também. Não fizemos mal a ninguém. Ela não existia na nova Realidade. Que diferença isso teria feito para alguém?
Twissell tentou em vão interrompê-lo.
Harlan gritou. — Mas há normas na Eternidade, não há? Eu as conheço a todas. Ligações exigem permissão; ligações exigem computações; ligações exigem status; ligações são coisas complicadas. O que o senhor estava planejando para Noys quando tudo isso estivesse terminado? Um assento num foguete por colidir? Ou uma posição mais confortável como dama da sociedade para Computadores dignos? O senhor não realizará seus planos, agora, creio.
Ele terminou numa espécie de desespero, e Twissell dirigiu-se rapidamente à Comunitela. Sua função de transmissor havia sido obviamente restabelecida.
O Computador gritou nela até que conseguiu uma resposta. Então disse: — É Twissell. Não permitam a entrada de ninguém aqui. Ninguém, ninguém. Entendeu?… Então cuide disso. Isso se refere aos membros do Conselho Geral. Refere-se a eles, particularmente.
Ele se voltou novamente para Harlan, dizendo distraidamente: — Eles farão isso porque sou velho e membro sênior do Conselho, e porque me acham excêntrico e esquisito. Eles concordam comigo porque sou excêntrico e esquisito.
Por um momento ele caiu num silêncio ruminativo. Então disse: — Você me acha esquisito? — e seu rosto pareceu prontamente a Harlan o de um macaco enrugado.
Grande Tempo, pensou Harlan, o homem está louco. O choque deixou-o louco.
Deu um passo para trás, automaticamente horrorizado com o fato de estar preso com um louco. Então, acalmou-se. O homem, por mais louco que fosse, estava fraco, e mesmo a loucura terminaria em breve.
Em breve? Por que não imediatamente? O que retardava o fim da Eternidade?
Twissell disse (não tinha nenhum cigarro nos dedos; sua mão não fez nenhum movimento para tirar um), numa voz bem insinuante: — Você não me respondeu. Você me acha esquisito? Suponho que sim. Esquisito demais para se conversar. Se me achasse amigo, ao invés de um velho excêntrico, extravagante e imprevizível, você teria me falado abertamente de suas dúvidas. Não teria assumido o modo de agir que assumiu.
Harlan franziu a testa. O homem achava que Harlan estava louco! Era isso!
— Meu modo de agir foi o mais correto — disse ele irritadamente. — Estou completamente são.
— Eu lhe disse que a garota não estava em perigo, você sabe — disse Twissell.
— Fui um idiota em acreditar nisso, mesmo por um instante. Fui um idiota em acreditar que o Conselho seria justo com um Técnico.
— Quem lhe disse que o Conselho sabia algo sobre isso?
— Finge sabia e mandou ao Conselho um relatório a respeito.
— E como você sabe disso?
— Arranquei de Finge à ponta de um chicote neurônico. A ponta ativa de um chicote elimina a comparação de status.
— O mesmo chicote que fez isto? — Twissell apontou para o medidor com a bolha de metal fundido e retorcido pousada sobre o mostrador.
— Sim.
— Um chicote ativo — então, com voz mais alta — sabe por que Finge levou isto ao Conselho, ao invés de cuidar pessoalmente do assunto?
— Porque me odiava e queria ter certeza de que eu perderia minha posição. Ele queria Noys.
— Você é ingênuo! — disse Twissell. — Se ele quisesse a garota, poderia ter arranjado uma ligação facilmente. Um Técnico não teria atrapalhado. O homem odiava a mim, rapaz. (Nada de cigarro, ainda. Ele parecia esquisito, sem um deles, e o dedo manchado que levou ao peito quando pronunciou o último pronome pareceu quase indecentemente nu.)
— O senhor?
— Há coisas, rapaz, tais como política de Conselho. Nem todo Computador é nomeado para o Conselho. Finge queria uma nomeação. Finge é ambicioso e desejava isso ardentemente.
Evitei isso porque eu o achava emocionalmente instável. Tempo, nunca avaliei bem quanta razão eu tinha… Olhe, rapaz, ele sabia que você era um protegido meu. Ele me viu tirar você do serviço de Observador e torná-lo um Técnico superior. Viu você constantemente trabalhando para mim. Que maneira melhor para vingar-se de mim e destruir minha influência? Se conseguisse provar que meu Técnico preferido era culpado de um crime terrível contra a Eternidade, isso refletiria em mim. Isso poderia forçar minha demissão do Conselho Geral, e quem você supõe que seria então o sucesso lógico?
Sua mão vazia moveu-se para a boca, e como nada aconteceu, ele olhou inexpressivamente para o espaço entre o dedo e o polegar.
Ele não está tão calmo como tenta aparentar — pensou Harlan. Não pode estar. Mas por que fala todos esses absurdos agora! com a Eternidade terminando?
Então, em agonia: Mas por que ela não termina, então? Agora!
— Quando permiti que você procurasse Finge, bem recentemente — disse Twissell — quase suspeitei de perigo. Mas as memórias de Mallansohn diziam que você estava fora no último mês e não se oferecia nenhuma outra razão natural para a sua ausência. Felizmente, Finge jogou mal a sua cartada.
— Em que aspecto? — perguntou Harlan, enfastiado. Ele não se importava, realmente, mas Twissell falava cada vez mais, e era mais fácil tomar parte do que tentar expulsar o som de seus ouvidos.
Twissell disse: — Finge etiquetou seu relatório: “A respeito da conduta antiprofissional do Técnico Andrew Harlan”. Ele estava sendo o Eterno conciencioso, você vê, sendo frio, imparcial, calmo. Estava deixando que o Conselho se enfurecesse e se atirasse contra mim. Infelizmente para si próprio, ele não sabia sua real importância.
Não sabia que qualquer relatório referente a você seria instantaneamente encaminhado a mim, a menos que a importância suprema deste fosse tornada perfeitamente clara bem diante das coisas.
— O senhor nunca me falou disso?
— Como poderia? Temia fazer qualquer coisa que o perturbasse com a crise do projeto à mão. Dei-lhe toda a oportunidade de trazer a mim o seu problema.
Toda a oportunidade? A boca de Harlan contorceu-se em descrença, mas então ele se lembrou do rosto cansado de Twissell na Comunitela, perguntando-lhe se nada tinha a dizer. Isto fora ontem. Apenas ontem.
Harlan sacudiu a cabeça, mas então desviou o rosto.
— Compreendi de imediato — disse Twissell amavelmente — que ele o havia incitado à sua… ação imprudente.
Harlan levantou os olhos. — O senhor sabe disso?
— Isto o surpreende? Eu sabia que Finge estava atrás de mim. Soube disso por um bom tempo. Sou um velho, rapaz. Sei destas coisas. Mas há maneiras pelas quais computadores suspeitos podem ser examinados. Há alguns inventos protetores, separados do Tempo, que não são encontrados nos museus. Há alguns que são conhecidos somente pelo Conselho.
Harlan pensou amargamente na barreira do tempo do século 100.000.
— Do relatório e do que eu sabia independentemente, foi fácil deduzir o que devia ter acontecido.
— Suponho que Finge suspeitava que o senhor estivesse espionando? — perguntou Harlan subitamente.
— Pode ter suspeitado. Eu não ficaria surpreso.
Harlan lembrou-se de seus primeiros dias com Finge, quando Twissell demonstrou pela primeira vez o seu interesse anormal pelo jovem Observador. Finge nada sabia do pró jeto de Mallansohn, e estivera interessado na interferência de Twissell. “Já conhece o Computador Sênior Twissell?” perguntara ele uma vez e, recordando, Harlan conseguiu lembrar-se do tom exato de viva inquietação na voz do homem. Desde então, Finge devia ter suspeitado que Harlan fosse o espião de Twissell. Sua inimizade e ódio deviam ter começado daí.
Twissell estava falando. — Portanto, se você tivesse me procurado…
— Procurado o senhor? — gritou Harlan. — E o Conselho?
— Do Conselho todo, somente eu sei.
— O senhor nunca disse a eles? — Harlan tentou fazerse zombeteiro.
— Nunca o fiz.
Harlan sentiu-se febril. Suas roupas estavam-no sufocando. Este pesadelo iria continuar para sempre? Conversa despropositada, ridícula Para quê? Por quê?
Por que a Eternidade não terminava? Por que a paz total da não-Eternidade não os alcançava? Grande Tempo, o que estava errado?
— Você não acredita em mim? — perguntou Twissell.
— Por que deveria? — gritou Harlan. — Eles vieram para me observar, não vieram? No almoço? Por que teriam eles feito isso se não soubessem do relatório? Vieram para observar o estranho fenômeno que havia infrigido as leis da Eternidade, mas que não poderia ser tocado por mais um dia. Um dia mais e então o projeto estaria concluído. Vieram para regozijar-se com o amanhã que estavam esperando.
— Meu rapaz, não houve nada disso. Eles queriam vê-lo apenas porque são humanos. Os homens do Conselho são humanos, também. Eles não poderiam presenciar a viagem final da caldeira porque a autobiografia de Mallansohn não os colocou na cena. Eles não poderiam entrevistar-se com Cooper, desde que a autobiografia não mencionava isso, também. Contudo, eles queriam alguma coisa. Pai Tempo, rapaz, você não vê que eles queriam alguma coisa? Você era o mais próximo a que eles poderiam chegar, portanto aproximaram-se de você e observaram-no.
— Não acredito no senhor.
— É a verdade.
— É? — disse Harlan. — E enquanto comíamos, o Sr. Sennor falou de um homem encontrando a si mesmo. Ele obviamente sabia de minhas viagens ilegais ao século 482 e de meu quase encontro comigo mesmo. Este foi o seu modo de me especular, divertindo-se inteligentemente às minhas custas.
— Sennor? — disse Twissell. — Você se preocupou com Sennor? Você sabe a pessoa patética que ele é? Seu século natal é o 803, uma das poucas culturas em que o corpo humano é deliberadamente desfigurado para satisfazer as exigências estéticas do tempo. Apresenta-se sem cabelos, na adolescência.
— Sabe o que isso significa na continuidade do homem? Certamente, sim. Uma desfiguração separa os homens de seus ancestrais e descendentes. Os homens do século 803 são riscos inúteis, como Eternos; são muito diferentes do resto de nós. Poucos são escolhidos. Sennor é o único de seu século que já se sentou no Conselho.
— Não vê como isso o afeta? Certamente você entende o que significa a insegurança. Já lhe ocorreu que um homem do Conselho poderia ser inseguro? Sennor tem de ouvir discussões envolvendo a erradicação de sua Realidade pelas mesmas características que o torna tão conspícuo entre nós. E erradicá-lo deixá-lo-ia o único desfigurado como ele é entre bem poucos de toda a geração. Algum dia isso acontecerá.
— Ele encontra refúgio na filosofia. Ele faz mais do que compensar, ao tomar a liderança nas conversas, expondo deliberadamente pontos de vista impopulares e não aceitos. Seu paradoxo do homem que encontra a si mesmo é um caso em questão. Eu lhe disse que ele o usou para predizer o desastre para o projeto, e era a nós, os homens do Conselho, que ele estava tentando aborrecer, e não a você. Aquilo nada tinha a ver com você. Nada!
Twissell excitara-se. Na longa emoção de suas palavras, ele pareceu esquecer onde estava e a crise que se lhes apresentava, pois transformou-se novamente no gnomo de gestos rápidos e movimentos inquietos que Harlan conhecia tão bem.
Tirou calmamente um cigarro do bolso de sua manga e quase o acendeu.
Mas então parou, voltou-se e olhou novamente para Harlan, recordando-se, através de todas as suas próprias palavras, do que Harlan havia dito por último, como se até aquele momento não o tivesse ouvido adequadamente.
— Que quer dizer? — disse Twissell. — Você quase se encontrou consigo mesmo?
Harlan disse-lhe rapidamente e continuou. — O senhor não sabia disso?
— Não.
Houve alguns momentos de silêncio que foram tão bemvindos para o febril Harlan quanto a água o teria sido.
— É isso? — disse Twissell. — E daí se você tivesse encontrado consigo mesmo?
— Não me encontrei.
Twissell ignorou a negativa. — Sempre há lugar para variação ao acaso. com um número infinito de Realidades não pode haver coisas tais como determinismo. Suponha que na Realidade de Mallansohn, na volta anterior do círculo…
— O círculo continua para sempre? — perguntou Harlan com a admiração que ainda conseguiu encontrar em si.
— Você acha que só duas vezes? Acha que o dois é um número mágico? É uma questão de voltas infinitas do círculo em fisiotempo finito. Exatamente como você pode fazer uma caneta girar e girar infinitamente em torno da circunferência de um círculo e contudo abranger uma área finita. Em voltas anteriores do círculo, você não se havia encontrado consigo mesmo. Desta vez, a incerteza estatística das coisas tornou-lhe possível encontrar-se consigo mesmo. A Realidade teve de ser mudada para evitar o encontro e na nova Realidade você não mandou Cooper de volta ao século 24, mas…
— De que o senhor está falando? — gritou Harlan. — Onde o senhor quer chegar? Está tudo feito. Tudo. Deixe-me só, agora! Deixe-me só!
— Quero que saiba que agiu errado. Quero que compreenda que você fez a coisa errada.
— Não fiz. E mesmo que tenha feito, está feito!
— Mas não está feito. Ouça apenas um pouquinho mais — Twissell o estava adulando, quase sussurrando com agoniada gentileza. — Você terá sua garota. Eu prometi isso.
Eu ainda prometo. Ela não será molestada. Você não será molestado. Eu lhe prometo isso. É a minha garantia pessoal.
Harlan fitou-o de olhos arregalados. — Mas é tarde demais. De que adianta?
— Não é tarde demais. As coisas não são irreparáveis. com sua ajuda, podemos ter sucesso ainda. Eu preciso de sua ajuda. Você deve compreender que agiu errado. Estou tentando explicar-lhe isto. Você deve querer desfazer o que fez.
Harlan lambeu os lábios secos com uma língua também seca e pensou: ele está louco. Sua mente não consegue aceitar a verdade — ou será que o Conselho sabe mais?
Saberia? Saberia? Poderia ele inverter o veredicto das Mudanças? Poderiam eles deter o Tempo ou invertê-lo?
— O senhor prendeu-me na sala de controle, deixou-me indefeso até que tudo estivesse terminado, pensou o senhor.
— Você disse que estava com medo de que algo pudesse sair errado com você; que você pudesse não ser capaz de levar adiante a sua parte.
— Isto, por intenção, era uma ameaça.
— Eu a interpretei literalmente. Desculpe-me. Eu preciso de sua ajuda.
Chegou a isso. A ajuda de Harlan era necessária. Estaria ele louco? Estaria Harlan louco? A loucura teria significado? Ou qualquer coisa mais, quanto a isso?
O Conselho precisava de sua ajuda. Por essa ajuda eles lhe prometeriam qualquer coisa. Noys. A posição de computador. O que eles não lhe prometeriam? E quando tivesse terminado com sua ajuda, o que receberia? Ele não seria logrado uma segunda vez.
— Não! — disse ele.
— Você terá Noys.
— Quer dizer que o Conselho quererá infringir as leis da Eternidade uma vez que o perigo tenha passado? Não creio.
Como pode passar o perigo? — perguntou uma parte sã de sua mente. Sobre o que era tudo isso?
— O Conselho nunca saberá.
— O senhor quereria infringir as leis? O senhor é o Eterno ideal. Passado o perigo, o senhor obedeceria as leis. O senhor não poderia agir de modo contrário.
Twissell enrubesceu as bolhas no alto de cada face. Do velho rosto, toda a perspicácia e vigor escoaram-se. Restou apenas uma estranha tristeza.
— Manterei minha palavra a você e transgredirei a lei — disse Twissell — por uma razão que você não imagina. Não sei quanto tempo nos resta antes que a Eternidade desapareça. Poderiam ser horas; poderiam ser meses. Mas gastei tanto tempo na esperança de trazer você ao raciocínio, que gastarei um pouco mais. Quer me ouvir?
Por favor?
Harlan hesitou. Então, por convicção da inutilidade de tudo, tanto quanto por qualquer coisa mais, disse cansadamente: — Está bem.
Tenho ouvido dizer (começou Twissell) que eu já nasci velho, que meus dentes nasceram num Microcomputaplex, que guardo meu computador portátil num bolso especial do pijama, quando durmo, que meu cérebro é composto de pequenos suprimentos de energia em infinitas conexões paralelas e que cada corpúsculo de meu sangue é uma mapa espaço-temporal microscópico flutuando em óleo de computador.
Todas estas estórias chegam a mim eventualmente, e creio que devo estar um pouco orgulhoso delas. Pode ser que eu continue acreditando um pouco nelas. É uma tolice, partindo de um velho, mas isso torna a vida um pouco mais fácil.
Isso o surpreende? O fato de eu ter de achar um modo de tornar a vida mais fácil? Eu, Computador Sênior Twissell, membro sênior do Conselho Geral?
Talvez seja por isso que fumo. Já pensou nisso? Tenho de ter uma razão, sabe. A Eternidade é essencialmente uma sociedade de não-fumantes, e a maioria do Tempo é, também. Pensei nisso diversas vezes. Às vezes acho que isso é uma rebelião contra a Eternidade. Algo para substituir uma rebelião maior que falhou,…
Não, está tudo bem. Uma lágrima ou duas não me farão mal, e não é fingimento, creia-me. Apenas não pensei nisso por muito tempo. Não é agradável.
Uma mulher está envolvida, naturalmente, como no seu caso. Não é coincidência. É quase inevitável, se você parar para pensar. Um Eterno, que deve trocar as satisfações normais da vida familiar por um punhado de perfurações em folha, está propenso a influências. Esta é uma das razões por que a Eternidade deve tomar as precauções que toma. E, aparentemente, é por isso também que os Eternos são tão ingênuos ao burlar as precauções, de vez em quando.
Eu me lembro de minha mulher. É tolice minha fazê-lo, talvez. Não consigo lembrar de nada mais sobre o fisiotempo. Meus velhos colegas são apenas nomes nos livros de registro; as Mudanças que supervisei — todas menos uma — são apenas itens nas combinações de memória do Computaplex. Lembro-me dela muito bem, no entanto. Talvez você possa entender isso.
Eu tinha, há muito tempo, um pedido de ligação nos livros; e depois que alcancei a posição de Computador Júnior, ela me foi cedida. Era uma garota deste mesmo século, o 575. Não a vi antes da permissão, é claro. Ela era inteligente e amável. Não bonita ou mesmo atraente; mas então, mesmo quando jovem (sim, eu fui jovem; não ligue para os mitos), não fui notável por minha própria aparência. Concordávamos bem um com o outro em temperamento, ela e eu, e se eu fosse um Tempista, teria ficado orgulhoso por tê-la como esposa. Eu disse isso a ela várias vezes. Creio que isso a agradava. Sei que esta era a verdade. Nem todos os Eternos, que devem receber suas mulheres quando e como as Computações permitem, são tão afortunados!
Naquela Realidade específica, ela iria morrer jovem, é claro, e nenhuma de suas análogas estava disponível para ligação. A princípio, recebi isso filosoficamente.
Afinal de contas, era o seu curto tempo de vida que possibilitava a ela viver comigo sem afetar a Realidade de modo nocivo.
Estou envergonhado, agora, pelo fato de ter ficado satisfeito por ela ter pouco tempo de vida. Isto é, apenas a princípio. Apenas a princípio.
Visitei-a tantas vezes quanto permitiu o mapa espaçotemporal. Espremi delegada minuto, renunciando a refeições e sono, quando necessário, livrando-me imprudentemente de minha carga de trabalho sempre que podia. A amabilidade dela ultrapassou as minhas esperanças, e eu estava amando. Exponho isso claramente. Minha experiência de amor é muito pequena, e entendê-la através de Observação no Tempo é uma coisa duvidosa. Até onde ia minha compreensão, contudo, eu estava amando.
O que começou como satisfação de uma necessidade física e emocional, tornou-se um bocado mais. A sua morte iminente deixou de ser uma conveniência e tornou-se uma calamidade. Submeti-a a Esboço de Vida. Não fui aos departamentos competentes, contudo. Fi-lo por mim mesmo. Isso o surpreende, imagino. Esta foi uma má conduta, mas não foi nada, comparada com os crimes que cometi depois.
Sim, eu, Laban Twissell. Computador Sênior Twissell.
Por três vezes isoladas, um ponto no fisiotempo veio e passou, durante o qual alguma ação simples de minha parte poderia ter alterado a Realidade pessoal dela. Naturalmente, eu sabia que tal Mudança, por motivos pessoais, não poderia ser autorizada pelo Conselho. Todavia, comecei a sentir-me pessoalmente responsável pela morte dela.
Isso foi parte da minha motivação, mais tarde.
Ela ficou grávida. Eu nada fiz, embora devesse. Eu havia feito seu Esboço de Vida, modificado para incluir sua relação comigo, e sabia que a gravidez era uma conseqüência de alta probabilidade. Como você pode ou não saber, os Eternos engravidam, ocasionalmente, as mulheres Tempistas, apesar das precauções. Isso não é incomum. Todavia, desde que os Eternos não podem ter filhos, tais gestações, quando ocorrem, são eliminadas sem dor e com segurança. Há diversos métodos.
Meu Esboço de Vida tinha indicado que ela morreria antes do parto, portanto não tomei precauções. Ela estava feliz em sua gravidez e eu queria que ela continuasse assim Então apenas observei e tentei sorrir quando ela me disse que podia sentir a vida movendo-se dentro dela.
Mas então algo aconteceu. Ela deu à luz prematuramente…
Não me admiro por você olhar desta forma. Eu tive uma criança. Um filho verdadeiramente meu. Você não encontrará outro Eterno, talvez, que possa dizer isso. Isso foi mais do que uma má conduta. Foi um crime grave, mas isso ainda não era nada.
Eu não o tinha esperado. O nascimento e seus problemas eram um aspecto da vida com o qual eu havia tido pouca experiência.
Voltei em pânico ao Esboço de Vida e encontrei a criança viva, num desvio alternado para uma pequena bifurcação de baixa probabilidade que eu havia desprezado. Um Esboçador de Vida profissional não a teria deixado passar, e eu havia agido mal por confiar a tal ponto em minhas próprias habilidades.
Mas o que poderia eu fazer, então?
Eu não podia matar a criança. A mãe tinha duas semanas de vida. Deixe o filho viver com ela, então, pensei eu. Duas semanas de felicidade não é um presente exorbitante para se pedir. A mãe morreu, como era previsto, e da maneira prevista. Sentei-me no quarto dela, durante todo o tempo permitido pelo mapa espaço-temporal, sofrendo de uma tristeza agudíssima, pelo fato de ter esperado pela morte, em pleno conhecimento, por mais de um ano. Em meus braços, segurei o filho meu e dela.
— Sim, eu o deixei viver. Por que você grita assim? Você vai me condenar?
Você não pode saber o que significa segurar nos braços um pequeno átomo de sua própria vida. Posso ter um computaplex no lugar de nervos e mapas espaço-temporais no lugar de corrente sangüínea, mas eu sei.
Eu o deixei viver. Cometi esse crime, também. Coloquei-o a cargo de uma organização apropriada e voltei, quando pude (em estrita seqüência temporal, mantida até mesmo com fisiotempo), para fazer pagamentos necessários e acompanhar o crescimento do garoto.
Dois anos passaram-se dessa forma. Periodicamente, eu examinava o Esboço de Vida do garoto (eu costumava quebrar esta regra particular, entrementes) e ficava satisfeito por descobrir que não havia sinais de efeitos nocivos na Realidade então corrente, a níveis de probabilidade acima de 0,0001. O garoto aprendeu a andar e a pronunciar algumas palavras. Não lhe ensinaram a chamar-me de “papai”. Sejam quais forem as especulações que os Tempistas da instituição infantil possam ter feito a meu respeito, não sei. Receberam seu dinheiro e nada disseram.
Então, quando dois anos se haviam passado, as necessidades de uma Mudança que incluía o século 575 numa parte foram expostas ao Conselho Geral. Eu, tendo sido posteriormente promovido a Computador-Assistente, fui encarregado. Essa foi a primeira Mudança deixada para minha supervisão exclusiva.
Fiquei orgulhoso, é claro, mas também apreensivo. Meu filho era um intruso na Realidade. Mal se podia esperar que ele tivesse análogos. Pensar em sua passagem à não-existência entristeceu-me.
Trabalhei na Mudança e creio mesmo assim que fiz um trabalho perfeito. O meu primeiro. Mas sucumbi diante de uma tentação. Sucumbi ainda mais facilmente porque ela estava se tornando uma velha estória para mim, então. Eu era um criminoso calejado, um habitue do crime. Elaborei um novo Esboço de Vida para meu filho sob a nova Realidade, certo do que iria encontrar.
Mas então, durante vinte e quatro horas, sem comer ou dormir, sentei-me à mesa de meu escritório, lutando com o Esboço de Vida terminado, torturando-me num esforço desesperador para encontrar um erro, Não havia erros.
No dia seguinte, de posse de minha solução para a Mudança, elaborei um mapa espaço-temporal usando métodos rústicos de aproximação (afinal, a Realidade não iria durar muito tempo), e entrei no Tempo num ponto a mais de trinta anos acima do nascimento de meu filho.
Ele estava com trinta e quatro anos, a mesma idade que eu tinha. Apresentei-me como um parente distante, usando do meu conhecimento da família de sua mãe. Ele não sabia de seu pai, não se lembrava de minhas visitas durante sua infância.
Ele era um engenheiro aeronáutico. O século 575 era perito em meia dúzia de variedades de viagem aérea (como ainda o é na Realidade corrente), e meu filho era um membro feliz e bem sucedido de sua sociedade.
Era casado com uma garota ardentemente enamorada, mas não teria filhos. Nem a garota teria de forma alguma se casado na Realidade em que meu filho não tinha existido. Eu soubera disso desde o começo. Soubera que não haveria efeitos nocivos na Realidade. Caso contrário eu não teria tido ânimo para deixar o garoto viver. Não estou completamente abandonado.
Passei o dia com meu filho. Falei-lhe formalmente, sorri polidamente, retirei-me calmamente quando assim o exigiu o mapa espaço-temporal. Mas por baixo de tudo isso, observei e assimilei cada ação, completando-me com ele e tentando viver pelo menos um dia numa Realidade que no dia seguinte (por fisiotempo) não mais teria existido.
Quanto desejei visitar minha esposa uma última vez, também, durante aquela porção de Tempo em que ela viveu, mas eu havia usado cada segundo que me tinha sido disponível.
Não ousei nem mesmo entrar no Tempo para vê-la, sem ser percebido.
Retornei à Eternidade e passei uma última noite horrível, lutando inutilmente contra o que tinha de ser. Na manhã seguinte, entreguei minhas computações juntamente com minhas recomendações para a Mudança.
A voz de Twissell tinha-se reduzido a um sussurro e depois cessou. Ele sentou-se ali com os ombros curvados, os olhos fixos no chão por entre os joelhos, os dedos trançando-se e entrando e saindo de um aperto intricado.
Harlan, esperando em vão cor uma outra frase do velho, pigarreou. Achou-se apiedando-se do homem, apiedando-se dele apesar dos vários crimes que tinha cometido.
— E isso é tudo? — perguntou.
— Não — murmurou Twissell — o pior… o pior… é que existiu um análogo de meu filho. Na nova Realidade, ele existiu… como um paraplégico, desde a idade de quatro anos. Quarenta e dois anos na cama, sob circunstâncias que me impediram de conseguir que as técnicas de regeneração de nervos dos séculos 900 fossem aplicadas ao seu caso, ou mesmo de conseguir que sua vida fosse tirada sem dor.
— A nova Realidade ainda existe. Meu filho ainda está lá, na porção apropriada do século. Eu fiz isso para ele. Foram minha mente e meu Computaplex que descobriram esta nova vida para ele, e minha palavra que ordenou a Mudança. Cometi uma série de crimes para o bem dele e de sua mãe, mas este último feito, embora estritamente em acordo com meu juramento de Eterno, sempre me pareceu ser o maior crime, o crime.
Nada havia a dizer, e Harlan nada disse.
— Mas você vê agora por que entendo seu caso — disse Twissell — por que quero deixar que você tenha sua garota. Isso não faria mal à Eternidade e, de certa forma, seria uma expiação para meu crime.
E Harlan acreditou. Tudo numa mudança de idéia, ele acreditou!
Harlan ajoelhou-se e levantou às têmporas os punhos cerrados. Inclinou a cabeça e balançou lentamente quando o selvagem desespero o atingiu.
Ele havia jogado fora a Eternidade e perdido Noys — enquanto que, se não fosse a sua destruição de Sansão, poderia ter salvo um e conservado o outro.