A Pilar até ao último instante
A Rav-Güde Mertin
A Pepa Sánchela-Manjavacas
O homem que acabou de entrar na loja para alugar uma cassete vídeo tem no seu bilhete de identidade um nome nada comum, de um sabor clássico que o tempo veio a tornar rançoso, nada menos que Tertuliano Máximo Afonso. Ao Máximo e ao Afonso, de aplicação mais corrente, ainda consegue admiti-]os, dependendo, porém, da disposição de espírito em que se encontre, mas o Tertuliano pesa-lhe como uma lousa desde o primeiro dia em que percebeu que o malfadado nome dava para ser pronunciado com uma ironia que podia ser ofensiva. É professor de História numa escola de ensino secundário, e o vídeo tinha-lhe sido sugerido por um colega de trabalho que no entanto não se esquecera de prevenir, Não é nenhuma obra-prima do cinema, mas poderá entretê-lo durante hora e meia. Na verdade, Tertuliano Máximo Afonso anda muito necessitado de estímulos que o distraiam, vive só e aborrece-se, ou, para falar com a exactidão clínica que a actualidade requer, rendeu-se à temporal fraqueza de ânimo ordinariamente conhecida por depressão. Para se ter uma ideia clara do seu caso, basta dizer que esteve casado e não se lembra do que o levou ao matrimónio, divorciou-se e agora não quer nem lembrar-se dos motivos por que se separou. Em troca não ficaram da mal sucedida união filhos que andassem agora a exigir-lhe grátis o mundo numa bandeja de prata, mas à doce História, a séria e educativa cadeira de História para cujo ensino o chamaram e que poderia ser seu embalador refúgio, vê-a ele desde há muito tempo como uma fadiga sem sentido e um começo sem fim. Para temperamentos nostálgicos, em geral quebradiços, pouco flexíveis, viver sozinho é um duríssimo castigo, mas uma tal situação, reconheça-se, ainda que penosa, só muito de longe em longe desemboca em drama convulsivo, daqueles de arrepiar as carnes e o cabelo. O que por aí mais se vê, a ponto de já não causar surpresa, é pessoas a sofrerem com paciência o miudinho escrutínio da solidão, como foram no passado recente exemplos públicos, ainda que não especialmente notórios, e até, em dois casos, de afortunado desenlace, aquele pintor de retratos de quem nunca chegámos a conhecer mais que a inicial do nome, aquele médico de clínica geral que voltou do exílio para morrer nos braços da pátria amada, aquele revisor de imprensa que expulsou uma verdade para plantar no seu lugar uma mentira, aquele funcionário subalterno do registo civil que fazia desaparecer certidões de óbito, todos eles, por casualidade ou coincidência, formando parte do sexo masculino, mas nenhum que tivesse a desgraça de chamar-se Tertuliano, e isso terá decerto representado para eles uma impagável vantagem no que toca às relações com os próximos. O empregado da loja, que já retirara da estante a cassete pedida, inscreveu no registo de saída o título do filme e a data em que estamos, e logo indicou ao alugador a linha onde teria de assinar. Traçada após um instante de hesitação, a assinatura deixou ver apenas as duas últimas palavras, Máximo Afonso, sem o Tertuliano, mas, como quem havia decidido esclarecer por adiantamento um facto que poderia vir a ser motivo de controvérsia, o cliente, ao mesmo tempo que as escrevia, murmurou, Assim é mais rápido. Não lhe serviu de muito ter-se sangrado em saúde, porquanto o empregado, ao mesmo tempo que ia transpondo para uma ficha os dados do bilhete de identidade, pronunciou em voz alta o infeliz e cediço nome, ainda por cima em um tom que até mesmo uma criatura inocente reconheceria como intencional. Ninguém, cremos, por mais limpa de obstáculos que a sua vida tenha sido, se atreverá a dizer que nunca lhe aconteceu um vexame destes. Embora mais cedo ou mais tarde nos surja pela frente, surge sempre, um desses espíritos fortes a quem as fraquezas humanas, sobretudo as mais superiormente delicadas, provocam gargalhadas de troça, a verdade é que certos sons inarticulados que às vezes, sem o querermos, nos saem da boca, não são outra coisa que gemidos irreprimíveis de uma dor antiga, como uma cicatriz que de repente se tivesse feito lembrar. Enquanto guarda a cassete na sua fatigada pasta de professor, Tertuliano Máximo Afonso, com brio digno de apreço, esforça-se por não deixar transparecer o desgosto que lhe tinha causado a gratuita denúncia do empregado da loja, mas não pôde impedir-se de dizer consigo mesmo, embora recriminando-se pela baixa injustiça do pensamento, que a culpa era do colega, da mania que certas pessoas têm de dar conselhos sem que lhos tivessem pedido. Tanto é o que precisamos de lançar culpas a algo distante quando o que nos faltou foi a coragem de encarar o que estava na nossa frente. Tertuliano Máximo Afonso não sabe, não imagina, não pode adivinhar que o empregado já se arrependeu do mal-educado despropósito, um outro ouvido, mais fino que o seu, capaz de esmiuçar as subtis gradações de voz com que ele se declarara sempre ao dispor em resposta às contrafeitas boas-tardes de despedida que lhe haviam sido atiradas, teria permitido perceber que passara a instalar-se ali, por trás daquele balcão, uma grande vontade de paz. Afinal, é benévolo princípio mercantil, alicerçado na antiguidade e provado pelo uso dos séculos, que a razão sempre a tem o cliente, mesmo no caso improvável, mas possível, de se chamar Tertuliano.
Já no autocarro que o irá deixar perto do prédio em que vive há meia dúzia de anos, isto é, desde que se divorciou, Máximo Afonso, servimo-nos aqui da versão abreviada do nome porque à nossa vista a autorizou aquele que é seu único senhor e dono, mas principalmente porque a palavra Tertuliano, estando tão próxima, apenas duas linhas atrás, viria desservir gravemente a fluência da narrativa, Máximo Afonso, dizíamos, achou-se a perguntar a si mesmo, de súbito intrigado, de súbito perplexo, que estranhos motivos, que particulares razões teriam sido as que levaram o colega de Matemática, tinha faltado dizer que é de Matemática o colega, a aconselhar-lhe com tanta insistência o filme que viera alugar, quando a verdade é que, até este dia, nunca a chamada sétima arte havia sido assunto de conversa entre ambos. Ainda se perceberia a recomendação se se tratasse de uma boa fita, das indiscutíveis, em tal caso o agrado, a satisfação, o entusiasmo pelo descobrimento de uma obra de alta qualidade estética poderiam ter obrigado o colega, durante o almoço na cantina ou no intervalo de duas aulas, a puxar-lhe pressurosamente pela manga e dizer, Não me lembro de que alguma vez tenhamos falado de cinema, mas agora digo-lhe, meu caro, tem de ver, é indispensável que veja Quem Porfia Mata Caça, que é precisamente o título do filme que Tertuliano Máximo Afonso leva dentro da pasta, também a informação estava a faltar. Então o professor de História perguntaria, E em que cinema o exibem, ao que o de Matemática replicaria, rectificando, Não exibem, exibiram, o filme já tem uns quatro ou cinco anos, não percebo como foi que se me escapou na estreia, e logo, sem pausa, inquieto pela possível inutilidade do conselho que com tanto fervor estava oferecendo, Mas talvez você já o tivesse visto, Não vi, vou pouco ao cinema, contento-me com o que passa na televisão, e mesmo assim, Pois então deveria vê-lo, encontra-o em qualquer loja da especialidade, alugue-o se não lhe apetecer comprar. O diálogo poderia ter decorrido mais ou menos desta maneira se o filme merecesse os louvores, mas as coisas, na realidade, passaram-se com menos ditirambos, Não é para me meter na sua vida, dissera o de Matemática enquanto descascava uma laranja, mas de há uns tempos a esta parte encontro-o a modo que abatido, e Tertuliano Máximo Afonso confirmou, É verdade, tenho andado um pouco em baixo, Problemas de saúde, Não creio, tanto quanto posso saber não estou doente, o que sucede é que tudo me cansa e aborrece, esta maldita rotina, esta repetição, este marcar passo, Distraia-se, homem, distrair-se foi sempre o melhor remédio, Dê-me licença que lhe diga que distrair-se é o remédio de quem não precisa dele, Boa resposta, não há dúvida, no entanto alguma coisa terá de fazer para sair do marasmo em que se encontra, Da depressão, Depressão ou marasmo, dá igual, a ordem dos factores é arbitrária, Mas não a intensidade, Que faz fora das aulas, Leio, ouço música, de vez em quando passo por um museu, E ao cinema, vai, Cinema frequento pouco, contento-me com o que vai passando na televisão, Podia comprar uns vídeos, organizar uma colecção, uma videoteca, como se diz agora, Sim, realmente podia, o pior é que já falta espaço para os livros, Então alugue, alugar é a solução melhor, Tenho uns quantos vídeos, uns documentários científicos, ciências da natureza, arqueologia, antropologia, artes em geral, também me interessa a astronomia, assuntos deste tipo, Tudo isso está bem, mas precisa de se distrair com histórias que não ocupem demasiado espaço na cabeça, por exemplo, uma vez que a astronomia lhe interessa, imagino que igualmente lhe poderia interessar a ficção científica, as aventuras no espaço, as guerras das estrelas, os efeitos especiais, Tal como veio e entendo, os tais efeitos especiais são o pior inimigo da imaginação, essa manha misteriosa, enigmática, que tanto trabalho deu aos seres humanos inventar, Meu caro, você exagera, Não exagero, quem exagera são os que querem convencer-me de que em menos de um segundo, com um estalido de dedos, se põe uma nave espacial a cem mil milhões de quilómetros de distância, Reconheça que para criar esses efeitos que você desdenha tanto, também se necessita imaginação, Sim, mas é a deles, não é a minha, Sempre terá a faculdade de usar a sua começando do ponto aonde a deles tinha chegado, Ora, ora, duzentos mil milhões de quilómetros em lugar de cem, Não esqueça que o que chamamos hoje realidade foi imaginação ontem sim, mas a realidade, olhe o Júlio Verne, de agora é que para ir a Marte, por exemplo, e Marte em termos astronómicos até se pode dizer que está ali ao virar da esquina, são necessários nada menos que nove meses, depois haverá que ficar lá à espera mais seis meses até que o planeta esteja de novo no ponto óptimo para se poder regressar, e finalmente fazer outra viagem de nove meses para chegar à Terra, total, dois anos de suprema chatice, um filme sobre uma ida a Marte em que a verdade dos factos fosse respeitada, seria a mais enfadonha estopada que alguma vez se viu, Já percebi por que é que você se aborrece, Porquê, Porque não há nada que o contente, Contentar-me-ia com pouco, se o tivesse, Algo terá por aí, uma carreira, um trabalho, à primeira vista não lhe encontro motivos para lamentos, É a carreira e o trabalho que me têm a mim, não eu a eles, Desse mal, na suposição de que realmente o seja, todos nos queixamos, também eu quereria que me conhecessem como um génio da Matemática em lugar do medíocre e resignado professor de um estabelecimento de ensino secundário que não terei outro remédio que continuar a ser, Não gosto de mim mesmo, provavelmente é esse o problema, Se você me viesse com uma equação a duas incógnitas ainda lhe poderia oferecer os meus préstimos de especialista, mas, tratando-se de uma incompatibilidade desse calibre, a minha ciência só serviria para complicar-lhe a vida, por isso digo-lhe que se entretenha a ver uns filmes como quem toma tranquilizantes, não que passe a dedicar-se às matemáticas, que puxam muito pela cabeça, Tem alguma ideia, Ideia de quê, De um filme interessante' que valha a pena, É o que não falta, entra na loja, dá uma volta e escolhe, Mas sugira-me um, ao menos.
O professor de Matemática pensou, pensou, e disse enfim, Quem Porfia Mata Caça, Isso que é, Um filme, foi o que me pediu, Parece mais um ditado popular, É um ditado popular, Todo ele, ou só o título, Espere para ver, De que género, O ditado, Não, o filme, Comédia, Tem a certeza de que não é um dramalhão dos antigos, de faca e alguidar, ou desses modernos, com tiros e explosões, É uma comédia levezinha, divertida, Vou tomar nota, como foi que disse que se chamava, Quem Porfia Mata Caça, Muito bem, já o tenho, Não é nenhuma obra-prima do cinema, mas poderá entretê-lo durante hora e meia.
Tertuliano Máximo Afonso está em casa, tem na cara uma expressão de dúvida, nada grave, porém, não é a primeira vez que lhe sucede estar assim, a assistir ao balouçar da vontade entre gastar tempo a preparar algo para comer, o que em geral não significa mais esforço que abrir uma lata e levar ao lume o conteúdo, ou a alternativa de sair para ir jantar a um restaurante perto, onde já o conhecem pela pouca consideração que demonstra pela ementa, não por atitude soberba de cliente insatisfeito, mas por indiferença, por alheamento, por preguiça de ter de escolher um prato entre os que lhe propõem na curta lista por de mais repetida. Reforça-lhe a conveniência de não sair de casa o facto de ter trazido trabalho da escola, os últimos exercícios dos seus alunos, que deverá ler com atenção e corrigir sempre que atentem perigosamente contra as verdades ensinadas ou se permitam excessivas liberdades de interpretação. A História que Tertuliano Máximo Afonso tem a missão de ensinar é como um bonsai a que de vez em quando se aparam as raízes para que não cresça, uma miniatura infantil da gigantesca árvore dos lugares e do tempo, e de quanto neles vai sucedendo, olhamos, vemos a desigualdade de tamanho e por aí nos deixamos ficar, passamos por alto outras diferenças não menos notáveis, por exemplo, nenhuma ave, nenhum pássaro, nem sequer o diminuto beija-flor, conseguiria fazer ninho nos ramos de um bonsai, e se é verdade que à pequena sombra deste, supondo-o provido de suficiente frondosidade, pode ir acoitar-se uma lagartixa, o mais certo é que ao réptil lhe fique a ponta do rabo de fora. A História que Tertuliano Máximo Afonso ensina, ele mesmo o reconhece e não se importará de confessar se lho perguntarem, tem uma enorme quantidade de rabos de fora, alguns ainda remexendo, outros já reduzidos a uma pele encarquilhada com uma carreirinha de vértebras soltas dentro. Lembrando-se da conversa com o colega, pensou, A Matemática veio doutro planeta cerebral, na Matemática os rabos de lagartixa não seriam mais que abstracções. Tirou os papéis de dentro da pasta e colocou-os em cima da mesa de trabalho, tirou também a cassete de Quem Porfia Mata Caça, ali estavam as duas ocupações a que poderia dedicar o serão de hoje, corrigir os exercícios, ver o filme, suspeitava no entanto que o tempo não iria dar para tudo, uma vez que não tinha por costume nem gostava de trabalhar pela noite dentro. A urgência do exame das provas dos alunos não era de sangria desatada, a urgência de ver o filme, essa não era nenhuma. O melhor será continuar com o livro que estava a ler, pensou. Depois de ter passado pela casa de banho foi ao quarto para mudar de roupa, trocou de sapatos e calças, enfiou um pulôver por cima da camisa, deixando ficar a gravata porque não gostava de ver-se esgargalado, e entrou na cozinha. Tirou de um armário três latas de diferentes comidas, e como não soube por qual decidir-se, lançou mão, para tirar à sorte, de uma incompreensível e quase esquecida cantilena de infância que muitas vezes, naqueles tempos, o tinha deixado fora de jogo, e rezava assim, um dó li tá, era de mendá, um sulete colorete, um dó li tá. Saiu um guisado de carne, que não era o que mais lhe apetecia, mas achou que não devia contrariar o destino. Comeu na cozinha, empurrando com um copo de vinho tinto, e, quando terminou, quase sem pensar, repetiu a cantilena com três migalhas de pão, a da esquerda, que era o livro, a do meio, que era os exercícios, a da direita, que era o filme. Ganhou Quem Porfia Mata Caça, está visto que o que tem de ser, tem de ser, e tem muita força, nunca jogues as pêras com o destino, que ele come as maduras e dá-te as verdes.
É o que geralmente se diz, e, porque se diz geralmente, aceitamos a sentença sem mais discussão, quando o nosso dever de gente livre seria questionar energicamente um destino despótico que determinou, sabe-se lá com que maliciosas intenções, que a pêra verde é o filme, e não os exercícios ou o livro. Como professor, e de História ainda por cima, este Tertuliano Máximo Afonso, haja vista a cena a que acabámos de assistir na cozinha, confiando o seu futuro imediato e porventura o que virá depois dele a três migalhas de pão e a um papaguear infantil e sem sentido, é um mau exemplo para os adolescentes que o destino, o mesmo ou outro, pôs nas suas mãos. Não caberá infelizmente neste relato uma antecipação dos prováveis efeitos perniciosos da influência de um tal professor na formação das jovens almas dos educandos, por isso as deixamos aqui, sem outra esperança que a de que venham a encontrar, um dia, no caminho da vida, uma influência de sinal contrário que as livre, quem sabe se in extremis, da perdição irracionalista que neste momento as ameaça.
Tertuliano Máximo Afonso lavou cuidadosamente a louça do jantar, desde sempre constitui para ele uma inviolável obrigação deixar tudo limpo e reposto nos seus sítios depois de ter comido, o que vem ensinar-nos, regressando por uma última vez às jovens almas acima citadas, para as quais semelhante procedimento seria, talvez, se não com alta probabilidade, risível, e a obrigação letra-morta, que até de alguém tão pouco recomendável em temas, assuntos e questões relacionadas com o livre-arbítrio é possível aprender alguma coisa. Tertuliano Máximo Afonso recebeu dos regrados costumes da família em que foi gerado esta e outras boas lições, em particular de sua mãe, por fortuna ainda viva e de saúde, a quem certamente irá visitar um destes dias, lá na pequena cidade da província onde o futuro professor abriu os olhos para o mundo, berço dos Máximos maternos e dos Afonsos paternos, e em que lhe calhou ser o primeiro Tertuliano acontecido, nado há quase quarenta anos. Ao pai, não terá outra solução que ir visitá-lo ao cemitério, assim é a puta da vida, sempre se nos acaba. A má palavra passou-lhe pela cabeça sem que a tivesse convocado, foi por ter pensado no pai enquanto saía da cozinha e sentir a saudade dele, Tertuliano Máximo Afonso é pouco de dizer asneiras, a tal ponto que se em alguma rara ocasião lhe sucede largá-las, ele próprio se surpreende com a estranheza, com a falta de convencimento dos seus órgãos fonadores, cordas vocais, câmara palatina, língua, dentes e lábios, como se estivessem articulando, contrariados, pela primeira vez, uma palavra de um idioma até aí desconhecido. Na pequena divisão da casa que lhe serve de escritório e de sala de estar há um sofá de dois lugares, uma mesinha baixa, de centro, uma cadeira de assento estofado que parece hospitaleira, o aparelho de televisão em frente dela, no ponto de fuga, e, posta de canto, a jeito de receber a luz da janela, a secretária onde os exercícios de História e a cassete estão à espera de ver quem ganha. Duas das paredes estão forradas de livros, a maioria deles com as rugas do uso e a murchidão da idade. No chão um tapete com motivos geométricos, de cores surdas, ou talvez desbotadas, ajuda a sustentar um ambiente de conforto que não passa de simples mediania, sem fingimentos nem pretensões a parecer mais do que é, o sítio de viver de um professor do ensino secundário que ganha pouco, como parece ser obstinação caprichosa das classes docentes em geral, ou condenação histórica que ainda não acabaram de purgar. A migalha do meio, isto é, o livro que Tertuliano Máximo Afonso tem andado a ler, um ponderoso estudo das antigas civilizações mesopotâmicas, encontra-se onde foi deixado na noite de ontem, aqui sobre a mesinha de centro, à espera, também, como as outras duas migalhas, à espera, como as coisas sempre estão, todas elas, a isso não podem escapar, é a fatalidade que as governa, parece que faz parte da sua invencível natureza de coisas. De uma personalidade como se tem vindo a anunciar a deste Tertuliano Máximo Afonso, que já deu algumas mostras de espírito vagueador, e até algo evasivo, no pouco tempo que leva de conhecido, não causaria surpresa neste momento uma exibição de conscientes simulações consigo mesmo, folheando os exercícios dos alunos com falsa atenção, abrindo o livro na página em que a leitura havia ficado interrompida, mirando desinteressado a cassete por um lado e pelo outro, como se ainda não se tivesse decidido sobre o que finalmente quererá fazer. Mas as aparências, nem sempre tão enganadoras quanto se diz, não é raro que se neguem a si mesmas e deixem surdir manifestações que abrem caminho à possibilidade de sérias diferenças futuras num padrão de comportamento que, no geral, parecia apresentar-se como definido. Esta laboriosa explicação poderia ter-se evitado se em seu lugar, sem mais rodeios, tivéssemos dito que Tertuliano Máximo Afonso se dirigiu directamente, isto é, em linha recta, à secretária, pegou na cassete, percorreu com os olhos as informações do verso e do anverso da caixa, apreciou neste as caras sorridentes, bem-dispostas dos intérpretes, notou que só o nome de um deles, o principal, uma actriz jovem e bonita, lhe era familiar, aviso de que o filme, na hora dos contratos, não devia ter sido contemplado com atenções especiais por parte dos produtores, e logo, com o firme movimento de uma vontade que parecia nunca haver duvidado de si mesma, empurrou a cassete para dentro do aparelho de vídeo, sentou-se na cadeira, carregou no botão de arranque do comando a distância e acomodou-se para passar o melhor possível um serão, que, se pela amostra já pouco prometia, menos ainda deveria cumprir. E assim foi. Tertuliano Máximo Afonso riu por duas vezes, sorriu três ou quatro, a comédia, a par de levezinha, segundo a expressão conciliadora do colega de Matemática, era principalmente absurda, disparatada, um engendro cinematográfico em que a lógica e o senso comum tinham ficado a protestar do lado de fora da porta porque não lhes havia sido permitida a entrada lá onde o desatino estava a ser perpetrado. O título, o tal Quem Porfia Mata Caça, era uma daquelas metáforas óbvias, do tipo branco é galinha o põe, caça, caçada e caçadores era coisa que não se via na história, tudo se limitava a um caso de frenética ambição pessoal que a actriz jovem e bonita encarnava o melhor que lhe tinham ensinado, salpicado o dito caso de mal-entendidos, manobras, desencontros e equívocos, no meio dos quais, por infelicidade, a depressão de Tertuliano Máximo Afonso não conseguiu encontrar o menor lenitivo. Quando o filme terminou, Tertuliano estava mais irritado consigo mesmo que com o colega. A este desculpava-o a boa intenção, mas a si, que já tinha muito boa idade para não andar a correr atrás de foguetes, o que lhe doía, como aos ingénuos sempre sucede, era isso mesmo, a sua ingenuidade. Em voz alta, disse, Amanhã vou devolver esta merda, desta vez não houve surpresa, achou que lhe assistia o direito de desabafar pela via grosseira, e, além disso, havia que ter em consideração que esta só era a segunda indecência que deixara escapar nas últimas semanas, e a primeira delas, ainda por cima, tinha sido apenas em pensamento, o que é apenas em pensamento não conta. Olhou o relógio e viu que ainda não eram onze horas. É cedo, murmurou, e com isto quis dizer, como se viu logo a seguir, que ainda tinha tempo para se punir a si mesmo pela leviandade de ter trocado a obrigação pela devoção, o autêntico pelo falso, o duradouro pelo precário. Sentou-se à secretária, puxou para si, cuidadosamente, os exercícios de História, como querendo pedir-lhes perdão pelo abandono, e trabalhou pela noite dentro, como mestre escrupuloso que sempre se tinha prezado de ser, cheio de pedagógico amor pelos seus alunos, mas exigentíssimo nas datas e implacável nos cognomes. Era tarde quando chegou ao final da empreitada que havia imposto a si mesmo, porém, ainda repeso da falta, ainda contrito do pecado, e como quem tinha decidido trocar um cilício doloroso por outro não menormente correctivo, levou para a cama o livro sobre as antigas civilizações mesopotâmicas, no capítulo que tratava dos semitas amorreus e, em particular, do seu rei Hamurabi, o do código. Ao cabo de quatro páginas adormeceu serenamente, sinal de que tinha sido perdoado.
Acordou uma hora depois. Não sonhara, nenhum horrível pesadelo lhe havia desordenado o cérebro, não esbracejou a defender-se do monstro gelatinoso que se lhe viera pegar à cara, abriu apenas os olhos e pensou, Há alguém em casa. Devagar, sem precipitação, sentou-se na cama e pôs-se à escuta. O quarto é interior, mesmo durante o dia não chegam aqui os rumores
de fora, e a esta altura da noite, Que horas serão, o silêncio costuma ser total. E era total. Quem quer que fosse o intruso, não se movia de onde estava. Tertuliano Máximo Afonso estendeu o braço para a mesa-de-cabeceira e acendeu a luz.
O relógio marcava quatro e um quarto. Como a maior parte da gente comum, este Tertuliano Máximo Afonso tem tanto de corajoso como de cobarde, não é um herói desses invencíveis de cinema, mas também não é nenhum cagarola, dos que se mijam pelas pernas abaixo quando ouvem ranger à meia-noite a porta da masmorra do castelo. É verdade que sentiu eriçaram-se-lhe os pêlos do corpo, mas isso até aos lobos sucede quando se enfrentam a um perigo, e a ninguém que esteja em seu juízo perfeito lhe passará pela cabeça sentenciar que os lupinos são uns miseráveis cobardes. Tertuliano Máximo Afonso vai demonstrar que também não o é. Deixou-se escorregar subtilmente da cama, empunhou um sapato à falta de arma mais contundente e, usando de mil cautelas, assomou-se à porta do corredor. Olhou a um lado, depois a outro. A percepção de presença que o fizera despertar tornou-se um pouco mais forte. Acendendo as luzes à medida que avançava, ouvindo ressoar-lhe o coração na caixa do peito como um cavalo a galope, Tertuliano Máximo Afonso entrou na casa de banho e depois na cozinha. Ninguém. E a presença, ali, era curioso, pareceu-lhe que baixava de intensidade. Regressou ao corredor e enquanto se ia aproximando da sala de estar percebeu que a invisível presença se tomava mais densa a cada passo, como se a atmosfera se tivesse posto a vibrar pela reverberação de uma oculta incandescência, como se o nervoso Tertuliano Máximo Afonso caminhasse por um terreno radioactivamente contaminado levando na mão um contador Geíger que irradiasse ectoplasmas em vez de emitir avisos sonoros. Não havia ninguém na sala. Tertuliano Máximo Afonso olhou ao redor, ali estavam, firmes e impávidas, as duas altas estantes cheias de livros, as gravuras emolduradas das paredes, às quais até agora não se tinha feito referência, mas é certo, ali estão, e ali, e ali, e ali, a secretária com a máquina de escrever, a cadeira, a mesa baixa ao meio com uma pequena escultura colocada exactamente no centro geométrico, e o sofá de dois lugares, e o aparelho de televisão. Tertuliano Máximo Afonso murmurou em voz muito baixa, com temor, Era isto, e então, pronunciada a última palavra, a presença, silenciosamente, como uma bola de sabão rebentando, desapareceu. Sim, era aquilo, o aparelho de televisão, o leitor de vídeo, a comédia que se chama Quem Porfia Mata Caça, uma imagem lá dentro que havia regressado ao seu sítio depois de ir acordar Tertuliano Máximo Afonso à cama. Não imaginava qual ela poderia ser, mas tinha a certeza de que a reconheceria quando aparecesse. Foi ao quarto, vestiu um roupão por cima do pijama para não apanhar frio e voltou. Sentou-se na cadeira, carregou outra vez no botão de arranque do comando a distância e, inclinado para a frente, com os cotovelos assentes nos joelhos, todo ele olhos, já sem risos nem sorrisos, repassou a história da mulher jovem e bonita que queria triunfar na vida. Ao cabo de vinte minutos, viu-a entrar num hotel e dirigir-se ao balcão de recepção, ouviu-lhe dizer o nome, Chamo-me Inês de Castro, antes já tinha reparado na interessante e histórica coincidência, ouviu-a depois continuar, Tenho aqui uma reserva, o empregado olhou-a de frente, à câmara, não a ela, ou a ela que se encontrava no lugar da câmara, o que ele disse quase não o chegou a perceber agora Tertuliano Máximo Afonso, o polegar da mão que segurava o comando a distância carregou veloz no botão de parar, porém a imagem já se tinha ido, é lógico que não se gaste película inutilmente com um actor, figurante ou pouco mais, que só entra na história ao fim de vinte minutos, a fita desandou, passou outra vez pela cara do recepcionista, a mulher jovem e bonita tomou a entrar no hotel, tomou a dizer que se chamava Inês de Castro e que tinha uma reserva, agora sim, aqui está, a imagem fixh do empregado da recepção olhando de frente quem o olhava a ele. Tertuliano Máximo Afonso levantou-se da cadeira, ajoelhou-se diante do televisor, a cara tão perto do ecrã quanto lho permitia a visão, Sou eu, disse, e outra vez sentiu que se lhe eriçavam os pêlos do corpo, o que ali estava não era verdade, não podia ser verdade, qualquer pessoa equilibrada por acaso ali presente o tranquilizaria, Que ideia, meu caro Tertuliano, tenha a bondade de observar que ele usa bigode, enquanto você tem a cara rapada. As pessoas equilibradas são assim, têm o costume de simplificar tudo, e depois, mas sempre tarde de mais, é que as vemos assombrarem-se com a copiosa diversidade da vida, então lembram-se de que os bigodes e as barbas não têm vontade própria, crescem e prosperam quando se lhes permite, às vezes também por pura indolência do portador, mas, de um instante para outro, só porque a moda variou ou porque a pilosa monotonia os tornou molestos ao espelho, desaparecem sem deixar rasto. Não esquecendo ainda, porque tudo pode acontecer quando se trate de actores e artes cénicas, a forte probabilidade de que o fino e bem tratado bigode do empregado da recepção seja, simplesmente, um postiço. Tem-se visto. Estas considerações, que, por óbvias, saltariam com toda a naturalidade à vista de qualquer pessoa, poderia Tertuliano Máximo Afonso tê-las produzido por sua própria conta se não estivesse tão concentrado a procurar no filme outras situações em que aparecesse o mesmo actor secundário, ou figurante com linhas de texto, como com mais rigor conviria designá-lo. Até ao final da história, o homem do bigode, sempre no seu papel de recepcionista, apareceu em mais cinco ocasiões, de cada vez com escasso trabalho, embora na última lhe fosse dado trocar duas frases pretendidamente maliciosas com a dominadora Inês de Castro e depois, enquanto ela se afastava balançando os quadris, olhá-la com expressão caricatamente libidinosa, que o realizador devia ter considerado irresistível ao apetite de riso do espectador. Escusado dizer que se Tertuliano Máximo Afonso não achou graça na primeira vez, muito menos achou na segunda. Tinha regressado à primeira imagem, aquela em que o empregado da recepção, num grande plano, fita a direito Inês de Castro, e analisava, minucioso, a imagem, traço por traço, feição por feição, Tirando umas leves diferenças, pensou, o bigode sobretudo, o cabelo de corte diferente, a cara menos cheia, é igual a mim. Sentia-se tranquilo agora, sem dúvida a semelhança era, por assim dizer, assombrosa, mas daí não passava, semelhanças é o que não falta no mundo, vejam-se os gémeos, por exemplo, o que seria para admirar é que havendo mais de seis mil milhões de pessoas no planeta não se encontrassem ao menos duas iguais. Que nunca poderiam ser exactamente iguais, iguais em tudo, já se sabe, disse, como se estivesse a conversar com aquele quase seu outro eu que o olhava de dentro do aparelho de televisão. Outra vez sentado na cadeira, ocupando portanto a posição relativa da actriz que interpretava o papel de Inês de Castro, brincou a ser, também ele, cliente do hotel, Chamo-me Tertuliano Máximo Afonso, anunciou, e depois, sorrindo, E você, a pergunta era das mais consequentes, se duas pessoas iguais se encontram, o natural é quererem saber tudo uma da outra, e o nome é sempre a primeira coisa porque imaginamos que essa é a porta por onde se entra. Tertuliano Máximo Afonso fez correr a fita até ao fim, ali estava a lista dos actores de menor importância, não se lembrava se também seriam mencionados os papéis que representavam, afinal não, os nomes apareciam por ordem alfabética, simplesmente, e eram muitos. Agarrou meio distraído a caixa da cassete, passou uma vez mais os olhos pelo que ali se escrevia e mostrava, os rostos sorridentes dos actores principais, um breve resumo da história, e também, em baixo, numa linha de informações técnicas, em letra pequena, a data do filme. Já tem cinco anos, murmurou, ao mesmo tempo que recordava que o mesmo lhe tinha dito o colega de Matemática. Cinco anos já, repetiu, e, de repente, o mundo levou outro abanão, não era o efeito de uma impalpável e misteriosa presença que o tinha despertado, mas sim algo concreto, e não só concreto, mas também documentável. Com as mãos trémulas abriu e fechou gavetas, desentranhou delas envelopes com negativos e cópias fotográficas, espalhou tudo sobre a secretária, enfim encontrou o que procurava, um retrato seu, de há cinco anos. Tinha bigode, o corte de cabelo diferente, a cara menos cheia.
Nem o próprio Tertuliano Máximo Afonso saberia dizer se o sono tornou a abrir-lhe os misericordiosos braços depois da revelação tremebunda que foi para ele a existência, talvez nesta mesma cidade, de um homem que, a avaliar pela cara e pela figura em geral, é o seu vivo retrato. Depois de comparar demoradamente a fotografia de há cinco anos com a imagem em grande plano do empregado da recepção, depois de não ter encontrado nenhuma diferença entre esta e aquela, por mínima que fosse, ao menos uma levíssima ruga que um tivesse e ao outro faltasse, Tertuliano Máximo Afonso deixou-se cair no sofá, não na cadeira, onde não haveria espaço bastante para amparar o desmoronamento físico e moral do seu corpo, e ali, com a cabeça apertada entre as mãos, os nervos exaustos, o estômago em ânsias, esforçou-se por arrumar os pensamentos, desenriçando-os do caos de emoções amontoadas desde o momento em que a memória, velando sem que ele o suspeitasse por trás da cortina cerrada dos olhos, o tinha feito despertar sobressaltado do seu primeiro e único sono. O que mais me confunde, pensava trabalhosamente, não é tanto o facto de este tipo se parecer comigo, ser uma cópia minha, digamos, um duplicado, casos assim não são infrequentes, temos os gémeos, temos os sósias, as espécies repetem-se, o ser humano repete-se, é a cabeça, é o tronco, são os braços, são as pernas, e poderia suceder, não tenho nenhuma certeza, é apenas uma hipótese, que uma alteração fortuita num determinado quadro genético tivesse por efeito um ser semelhante a outro gerado num quadro genético sem qualquer relação com ele, o que me confunde não é tanto isso como eu saber que há cinco anos fui igual ao que ele era nessa altura, até bigode usávamos, e mais ainda a possibilidade, que digo eu, a probabilidade de que passados cinco anos, isto é, hoje, agora mesmo, a esta hora da madrugada, a igualdade se mantenha, como se uma mudança em mim tivesse de ocasionar a mesma mudança nele, ou, pior ainda, que um não mude porque o outro mudou, mas por ser simultânea a mudança, isso é que seria de dar com a cabeça nas paredes, sim, de acordo, não devo transformar isto numa tragédia, tudo quanto é possível suceder, já sabemos que sucederá, primeiro foi o acaso que nos tornou iguais, depois foi o acaso de um filme de que eu nunca tinha ouvido falar, poderia ter vivido o resto da vida sem imaginar sequer que um fenómeno destes escolheria para manifestar-se um vulgar professor de História, este que ainda há poucas horas estava a corrigir os erros dos seus alunos e agora não sabe que fazer com o erro em que ele próprio, de um instante para outro, se tinha visto convertido. Serei mesmo um erro, perguntou-se, e, supondo que efectivamente o sou, que significado, que consequências para um ser humano terá saber-se errado. Correu-lhe pela espinha uma rápida sensação de medo e pensou que há coisas que é preferível deixá-las como estão e ser como são, porque caso contrário há o perigo de que os outros percebam, e, o que seria pior, que percebamos também nós pelos olhos deles, esse oculto desvio que nos torceu a todos ao nascer e que espera, mordendo as unhas de impaciência, o dia em que possa mostrar-se e anunciar-se, Aqui estou. O peso excessivo de tão profunda cogitação, ainda por cima centrada na possibilidade da existência de duplos absolutos, mais intuída, porém, em lampejos fugazes que verbalmente elaborada, fez descair-lhe devagar a cabeça, e o sono, um sono que, pelos seus meios próprios, iria prosseguir o labor mental até esse momento executado pela vigília, tomou conta do corpo fatigado e ajudou-o a aconchegar-se nas almofadas do sofá. Não chegou a ser um repouso que merecesse e justificasse o seu doce nome, passados poucos minutos, ao abrir de golpe os olhos, Tertuliano Máximo Afonso, como um boneco falante cujo mecanismo se tivesse avariado, repetiu por outras palavras a pergunta de há pouco, Que é ser um erro. Encolheu os ombros como se a questão, de súbito, tivesse deixado de interessar-lhe. Efeito compreensível de um cansaço levado ao extremo, ou, pelo contrário, consequência benéfica do breve sono, esta indiferença é, mesmo assim, desconcertante e inaceitável, porque muito bem sabemos, e ele melhor que ninguém, que o problema não foi resolvido, está ali intacto, dentro do leitor de vídeo, à espera também ele, depois de se ter exposto em palavras que não se ouviram mas que subjaziam ao diálogo do guião, Um de nós é um erro, isto foi o que de facto disse o empregado da recepção a Tertuliano Máximo Afonso quando, dirigindo-se à actriz que fazia de Inês de Castro, a informou de que o quarto que ela tinha reservado era o doze-dezoito. De quantas incógnitas é esta equação, perguntou o professor de História ao professor de Matemática no momento em que cruzava outra vez o limiar do sono, O colega dos números não respondeu à pergunta, apenas fez um gesto compassivo e disse, Depois falamos, agora descanse, faça por dormir, que bem precisa. Dormir era, sem dúvida, o que Tertuliano Máximo Afonso mais desejaria neste momento, mas o intento resultou frustrado. Daí a pouco estava outra vez desperto, animado agora por uma ideia luminosa que de repente lhe havia ocorrido, e era pedir ao colega de Matemática que lhe dissesse por que foi que se lembrou de lhe sugerir que visse Quem Porfia Mata Caça, quando se tratava de um filme de escasso mérito e com o peso de cinco anos de uma certamente atribulada existência, o que, em uma fita de produção corrente, de baixo orçamento, é motivo mais que seguro para uma aposentação por incapacidade, quando não para uma morte macaca apenas adiada por um tempo graças à curiosidade de meia dúzia de espectadores excêntricos que ouviram falar de filmes de culto e julgaram que era aquilo. Nesta emaranhada equação, a primeira incógnita que teria de resolver era se sim ou não o colega de Matemática se havia apercebido da semelhança quando viu o filme, e, no caso afirmativo, por que razão não o prevenira na altura em que lho sugeriu, nem que fosse com palavras de risonha ameaça, como estas, Prepare-se, que vai levar um susto. Embora não creia no Destino propriamente dito, isto é, o que se distingue de qualquer destino subalterno pela maiúscula inicial de respeito, Tertuliano Máximo Afonso não consegue escapar à ideia de que tantos acasos e coincidências juntos poderão muito bem corresponder a um plano por enquanto indescortinável, mas cujo desenvolvimento e desenlace certamente já se encontram determinados nas tábuas em que o dito Destino, supondo que afinal de contas existe e nos governa, apontou, logo no princípio dos tempos, a data em que cairá o primeiro cabelo da cabeça e a data em que se apagará o último sorriso da boca. Tertuliano Máximo Afonso deixou de estar caído no sofá como um fato amarrotado e sem corpo dentro, acaba de levantar-se tão firme de pernas quanto lhe é possível depois de uma noite que em violência de emoções não tem par em toda a sua vida, e, sentindo que a cabeça lhe foge um pouco do sítio, foi espreitar o céu por trás das vidraças da janela. A noite mantinha-se agarrada aos telhados da cidade, os candeeiros da rua ainda estavam acesos, mas a primeira e subtil aguada da manhã já começara a tingir de transparências a atmosfera lá no alto. Foi assim que teve a certeza de que o mundo não acabaria hoje, que teria sido um desperdício sem perdão fazer sair o sol por coisa nenhuma, só para estar presente no princípio do nada quem ao tudo tinha dado começo, e portanto, embora não sendo nada clara, e muito menos evidente, a ligação que houvesse entre uma coisa e outra, o senso comum de Tertuliano Máximo Afonso compareceu finalmente a dar-lhe o conselho cuja falta mais se vinha notando desde o aparecimento do empregado da recepção no televisor, e foi esse conselho o seguinte, Se achas que deves pedir uma explicação ao teu colega, pede-a de uma vez, sempre será melhor que andares por aí com a garganta atravessada de interrogações e dúvidas, recomendo-te em todo o caso que não abras demasiado a boca, que vigies as tuas palavras, tens uma batata quente nas mãos, larga-a se não queres que te queime, devolve o vídeo à loja hoje mesmo, pões uma pedra sobre o assunto e acabas com o mistério antes que ele comece a deitar cá para fora coisas que preferirias não saber, ou ver, ou fazer, além disso, supondo que há uma pessoa que é uma cópia tua, ou tu uma cópia sua, e pelos vistos há mesmo, não tens nenhuma obrigação de ir à procura dela, esse tipo existe e tu não o sabias, existes tu e ele não o sabe, nunca se viram, nunca se cruzaram na rua, o melhor que tens a fazer é, E se o encontro um dia destes, se me cruzo com ele na rua, interrompeu Tertuliano Máximo Afonso, Viras a cara para o lado, nem te vi nem te conheço, E se ele se dirigir a mim, Se tiver uma pontinha só que seja de sensatez fará o mesmo, Não se pode exigir a toda a gente que seja sensata, Por isso o mundo está como está, Não respondeste à minha pergunta, Qual, Que faço eu se ele se dirigir a mim, Dizes-lhe que extraordinária coincidência, fantástica, curiosa, o que te parecer mais adequado, mas sempre coincidência, e cortas a conversa, Assim sem mais nem menos, Assim sem mais nem menos, Seria uma má-criação, uma indelicadeza, Às vezes é a única maneira de evitar males maiores, não o faças e já sabes o que sucederá, depois de uma palavra virá outra, depois do primeiro encontro haverá segundo e terceiro, às duas por três estarás a contar a tua vida a um desconhecido, já viveste anos bastantes para ter aprendido que com desconhecidos e estranhos todo o cuidado é pouco quando se trata de questões pessoais, e, se queres que te diga, não consigo imaginar nada mais pessoal, nada mais íntimo, que a embrulhada em que pareces estar a ponto de meter-te, É difícil considerar estranha uma pessoa que é igual a mim, Deixa-o continuar a ser o que foi até agora, um desconhecido, Sim, mas estranho nunca poderá ser, Estranhos somos todos, até nós que aqui estamos, A quem te referes, A ti e a mim, ao teu senso comum e a ti mesmo, raramente nos encontramos para conversar, lá muito de tarde em tarde, e, se quisermos ser sinceros, só poucas vezes valeu a pena, Por minha culpa, Também por culpa minha, estamos obrigados por natureza ou condição a seguir caminhos paralelos, mas a distância que nos separa, ou divide, é tão grande que na maior parte dos casos não nos ouvimos um ao outro, Ouço-te agora, Tratou-se de uma emergência, e as emergências aproximam, O que tiver de ser, será, Conheço essa filosofia, costumam chamar-lhe predestinação, fatalismo, fado, mas o que realmente significa é que farás o que te der na real gana, como sempre, Significa que farei aquilo que tiver de fazer, nada menos, Há pessoas para quem é o mesmo aquilo que fizeram e aquilo que pensaram que teriam de fazer, Ao contrário do que julga o senso comum, as coisas da vontade nunca são simples, o que é simples é a indecisão, a incerteza, a irresolução, Quem tal diria, Não te admires, vamos sempre aprendendo, A minha missão acabou, tu farás o que entenderes, Assim é, Portanto, adeus, até outra ocasião, passa bem, Provavelmente até à próxima emergência, Se conseguir chegar a tempo. Os candeeiros da rua tinham-se apagado, o trânsito crescia a cada minuto, o azul ganhava cor no céu. Todos sabemos que cada dia que nasce é o primeiro para uns e será o último para outros, e que, para a maioria, é só um dia mais. Para o professor de História Tertuliano Máximo Afonso, este dia em que estamos, ou somos, não havendo qualquer motivo para pensar que virá a ser o último, também não será, simplesmente, um dia mais. Digamos que se apresentou neste mundo como a possibilidade de ser um outro primeiro dia, um outro começo, e portanto apontando a um outro destino. Tudo depende dos passos que Tertuliano Máximo Afonso der hoje. Porém, a procissão, assim se dizia em passadas eras, ainda agora vai a sair da igreja. Sigamo-la.
Que cara, murmurou Tertuliano Máximo Afonso quando se olhou ao espelho, e de facto não era para menos. Dormir, tinha dormido uma hora, o resto da noite viveu-o a pelejar contra o assombro e o temor descritos aqui com uma minúcia talvez excessiva, contudo perdoável se nos lembrarmos de que jamais na história da humanidade, essa que o professor Tertuliano Máximo Afonso tanto se esforça por bem ensinar aos seus alunos, aconteceu existirem duas pessoas iguais no mesmo lugar e no mesmo tempo. Em épocas recuadas deram-se outros casos de semelhança física total entre duas pessoas, ora homens, ora mulheres, mas sempre as separaram dezenas, centenas, milhares de anos e dezenas, centenas, milhares de quilómetros. O caso mais portentoso que se conhece foi o de uma certa cidade, hoje desaparecida, onde na mesma rua e na mesma casa, mas não na mesma família, com um intervalo de duzentos e cinquenta anos, nasceram duas mulheres iguais.
O prodigioso sucesso não foi registado em nenhuma crónica, tão-pouco foi conservado pela tradição oral, o que é perfeitamente compreensível, dado que quando nasceu a primeira não se sabia que haveria segunda, e quando a segunda veio ao mundo já se tinha perdido a lembrança da primeira. Naturalmente. Não obstante a ausência absoluta de qualquer prova documental ou testemunhal, estamos em condições de afirmar, e mesmo de jurar sob palavra de honra se necessário for, que tudo quanto declarámos, declaremos ou acaso venhamos a declarar como acontecido na cidade hoje desaparecida, aconteceu mesmo. Que a história não registe um facto não significa que esse facto não tenha ocorrido. Quando chegou ao fim da operação de barbeio matinal, Tertuliano Máximo Afonso examinou sem complacência a cara que tinha diante de si e, no todo, achou-a com melhor aspecto. Na verdade, qualquer observador imparcial, fosse ele masculino ou feminino, não se recusaria a definir como harmoniosas, se tomadas no seu conjunto, as feições do professor de História, e, seguramente, não se esqueceria de tomar na devida conta a importância positiva de certas leves assimetrias e certas subtis variações volumétricas que constituíam, por assim dizer, o sal que, no caso vertente, espevitava aquela aparência de manjar insosso que quase sempre acaba por prejudicar os rostos dotados de traços demasiado regulares. Não se trata de proclamar aqui que Tertuliano Máximo Afonso é uma perfeita figura de homem, a tanto não lhe chegaria a imodéstia nem a nós a subjectividade, mas, tivesse ele ao menos uma pitada de talento que sem dúvida poderia fazer uma excelente carreira no teatro interpretando papéis de galã. E quem diz teatro, diz cinema, claro está. Um parêntesis indispensável. Há alturas da narração, e esta, como já se vai ver, foi justamente uma delas, em que qualquer manifestação paralela de ideias e de sentimentos por parte do narrador à margem do que estivessem a sentir ou a pensar nesse momento as personagens deveria ser expressamente proibida pelas leis do bem escrever. A infracção, por imprudência ou ausência de respeito humano, a tais cláusulas limitativas, que, a existirem, seriam provavelmente de acatamento não obrigatório, pode levar a que a personagem, em lugar de seguir uma linha autónoma de pensamentos e emoções coerente com o estatuto que lhe foi conferido, como é seu direito inalienável, se veja assaltada de modo arbitrário por expressões mentais ou psíquicas que, vindas de quem vêm, é certo que nunca lhe seriam de todo alheias, mas que num instante dado podem revelar-se no mínimo inoportunas, e em algum caso desastrosas. Foi precisamente o que sucedeu a Tertuliano Máximo Afonso. Olhava-se ao espelho como quem se olha ao espelho apenas para avaliar os estragos de uma noite mal dormida, nisso pensava e em nada mais, quando, de súbito, a desafortunada reflexão do narrador sobre os seus traços físicos e a problemática eventualidade de que em um dia futuro, auxiliados pela demonstração de talento suficiente, poderiam vir a ser postos ao serviço da arte teatral ou da arte cinematográfica, desencadeou nele uma reacção que não será exagero classificar de terrível. Se aquele tipo que fez de empregado da recepção aqui estivesse, pensou dramaticamente, se estivesse aqui diante deste espelho, a cara que de si mesmo veria seria esta. Não censuremos a Tertuliano Máximo Afonso não se ter lembrado de que o outro usava bigode no filme, não se lembrou, é certo, mas talvez por saber de ciência certa que hoje já não o usa, e para isso não precisa de recorrer a esses misteriosos saberes que são os pressentimentos, pois encontra a melhor das razões na sua própria cara escanhoada, varrida de pêlos. Qualquer pessoa com sentimentos não terá relutância em admitir que aquele adjectivo, aquela palavra terrível, inadequada aparentemente ao contexto doméstico de uma pessoa que vive sozinha, deve ter exprimido com bastante pertinência o que se passou na cabeça do homem que acaba de voltar correndo da sua mesa de trabalho aonde foi buscar um marcador preto e agora, outra vez diante do espelho, desenha sobre a sua própria imagem, por cima do lábio superior e rente a ele, um bigode igualzinho ao do empregado da recepção, fino, delgado, de galã. Neste momento, Tertuliano Máximo Afonso passou a ser aquele actor de quem ignoramos o nome e a vida, o professor de História do ensino secundário já não está aqui, esta casa não é a sua, tem definitivamente outro proprietário a cara do espelho. Durasse esta situação um minuto mais, ou nem tanto, e tudo poderia acontecer nesta casa de banho, uma crise de nervos, um súbito ataque de loucura, um furor destrutivo. Felizmente Tertuliano Máximo Afonso, apesar de alguns comportamentos que têm dado a entender o contrário, e que certamente não foram os últimos, é feito de uma boa massa, por uns instantes havia perdido o domínio da situação., mas já o tem recuperado. Por muito esforço que tenhamos de fazer, sabemos que só abrindo os olhos se pode sair de um pesadelo, mas o remédio, neste caso, foi fechá-los, não os próprios, mas os do reflexo no espelho. Tão eficazmente como se de um muro se tratasse, um jacto de espuma de sabão separou estes outros irmãos siameses que ainda não se conhecem, e a mão direita de Tertuliano Máximo Afonso, espalmada sobre o espelho, desfez o rosto de um e o rosto do outro, tanto assim que nenhum dos dois poderia encontrar-se e reconhecer-se agora na superfície lambuzada de uma espuma branca com laivos negros que vão escorrendo e a pouco e pouco se diluem. Tertuliano Máximo Afonso deixou de ver a imagem do espelho, agora está sozinho em casa. Meteu-se debaixo do duche e, embora seja, desde que nasceu, radicalmente céptico quanto às espartanas virtudes da água fria, dizia-lhe o pai que não havia nada melhor no mundo para dispor um corpo e agilitar um cérebro, pensou que apanhá-la em cheio esta manhã, sem mistura das decadentes mas deliciosas águas mornas, talvez resultasse beneficioso para a sua esvaída cabeça e acordasse de uma vez o que no seu interior intenta, a cada momento, como quem não quer a coisa, deslizar-se para o sono.
Lavado e enxuto, penteado sem o auxílio do espelho, entrou no quarto, fez rapidamente a cama, vestiu-se e passou à cozinha para preparar o pequeno-almoço, composto, como de costume, de sumo de laranja, torradas, café com leite, iogurte, os professores precisam de ir bem alimentados à escola para poderem arrostar com o duríssimo trabalho de plantar árvores ou simples arbustos da sabedoria em terrenos que, na maior parte dos casos, puxam mais para o sáfaro que para o fecundo. Ainda é muito cedo, a sua aula não principiará antes das onze, mas, ponderadas as circunstâncias, compreende-se que estar em casa não seja o que hoje mais lhe apeteça. Voltou à casa de banho a lavar os dentes, e, enquanto o fazia, ocorreu-lhe se seria dia de vir limpar-lhe a casa a vizinha do andar de cima, uma mulher já de idade, viúva e sem filhos, que há seis anos lhe aparecera à porta a oferecer os seus serviços depois de se ter apercebido de que o novo vizinho também vivia só. Não, hoje não é dia, poderá deixar o espelho tal como está, a espuma já começou a secar, desfaz-se ao mais leve contacto dos dedos, mas por enquanto ainda se mantém agarrada e não se vê ninguém a espreitar por baixo dela. O professor Tertuliano Máximo Afonso está pronto para sair, já decidiu que levará o carro para reflectir com calma sobre os últimos e perturbadores sucessos, sem ter de padecer os apertões e os atropelos dos transportes públicos que, por óbvios motivos económicos, com mais frequência tem sido seu costume utilizar. Meteu os exercícios dentro da pasta, parou três segundos a olhar o resguardo do vídeo, era uma boa altura para seguir os conselhos do senso comum, retirar a cassete do leitor, metê-la na caixa e ir dali directamente à loja, Aqui tem, diria ao empregado, pensei que teria interesse, mas não, não valeu a pena, e foi uma perda de tempo, Quer levar outro, perguntaria o empregado esforçando-se por recordar o nome deste cliente que ainda ontem cá esteve, dispomos de um sortido muito completo, bons filmes de todos os géneros, tanto antigos como modernos, ah, Tertuliano, claro está que as duas últimas palavras somente seriam pensadas e o sorriso irónico paralelo apenas imaginado. Demasiado tarde, o professor de História Tertuliano Máximo Afonso já vai a descer a escada, não é esta a primeira batalha que o senso comum terá de resignar-se a perder.
Devagar, como quem decidiu aproveitar a primeira hora da manhã para gozar de um passeio, deu uma volta pela cidade, durante a qual, apesar da ajuda de alguns sinais vermelhos e amarelos mais tardos no passar, não lhe serviu de nada puxar pela cabeça para encontrar saída para uma situação que, como para qualquer pessoa informada seria evidente, está, toda ela, nas suas mãos. O mau do caso é que, e ele próprio o confessou a si mesmo, em voz alta, ao entrar na rua onde a escola está situada, Quem me dera que fosse capaz de atirar este disparate para trás das costas, esquecer-me desta loucura, olvidar este absurdo, aqui fez uma pausa para pensar que o primeiro elemento da frase teria sido suficiente, e depois concluiu, Mas não posso, o que mostra à sociedade a que ponto já chegou a obsessão deste desnorteado homem. A aula de História, como foi mencionado antes, é só às onze, e ainda faltam quase duas horas. Mais cedo ou mais tarde o colega de Matemática aparecerá nesta sala dos professores onde Tertuliano Máximo Afonso, que o espera, finge, com falsa naturalidade, rever os exercícios que trouxe na pasta. Um observador atento talvez não levasse muito tempo a aperceber-se da simulação, mas para tal teria de saber que nenhum professor, destes rotineiros, iria pôr-se a reler pela segunda vez o que já deixara corrigido na primeira, e não tanto pela possibilidade de encontrar novos erros e portanto ter de introduzir novas emendas, mas por uma mera questão de prestígio, de autoridade, de suficiência, ou apenas porque o corrigido, corrigido está, e não necessita nem admite volta atrás. Não faltaria mais que ter Tertuliano Máximo Afonso de emendar os seus próprios erros, supondo que em um destes papéis, que agora está olhando sem ver, corrigiu o que estava certo e pôs uma mentira no lugar de uma verdade inesperada. As melhores invenções, nunca será de mais lembrá-lo, são as de quem não sabia. Foi nesta altura que o professor de Matemática entrou. Viu o colega de História e foi logo direito a ele, Bons dias, disse, Olá, bons dias, Interrompo, perguntou, Não, não, que ideia, estava só a passar uma segunda vista de olhos, praticamente já tenho tudo corrigido, Que tal vão, Quem, Os seus rapazes, O costume, assim assim, nem bem, nem mal, Exactamente como nós quando tínhamos a idade deles, disse o de Matemática, a sorrir. Tertuliano Máximo Afonso estava à espera de que o colega lhe perguntasse se finalmente se tinha decidido a alugar o vídeo, se o vira, se gostara, mas o professor de Matemática parecia ter esquecido o assunto, apartado o espírito do interessante diálogo do dia anterior. Foi servir-se de um café, voltou a sentar-se e, sossegadamente, estendeu o jornal em cima da mesa, disposto a inteirar-se do estado geral do mundo e do país. Depois de percorrer os títulos da primeira página e franzir o nariz a cada um deles, disse, Às vezes pergunto-me se a primeira culpa do desastre a que este planeta chegou não terá sido nossa, disse, Nossa, de quem, minha, sua, perguntou Tertuliano Máximo Afonso, fazendo-se interessado, mas confiando que a conversa, mesmo com um início tão afastado das suas preocupações, acabasse por levá-los ao âmago do caso, Imagine um cesto de laranjas, disse o outro, imagine que uma delas, lá no fundo, começa a apodrecer, imagine que, uma após outra, vão todas podrecendo, quem é que poderá, nessa altura, pergunto eu, dizer onde a podridão principiou, Essas laranjas a que está a referir-se são países, ou são pessoas, quis saber Tertuliano Máximo Afonso, Dentro de um país, são as pessoas, no mundo são os países, e como não há países sem pessoas, por elas é que o apodrecimento começa, inevitavelmente, E por que teríamos tido de ser nós, eu, você, os culpados, Alguém foi, Observo-lhe que não está a tomar em consideração o factor sociedade, A sociedade, meu querido amigo, tal como a humanidade, é uma abstracção, Como a matemática, Muito mais que a matemática, ao pé delas a matemática é tão concreta como a madeira desta mesa, Que me diz, então, dos estudos sociais, Não é raro que os chamados estudos sociais sejam tudo menos estudos sobre pessoas, Livre-se de que o ouçam os sociólogos, condená-lo-iam à morte cívica, pelo menos, Contentar-se com a música da orquestra em que se toca e com a parte que nela lhe coube tocar, é um erro muito espalhado, sobretudo entre os que não são músicos, Alguns terão mais responsabilidades que outros, você e eu, por exemplo, estamos relativamente inocentes, ao menos dos males piores, Esse costuma ser o discurso da boa consciência, Que o diga a boa consciência, não deixa por isso de ser verdade, O melhor caminho para uma desculpabilização universal é chegar à conclusão de que, porque toda a gente tem culpas, ninguém é culpado, Se calhar não há nada que possamos fazer, são os problemas do mundo, disse Tertuliano Máximo Afonso, como para rematar a conversação, mas o matemático rectificou, O mundo não tem mais problemas que os problemas das pessoas, e, tendo deixado cair esta sentença, meteu o nariz no jornal. Os minutos passavam, a hora da aula de História aproximava-se, e Tertuliano Máximo Afonso não via maneira de entrar no assunto que lhe interessava. Poderia, claro está, interpelar o colega directamente, perguntar-lhe, de olhos nos olhos, A propósito, a propósito já se sabe que não vinha, mas as muletas da linguagem existem precisamente para situações como estas, uma urgente necessidade de passar a outro assunto sem parecer que se tem particular empenho nele, uma espécie de faz-de-conta-que-me-lembrei-agora-mesmo socialmente aceite, A propósito, diria, você notou que o empregado da recepção no filme é o meu vivo retrato, mas isto seria o mesmo que exibir a carta principal de um jogo, meter terceira pessoa num segredo que ainda nem sequer era de duas, com a subsequente e futura dificuldade para furtar-se a perguntas curiosas, por exemplo, Então, já se encontrou com esse tal seu sósia. Foi neste momento que o professor de Matemática levantou os olhos do jornal, Então, perguntou, sempre alugou o filme, Aluguei, aluguel, respondeu Tertuliano Máximo Afonso alvoroçado, quase feliz, E que lhe pareceu, É divertido, Fez-lhe bem à depressão, quer dizer, ao marasmo, Marasmo ou depressão, tanto dá, não é no nome que está o mal, Fez-lhe bem, Acho que sim, pelo menos consegui rir com algumas situações. O professor de Matemática levantou-se, tinha também os seus alunos à espera, que ocasião melhor do que esta para que Tertuliano Máximo Afonso pudesse enfim dizer, A propósito, quando foi que viu o Quem Porfia Mata Caça pela última vez, a pergunta não tem importância, é só uma curiosidade, A última vez foi primeira e a primeira foi última, Quando o viu, Há coisa de um mês, emprestou-mo um amigo, Julguei que fosse seu, da sua colecção, Homem, se fosse meu ter-lho-ia emprestado, não o faria ir gastar dinheiro no aluguer. Estavam já no corredor, a caminho das aulas, Tertuliano Máximo Afonso sentindo o espírito solto, aliviado, como se o marasmo se tivesse evaporado de repente, desaparecido no infinito espaço, quem sabe se para não voltar nunca mais. Na próxima esquina separar-se-iam, cada qual para seu lado, e foi depois de lá chegarem, quando já ambos tinham dito, Até logo, que o professor de Matemática, quatro passos andados, se voltou para trás e perguntou, A propósito, você reparou que na fita há um actor, um secundário, que se parece muitíssimo consigo, pusesse você um bigode como o dele e seriam como duas gotas de água. Como um fulmíneo raio, o marasmo veio disparado das alturas e reduziu a ciscos a fugaz boa disposição de Tertuliano Máximo Afonso. Apesar disso, fazendo das tripas coração, ainda pôde responder com uma voz que parecia desmaiar em cada sílaba, Sim, reparei, é uma coincidência assombrosa, absolutamente extraordinária, e acrescentou, esboçando um sorriso sem cor, A mim só me falta o bigode e a ele ser professor de História, no resto qualquer diria que somos iguais. O colega olhou-o com estranheza, como se acabasse de reencontrá-lo depois de uma longa ausência, Agora me recordo de que você, aqui há uns anos, também usava bigode, disse, e Tertuliano Máximo Afonso, desatendendo a cautela, tal como aquele homem perdido que não quis ouvir conselhos, respondeu, Se calhar, nesse tempo, o professor era ele. O de Matemática aproximou-se, pôs-lhe a mão no ombro, paternal, Homem, você está realmente muito deprimido, uma coisa destas, uma coincidência como há tantas, sem importância, não deveria afectá-lo a este ponto, Não estou afectado, simplesmente dormi pouco, passei mal a noite, O mais provável foi ter passado mal a noite precisamente por estar afectado.
O professor de Matemática sentiu o ombro de Tertuliano Máximo Afonso tornar-se tenso debaixo da sua mão, como se todo o corpo, dos pés à cabeça, tivesse endurecido de repente, e foi tão forte o choque recebido, a impressão tão intensa, que o forçou a retirar o braço. Fê-lo o mais devagar que pôde, procurando que não se percebesse que sabia ter sido repelido, mas a insólita dureza do olhar de Tertuliano Máximo Afonso não lhe permitia dúvidas, o pacífico, o dócil, o submisso professor de História a quem se habituara a tratar com amigável mas superior indulgência, é neste momento outra pessoa. Perplexo, como se o tivessem posto diante de um jogo de que não soubesse as regras, disse, Bom, vemo-nos mais tarde, hoje não almoço na escola. Tertuliano Máximo Afonso baixou a cabeça como única resposta e foi para a aula.
Ao contrário da errónea afirmação deixada cinco linhas atrás, que contudo nos dispensaremos de corrigir in loco uma vez que este relato se situa pelo menos um grau acima do mero exercício escolar, o homem não havia mudado, o homem era o mesmo. A repentina alteração de humor observada em Tertuliano Máximo Afonso e que tão abalado havia deixado o professor de Matemática não fora mais que uma simples manifestação somática da patologia psíquica vulgarmente conhecida como ira dos mansos. Fazendo um breve desvio à matéria central, talvez consigamos entender-nos melhor se nos reportarmos à divisão clássica, é certo que algo desacreditada pelos modernos avanços da ciência, que distribuía os temperamentos humanos em quatro grandes tipos, a saber, o melancólico, produzido pela bílis negra, o fleumático, que obviamente resultava da fleuma, o sanguíneo, relacionado não menos obviamente com o sangue, e finalmente o colérico, que era consequência da bílis branca. Como facilmente se verifica, nesta divisão quaternária e primariamente simétrica dos humores não havia lugar onde pudesse arrumar-se a comunidade dos mansos. No entanto, a História, que nem sempre se equivoca, assegura-nos que eles já existiam, e até em grande número, naqueles tempos remotos, tal como hoje a Actualidade, capítulo da História que sempre está por escrever, nos diz que não só continuam a existir, como existem ainda em muito maior número. A explicação desta anomalia, que, aceitando-a, tanto nos serviria para compreender as obscuras penumbras da Antiguidade como as festivas iluminações do Agora, talvez possa encontrar-se no facto de, quando da definição e estabelecimento do quadro clínico acima descrito, um outro humor haver sido esquecido. Referimo-nos à lágrima. É surpreendente, para não dizer filosoficamente escandaloso, que algo tão visível, tão corrente e tão abundante como sempre foram as lágrimas tenha passado despercebido aos venerandos sábios da Antiguidade e tão pouca consideração mereça aos não menos sábios se bem que menos venerandos do Agora. Perguntar-se-á que tem esta extensa digressão que ver com a ira dos mansos, sobretudo se tomarmos em conta que a Tertuliano Máximo Afonso, que tão flagrantemente lhe deu vazão, não o vimos chorar até agora. A denúncia que acabamos de fazer da ausência da lágrima na teoria da medicina humoral não significa que os mansos, por natureza mais sensíveis, e portanto mais propensos a essa manifestação líquida dos sentimentos, andem todo o santo dia de lenço na mão assoando o nariz e enxugando de minuto a minuto os olhos pisados de choro. Significa, sim, que muito bem poderá uma pessoa, homem ou mulher, estar a despedaçar-se no seu interior por efeito da solidão, do desamparo, da timidez, daquilo que os dicionários descrevem como um estado afectivo desencadeado nas relações sociais e com manifestações volitivas, posturais e neurovegetativas, e não obstante, às vezes até por causa de uma simples palavra, por um dá-cá-aquela-palha, por um gesto bem intencionado mas em excesso protector, como aquele que há pouco escapou ao professor de Matemática, eis que o pacífico, o dócil, o submisso de repente desaparecem da cena e em seu lugar, desconcertante e incompreensível para os que da alma humana já supunham saber tudo, surge o ímpeto cego e arrasador da ira dos mansos. O mais normal é que dure pouco, mas dá medo quando se manifesta. Por isso, para muita gente, a prece mais fervorosa, na hora de ir para a cairia, não é o consabido pai-nosso ou a sempiterna ave-maria, mas sim esta, Livrai-nos, Senhor, de todo o mal, e em particular da ira dos mansos. Aos alunos de História ter-lhes-ia saído bem a oração, se dela fizessem consumo habitual, o que, tendo em consideração o jovens que são, é mais do que duvidoso. Já lhes chegará o tempo. É verdade que Tertuliano Máximo Afonso entrou na aula de cara amarrada, o que, observado por um estudante que se cria mais perspicaz que a maioria, o levou a sussurrar para o colega do lado, Parece que o tipo vem com a mosca, mas não era certo, o que se notava no professor já era o efeito final da tormenta, uns últimos e dispersos golpes de vento, uma bátega de chuva que se tinha deixado ficar para trás, as árvores menos flexíveis levantando custosamente a cabeça. A prova de que era assim foi que depois de fazer a chamada com voz firme e serena disse, Tinha pensado guardar para a semana que vem a revisão do nosso último exercício escrito, mas fiquei ontem com a noite livre e resolvi adiantar trabalho. Abriu a pasta, tirou os papéis, que pôs em cima da mesa, e continuou, As emendas estão feitas, as notas dadas em função dos erros cometidos, mas, ao contrário do costume, que seria entregar-vos simplesmente os exercícios, vamos dedicar o tempo desta aula à análise dos erros, isto é, quero ouvir de cada um de vocês as razões por que crêem ter errado, pode ser, inclusive, que as razões que me forem dadas me levem a mudar a nota. Fez uma pausa, e acrescentou, Para melhor. Os sorrisos na aula acabaram de levar as nuvens para longe.
Depois do almoço, Tertuliano Máximo Afonso participou, com a maior parte dos seus colegas, numa reunião que havia sido convocada pelo director a fim de ser analisada a última proposta de actualização pedagógica emanada do ministério, das mil e tantas que fazem da vida dos infelizes docentes uma tormentosa viagem a Marte através de uma interminável chuva de ameaçadores asteróides que, com demasiada frequência, acertam em cheio no alvo. Quando chegou a sua vez de falar, num tom indolente e monocórdico que os presentes estranharam, limitou-se a repetir uma ideia que ali deixara já de ser novidade e que era motivo invariável de alguns risinhos complacentes do plenário e de mal disfarçada contrariedade do director, Em minha opinião, disse ele, a única opção importante, a única decisão séria que será necessário tomar no que respeita ao conhecimento da História, é se deveremos ensiná-la de trás para diante ou, segundo a minha opinião, de diante para trás, todo o mais, não sendo despiciendo, está condicionado pela escolha que se fizer, toda a gente sabe que assim é, mas continua a fazer-se de conta que não. Os efeitos da perorata foram os de sempre, suspiro de mal resignada paciência do director, trocas de olhares e murmúrios entre os professores. O de Matemática também sorriu, mas o seu sorriso foi de amistosa cumplicidade, como se dissesse, Você tem razão, nada disto é para levar a sério. O gesto que Tertuliano Máximo Afonso lhe enviou meio disfarçadamente do outro lado da mesa significava que agradecia a mensagem, porém, ao mesmo tempo, algo que ia junto e que, na falta de um termo melhor, designaremos por sub-esto, recordava-lhe que o episódio do corredor não fora de todo esquecido. Por outras palavras, ao passo que o gesto principal se mostrava abertamente conciliador, dizendo, O que lá vai, lá vai, o subgesto, de pé atrás, matizava, Sim, mas não tudo. Neste meio-tempo a palavra tinha sido dada ao professor seguinte, e, enquanto este, ao contrário de Tertuliano Máximo Afonso, discorre com facúndia, propriedade e proficiência, aproveitemos para desenvolver um pouco, pouquíssimo para o que a complexidade da matéria necessitaria, a questão dos subgestos, que aqui, pelo menos tanto quanto é do nosso conhecimento, pela primeira vez se levanta. É costume dizer-se, por exemplo, que Fulano, Beltrano ou Sicrano, numa determinada situação, fizeram um gesto disto, ou daquilo, ou daqueloutro, dizemo-lo assim, simplesmente, como se o isto, ou o aquilo, ou o aqueloutro, dúvida, manifestação de apoio ou aviso de cautela, fossem expressões forjadas de uma só peça, a dúvida, sempre metódica, o apoio, sempre incondicional, o aviso, sempre desinteressado, quando a verdade inteira, se realmente a quisermos conhecer, se não nos contentarmos com as letras gordas da comunicação, reclama que estejamos atentos à cintilação múltipla dos subgestos que vão atrás do gesto como a poeira cósmica vai atrás da cauda do cometa, porque esses subgestos, para recorrermos a uma comparação ao alcance de todas as idades e compreensões, são como as letrinhas pequenas do contrato, que dão trabalho a decifrar, mas estão lá. Embora ressalvando a modéstia que as conveniências e o bom gosto aconselham, em nada nos surpreenderia se, num futuro muito próximo, o estudo, a identificação e a classificação dos subgestos viessem, cada um por si e conjuntamente, a tornar-se num dos mais fecundos ramos da ciência semiológica em geral. Casos mais extraordinários que este se têm visto. O professor que estava no uso da palavra concluiu agora mesmo o seu discurso, o director vai dar continuação à roda de intervenções, mas Tertuliano Máximo Afonso levanta energicamente a mão direita, em sinal de que quer falar, O director perguntou-lhe se o que tinha para comentar se reportava aos pontos de vista que acabavam de ser expendidos, e acrescentou que, no caso de assim ser, as normas assemblárias em uso determinavam, como ele não deveria ignorar, que se aguardasse o final das declarações de todos os participantes, mas Tertuliano Máximo Afonso respondeu que não senhor, não é um comentário nem se reporta às pertinentes considerações do prezado colega, que sim senhor, conhece e sempre acatou as normas, tanto as que estão em uso como as que caíram em desuso, o que simplesmente pretendia era pedir licença para se retirar por ter assuntos urgentes a tratar fora da escola. Desta vez não foi um subgesto, mas sim um subtom, um harmónico, digamos, o que veio dar nova força à incipiente teoria acima exposta quanto à importância que deveríamos dar às variações, não só segundas e terceiras, mas também quartas e quintas, da comunicação, tanto a gestual como a oral. No caso que nos interessa, por exemplo, todos os presentes se haviam apercebido de que o subtom emitido pelo director expressara um sentimento de alívio profundo por baixo das palavras que tinha efectivamente pronunciado, Ora essa, por quem é, disponha sempre. Tertuliano Máximo Afonso despediu-se da assembleia com um aceno amplo de mão, um gesto para o geral, um subgesto para o director, e saiu. O carro estava estacionado perto da escola, em poucos minutos encontrava-se dentro dele, olhando firmemente o caminho em direcção ao que seria, por enquanto, o seu único destino consequente com os acontecimentos sucedidos desde a tarde do dia anterior, a loja onde alugara o vídeo do filme Quem Porfia Mata Caça. Esboçara um plano no refeitório enquanto, sozinho, almoçava, aperfeiçoara-o sob o escudo protector das soporíferas intervenções dos colegas, e agora tinha na sua frente o empregado da loja de vídeos, aquele que achara muita graça ao facto de o cliente se chamar Tertuliano e que, após a transacção comercial que não tardará a realizar-se, passará a ter motivos mais que suficientes para reflectir sobre a concomitância entre a raridade de um nome e o estranhíssimo comportamento de quem o usa. Ao princípio não pareceu que assim fosse acontecer, Tertuliano Máximo Afonso entrou como qualquer pessoa, deu, como qualquer pessoa, as boas-tardes, e, como qualquer pessoa, pôs-se a percorrer as estantes, devagar, detendo-se aqui e além, torcendo o pescoço para ler as lombadas das caixas que continham as cassetes, até que finalmente se dirigiu ao balcão e disse, Venho comprar o vídeo que levei daqui ontem, não sei se se recorda, Recordo-me perfeitamente, foi o Quem Porfia Mata Caça, Exacto, venho comprá-lo, Com todo o prazer, mas, se me permite a observação, obviamente faço-a só no seu interesse, seria melhor que nos devolvesse a cassete que alugou e levasse um vídeo novo, é que, com o uso, sabe, sempre há uma certa deterioração tanto da imagem como do som, mínima, sim, mas com o tempo começa-se a notar, Não vale a pena, disse Tertuliano Máximo Afonso, para aquilo que pretendo, o que levei serve muito bem. O empregado registou perplexo as intrigantes palavras para-aquilo-que- pretendo, não é frase que em geral se considere necessário aplicar a um vídeo, um vídeo quer-se para ver, foi para isso que nasceu, que o fabricaram, não há que dar-lhe mais voltas. A singularidade do cliente, porém, não iria ficar por aqui. Na mira de atrair futuras transacções, o empregado tinha resolvido distinguir Tertuliano Máximo Afonso com a melhor prova de apreço e consideração comercial que existe desde os fenícios, Desconto-lhe o aluguer no preço, dissera, e quando procedia à subtracção ouviu que o cliente lhe perguntava, Tem por acaso outros filmes da mesma produtora, Suponho que quererá dizer do mesmo realizador, rectificou o empregado cautelosamente, Não, não, eu disse da mesma produtora, é a produtora que me interessa, não o realizador, Desculpe-me, é que, em tantos anos de actividade neste ramo, nunca nenhum cliente me tinha feito tal pedido, perguntam pelos títulos dos filmes, muitas vezes vêm pelos nomes dos actores, e só muito de tempos a tempos é que alguém me fala de um realizador, de produtores é que nunca, Digamos então que pertenço a um tipo especial de clientes, Realmente, assim parece, senhor Máximo Afonso, murmurou o empregado, depois de lançar um rápido olhar à ficha do cliente. Sentia-se aturdido, confuso, mas também satisfeito pela súbita e feliz inspiração que tivera de se dirigir ao cliente tratando-o pelos apelidos, os quais, sendo também nomes próprios, talvez lograssem, a partir de agora, no seu espírito, empurrar para a sombra o nome autêntico, o nome verdadeiro, aquele que em uma má hora lhe dera vontade de rir. Esquecera-se de que tinha ficado a dever uma resposta ao cliente, se dispunha ou não dispunha na loja doutros filmes da mesma produtora, foi preciso que Tertuliano Máximo Afonso lhe repetisse a pergunta, acrescentando-lhe uma aclaração que esperava fosse capaz de corrigir a reputação de pessoa excêntrica que pelos vistos já havia adquirido no estabelecimento, A razão do meu interesse por ver outros filmes desta produtora relaciona-se com o facto de ter actualmente em fase bastante adiantada de preparação um estudo sobre as tendências, as inclinações, os propósitos, as mensagens, tanto as explícitas como as implícitas e subliminares, em suma, os sinais ideológicos que uma determinada empresa produtora de cinema, descontando o grau efectivo de consciência com que o faça, vai, passo a passo, metro a metro, fotograma a fotograma, difundindo entre os consumidores. À medida que Tertuliano Máximo Afonso havia desenrolado o seu discurso, o empregado, de puro assombro, de pura admiração, ia arregalando mais e mais os olhos, definitivamente conquistado por um cliente que não só sabia o que queria como também dava as melhores razões para querê-lo, coisa sobre todas rara no comércio e em particular nestas lojas de aluguer de vídeos. Há que dizer, no entanto, que uma aborrecida nódoa maculava de interesse baixamente mercantil o puro assombro e a pura admiração patentes na arroubada cara do empregado, e foi ela, em simultâneo, o pensamento de que sendo a produtora em questão uma das mais activas e antigas do mercado, este cliente, a quem não devo esquecer-me de tratar sempre por senhor Máximo Afonso, acabará deixando na caixa registadora uma boa quantidade de dinheiro quando chegar ao fim do tal trabalho, estudo, ensaio, ou lá o que seja. Evidentemente, haveria que levar em conta que nem todos os filmes tinham sido comercializados em vídeo, mas, ainda assim, o negócio prometia, valia a pena, A minha ideia, para começar, disse o empregado, já recuperado do deslumbramento primeiro, seria pedir à produtora uma lista de todos os filmes, Sim, talvez, respondeu Tertuliano Máximo Afonso, mas isso não e o mais urgente, aliás é muito provável que não venha a precisar de ver todos os filmes produzidos, portanto principiaremos pelos que têm aqui, e depois, consoante os resultados e as conclusões a que for chegando, assim orientarei as minhas futuras escolhas. As esperanças do empregado murcharam subitamente, ainda o balão estava em terra e parecia que já perdia gás. Mas, enfim, os pequenos negócios têm destes problemas, não é porque o burro deu o coice que se lhe vai partir a perna, e se não foste capaz de enriquecer em vinte e quatro meses, talvez o possas conseguir se te esforçares vinte e quatro anos. Com a armadura moral mais ou menos restabelecida graças às virtudes curativas destes pedacinhos de ouro da paciência e da resignação, o empregado anunciou enquanto dava a volta ao balcão e se dirigia às estantes, Vou ver o que temos por aí, ao que Tertuliano Máximo Afonso respondeu, Se os houver, bastar-me-ão cinco ou seis para começar, desde que possa levar trabalho para esta noite, já seria bom, Seis vídeos são pelo menos nove horas de visionamento, lembrou o empregado, terá de fazer serão. Desta vez Tertuliano Máximo Afonso não respondeu, olhava o cartaz anunciador de um filme da mesma companhia produtora, chamava-se A Deusa do Palco e devia ser muito recente. Os nomes dos principais actores encontravam-se escritos em diferentes tamanhos e dispunham-se no espaço do cartaz de acordo com o lugar de maior ou menor relevância que ocupavam no firmamento cinematográfico nacional. Evidentemente, não estaria ali o nome do actor que em Quem Porfia Mata Caça interpreta o papel de recepcionista de hotel. O empregado da loja regressou da sua exploração, trazia empilhados seis vídeos que colocou em cima do balcão, Temos mais, mas como disse que só queria cinco ou seis, Está bem assim, amanhã ou depois passarei por aqui para levar os que tiver encontrado, Acha que devo encomendar mais alguns dos que faltam, perguntou o empregado, tentando avivar as amortecidas esperanças, Comecemos pelos que tem aqui, depois veremos. Não valia a pena insistir, o cliente sabia realmente o que queria. De cabeça, o empregado multiplicou por seis o preço unitário dos vídeos, pertencia às escolas antigas, ao tempo em que ainda não existiam calculadoras de bolso nem com elas se sonhava, e disse um número. Tertuliano Máximo Afonso rectificou, Esse é o preço dos vídeos, não é o valor do aluguer, Como tinha comprado o outro, pensei que também queria comprar estes, justificou-se o empregado, Sim, pode suceder que venha a comprá-los, algum ou até mesmo todos, mas primeiro preciso de os ver, de os visionar, creio que é esta a palavra correcta, saber se têm o que procuro. Vencido pela irrefutabilidade da lógica do cliente, o empregado refez as contas rapidamente e enfiou os vídeos num saco de plástico. Tertuliano Máximo Afonso pagou, deu as boas-tardes até amanhã e saiu. Quem te pôs o nome de Tertuliano sabia o que fazia, resmungou entredentes o vendedor frustrado.
Para o relator, ou narrador, na mais do que provável hipótese de se preferir uma figura beneficiada com o sinete da aprovação académica, o mais fácil, chegado a este ponto, seria escrever que o percurso do professor de História através da cidade, e até entrar em casa, não teve história. Como uma máquina manipuladora do tempo, mormente no caso de o escrúpulo profissional não ter permitido a invenção de uma zaragata de rua ou de um acidente de trânsito com a única finalidade de encher os vazios da intriga, aquelas três palavras, Não Teve História, empregam-se quando há urgência em passar ao episódio seguinte ou quando, por exemplo, não se sabe muito bem que fazer com os pensamentos que a personagem está a ter por sua própria conta, sobretudo se não têm qualquer relação com as circunstâncias vivenciais em cujo quadro supostamente se determina e actua. Ora, nesta exacta situação se encontrava o professor e novel amador de vídeos Tertuliano Máximo Afonso enquanto ia guiando o seu carro. É verdade que pensava, e muito, e com intensidade, mas os pensamentos dele eram a tal extremo alheios ao que nas últimas vinte e quatro horas tinha andado a viver, que se resolvêssemos tomá-los em consideração e os trasladássemos a este relato, a história que nos havíamos proposto contar teria de ser inevitavelmente substituída por outra. É certo que poderia valer a pena, melhor ainda, uma vez que conhecemos tudo sobre os pensamentos de Tertuliano Máximo Afonso, sabemos que valeria a pena, mas isso representaria aceitar como baldados e nulos os duros esforços até agora cometidos, estas quarenta compactas e trabalhosas páginas já vencidas, e voltar ao princípio, à irónica e insolente primeira folha, desaproveitando todo um honesto trabalho realizado para assumir os riscos de uma aventura, não só nova e diferente, mas também altamente perigosa, que, não temos dúvidas, a tanto os pensamentos de Tertuliano Máximo Afonso nos arrastariam. Fiquemos portanto com este pássaro na mão em vez da decepção de ver dois a voar. Além disso, não há tempo para mais. Tertuliano Máximo Afonso acabou de arrumar o carro, percorre a pequena distância que o separa de casa, numa das mãos leva a sua pasta de professor, na outra o saco de plástico, que pensamentos haveria de ter agora se não deitar contas a quantos vídeos irá conseguir visionar, bicudo verbo, antes de ir para a cama, é o resultado de interessar-se por secundários, fosse este uma estrela e tê-lo-íamos aí logo às primeiras imagens. Tertuliano Máximo Afonso já abriu a porta, já entrou, também já fechou a porta, põe a pasta em cima da secretária e, ao lado, o saco com os vídeos. O ar está limpo de presenças, ou talvez simplesmente não se notem, como se o que aqui entrou ontem à noite se tivesse tornado, entretanto, parte inseparável da casa. Tertuliano Máximo Afonso foi ao quarto mudar de roupa, abriu o frigorífico da cozinha para ver se lhe apetecia algo do que tinha dentro, tornou a fechá-lo e voltou à sala com um copo e uma lata de cerveja. Tirou os vídeos do saco e dispô-los por ordem de datas de produção, desde o mais antigo, O Código Maldito, dois anos antes do já visto Quem Porfia Mata Caça, até ao mais recente, A Deusa do Palco, do ano passado. Os quatro restantes, também seguindo a mesma ordem, são Passageiro Sem Bilhete, A Morte Ataca de Madrugada, O Alarme Tocou Duas Vezes e Telefona-me Outro Dia. Um movimento reflexo, involuntário, provocado certamente pelo último destes títulos, fê-lo virar a cabeça para o seu próprio telefone. A luz que informava haver chamadas no gravador estava acesa. Hesitou uns segundos, mas acabou por carregar no botão que as faria ouvir. A primeira era de uma voz feminina que não se anunciou, provavelmente por de antemão saber que a reconheceriam, disse apenas, Sou eu, e logo continuou, Não sei o que se passa contigo, há uma semana que não me telefonas, se a tua intenção é acabar, melhor que mo digas na cara, o facto de termos discutido no outro dia não devia ser motivo para esse silêncio, mas tu lá sabes, quanto a mim sei que gosto de ti, adeus, um beijo. A segunda chamada foi da mesma voz, Por favor, telefona-me. Havia uma terceira chamada, mas essa era do colega de Matemática, Meu caro, dizia, tenho a impressão de que você hoje se aborreceu comigo, mas, com toda a sinceridade, não recordo o que é que eu possa ter feito ou dito para que tal sucedesse, penso que deveríamos conversar, esclarecer qualquer mal-entendido que se tenha metido entre nós, se eu tiver de vir a pedir-lhe desculpas, rogo-lhe que tome já esta chamada como o princípio delas, um abraço, creio que deve saber que sou seu amigo. Tertuliano Máximo Afonso franziu as sobrancelhas, recordava vagamente que acontecera na escola algo irritante ou desagradável em que entrava o de Matemática, mas não conseguia lembrar-se do que fosse. Fez desandar o mecanismo de escuta, ouviu novamente as duas primeiras chamadas, desta vez com um meio sorriso e uma expressão fisionómica daquelas a que costumamos chamar sonhadoras. Levantou-se para retirar do leitor a cassete de Quem Porfia Mata Caça e introduzir-lhe O Código Maldito, mas no último momento, já com o dedo no botão de arranque, apercebeu-se de que, se o fizesse, iria cometer uma gravíssima infracção, saltar um dos pontos sequenciais do plano de acção que havia elaborado, isto é, copiar do final de Quem Porfia Mata Caça os nomes dos secundários de terceira ordem, esses que, não obstante preencherem um tempo e um espaço na historieta, não obstante pronunciarem algumas palavras e servirem de satélites, minúsculos, claro está, ao serviço dos enlaces e das órbitas cruzadas das estrelas, não têm direito a um nome daqueles de pôr e tirar, tão necessários na vida como na ficção, embora talvez não pareça bem dizê-lo. É certo que o poderia fazer depois, em qualquer altura, mas a ordem, como do cão se diz também, é a melhor amiga do homem, embora, como o cão, de quando em quando morda. Ter um lugar para cada coisa e ter cada coisa no seu lugar sempre foi uma regra de ouro nas famílias que prosperaram, assim como tem sido abundantemente demonstrado que executar em boa ordem o que se deve foi sempre a mais sólida apólice de seguro contra as avantesmas do caos. Tertuliano Máximo Afonso pôs a correr rapidamente para o fim a já conhecida fita de Quem Porfia Mata Caça, travou-a onde lhe interessava, na tal lista dos secundários, e, com a imagem parada, copiou para uma folha de papel os nomes dos homens, só os dos homens, porque desta vez, contra o que tem sido habitual, o objecto da busca não é uma mulher. Supomos que o que aí ficou dito foi mais do que bastante para se poder entender a operação que Tertuliano Máximo Afonso havia delineado na sua árdua cavilação, ou seja, proceder à identificação do recepcionista do hotel, esse que foi o seu retrato escrito e escarrado no tempo em que usava bigode, que certamente o continua a ser agora, sem ele, e quem sabe se amanhã também, quando as entradas do cabelo nas fontes de um começarem a abrir caminho em direcção à calvície do outro. O que Tertuliano Máximo Afonso se propôs, no fim de contas, foi uma modesta repetição do prestidigitado ovo-de-colombo, tomar nota de todos os nomes de actores secundários, tanto dos filmes em que tenha participado o empregado do hotel como daqueles a que não tenha sido chamado. Por exemplo, se neste filme que acaba de introduzir no leitor, O Código Maldito, não lhe aparecer a sua cópia humana, poderá riscar na primeira lista todos aqueles nomes que em Quem Porfia Mata Caça se repetirem, Já sabemos que para um neanderthal não lhe serviria de nada a cabeça se se visse numa situação destas, mas para um professor de História, habituado a lidar com figuras dos mais desvairados lugares e épocas, considere-se que ainda ontem esteve a ler no erudito livro sobre as antigas civilizações mesopotâmicas o capítulo que trata dos semitas amorreus, esta versão pobre do tesouro escondido não passa de uma brincadeira de crianças que talvez não devesse ter merecido da nossa parte tão miúda e circunstanciada explicação. Afinal, ao contrário do que antes havíamos suposto, o recepcionista do hotel reapareceu mesmo em O Código Maldito, agora na figura de um caixa de banco que, sob a ameaça de uma pistola e exagerando os tremeliques de medo, decerto para tornar-se mais convincente aos insatisfeitos olhos do realizador, não teve outro remédio que transferir o conteúdo do cofre para uma bolsa que o assaltante lhe tinha atirado pelo guichê dentro, ao mesmo tempo que rosnava com a boca torcida que caracteriza o género gangsteril, Ou tu me enches o saco, ou eu te encho de chumbo, escolhe. Fazia bom uso dos verbos e das conjugações reflexas, este bandido. O caixa interveio mais duas vezes na acção, a primeira para responder a perguntas da polícia, a segunda quando o gerente do banco decidiu retirá-lo do balcão porque, traumatizado pelo sucedido, todos os clientes tinham começado a parecer-lhe ladrões. Faltou dizer que este caixa de banco usava o mesmo tipo de bigode fino e lustroso que o empregado do hotel. Desta vez, Tertuliano Máximo Afonso já não sentiu suores frios a escorrerem-lhe pelas costas abaixo, já não lhe tremeram as mãos, parava a imagem por alguns segundos, observava-a com uma curiosidade fria, e seguia adiante. Tratando-se de um filme em que o homem idêntico, sósia, siamês desligado, prisioneiro do castelo de zenda ou algo ainda à espera de classificação havia participado, o método para prosseguir na busca da sua identidade real teria de ser naturalmente diferente, marcando-se agora todos os nomes que, em comparação com a primeira lista, aparecessem repetidos na segunda. Foram dois, apenas dois, os que Tertuliano Máximo Afonso assinalou com uma cruz. Ainda vinha distante a hora de jantar, o apetite não dava a mínima mostra de impaciência, poderia portanto ver o filme que cronologicamente se seguia, Passageiro Sem Bilhete era o seu título, e bem poderiam ter-lhe chamado Tempo Perdido, ao homem da máscara de ferro não o haviam contratado. Tempo perdido, diz-se, mas afinal não tanto, porque graças a ele alguns nomes mais puderam ser riscados na primeira lista e na segunda, Por exclusão de partes, hei-de conseguir lá chegar, disse em voz alta Tertuliano Máximo Afonso, como se de repente tivesse sentido a necessidade de uma companhia. O telefone tocou. O menos provável de todos os possíveis era que se tratasse do colega de Matemática, o mais possível de todos os prováveis era que fosse a mesma mulher que antes fizera as duas chamadas. Também podia ser a mãe querendo saber lá de longe como estava de saúde o filho querido. Após uns quantos toques, o telefone calou-se, sinal de que o mecanismo do gravador entrara em funcionamento, a partir de agora as palavras registadas ficarão à espera de quando e quem as quiser escutar, a mãe que pergunta, Como tens passado, meu filho, o amigo que insiste, Não creio ter feito nada errado, a amante que se desespera, Não te merecia isto. Seja o que for que se encontre ali dentro, a Tertuliano Máximo Afonso não lhe apetece ouvi-lo. Para se distrair, mais porque o estômago tivesse reclamado alimento, foi à cozinha preparar uma sanduíche e abrir outra cerveja. Sentou-se num banco, mastigou sem prazer a escassa comida, enquanto o pensamento, deixado à solta, se entregava aos seus devaneios. Percebendo que a vigilância consciente tinha esmorecido numa espécie de delíquio, o senso comum, que depois da sua enérgica primeira intervenção havia andado não se sabe por onde, insinuou-se entre dois fragmentos inconclusos daquele vago discorrer e perguntou a Tertuliano Máximo Afonso se ele se sentia feliz com a situação que tinha criado. Devolvido ao sabor amargo de uma cerveja que perdera rapidamente a frescura e à mole e húmida consistência de um fiambre de baixa qualidade espremido entre duas fatias de falso pão, o professor de História respondeu que a felicidade não tinha nada que ver com o que se estava a passar ali, e, quanto à situação, pedia licença para recordar que não fora ele quem a criara. De acordo, não a criaste tu, respondeu o senso comum, mas a maior parte das situações em que nos metemos nunca teriam chegado tão longe se não as tivéssemos ajudado, e tu não me vais negar que ajudaste esta, Tratou-se de pura curiosidade, nada mais, Já discutimos isso, Tens alguma coisa contra a curiosidade, O que eu estou a observar é que a vida, até agora, não te ensinou a compreender que a nossa melhor prenda, nossa do senso comum, tem sido precisamente, e desde sempre, a curiosidade, Em minha opinião, senso comum e curiosidade são incompatíveis, Como te enganas, suspirou o senso comum, Prova-mo, Quem julgas tu que inventou a roda, Não sabemos, Sabemos, sim senhor, a roda foi inventada pelo senso comum, só uma enorme quantidade de senso comum é que teria sido capaz de a inventar, E a bomba atómica, foi também o teu senso comum que a inventou, perguntou Tertuliano Máximo Afonso no tom triunfante de quem acabou de apanhar o adversário descalço, Não, essa não, a bomba atómica inventou-a também um senso, mas esse de comum não tinha nada, O senso comum, perdoa-me que to diga, é conservador, aventuro-me mesmo a afirmar que é reaccionário, Essas cartas acusatórias sempre chegam, mais cedo ou mais tarde toda a gente as escreve e toda a gente as recebe, Então será certo, se são assim tantos os que têm estado de acordo em escrevê-las e os que não têm outra alternativa que recebê-las, a não ser escrevê-las também, Devias saber que estar de acordo nem sempre significa compartilhar uma razão, o mais de costume é reunirem-se pessoas à sombra de uma opinião como se ela fosse um guarda-chuva, Tertuliano Máximo Afonso abriu a boca para responder, se a expressão abriu a boca é permitida tratando-se de um diálogo todo ele silencioso, todo ele mental, como foi o caso deste, mas o senso comum já ali não estava, tinha-se retirado sem ruído, não propriamente derrotado, mas indisposto consigo mesmo por ter permitido que a conversa se desviasse do assunto que o tinha feito reaparecer. Se é que não fora simplesmente sua a culpa de que assim tivesse sucedido. De facto, não é raro que o senso comum se equivoque nas sequências, para mal depois de ter inventado a roda, para pior depois de ter inventado a bomba atómica. Tertuliano Máximo Afonso olhou o relógio, fez contas ao tempo que lhe tomaria outro filme, na verdade começava a sentir os efeitos da mal dormida noite anterior, as pálpebras, com a ajuda também da cerveja, pesavam-lhe como chumbo, mesmo a abstracção em que há pouco caíra não devia ter tido outra causa. Se vou já para a cama, disse, acordo provavelmente daqui por duas ou três horas, e depois é pior. Decidiu ver um bocado de A Morte Ataca de Madrugada, até podia ser que o tipo não entrasse neste filme, isso simplificaria tudo, saltaria para o final, tomaria nota dos nomes, e então, sim, iria para a cama.
Saíram-lhe furados os cálculos. O tipo aparecia, fazia de auxiliar de enfermagem e não tinha bigode. Os pêlos de Tertuliano Máximo Afonso tornaram a eriçar-se, desta vez só os dos braços, o suor deixou-lhe as costas em sossego, e, normal, não frio, contentou-se com humedecer-lhe de leve a testa. Viu o filme todo, pôs a cruzinha num outro nome que se repetia, e foi-se deitar. Ainda leu duas páginas do capítulo sobre os semitas amorreus, depois apagou a luz. O seu último pensamento consciente foi para o colega de Matemática. Realmente, não sabia que motivos poderia dar-lhe que explicassem a súbita frieza com que o tratara no corredor da escola. Ter-me posto a mão no ombro, perguntou, e logo deu a resposta, Ficarei com cara de parvo se o disser, e ele volta-me as costas, que era o que faria eu se estivesse no seu lugar. O último segundo antes de adormecer usou-o para murmurar, talvez falando consigo mesmo, talvez com o colega, Há coisas que nunca se poderão explicar por palavras.
Não é bem assim. Houve um tempo em que as palavras eram tão poucas que nem sequer as tínhamos para expressar algo tão simples como Esta boca é minha, ou Essa boca é tua, e muito menos para perguntar Por que é que temos as bocas juntas. Às pessoas de agora não lhes passa pela cabeça o trabalho que deram a criar estes vocábulos, em primeiro lugar, e quem sabe se não terá sido, de tudo, o mais difícil, foi preciso perceber que havia necessidade deles, depois houve que chegar a um consenso sobre o significado dos seus efeitos imediatos, e finalmente, tarefa que nunca viria a concluir-se por completo, imaginar as consequências que poderiam advir, a médio e a longo prazo, dos ditos efeitos e dos ditos vocábulos. Comparado com isto, e ao invés do que tão peremptoriamente o senso comum afirmou ontem à noite, a invenção da roda foi um mero bambúrrio, como o viria a ser o descobrimento da lei da gravitação universal só porque uma maçã se lembrou de ir cair em cima da cabeça de Newton. A roda inventou-se e ficou logo ali inventada para todo o sempre, enquanto as palavras, aquelas e todas as mais, essas vieram ao mundo com um destino nevoento, difuso, o de serem organizações fonéticas e morfológicas de carácter eminentemente provisório, ainda que,,graças, porventura, à auréola herdada da sua auroral criação, teimem em querer passar, não tanto por si próprias, mas por aquilo que de modo variável vão significando e representando, por imortais, imorredouras, ou eternas. segundo os gostos do classificador. Esta tendência congénita, a que não saberiam nem poderiam resistir, tomou-se, com o decorrer do tempo, em um gravíssimo e se calhar insolúvel problema de comunicação, quer a colectiva de todos, quer a particular de tu a tu, que foi o de acabarem por confundir-se os alhos e os bugalhos, as tornas e as deixas, usurpando as palavras o lugar daquilo que antes, melhor ou pior, pretendiam expressar, do que resultou, finalmente, bem te conheço ó máscara, esta atroadora algazarra de latas vazias, este cortejo carnavalesco de latões com rótulo mas sem nada dentro, ou apenas, já desvanecendo- se, o cheiro evocativo dos alimentos para o corpo e para o espírito que algum dia contiveram e guardavam. A tão longe dos nossos assuntos nos levou esta ramalhuda reflexão sobre as origens e os destinos das palavras, que agora não temos outro remédio que voltar ao princípio. Ao contrário do que possa ter parecido, não foi a mera casualidade que nos levou a escrever aquilo de que Esta boca é minha, nem aquilo de Essa boca é tua, e muito menos aquilo de Por que é que temos as bocas juntas. Tivesse Tertuliano Máximo Afonso empregado algum do seu tempo anos atrás, porém com a condição de o ter feito na hora certa, a pensar nas consequências e nos efeitos, a médio e a longo prazo, de frases como aquelas e como outras que ao mesmo fim tendem e inclinam, que muito provavelmente não estaria agora a olhar para o telefone, a coçar perplexo a cabeça, e a perguntar-se que diabo poderá dizer à mulher que por duas vezes, se é que não foram três, deixou ontem a sua voz e os seus queixumes no gravador. O meio sorriso complacente e a expressão sonhadora que havíamos observado nele quando ontem à noite repetiu a audição das chamadas não passaram, feitas as contas, de um repreensivo sinal de presunção, e a presunção, sobretudo a da metade masculina do mundo, é como aqueles amigos fingidos que à menor contrariedade na nossa vida se escapam ou olham para o lado e assobiam a disfarçar. Maria da Paz, é este o esperançoso e doce nome da mulher que telefonou, não tardará a sair para o seu emprego, e, se Tertuliano Máximo Afonso não lhe fala agora mesmo, a pobre senhora vai ter de viver um dia mais em ânsias, o que, quaisquer que tenham sido os seus erros ou os seus pecados, se em verdade os cometeu, não seria realmente justo. Ou merecido, que foi o termo que ela preferiu usar. Deve dizer-se, no entanto, respeitando e obedecendo ao rigor dos factos, que a contrariedade em que Tertuliano Máximo Afonso se debate neste momento não resulta de estimáveis questões de ordem moral, de melindres de justiça ou injustiça, mas sim de saber que se ele não lhe telefona, ela telefonará, acarretando essa nova chamada um mais que provável acréscimo ao peso das recriminações anteriores, chorosas ou não. O vinho foi servido e em seu tempo saboreado, agora há que beber o resto azedo que ficou no fundo do copo. Como não nos faltarão ocasiões de comprovar no futuro, e ainda por cima em lances que irão submetê-lo a duras lições, Tertuliano Máximo Afonso não é aquilo a que se costuma chamar um mau tipo, inclusive poderíamos mesmo encontrá-lo honrosamente classificado numa lista de gente de boas qualidades que alguém tivesse resolvido elaborar de acordo com critérios não demasiado exigentes, mas, além de ser, como já se viu, susceptível em excesso, o que é um indício flagrante de pouca confiança em si mesmo, fraqueja gravemente pelo lado dos sentimentos, que em toda a sua vida nunca foram fortes nem duradouros. O seu divórcio, por exemplo, não foi uma daquelas coisas clássicas, de faca, açougue e alguidar, com traições, abandonos ou violências, foi antes o remate de um processo de definhamento contínuo do seu próprio sentimento amoroso, que a ele, por distracção ou indiferença, talvez não lhe importasse ficar a ver até que áridos desertos poderia chegar, mas que a mulher com quem estava casado, mais recta e inteira que ele, acabou por considerar insuportável e inadmissível, Foi por te amar que casei contigo, disse-lhe ela num célebre dia, hoje só a cobardia poderia obrigar-me a manter este casamento, E tu não és cobarde, disse ele. Não, não o sou, respondeu ela. As probabilidades de que esta por diversas considerações atractiva pessoa venha a ter um papel na história que estamos narrando são infelizmente muito reduzidas, para não dizer inexistentes, dependeriam de uma acção, de um gesto, de uma palavra deste seu ex-marido, palavra, gesto ou acção que o mais certo seria determiná-los alguma necessidade ou interesse seus, mas que, nesta altura, não temos maneira de vislumbrar. Essa é a razão por que não achámos necessário pôr-lhe um nome. Quanto a Maria da Paz, se vai durar ou não nestas páginas, por quanto tempo e para que fins, é assunto que atém às competências de Tertuliano Máximo Afonso, ele lá saberá o que lhe vai dizer quando se decidir a levantar o auscultador do telefone e marcar um número que conhece de cor. Não conhece de cor o número do colega de Matemática, por isso o está procurando na agenda, pelos vistos, afinal, não vai telefonar à Maria da Paz, pensou ser mais importante e urgente aclarar um insignificante diferendo que tranquilizar uma alma feminina em pena ou desferir-lhe o golpe de misericórdia. Quando a ex-mulher de Tertuliano Máximo Afonso disse que ela não era cobarde, teve muito cuidado em não o ofender com a afirmação ou a simples insinuação de que ele o fosse, mas, neste caso, como em tantos outros na vida, a bom entendedor meia palavra bastou, e, voltando ao cenário emocional e situacional de agora, esta sofredora e paciente Maria da Paz nem à metade de uma palavra vai ter direito, embora já tenha compreendido quase tudo quanto havia para compreender, isto é, que o seu noivo, amante, amigo de cama, ou como quer que se lhe chame nos tempos de hoje, se prepara para bater com a porta. Foi a mulher do professor de Matemática quem do outro lado atendeu o telefone, perguntou Quem faia com uma voz que disfarçava mal a irritação que lhe causava a chamada a uma hora destas, ainda matutina, não foi com qualquer meia palavra que o deu a entender, mas sim com um vibrante e finíssimo subtom, não há dúvida de que nos encontramos perante uma matéria que reclama a atenção de estudiosos de diversas áreas do conhecimento, em particular a dos teóricos do som, convenientemente assessorados pelos que desde há séculos mais sabem do assunto, estamos a referir-nos, claro está, à gente da música, aos compositores, em primeiro lugar, mas também aos intérpretes, que são quem tem de saber como aquilo se consegue. Tertuliano Máximo Afonso começou por se desculpar, depois disse o seu nome e perguntou se podia falar com, Um momento, vou chamá-lo, cortou a mulher, daí a pouco estava o colega de Matemática a dizer Bons dias e ele a responder Bons dias, outra vez se desculpou, que tinha acabado agora mesmo de ouvir a mensagem, Poderia guardar-me para falar consigo logo na escola, mas achei que deveria esclarecer o equívoco o mais rapidamente possível a fim de não deixar nascer mal-entendidos que depois se agravam, mesmo quando não se quer, No que a mim diz respeito, não existe qualquer mal-entendido, respondeu o de Matemática, a minha consciência está tão tranquila como a de uma criança de berço, Eu sei, eu sei, acudiu Tertuliano Máximo Afonso, a culpa é só minha, deste marasmo, desta depressão que me põe os nervos fora do lugar, fico susceptível, desconfiado, a imaginar coisas, Que coisas, perguntou o colega, Eu sei lá, coisas, por exemplo, que não sou considerado como julgo ser merecedor, às vezes tenho até a impressão de não saber exactamente o que sou, sei quem sou, mas não o que sou, não sei se me faço explicar, Mais ou menos, só não me diz qual foi a causa da sua, não sei como chamar-lhe, reacção, reacção está bem, Para lhe falar francamente, nem eu, foi uma impressão de momento, como se você me tivesse tratado de uma maneira, como hei-de dizer, paternalista, E quando foi que eu o tratei dessa paternalista maneira, para usar os seus termos, Estávamos no corredor, separávamo-nos para ir dar as aulas, e você pôs-me a mão no ombro, só podia ter sido um gesto de amizade, mas naquele momento caiu-me mal, como uma agressão, Já me lembro, Seria impossível que não se lembrasse, se eu tivesse no estômago um gerador eléctrico você teria caído ali mesmo, fulminado, Tão forte assim foi a rejeição, Talvez rejeição não seja a palavra mais apropriada, o caracol não rejeita o dedo que lhe toca, encolhe-se, Será a maneira que ele tem de rejeitar, Será, No entanto, você, à vista desarmada, não tem nada de caracol, Às vezes penso que nos parecemos muito, Quem, você e eu, Não, eu e o caracol, Saia-me dessa depressão e verá como tudo mudará de figura, É curioso, Quê, Ter-me dito agora essas palavras, Que palavras disse eu, Mudar de figura, Suponho que o sentido da frase ficou bastante claro, Sem dúvida, e eu compreendi-o, mas o que você acaba de dizer vem exactamente ao encontro de certas inquietações minhas recentes, Para que eu pudesse continuar a segui-lo, teria você de ser mais explícito, Ainda é demasiado cedo para isso, talvez um dia, Ficarei à espera. Tertuliano Máximo Afonso pensou, Esperarás toda a vida, e depois, Voltando ao que realmente importa, meu caro, o que lhe venho pedir é que me desculpe, Está desculpado, homem, está desculpado, ainda que realmente o caso não fosse para tanto, o que sucedeu foi você ter criado na sua cabeça aquilo a que se costuma chamar uma tempestade num copo de água, felizmente nesses casos os naufrágios são sempre à vista da praia, ninguém morre afogado, Obrigado por aceitar o incidente com bom humor, Não tem que agradecer, é da melhor vontade, Se o meu senso comum não andasse distraído com fantasias, fantasmas e sentenças que ninguém lhe pediu, ter-me-ia feito notar logo que a maneira como respondi ao seu generoso impulso tinha sido, mais do que exagerada, disparatada, Não se deixe enganar, o senso comum é demasiado comum para ser realmente senso, no fundo não passa de um capítulo da estatística, e o mais vulgarizado de todos, É interessante o que diz, nunca tinha pensado no velho e sempre aplaudido senso comum como um capítulo da estatística, mas, pensando bem, é isso que ele é, e não outra coisa, Note que também poderia ser um capítulo da História, aliás, agora que estamos a falar disto, há um livro que já deveria ter sido escrito, mas que, tanto quanto julgo saber, não existe, precisamente esse, Qual, Uma história do senso comum, Deixa-me sem fala, não me diga que é seu costume produzir a esta hora matinal ideias de calibre semelhante às que acabo de escutar, disse em ar de pergunta Tertuliano Máximo Afonso, Se me estimulam, sim, mas terá de ser depois do pequeno-almoço, respondeu o professor de Matemática, rindo, Vou passar a telefonar-lhe todas as manhãs, Cuidado, lembre-se do que aconteceu à galinha dos ovos de ouro, Vemo-nos logo, Sim, vemo-nos logo, e prometo-lhe que não voltarei a parecer-lhe paternalista, idade para ser meu pai, quase que a tem, Mais uma razão. Tertuliano Máximo Afonso pousou o auscultador, sentia-se satisfeito, aliviado, ainda por cima a conversa tinha sido importante, inteligente, não é todos os dias que aparece alguém a dizer-nos que o senso comum não é mais que um capítulo da estatística e que nas bibliotecas de todo o mundo falta um livro que narrasse a sua história desde que Adão e Eva foram expulsos do paraíso. Um olhar ao relógio informou-o de que Maria da Paz já deveria ter saído para o seu emprego no banco, que o assunto podia mais ou menos compor-se, ainda que temporariamente, com uma mensagem simpática no gravador dela, Depois logo verei. Por prudência, não fosse o diabo tecê-las, decidiu deixar passar meia hora. Maria da Paz vive com a mãe e sempre saem juntas de manhã, uma para o trabalho, a outra para a missa e para as compras do dia. A mãe de Maria da Paz tem sido muito de igrejas desde que enviuvou. Privada da magestade marital, a cuja sombra, crendo que se acolhera, havia murchado durante anos e anos, foi à procura de um outro senhor a quem servir, um senhor daqueles de para a vida e para a morte, um senhor que, além de tudo o mais, lhe oferecia a inapreciável vantagem de que não a deixaria outra vez viúva.
Terminada a meia hora de espera, Tertuliano Máximo Afonso ainda não via com claridade os termos em que conviria debitar a mensagem, havia começado por pensar que estaria bem um recado simples, em estilo simpático e natural, mas, como todos sabemos, os matizes entre simpático e antipático e entre natural e artificial são pouco menos que infinitos, geralmente o tom justo para cada circunstância sai-nos de forma espontânea, porém, quando já se vai de pé atrás, como é o caso de agora, tudo quanto num primeiro momento se nos tinha afigurado suficiente e adequado, irá parecer-nos curto ou excessivo no momento seguinte. Aquilo a que certa literatura preguiçosa chamou durante muito tempo silêncio eloquente não existe, os silêncios eloquentes são apenas palavras que ficaram atravessadas na garganta, palavras engasgadas que não puderam escapar ao aperto da glote. Depois de muito puxar pela cabeça, Tertuliano Máximo Afonso achou que, para maior segurança, o mais prudente seria escrever a mensagem e lê-la para o telefone. Eis o que lhe saiu depois de alguns papéis rasgados, Maria da Paz, cá ouvi as tuas mensagens, e o que tenho para te dizer é que devemos agir com calma, tomar as decisões certas para um e para outro, sabendo que a única coisa que dura toda a vida é a vida, o resto é sempre precário, instável, fugidio, a mim o tempo já me ensinou esta grande verdade, mas uma coisa tenho por certa, que somos amigos e amigos vamos continuar a ser, o que necessitamos é de uma longa conversa, então já verás como tudo se resolverá pelo melhor, telefono-te um destes dias. Hesitou um segundo, o que ia a dizer não estava escrito, e terminou, Um beijo. Depois de desligar o telefone, releu o que escrevera e deu pela presença importuna de alguns matizes a que não prestara bastante atenção, menos subtis uns que outros, por exemplo, o insuportável nariz-de-cera de amigos somos, amigos seremos, é o pior que há para quem queira pôr ponto final numa relação de tipo amoroso, de contrário julgamos que tínhamos fechado a porta e afinal ficámos entalados nela, e também, para já não citar o beijo com que teve a debilidade de se despedir, aquele erro crasso de admitir que precisavam de ter uma longa conversa, mais do que obrigação tinha ele de saber, por experiência adquirida e contínua lição da História da Vida Privada através dos Séculos, que as longas conversas, em situações como estas, são terrivelmente perigosas, quantas vezes se tinha principiado com vontade de matar o outro e se acabou nos braços dele. Que mais poderia eu fazer, lamentou-se, está claro que não lhe podia dizer que tudo entre nós continuaria como antes, amor eterno e essas coisas, mas também não poderia, assim pelo telefone e sem que ela lá estivesse a ouvir, disparar-lhe o golpe final, zás, acabou-se, minha rica, seria uma atitude demasiado cobarde, e eu a esse ponto espero não chegar nunca. Com esta reflexão conciliatória, do género uma no cravo, outra na ferradura, decidiu Tertuliano Máximo Afonso contentar-se, sabendo, no entanto, ai dele, que o mais difícil ainda estava para vir. Fiz o melhor que pude, rematou.
Até agora não havíamos tido necessidade de saber em que dias da semana se estão dando estes intrigantes acontecimentos, mas as próximas acções de Tertuliano Máximo Afonso, para poderem ser plenamente compreendidas, exigem a informação de que este dia em que nos encontramos é sexta-feira, donde se tirará facilmente por conclusão que o dia de ontem foi quinta-feira e o de anteontem quarta. A muitos irão parecer provavelmente escusadas, óbvias, inúteis, absurdas, e até mesmo estúpidas, as informações complementares com que resolvemos beneficiar os dias de ontem e de anteontem, mas desde já nos adiantamos a contrapor que qualquer crítica que viesse a expressar-se nesses termos só por má-fé ou ignorância o faria, uma vez que, como é geralmente conhecido, línguas há no mundo que chamam à quarta-feira, por exemplo, mercredi, miercoles, miercoledi ou wednesday, à quinta-feira.jeudi, jueves, glovedi ou thursday, e à própria sexta-feira, se não tivéssemos tido o cuidado de lhe proteger frontalmente o nome, não faltaria por aí quem começasse já a chamar-lhe freitag. Não é que não o possa vir a ser no futuro, mas tudo tem o seu tempo, lá lhe chegará a hora. Iluminado este ponto, assente que estamos numa sexta-feira, referido que o professor de História, hoje, só terá aula na parte da tarde, recordado que amanhã, sábado, samedi, sábado, sabato, saturday, não haverá aulas, que portanto nos encontramos na véspera de um fim-de-semana, mas sobretudo porque não se deve deixar para amanhã o que deverá ser feito hoje, percebe-se que assistam a Tertuliano Máximo Afonso todas as razões para que vá esta manhã mesmo à loja dos vídeos a fim de alugar o que por lá tivesse ficado dos filmes que lhe interessam. Devolverá à procedência, por inútil à sua investigação, o Passageiro Sem Bilhete, e comprará firmes A Morte Ataca de Madrugada e O Código Secreto. Da encomenda de ontem ainda lhe ficam três, que representam pelo menos quatro horas e meia de visionamento, e, com mais o que trouxer da loja, tudo anuncia que o espera um fim-de-semana inesquecível, uma barrigada de cinema daquelas de lhe chegar com o dedo, como diziam os rústicos, enquanto os houve. Arranjou-se, tomou o pequeno-almoço, introduziu as cassetes nas respectivas caixas, guardou-as à chave em uma das gavetas da secretária e saiu, primeiro para avisar a vizinha do andar de cima de que a partir desse momento poderia descer quando quisesse para limpar e arrumar a casa, Esteja à vontade, só volto lá para o fim da tarde, disse, e depois, bastante menos alvoroçado que no dia anterior, mas ainda com algo do nervosismo típico de quem se dirige a um encontro que, não sendo o primeiro, precisamente por essa razão não se lhe irá tolerar que falhe, meteu-se no carro em direcção à loja de vídeos. É a altura de informar aqueles leitores que. ajuizando pelo carácter mais que sucinto das descrições urbanas feitas até agora, tenham criado no seu espírito a ideia de que tudo isto se está a passar numa cidade de tamanho mediano, isto é, abaixo do milhão de habitantes, é a altura de informar, dizíamos, que, muito pelo contrário, este professor Tertuliano Máximo Afonso é um dos cinco milhões e pico de seres humanos que, com diferenças importantes de bem-estar e outras sem a menor possibilidade de mútuas comparações, vivem na gigantesca metrópole que se estende pelo que antigamente haviam sido montes, vales e planícies, e agora é um sucessiva duplicação horizontal e vertical de um labirinto, de começo agravada por componentes que designaremos por diagonais, mas que, no entanto, com o decorrer do tempo, se revelaram até certo ponto equilibradores da caótica malha urbana, pois estabeleceram linhas de fronteira que, paradoxalmente, em lugar de terem separado, aproximaram. O instinto de sobrevivência, também disso se trata quando da cidade falamos, vale tanto para os animais como para os inanimais, termo reconhecidamente abstruso que não consta dos dicionários e que tivemos de inventar para que, com suficiência e propriedade, pudéssemos tornar transparentes, à simples vista, quer pelo sentido corrente da primeira palavra, animais, quer pela inopinada grafia da segunda, inanimais, as diferenças e as semelhanças entre as coisas e as não coisas, entre o inanimado e o animado. A partir de agora, ao pronunciar a palavra inanimal estaremos a ser tão claros e precisos como quando, no outro reino, já de todo perdida a novidade do ser e das suas designações, indiferentemente chamávamos ao homem animal e animal ao cão. Tertuliano Máximo Afonso, apesar de ensinar História, nunca percebeu que tudo o que é animal está destinado a tomar-se inanimal e que, por muito grandes que sejam os nomes e os feitos que os seres humanos tenham deixado inscritos nas suas páginas, é do inanimal que viemos e é para o inanimal que nos encaminhamos. Entretanto, porém, enquanto o pau vai e vem, como dantes diziam os já mencionados rústicos, querendo crer que no brevíssimo intervalo entre o ir e o vir do cacete tinham as costas tempo de folgar, Tertuliano Máximo Afonso dirige-se à loja dos vídeos, um dos muitos destinos intermédios que o esperam na vida. O empregado que o tinha atendido nas duas vezes que aqui veio estava ocupado com outro cliente. Fez de lá, no entanto, um sinal de reconhecimento e mostrou os dentes num sorriso que, sem aparente significado especial, podia disfarçar alguma turva intenção. Uma empregada que acudiu a informar-se do que desejava o recém-chegado foi travada no caminho por duas curtas mas imperiosas palavras, Eu atendo, e teve de voltar para trás depois de esboçar um pequeno sorriso que era, ao mesmo tempo, de compreensão e desculpa. Sendo nova na profissão e no estabelecimento, portanto sem experiência das sofisticadas artes do bem vender, ainda não estava autorizada a tratar com clientes de primeira classe. Não nos esqueçamos de que Tertuliano Máximo Afonso, além de ser o conhecido professor de História que sabemos e um reputado estudioso das grandes questões do audiovisualismo, é também um alugador de vídeos por grosso e atacado, como ontem se viu e hoje melhor se verá. Livre do primeiro cliente, o empregado, animado e pressuroso, aproximou-se, Bons dias, senhor professor, é um prazer vê-lo outra vez nesta sua casa, disse. Sem pretender pôr em dúvida a sinceridade e a cordialidade da recepção, é impossível, no entanto, deixar passar sem reparo a forte e aparentemente insanável contradição que se observa entre elas e os últimos dizeres murmurados ontem por este mesmo empregado depois que este mesmo cliente se retirou, Quem te pôs o nome de Tertuliano sabia o que fazia. A explicação, adiantamo-nos já, vai dá-la a pilha de vídeos que se encontra sobre o balcão, uns trinta, pelo menos. Perito nas antes referidas artes de bem vender, o empregado, logo a seguir ter largado sotto você aquele veemente desabafo, pensou que seria um erro deixar-se cegar pela decepção e que, não podendo fazer o excelente negócio de venda que primeiro se lhe havia antolhado, ainda lhe restava a possibilidade de levar o tal Tertuliano a alugar tudo quanto fosse possível arranjar da mesma companhia produtora, conservando, além disso, com alguns visos de fundamento, a esperança de vir a vender-lhe uma boa parte dos vídeos que tivesse alugado. A vida de negócio está cheia de alçapões e portas falsas, uma verdadeira caixa de surpresas nem sempre fáceis, há que ir sempre com uma mão atrás e outra adiante, usar de cálculo e malícia sem que o freguês possa aperceber-se da subtil manobra, limar as ideias preconcebidas que ele tenha levado para proteger-se, rodear-lhe as resistências, sondar-lhe os desejos ocultos, em suma, a nova trabalhadora ainda terá que comer muito pão e muito sal para estar à altura. O que o empregado da loja ignora é que Tertuliano Máximo Afonso tinha ido ali com o objectivo precisamente de se abastecer de filmes para todo o fim-de-semana, decidido como está a desbastar quantos vídeos se lhe apresentem, em lugar de contentar-se com a escassa meia dúzia que ainda ontem era sua intenção alugar. Desta maneira, uma vez mais, rendeu o vício homenagem à virtude, desta maneira a enalteceu quando pensou que a ia calcar aos pés. Tertuliano Máximo Afonso pôs o Passageiro Sem Bilhete em cima do balcão e disse, Este não me interessa, E os outros que levou, já resolveu o que vai fazer com eles, perguntou o empregado, Fico com A Morte Ataca de Madrugada e O Código Maldito, os três restantes ainda não os vi, São eles, se não me engano, A Deusa do Palco, O Alarme Tocou Duas Vezes e Telefona-me Outro Dia, recitou o empregado, depois de consultar a respectiva ficha, Exactamente, Quer dizer, o senhor professor aluga o Passageiro e compra a Morte e o Código, Exactamente, Muito bem, então o que vai ser hoje, tenho aqui, mas Tertuliano Máximo Afonso não lhe deu tempo a terminar a frase, Imagino que os vídeos que aí vejo foram apartados para mim, Exactamente, ecoou o empregado, hesitando in mente entre o contentamento de ter vencido sem luta e a decepção de não ter precisado de lutar para vencer, Quantos são, Trinta e seis, Isso dará quantas horas, Se continuarmos a fazer contas pela média de hora e meia cada filme, ora deixe-me ver, disse o empregado, deitando desta vez a mão à calculadora, Escusa de se cansar, eu digo-lho, são cinquenta e quatro horas, Como é que conseguiu tão depressa, perguntou o empregado, eu, desde que apareceram estas máquinas, embora não tenha perdido a habilidade para fazer cálculos de cabeça, uso-as para as operações mais complicadas, É facílimo, disse Tertuliano Máximo Afonso, trinta e seis meias horas são dezoito horas, logo, a soma das trinta e seis horas inteiras que já tínhamos com as dezoito de meias que obtivemos dá cinquenta e quatro, É professor de Matemática, De História, não de Matemática, o meu forte nunca foram os números, Pois até parecia, o saber é realmente uma coisa muito bonita, Depende do que se saiba, Também deverá depender de quem sabe, acho eu, Se foi capaz de chegar sozinho a essa conclusão, disse Tertuliano Máximo Afonso, não precisa de calculadoras para nada, O empregado não estava seguro de haver apreendido na sua totalidade o significado das palavras do cliente, mas pareceram-lhe agradáveis, simpáticas, até mesmo lisonjeiras, logo que chegasse a casa, se entretanto não as tivesse esquecido pelo caminho, não deixaria de as repetir à mulher. Atreveu-se a fazer a operação de multiplicar com papel e lápis, tantos vídeos a tanto, porque tinha decidido que ao menos diante deste cliente nunca mais usaria a calculadora. O resultado foi uma quantia bastante razoável, não como seria se em vez de um aluguer tivesse feito uma venda, mas este pensamento interesseiro, assim como veio, assim se foi, as pazes estavam definitivamente firmadas. Tertuliano Máximo Afonso pagou, depois pediu por favor, Faça-me dois pacotes com dezoito cassetes cada um enquanto eu vou buscar o carro, está demasiado longe para carregar com elas até lá. Um quarto de hora depois, era o próprio empregado da loja quem vinha meter os embrulhos no porta-bagagem, quem fechava a porta do automóvel depois de Tertuliano Máximo Afonso ter entrado, quem dizia adeus com um sorriso e um gesto de mão que eram a própria afeição em gesto e em sorriso, quem ia murmurando enquanto regressava ao balcão, Ainda dizem que as primeiras impressões são as que valem, aqui está uma pessoa que ao princípio não me caía nada bem, e afinal de contas. As ideias de Tertuliano Máximo Afonso seguiam por rumos muito diferentes, Dois dias são quarenta e oito horas, claro está que matematicamente não são bastantes para ver os filmes todos mesmo que eu não dormisse nesses dois dias, mas, se começar já esta noite, com todo o sábado e todo o domingo por diante, e tomando a sério como regra não visionar até ao fim os vídeos em que o tipo não apareça até metade da história, estou convencido de que terminarei a tarefa antes de segunda-feira. O plano de acção tinha ficado completo no sentido e acabado na forma, não necessitaria adendas, apêndices ou notas de pé-de-página, mas Tertuliano Máximo Afonso ainda insistiu, Se não aparecer até metade, também não aparecerá depois. Sim, depois. Esta é palavra que tem andado por aí à espera desde que o actor que interpretou a personagem de um recepcionista de hotel surgiu pela primeira vez no interessante e divertido filme Quem Porfia Mata Caça. E depois, perguntou o professor de História, como uma criança que não sabe que não adianta perguntar pelo que ainda não sucedeu, que farei depois disto, que farei depois de saber que esse homem entrou em quinze ou vinte filmes, que, tanto quanto pude verificar até agora, além de recepcionista, foi caixa de banco e auxiliar de enfermagem, que farei. Tinha a resposta na ponta da língua, mas só a deu um minuto mais tarde, Conhecê-lo.
Por causalidade ou desconhecida intenção, alguém terá ido dizer ao director da escola que o doutor Tertuliano Máximo Afonso se encontrava na sala dos professores, a fazer horas para o almoço segundo todas as aparências, uma vez que a sua única ocupação desde que ali entrara tinha sido a de ler os jornais. Não revia exercícios, não dava os últimos toques na preparação de uma lição, não tomava notas, apenas lia os jornais. Tinha começado por tirar da pasta a factura referente ao aluguer dos trinta e seis vídeos, pô-la aberta em cima da mesa e procurou no primeiro jornal a página dos espectáculos, secção cinema. Faria depois o mesmo com mais dois jornais. Ainda que, como sabemos, a sua adição à sétima arte seja de fresca data e a sua ignorância acerca de todas as questões atinentes à indústria da imagem continue praticamente inalterável, sabia, calculava, imaginava ou intuía que os filmes em estreia não seriam lançados imediatamente no mercado do vídeo. Para chegar a esta conclusão não era necessário ser-se dotado de uma portentosa inteligência dedutiva ou de mirabólicas vias de acesso ao conhecimento que prescindissem do raciocínio, tratou-se de uma simples e óbvia aplicação do mais corriqueiro senso comum, secção mercado, subsecção venda e aluguer. Procurou os cinemas de reposição e, um a um, de esferográfica em punho, foi confrontando os títulos dos filmes que neles se exibiam com os constantes da factura, marcando esta com uma cruzinha de cada vez que coincidiam. Se a Tertuliano Máximo Afonso perguntássemos por que motivo o estava fazendo, se era sua ideia ir ver naqueles cinemas os filmes de que já era possuidor em vídeo, o mais certo seria olhar-nos surpreendido, estupefacto, talvez mesmo ofendido por o julgarmos capaz de uma acção tão absurda, porém não nos daria uma explicação aceitável, salvo aquela que levanta muralhas à curiosidade alheia e que em duas palavras se diz, Porque sim. No entanto, nós que temos vindo a partilhar as confidências e a insinuar-nos nos segredos do professor de História, podemos informar que a despropositada operação não tem mais finalidade que a de manter fixada a sua atenção no único objectivo que desde há três dias lhe interessa, o de impedir que ela vá distrair-se, por exemplo, com as notícias dos jornais, como provavelmente os outros professores presentes na sala supõem ser sua ocupação neste exacto momento. A vida, porém, está feita de maneira que até portas que considerávamos solidamente fechadas e trancadas para o mundo se encontram à mercê deste modesto e solícito contínuo que acaba de entrar para comunicar que o senhor director manda pedir ao senhor doutor o favor de ir ao seu gabinete. Tertuliano Máximo Afonso levantou-se, dobrou os jornais, guardou a factura na carteira e saiu para o corredor onde se encontravam algum as das aulas.
O gabinete do director era no andar de cima, a escada de acesso tinha no telhado uma clarabóia tão baça por dentro e tão suja por fora que, tanto no inverno como no verão, só avaramente deixava passar para baixo alguma luz natural. Enfiou por outro corredor e parou na segunda porta. Como havia uma luz verde acesa, bateu com os nós dos dedos e abriu quando ouviu de dentro, Entre, deu os bons-dias, apertou a mão que o director lhe estendia e, a um sinal dele, sentou-se. Sempre que aqui entrava tinha a impressão de já ter visto este mesmo gabinete noutro lugar, era como um desses sonhos que sabemos ter sonhado mas que não conseguimos recordar quando despertamos. O chão estava alcatifado, a janela tinha um cortinado de grossos panos, a secretária era ampla, de estilo antigo, moderno o cadeirão de pele negra. Tertuliano Máximo Afonso conhecia estes móveis, este cortinado, esta alcatifa, ou julgava conhecê-los, possivelmente o que lhe aconteceu foi ter lido um dia num romance ou num conto a lacónica descrição de um outro gabinete de um outro director de uma outra escola, o que, assim sendo, e no caso de vir a ser demonstrado com o texto à vista, o obrigará a substituir por uma banalidade ao alcance de qualquer pessoa de razoável memória o que até hoje tinha pensado ser uma intersecção entre a sua rotineira vida e o majestoso fluxo circular do eterno retomo. Fantasias. Absorto na sua onírica visão, o professor de História não tinha ouvido as primeiras palavras do director, mas nós, que aqui sempre estaremos para as faltas, podemos dizer que não tinha perdido muito, apenas a retribuição dos seus bons dias, a pergunta Como tem passado, o preambular Pedi-lhe que viesse aqui para, daí em diante Tertuliano Máximo Afonso passou a estar presente em corpo e em espírito, com a luz dos olhos desperta e a do entendimento também. Pedi-lhe que aqui viesse, repetiu o director porque lhe tinha parecido perceber um certo ar de distracção na cara do interlocutor, para falar consigo sobre aquilo que nos disse na reunião de ontem acerca do ensino da História, Que foi que eu disse na reunião de ontem, perguntou Tertuliano Máximo Afonso, Não se lembra, Tenho uma vaga ideia, mas a minha cabeça está um pouco baralhada, quase não dormi esta noite, Sente-se doente, Doente, não, inquietações, nada mais, Já não é pouco, Não tem importância, senhor director, não se preocupe, O que você disse, palavra por palavra, tenho-o apontado aqui, neste papel, é que a única decisão séria que será necessário tomar no que respeita ao conhecimento da História é se deveremos ensiná-la de trás para diante ou de diante para trás, Não foi esta a primeira vez que o disse, Precisamente, tem-no dito tantas vezes que os seus colegas já não o tomam a sério, começam a sorrir logo às primeiras palavras, Os meus colegas são pessoas de sorte, têm o sorriso fácil, e o senhor director, Eu, quê, Pergunto se também não me toma a sério, se também sorri às primeiras palavras que digo, ou às segundas, Conhece-me o suficiente para saber que não sorrio facilmente, menos ainda num caso destes, quanto a tomá-lo a sério, está fora de qualquer discussão, você é um dos nossos melhores professores, os alunos estimam-no e respeitam-no, o que é milagre nos tempos que correm, Então não vejo o motivo por que me mandou chamar, Unicamente para lhe pedir que não tome, Que não torne a dizer que a única decisão séria, Sim, Portanto passarei a não abrir a boca durante as reuniões, se uma pessoa considera que tem algo importante para comunicar e as outras não o querem ouvir, é preferível que se deixe ficar calada, Pessoalmente sempre achei interessante a sua ideia, Obrigado, senhor director, mas não mo diga a mim, diga-o aos meus colegas, diga-o sobretudo ao ministério, aliás, a ideia nem sequer me pertence, não inventei nada, gente mais competente do que eu a propôs e a tem defendido, Sem resultados que se notem, Compreende-se, senhor director, falar do passado é o mais fácil que há, está tudo escrito, é só repetir, papaguear, conferir pelos livros o que os alunos escrevam nos exercícios ou digam nas chamadas orais, ao passo que falar de um presente que a cada minuto nos rebenta na cara, falar dele todos os dias do ano ao mesmo tempo que se vai navegando pelo rio da História acima até às origens, ou lá perto, esforçar-nos por entender cada vez melhor a cadeia de acontecimentos que nos trouxe aonde estamos agora, isso é outro cantar, dá muito trabalho, exige constância na aplicação, há que manter sempre a corda tensa, sem quebra, Acho admirável o que acaba de dizer, creio que até o ministro se deixaria convencer pela sua eloquência, Duvido, senhor director, os ministros são lá postos para nos convencerem a nós, Retiro o que lhe tinha dito antes, a partir de hoje apoiá-lo-ei sem reservas ' Obrigado, mas é melhor não criar ilusões, o sistema tem de prestar boas contas a quem de direito e esta é uma aritmética que não lhes agrada, Insistiremos, Houve já quem afirmasse que todas as grandes verdades são absolutamente triviais e que teremos de expressá-las de uma maneira nova e, se possível, paradoxal, para que não venham a cair no esquecimento, Quem disse isso, Um alemão, um tal Schlegel, mas o mais certo é que outros antes dele também o tenham dito, Faz pensar, Sim, mas a mim o que sobretudo me atrai é a fascinante declaração de que as grandes verdades não passam de trivialidades, o resto, a suposta necessidade de uma expressão nova e paradoxal que lhes prolongue a existência e as substantive, já não me diz respeito, sou apenas um professor de História do ensino secundário, Deveríamos conversar mais, meu caro, O tempo não chega para tudo, senhor director, além disso estão aí os meus colegas, que melhores coisas teriam com certeza para lhe dizer, por exemplo, como se responde com um sorriso fácil a palavras sérias, e os estudantes, não esqueçamos os estudantes, coitados, que por não terem com quem falar acabarão um dia por não terem nada para dizer, imagine o que seria a vida na escola com toda a gente à conversa, não faríamos mais nada, e o trabalho à espera. O director olhou o relógio e disse, O almoço também, vamos almoçar. Levantou-se, rodeou a secretária e, numa espontânea demonstração de estima, foi pôr a mão no ombro do professor de História, que igualmente se havia posto de pé. Inevitavelmente observou-se neste gesto algo de sentimento paternalista, mas isso, vindo da parte de um director, era o mais natural, o mais próprio até, uma vez que as relações humanas são o que sabemos. O susceptível gerador eléctrico de Tertuliano Máximo Afonso não reagiu ao contacto, sinal de que não tinha havido nenhum molestador exagero na manifestação de apreço que recebera, ou então, quem sabe, talvez o tivesse simplesmente desligado a esclarecedora conversa matinal com o professor de Matemática. Nunca se repetirá de mais aquela outra trivialidade de que as pequenas causas podem produzir grandes efeitos. Num momento em que o director voltou à secretária para recolher os óculos, Tertuliano Máximo Afonso olhou em redor, viu o cortinado, o cadeirão de pele negra, a alcatifa, e novamente pensou, Já aqui estive. Depois, talvez porque alguém tivesse aventado que poderia apenas haver lido em qualquer parte a descrição de um gabinete parecido a este, acrescentou outro pensamento ao que tinha pensado, Provavelmente, ler também é uma forma de estar lá. Os óculos do director já se encontravam no bolso superior do casaco, ele dizia, risonho, Vamos, e Tertuliano Máximo Afonso não poderá explicar agora nem saberá explicá-lo nunca por que é que de repente a atmosfera lhe pareceu ter-se tomado mais densa, como impregnada por uma presença invisível, tão intensa, tão poderosa como aquela que o despertara bruscamente na sua cama depois do primeiro vídeo. Pensou, Se eu aqui tivesse estado antes de ser professor da escola, isto que agora estou a sentir poderia não ser mais que uma memória de mim mesmo histericamente activada. O resto do pensamento, se algum resto havia ainda, ficou por desenvolver, o director já o levava pelo braço, dizia qualquer coisa relacionada com as grandes mentiras, se também elas seriam triviais, se, no caso delas, também os paradoxos poderiam impedir que caíssem no esquecimento. Tertuliano Máximo Afonso apanhou-lhe a ideia por uma unha negra, no último instante, Grandes verdades, grandes mentiras, suponho que com o tempo tudo se vai tomando trivial, os pratos do costume com o tempero de sempre, respondeu, Espero que isso não seja uma crítica à nossa cozinha, brincou o director, Sou freguês habitual, respondeu Tertuliano Máximo Afonso no mesmo tom. Desciam a escada para o refeitório, depois, no caminho, juntaram-se-lhes o colega de Matemática e uma professora de Inglês, para este almoço já estava completa a mesa do director. Então, perguntou o de Matemática em voz baixa num momento em que o director e a de Inglês se adiantaram, como se sente agora, Bem, muito bem mesmo, Tiveram alguma conversa, Sim, mandou-me chamar ao gabinete para me pedir que não tornasse àquilo de ensinar a História de pernas para o ar, De pernas para o ar, É uma maneira de dizer, E você, que lhe respondeu, Expliquei pela centésima vez o meu ponto de vista e creio que consegui convencê-lo finalmente de que o disparate era um pouco menos tolo do que lhe tinha parecido até agora, Uma vitória, Que não servirá para nada, De facto, nunca se sabe muito bem para que servem as vitórias, suspirou o professor de Matemática, Mas as derrotas sabe-se muito bem para que servem, sabem-no sobretudo os que lançaram na batalha tudo o que eram e tudo quanto tinham, mas desta permanente lição da História ninguém faz caso, Dir-se-ia que você está cansado do seu trabalho, Talvez, talvez, andamos a pôr o tempero de sempre nos pratos do costume, nada muda, Pensa deixar o ensino, Não sei com precisão, nem mesmo vagamente, o que penso ou o que quero, mas imagino que seria uma boa ideia, Abandonar o ensino, Abandonar qualquer coisa. Entraram no refeitório, instalaram-se à mesa os quatro, e o director, enquanto desdobrava o guardanapo, pediu a Tertuliano Máximo Afonso, Gostaria que repetisse aqui aos nossos colegas o que me disse há bocado, Sobre quê, Sobre a sua original concepção do ensino da História. A professora de Inglês começou a sorrir, mas a mirada que o aludido lhe deitou, parada, ausente e ao mesmo tempo fria, paralisou o movimento que principiara a esboçar-se nos lábios. Admitindo que concepção seja o termo próprio, senhor director, de original não tem nada, é uma coroa de louros que não foi feita para a minha cabeça, disse Tertuliano Máximo Afonso após uma pausa, Sim, mas o discurso que me deixou convencido era seu, retorquiu o director. Num instante o olhar do professor de História afastou-se dali, saiu do refeitório, percorreu o corredor e subiu ao andar de cima, atravessou a porta fechada do gabinete do director, viu o que já ia à espera de ver, depois regressou pelo mesmo caminho, tornou-se novamente presente, mas agora com uma expressão de perplexidade inquieta, um frémito de desassossego que roçava o temor. Era ele, era ele, era ele, repetia Tertuliano Máximo Afonso consigo mesmo, enquanto, com os olhos postos no colega de Matemática, mais palavra menos palavra, rememorava os lanços da sua metafórica navegação pelo rio do Tempo acima. Desta vez não dissera rio da História, achou que rio do Tempo iria causar mais impressão. A professora de Inglês tinha o rosto sério. Anda pelos sessenta anos, é mãe e avó, e, ao contrário do que teria começado por parecer, não é dessas pessoas que se dedicam a passear pela vida distribuindo sorrisos de mofa à esquerda e à direita. Sucedeu-lhe o mesmo que a tantos de nós, errarmos não porque fosse esse o nosso propósito, mas porque o erro se confundiu com um traço de união, com uma cumplicidade confortável, com a piscadela de olho de quem cria saber do que se tratava só porque outros o afirmavam. Quando Tertuliano Máximo Afonso terminou o seu breve discurso, viu que tinha convencido outra pessoa. Timidamente, a professora de Inglês murmurava, Podia-se fazer o mesmo com as línguas, ensiná-las dessa maneira, ir navegando até à nascente do rio, talvez assim viéssemos a perceber melhor o que é isto de falar, Não faltam especialistas que o saibam, lembrou o director, Mas não esta professora a quem mandaram ensinar Inglês como se não existisse nada antes. O colega de Matemática disse, sorrindo, Desconfio que esses métodos não dariam resultado com a aritmética, o número dez é teimosamente invariável, nem teve necessidade de passar pelo nove nem o devora a ambição de tomar-se onze. A comida tinha sido trazida à mesa, falou-se doutra coisa. Tertuliano Máximo Afonso já não estava tão certo de que o responsável pelo plasma invisível que se diluíra na atmosfera do gabinete do director fosse o caixa do banco. Nem ele, nem o empregado da recepção do hotel. Ainda por cima com aquele bigodinho ridículo, pensou, e depois, sorrindo tristemente para dentro, Devo estar a perder o juízo. Na aula que foi dar depois do almoço, totalmente fora de tom e de propósito, uma vez que a matéria não fazia parte do programa, passou o tempo todo a discretear sobre os semitas amorreus, sobre o Código de Hamurabi, sobre a legislação babilónica, sobre o deus Marduc, sobre o idioma acádico, com o resultado de ter feito mudar de opinião o aluno que no outro dia havia segredado ao colega do lado que o tipo vinha com a mosca. Agora, o diagnóstico, bem mais radical, foi que o tipo tinha um dos parafusos da cabeça fora do lugar ou que se lhe havia moído a rosca. Felizmente, a aula seguinte, para estudantes mais novos, decorreu com normalidade. Uma referência avulsa, de passagem, ao cinema histórico ainda foi acolhida com apaixonado interesse pela turma, mas o divertimento ficou-se por ali, não se falou de cleópatra, nem de espartaco, nem do corcunda de notre-dame, nem sequer do imperador napoleão bonaparte, que é pau para toda a colher. Um dia para esquecer, pensava Tertuliano Máximo Afonso quando entrou no carro para regressar a casa. Estava a ser injusto com o dia e consigo mesmo, afinal tinha conquistado para as suas ideias reformadoras o director e a professora de Inglês, seria menos um a sorrir na próxima reunião de professores, do outro não há que temer, ficámos cientes há poucas horas de que não tem o sorriso fácil.
A casa estava arrumada, limpa, a cama parecia de noivos, a cozinha como um brinco, a casa de banho rescendendo a olores de detergente, algo assim como cheiro de limão, que só de o respirar uma pessoa se lhe lustra o corpo e a alma se sublima. Nos dias em que a vizinha de cima desce a pôr em ordem esta casa de homem só, o morador dela vai comer fora, sente que seria uma falta de respeito sujar pratos, acender fósforos, descascar batatas, abrir latas, e então levar uma frigideira ao lume, isso nem pensar, que o azeite espirra para todos os lados. O restaurante está perto, na última vez que lá esteve comeu carne, hoje irá comer peixe, é preciso variar, se não tivermos cuidado a vida toma-se rapidamente previsível, monótona, uma seca. Tertuliano Máximo Afonso sempre teve muito cuidado. Sobre a pequena mesa de centro, na sala, estão já empilhadas as trinta e seis cassetes que trouxe da loja, numa gaveta da secretária guardam-se as três que sobraram da encomenda anterior e que ainda não foram vistas, a magnitude da tarefa que tem pela frente é simplesmente acabrunhante, Tertuliano Máximo Afonso não a desejaria nem ao seu maior inimigo, que aliás não sabe quem seja, talvez por ser ainda novo, talvez por ter tido tanto cuidado com a vida. Para se entreter até à hora de jantar pôs-se a ordenar as cassetes segundo as datas da produção do filme original, e, como não cabiam na mesa nem na secretária, decidiu alinhá-las no chão, ao longo de uma das estantes, a mais antiga, à esquerda, chama-se Um Homem como Qualquer Outro, a mais recente, à direita, A Deusa do Palco. Se Tertuliano Máximo Afonso fosse coerente com as ideias que anda a defender sobre o ensino da História ao ponto de as aplicar, sempre que tal fosse possível, às actividades correntes do seu dia-a-dia, visionária esta fileira de vídeos de diante para trás, isto é, principiaria por A Deusa do Palco e iria terminar em Um Homem como Qualquer Outro. É de todos conhecido, porém, que a enorme carga de tradição, hábitos e costumes que ocupa a maior parte do nosso cérebro lastra sem piedade as ideias mais brilhantes e inovadoras de que a parte restante ainda é capaz, e se é verdade que em alguns casos essa carga consegue equilibrar desgovernos e desmandos de imaginação que Deus sabe aonde nos levariam se fossem deixados à solta, também não é menos verdade que ela tem, com frequência, artes de submeter subtilmente a tropismos inconscientes o que críamos ser a nossa liberdade de actuar, como uma planta que não sabe por que terá sempre de inclinar-se para o lado de onde lhe vem a luz. O professor de História seguirá portanto fielmente o programa de ensino que lhe puseram nas mãos, verá portanto os vídeos de trás para diante, desde o mais antigo até ao mais recente, desde o tempo dos efeitos a que não precisávamos de chamar naturais até este outro tempo de efeitos a que chamámos especiais porque, não sabendo como se criam, fabricam e produzem, algum nome indiferente teríamos de lhes dar. Tertuliano Máximo Afonso já voltou do jantar, afinal não comeu peixe, o prato era de tamboril, e ele não gosta de tamboril, esse bentónico animal marinho que vive em fundos arenosos ou lodosos, desde o litoral aos mil metros de profundidade, um bicho de enorme cabeçorra, achatada e armada de fortíssimos dentes, com dois metros de comprimento e mais de quarenta quilos de peso, enfim, um animal pouco agradável de ver e que o paladar, o nariz e o estômago de Tertuliano Máximo Afonso nunca conseguiram suportar.
Toda esta informação a está ele a recolher neste momento de uma enciclopédia, movido finalmente pela curiosidade de saber alguma coisa acerca de um animal que desde o primeiro dia detestou. A curiosidade vinha de épocas atrasadas, de muito tempo atrás, mas só hoje, inexplicavelmente, é que estava a dar-lhe cabal satisfação. Inexplicavelmente, dizemos, e contudo deveríamos saber que não é assim, deveríamos saber que não há nenhuma explicação lógica, objectiva, para o facto de Tertuliano Máximo Afonso ter levado anos e anos sem conhecer mais do tamboril que o aspecto, o sabor e a consistência dos pedaços que lhe punham no prato, e de súbito, num certo momento de um certo dia, como se não tivesse nada mais urgente para fazer, eis que abre a enciclopédia e se informa. Estranha relação é a que temos com as palavras. Aprendemos de pequenos umas quantas, ao longo da existência vamos recolhendo outras que vêm até nós pela instrução, pela conversação, pelo trato com os livros, e, no entanto, em comparação, são pouquíssimas aquelas sobre cujas significações, acepções e sentidos não teríamos nenhumas dúvidas se algum dia nos perguntássemos seriamente se as temos. Assim afirmamos e negamos, assim convencemos e somos convencidos, assim argumentamos, deduzimos e concluímos, discorrendo impávidos à superfície de conceitos sobre os quais só temos ideias muito vagas, e, apesar da falsa segurança que em geral aparentamos enquanto tacteamos o caminho no meio da cerração verbal, melhor ou pior lá nos vamos entendendo, e às vezes, até encontrando. Se tivermos tempo e nos picar, impa ciente, a curiosidade, sempre acabaremos por saber o que é o tamboril. A partir de agora, quando o criado do restaurante tomar a sugerir-lhe o desgracioso lofídeo, o professor de História já saberá responder, Quê, esse horrendo bentónico que vive em fundos arenosos e lodosos, e acrescentará, definitivo, Nem pensar. A responsabilidade desta fastidiosa digressão piscícola e linguística tem-na toda Tertuliano Máximo Afonso por tardar tanto a meter Um Homem como Qualquer Outro no leitor de cassetes, como se estivesse estacado no sopé de uma montanha a deitar contas às forças de que vai precisar para lá chegar acima. Tal como parece que da natureza se diz, também a narrativa tem horror ao vazio, por isso, não tendo Tertuliano Máximo Afonso, neste intervalo, feito alguma coisa que valesse a pena relatar, não tivemos outro remédio que improvisar um chumaço de recheio que mais ou menos acomodasse o tempo à situação. Agora que ele se resolveu a tirar a cassete da caixa e a introduziu no leitor, poderemos descansar.
Passada uma hora, o actor ainda não havia aparecido, o mais certo era não ter entrado neste filme. Tertuliano Máximo Afonso fez correr a fita até ao fim, leu os nomes com toda a atenção e cortou na lista de participantes aqueles que se repetiam. Se lhe pedíssemos que nos explicasse por palavras suas o que tinha acabado de ver, o mais provável seria que nos atirasse com o olhar de enfado que se reserva aos impertinentes e nos respondesse com uma pergunta, Tenho eu cara de me interessar por semelhantes vulgaridades. Alguma razão haveríamos que reconhecer-lhe, porque, em realidade, os filmes que passou até agora pertencem à denominada série bê, produtos rápidos para consumo rápido que não aspiram a mais que entreter o tempo sem perturbar o espírito, como muito bem tinha expressado, embora por outros termos, o professor de Matemática. Já outra cassete foi metida no leitor, a esta chamam-lhe A Vida Alegre e vai fazer aparecer o sósia de Tertuliano Máximo Afonso num papel de porteiro de cabaré, ou de buate, não se chegará a perceber com clareza suficiente qual das duas definições assenta melhor ao estabelecimento de mundanais diversões em que decorrem jovialidades copiadas sem pudor das diversas versões de A Viúva Alegre. Tertuliano Máximo Afonso chegou a pensar que não valia a pena ver o filme todo, o que lhe importava, isto é se o seu outro eu entrava ou não na história, já o sabia, mas o enredo era tão gratuitamente intricado que se deixou levar até ao fim, surpreendendo-se ao começar a perceber no seu íntimo um sentimento de compaixão pelo pobre diabo que, além de abrir e fechar as portas dos automóveis, não fazia outra coisa que levantar e baixar o boné de pala para cumprimentar com um composto nem sempre subtil de respeito e cumplicidade os elegantes frequentadores que entravam e saíam. Eu, ao menos, sou professor de História, murmurou.
Uma declaração assim, que acintosamente tinha pretendido determinar e enfatizar a sua superioridade, não apenas profissional, mas também moral e social, em relação à insignificância do papel da personagem, estava a pedir uma resposta que repusesse a cortesia no seu devido lugar, e essa deu-a o senso comum com ironia que nele não é habitual, Cuidado com a soberba, Tertuliano, repara no que tens andado a perder não sendo actor, poderiam ter feito da tua pessoa um director de escola, um professor de Matemática, para professora de Inglês é evidente que não darias, terias de ser professor. Satisfeito consigo mesmo pelo tom da advertência, o senso comum, aproveitando que o ferro estava quente, descarregou outra vez o malho em cima dele, Obviamente, terias de ser dotado de um mínimo de talento para a representação, além disso, meu caro, tão certo como chamar-me eu Senso Comum, obrigar-te-iam a mudar de nome, nenhum actor que se preze ousaria apresentar-se em público com esse ridículo Tertuliano, não terias outro remédio que adoptar um pseudónimo bonito, ou talvez, pensando melhor, não fosse necessário, Máximo Afonso não estaria mal, vai pensando nisso. A Vida Alegre voltou para a caixa, o filme seguinte apareceu com um título sugestivo, do mais prometedor para a ocasião, Diz-me Quem És se chamava, mas não veio acrescentar nada ao conhecimento que Tertuliano Máximo Afonso já tem de si mesmo e nada às investigações em que está empenhado. Por desfastio deixou correr a fita até ao fim, pôs algumas cruzinhas na lista e, depois de olhar o relógio, decidiu-se a ir para a cama. Tinha os olhos congestionados, uma opressão nas fontes, um peso sobre o osso frontal, Isto não vai a matar, pensou, o mundo não se acaba se eu não conseguir ver os vídeos todos no fim-de-semana, e, se se acabasse, não seria este o único mistério que ficaria por resolver. Já estava deitado, à espera de que o sono acudisse ao chamamento do comprimido que havia tomado, quando algo que poderia ser outra vez o senso comum, mas que não se apresentou como tal, disse que, em sua opinião, sinceramente, o caminho mais fácil ainda seria telefonar ou ir pessoalmente à empresa produtora e perguntar, assim, com toda a naturalidade, o nome do actor que nos filmes tais e tais fez os papéis de empregado da recepção, caixa de banco, auxiliar de enfermagem e Porteiro de buate, aliás. eles já devem estar habituados, talvez estranhem que a pergunta se refira a um actor secundaríssimo, pouco mais que figurante, mas ao menos saltam a rutina de ter de falar de estrelas e astros o tempo todo.
Nebulosamente, já com as primeiras maranhas do sono a envolvê-lo, Tertuliano Máximo respondeu que a ideia não tinha nenhuma graça, era demasiado simples, ao alcance de qualquer. Não foi por isso que estudei história, rematou. As últimas palavras não tinham nada que ver com o caso, eram outra manifestação de soberba, mas devem desculpá-lo, é o comprimido que está a falar, não aquele que o tomou. De Tertuliano Máximo Afonsoem I pessoa foi, sim, já no limiar do sono. a consideração final, insolitamente lúcida como a chama da vela prestes a apagar-se, Quero chegar a ele sem que ninguém saiba e sem que ele o suspeite. Eram palavras definitivas, que não admitiam troco.
O sono fechou a porta. Tertuliano Máximo Afonso dorme.
Às onze horas da manhã Tertuliano Máximo Afonso já tinha visto três filmes, embora nenhum deles do princípio ao fim. Levantara-se muito cedo, limitara o pequeno-almoço a duas bolachas e uma chávena de café requentado, e, sem perder tempo a barbear-se, saltando as abluções que não fossem estritamente indispensáveis, de pijama e roupão como alguém que não espera visitas, lançou-se à empreitada do dia. Os dois primeiros filmes passaram debalde, mas o terceiro, cujo título era O Paralelo do Terror, trouxe à cena do crime um jovial fotógrafo da polícia que mascava chiclete e repetia, com a voz de Tertuliano Máximo Afonso, que tanto na morte como na vida tudo é questão de ângulo. No final a lista voltou a ser actualizada, foi riscado um nome, marcadas novas cruzes. Havia cinco actores assinalados cinco vezes, tantas quantos os filmes em que o sósia do professor de História tinha participado, e os seus nomes, por imparcial ordem alfabética, eram Adriano Maia, Carlos Martinho, Daniel Santa-Clara, Luís Augusto Ventura e Pedro Félix. Até este momento Tertuliano Máximo Afonso tinha andado perdido no mare magnum dos mais de cinco milhões de habitantes da cidade, mas a partir de agora só terá de se preocupar com menos de meia dúzia, e até com menos de menos de meia dúzia se um ou mais daqueles nomes vierem a ser eliminados por faltarem à chamada, É obra, murmurou, mas logo a seguir saltou-lhe aos olhos a evidência de que este outro trabalho de Hércules afinal não o havia sido tanto, uma vez que pelo menos dois milhões e quinhentas mil pessoas pertenciam ao sexo feminino e, portanto, estavam fora do campo da pesquisa. Não deverá surpreender-nos o esquecimento de Tertuliano Máximo Afonso, porquanto, em cálculos que abarquem grandes números, como no presente caso, a tendência a não contar com as mulheres é irresistível. Apesar da redução sofrida na estatística, Tertuliano Máximo Afonso foi à cozinha festejar com outro café os prometedores resultados. A campainha da porta tocou ao segundo gole, a chávena ficou parada no ar, a meio caminho da descida para o tampo da mesa, Quem será, perguntou, ao mesmo tempo que ia pousando suavemente a chávena. Poderia ser a prestável vizinha do andar de cima a querer saber se tinha encontrado tudo a seu gosto, poderia ser um desses jovens que fazem publicidade de enciclopédias em que se explicam os costumes do tamboril, poderia ser o colega das Matemáticas, não, este não era, nunca haviam sido visitas, Quem será, repetiu. Acabou de beber o café rapidamente e foi ver quem chamava. Atravessando a sala, lançou um olhar inquieto às caixas de vídeo espalhadas, à fila impassível das que, alinhadas no chão, ao longo da estante, esperavam a sua vez, a vizinha de cima, supondo que era ela, não iria gostar nada de ver neste estado deplorável o que ainda ontem lhe tinha dado tanto trabalho a arrumar. Não tem importância, ela não tem que entrar, pensou, e abriu a porta. Não era a vizinha de cima quem estava na sua frente, não era a jovem vendedora de enciclopédias a comunicar-lhe que tinha ao seu alcance, finalmente, o enorme privilégio de conhecer os costumes do tamboril, quem estava ali era uma mulher que até agora ainda não nos tinha aparecido mas de quem já sabíamos o nome, chama-se Maria da Paz, empregada num banco. Ah, és tu, exclamou Tertuliano Máximo Afonso, e logo, tentando disfarçar a perturbação, o desconcerto, Viva, que grande surpresa. Devia dizer-lhe que entrasse, Passa, passa, agora mesmo estava a beber um café, ou então, Estupendo que tenhas vindo, põe-te à vontade enquanto eu faço a barba e tomo um banho, mas era a custo que se afastava para o lado e lhe dava passagem, ah, se lhe pudesse dizer, Esperas aqui enquanto eu vou esconder uns vídeos que não quero que vejas, ah, se lhe pudesse dizer, Desculpa, vieste em má altura, neste momento não te posso dar atenção, volta amanhã, ah, se alguma coisa ainda lhe pudesse dizer, mas agora era demasiado tarde, tivesse-O pensado antes, a culpa era toda dele, o homem prudente deverá estar constantemente de pé atrás, de sobreaviso, deverá prever todas as eventualidades; sobretudo não esquecer que o procedimento mais correcto é em geral o mais simples, por exemplo, não ir ingenuamente abrir a porta só porque a campainha tocou, a precipitação dá sempre origem a complicações, é dos livros. Maria da Paz entrou com o à-vontade de quem conhece os cantos à casa, perguntou, Como tens passado, e logo, Ouvi o teu recado e penso como tu, precisamos de conversar, espero não ter vindo em má ocasião, Que ideia, disse Tertuliano Máximo Afonso, peço é que me desculpes por te receber desta maneira, despenteado, com a barba crescida e o aspecto de quem acabou de sair da cama, Vi-te outras vezes assim e nunca achaste que fosse preciso pedir desculpa, O caso, hoje, é diferente, Diferente, em quê, Sabes bem o que quero dizer, nunca vim receber-te à porta neste arranjo, de pijama e roupão, Foi uma novidade, quando já há tão poucas entre nós. A entrada para a sala estava a três passos, a estupefacção não tardaria a manifestar-se, Que demónio é isto, que fazes com todos estes vídeos, mas Maria da Paz ainda se deteve para perguntar, Não me dás um beijo, Claro, foi a infeliz e embaraçada resposta de Tertuliano Máximo Afonso, ao mesmo tempo que adiantava os lábios para a beijar na face. O masculino recato, se o era, resultou inútil, a boca de Maria da Paz tinha ido ao encontro da sua, e agora sugava-a, espremia-a, devorava-a, ao mesmo tempo que o corpo dela se colava de alto a baixo ao dele, como se não houvesse roupas a separá-los. Foi Maria da Paz quem por fim se despegou para murmurar, ofegando, uma frase que não chegou a concluir, Mesmo que me arrependa do que acabei de fazer, mesmo que me envergonhe de o ter feito, Não digas tolices, contemporizou Tertuliano Máximo Afonso a tentar ganhar tempo, que ideias, arrependimento, vergonha, era o que nos faltava, envergonhar-se, arrepender-se uma pessoa de expressar o que sente, Sabes muito bem a que me refiro, não faças de conta que não compreendes, Entraste, beijámo-nos, foi tudo do mais normal, do mais natural, Não nos beijámos, beijei-te eu, Mas eu também te beijei a ti, Sim, não tiveste outro remédio, Estás a exagerar como de costume, a dramatizar, Tens razão, exagero, dramatizo, exagerei vindo a tua casa, dramatizei ao abraçar-me a um homem que deixou de gostar de mim, deveria era ir-me daqui neste mesmo instante, arrependida, sim, envergonhada, sim, apesar da caridade de dizeres que o caso não é para tanto. A possibilidade de que ela se fosse embora, ainda que obviamente remota, projectou um raio de esperançosa luz nos sinuosos desvãos da mente de Tertuliano Máximo Afonso, mas as palavras que lhe saíram da boca, alguém diria que escapadas à sua vontade, exprimiram um sentimento diferente, Realmente, não sei aonde foste buscar essa peregrina ideia de que não gosto de ti, Explicaste-te com bastante clareza a última vez que estivemos juntos, Nunca disse que não gostava de ti, nunca disse que não gosto de ti, Em questões de coração, que conheces tão pouco, até o mais obtuso entendedor percebe a metade que não chegou a ser dita. Imaginar que se escaparam à vontade de Tertuliano Máximo Afonso as palavras agora em análise, seria esquecer que o novelo do espírito humano tem muitas e variadas pontas, e que a função de algumas das suas linhas, parecendo que conduzem o interlocutor ao conhecimento do que está dentro, é espalhar orientações falsas, insinuar desvios que irão terminar em becos sem saída, distrair da matéria fundamental, ou, como no caso que nos ocupa, suavizar, antecipando-o, o choque que se aproxima. Ao afirmar que nunca tinha dito que não gostava de Maria da Paz, dando portanto a entender que sim senhor gostava dela, o que Tertuliano Máximo Afonso pretendia, com perdão da vulgaridade das imagens, era envolvê-la em algodão-em-rama, rodeá-la de almofadas amortecedoras, atá-la a si pela emoção amorosa quando fosse impossível continuar a retê-la do lado de fora da porta que dá para a sala. Que é o que está sucedendo agora. Maria da Paz acaba de dar os três passos que faltavam, entra, não quereria pensar no mavioso canto de rouxinol que lhe roçou de leve os ouvidos, mas não consegue pensar noutra coisa, estaria mesmo disposta a reconhecer, contrita, que a sua irónica alusão a bons e maus entendedores tinha sido não só impertinente, mas também injusta, e é já com um sorriso que se volta para Tertuliano Máximo Afonso, pronta a cair-lhe nos braços e decidida a esquecer agravos e queixas. Quis, porém, o acaso, muito mais exacto teria sido dizer que foi inevitável, uma vez que conceitos tão sedutores como fado, fatalidade ou destino não teriam cabimento neste discurso, que o arco de círculo descrito pelos olhos de Maria da Paz passasse, primeiro pelo televisor ligado, logo pelas cassetes que não tinham sido devolvidas aos seus lugares no chão, finalmente pela própria fileira delas, presença inexplicável, insólita, para qualquer pessoa que, como ela, íntima destes sítios, tivesse suficiente conhecimento dos gostos e hábitos do dono da casa. Que é isto, que fazem aqui todas estas cassetes, perguntou, É material para um trabalho em que tenho andado ocupado, respondeu Tertuliano Máximo Afonso desviando a vista, Se não estou enganada, o teu trabalho, desde que te conheço, consiste em ensinar História, disse Maria da Paz, e esta coisa, olhava com curiosidade o vídeo, chamada Paralelo do Terror, não me parece que tenha muito que ver com a tua especialidade, Não há nada que me obrigue a ocupar-me só de História durante toda a vida, Claro que não, mas é natural que me tenha sentido desconcertada vendo-te rodeado de vídeos, como se de repente te tivesse dado uma paixão pelo cinema, quando antes te interessava tão pouco, Já te disse que estou ocupado com um trabalho, um estudo sociológico, por assim dizer, Não passo de uma empregada vulgar, uma bancária, mas as poucas luzes do meu entendimento chegam-me para ver que não estás a ser sincero, Que não estou a ser sincero, exclamou indignado Tertuliano Máximo Afonso, que não estou a ser sincero, era só o que me faltava ouvir, Não vale a pena irritares-te, disse o que me pareceu, Sei que não sou a perfeição em homem, mas a falta de sinceridade não é um dos meus defeitos, tinhas a obrigação de me conhecer melhor, Peço desculpa, Muito bem, ficas desculpada, não se fala mais deste assunto. Isto disse, mas teria preferido continuar nele para não ter de entrar no outro que temia. Maria da Paz acomodou-se na cadeira em frente do televisor e disse, Vim para ter uma conversa contigo, os teus vídeos não me interessam. O canto do rouxinol perdera-se nas estratosféricas regiões do tecto, era já, como em tempos passados se costumava dizer, uma saudosa lembrança, e Tertuliano Máximo Afonso, deplorável figura, enfiado no roupão, de chinelos e com a barba por fazer, portanto em flagrante situação de inferioridade, tinha consciência de que uma conversa em tom acerbo, ainda que pela própria crispação das palavras pudesse convir ao que sabemos ser seu interesse final, isto é, romper a sua relação com Maria da Paz, seria difícil de conduzir e certamente muito mais difícil de rematar. Sentou-se pois no sofá, aconchegou as abas do roupão as pernas, e principiou, conciliador, A minha ideia, De que estás a falar, interrompeu Maria da Paz, de nós, ou dos vídeos, Falaremos de nós depois, agora quero explicar-te em que espécie de estudo estou metido, Se fazes questão, seja, respondeu Maria da Paz, dominando a impaciência. Tertuliano Máximo Afonso estendeu o mais que pôde o silêncio que se seguiu, puxou da memória as palavras com que desorientara o vendedor da loja dos vídeos, ao mesmo tempo que experimentava uma estranha e contraditória impressão. Embora sabendo que vai mentir, pensa, no entanto, que essa mentira será como uma forma tergiversada da verdade, quer dizer, ainda que a explicação seja redondamente falsa, o simples facto de a repetir vai, de alguma maneira, torná-la verosímil, e cada vez mais verosímil se Tertuliano Máximo Afonso não se limitar a esta primeira prova. Enfim, sentindo-se já senhor da matéria, começou, O meu interesse por ver uns quantos filmes desta produtora, escolhida ao acaso, como poderás verificar são todos da mesma empresa cinematográfica, nasceu de uma ideia que me ocorreu há tempos, a de fazer um estudo sobre as tendências, as inclinações, os propósitos, as mensagens, tanto as explícitas como as implícitas e subliminares, ou, para ser mais preciso, os sinais ideológicos que um determinado fabricante de filmes vai disseminando, imagem a imagem, entre os consumidores deles, E como foi que te nasceu esse repentino interesse, ou, como lhe chamaste, essa ideia, que tem isso que ver com o trabalho de um professor de História, perguntou Maria da Paz, a quem não passaria pela cabeça que tinha acabado de oferecer de mão beijada a resposta que Tertuliano Máximo Afonso, na hora de aperto dialéctico em que se achava, talvez não fosse capaz de encontrar por si mesmo, É muito simples, respondeu ele com uma expressão de alívio que poderia ser facilmente confundida com a virtuosa satisfação de qualquer bom professor ao rever-se a si mesmo no acto de transmitir o seu saber à classe, É muito simples, repetiu, tal como a História que escrevemos, estudamos ou leccionamos vai fazendo penetrar em cada linha, em cada palavra, e até em cada data, o que designei por sinais ideológicos, inerentes não só à interpretação dos factos, mas igualmente à linguagem por que os expressamos, isto sem esquecer os diversos tipos e graus de intencionalidade no uso que dessa mesma linguagem fazemos, assim também o cinema, modo de contar histórias que, por via de uma sua particular eficácia, actua sobre os próprios conteúdos da História, de alguma maneira os contaminando e deformando, assim também o cinema, repito, participa, com muito maior rapidez e não menor intencionalidade, na propagação generalizada de toda uma rede desses sinais ideológicos, em regra interessadamente orientados. Fez uma pausa e, com o meio sorriso indulgente de quem se desculpa pela aridez de uma exposição que se tinha esquecido de tomar em consideração a insuficiente capacidade compreensiva do auditório, acrescentou, Espero vir a ser mais claro quando passar estas reflexões ao papel. Apesar das suas mais do que justas reservas, Maria da Paz não pôde impedir-se de o olhar com certa admiração, afinal ele é um habilitado professor de História, um profissional idóneo com provas dadas de competência, presume-se que saiba do que fala mesmo quando lhe aconteça ter de abordar assuntos fora da sua directa especialidade, ao passo que ela não passa de uma simples empregada bancária de nível médio, sem preparação para captar de maneira cabal quaisquer sinais ideológicos que não tenham começado, ao menos, por explicar como se chamam e o que pretendem. No entanto, ao longo de toda a fala de Tertuliano Máximo Afonso, apercebera-se de uma espécie de roce incómodo na sua voz, uma desarmonia que lhe distorcia em certos momentos a elocução, assim como o característico vibrato de uma vasilha rachada quando se lhe bate com os nós dos dedos, que acuda alguém a ajudar Maria da Paz, a informá-la de que justamente com aquele som é que as palavras nos saem da boca quando a verdade que parecemos estar a dizer é a mentira que escondemos. Pelos vistos, sim, pelos vistos vieram avisá-la, ou com as meias palavras do costume lho deram a entender, não há outra explicação para o facto de subitamente se ter apagado a admiração nos olhos dela e de no seu lugar ter surgido uma expressão dolorida, um ar de compassiva lástima, falta saber se de si própria ou do homem que se encontra sentado na sua frente. Tertuliano Máximo Afonso compreendeu que o discurso fora ofensivo, além de inútil, que são muitas as maneiras de faltar ao respeito que se deve à inteligência e à sensibilidade dos outros e que esta havia sido uma das mais grosseiras. Maria da Paz não veio aqui para que lhe dessem explicações acerca de procedimentos sem pés nem cabeça, seja qual for a ponta por onde se lhes pegue, veio para saber quanto terá de pagar para que lhe seja devolvida, se tal é possível ainda, a pequena felicidade em que imaginou haver vivido nos últimos seis meses. Mas também é certo que Tertuliano Máximo Afonso não lhe irá dizer, como a coisa mais natural deste mundo, Imagina que descobri um tipo que é meu exacto duplicado e que esse tipo aparece como actor em uns quantos destes filmes, em caso algum lho diria, e menos ainda, se é permitido juntar estas últimas palavras às imediatamente anteriores, quando a frase poderia ser interpretada por Maria da Paz como mais uma manobra de diversão, ela que veio aqui só para saber quanto terá de pagar para que lhe seja restituída a pequena felicidade em que imaginava haver vivido nos últimos seis meses, que nos seja perdoada esta repetição em nome do direito que a qualquer pessoa assiste de dizer uma e outra vez onde lhe dói. Fez-se um silêncio difícil, Maria da Paz deveria tomar agora a palavra, desafiá-lo Se já acabaste o teu estúpido discurso sobre essa patranha dos sinais ideológicos, falemos de nós, mas o medo deu-lhe de repente um nó na garganta, o pavor de que a mais simples palavra pudesse vir estilhaçar o cristal da sua frágil esperança, por isso se cala, por isso espera que Tertuliano Máximo Afonso principie, e Tertuliano Máximo Afonso está de olhos baixos, parece absorto na contemplação das suas chinelas de quarto e da pálida fímbria de pele que assoma onde terminam as perneiras das calças do pijama, a verdade é outra e bem diferente, Tertuliano Máximo Afonso não se atreve a levantar os olhos com medo de que eles se desviem para os papéis que estão em cima da secretária, a lista dos filmes e dos nomes dos actores, com as suas cruzinhas, os seus riscos, os seus pontos de interrogação, tudo tão apartado do malfadado discurso sobre os sinais ideológicos que neste momento lhe parece ter sido obra de outra pessoa. Ao contrário do que geralmente se pensa, as palavras auxiliadoras que abrem caminho aos grandes e dramáticos diálogos são em geral modestas, comuns, corriqueiras, ninguém diria que perguntar, Queres um café, poderia servir de introdução a um amargo debate sobre sentimentos que se perderam ou sobre a doçura de uma reconciliação a que não se sabe como chegar. Maria da Paz deveria ter respondido com a merecida secura, Não vim cá para tomar café, mas, olhando para dentro de si, viu que não era tal, viu que realmente tinha vindo para tomar um café, que a sua própria felicidade, imagine-se, dependeria desse café. Numa voz que só queria mostrar cansada resignação, mas que o nervosismo fazia tremer, disse, Pois sim, e acrescentou, Eu mesma o preparo. Levantou-se da cadeira, e não é que se tenha detido quando ia a passar ao lado de Tertuliano Máximo Afonso, como conseguiremos nós explicar o que se passou, juntamos palavras, palavras e palavras, as tais de que já falámos noutro sítio, um pronome pessoal, um advérbio, um verbo, um adjectivo, e, por mais que intentemos, por mais que nos esforcemos, sempre acabamos por nos encontrar do lado de fora dos sentimentos que ingenuamente tínhamos querido descrever, como se um sentimento fosse assim como uma paisagem com montanhas ao longe e árvores ao pé, mas o certo certo é que o espírito de Mana da Paz suspendeu subtilmente o movimento rectilíneo do corpo, à espera sabe-se lá de quê, talvez de que Tertuliano Máximo Afonso se levantasse para a abraçar, ou lhe pegasse suavemente na mão abandonada, e assim foi que sucedeu, primeiro a mão que reteve a mão, depois o abraço que não ousou ir além de uma proximidade discreta, ela não lhe ofereceu a boca, ele não a procurou, há ocasiões em que é mil vezes preferível fazer de menos que fazer de mais, entrega-se o assunto ao governamento da sensibilidade, ela, melhor que a inteligência racional, saberá proceder segundo o que mais convenha à perfeição plena dos instantes seguintes, se para tanto nasceram. Desprenderam-se devagar, ela sorriu um pouco, ele sorriu um pouco, mas nós sabemos que Tertuliano Máximo Afonso tem uma outra ideia na cabeça, que é retirar das vistas de Maria da Paz, o mais depressa possível, os papéis reveladores, por isso não se estranha que quase a tenha empurrado para a cozinha, Vai, vai fazer o café enquanto eu dou uma arrumação a este caos, e então aconteceu o inaudito, como se não desse importância às palavras que lhe saíam da boca ou como se não as entendesse completamente, ela murmurou, O caos é uma ordem por decifrar, Quê, que foi que disseste, perguntou Tertuliano Máximo Afonso, que já tinha a lista dos nomes a salvo, Que o caos é uma ordem por decifrar, Onde foi que leste isso, a quem o ouviste, Ocorreu-me neste momento, não creio que o tivesse lido alguma vez, e, ouvi-lo a alguém, isso tenho a certeza de que não, Mas como foi que te saiu uma frase dessas, Que tem de especial a frase, Tem muito, Não sei, talvez fosse porque o meu trabalho no banco se faz com algarismos, e os algarismos, quando se apresentam misturados, confundidos, podem aparecer como elementos caóticos a quem os não conheça, no entanto existe neles, latente, uma ordem, na verdade creio que os algarismos não têm sentido fora de uma qualquer ordem que se lhes dê, o problema está em saber encontrá-la, Aqui não há algarismos, Mas há um caos, foste tu mesmo que o disseste, Uns quantos vídeos desarrumados, nada mais, E também as imagens que lá estão dentro, pegadas umas às outras de maneira a contarem uma história, isto é, uma ordem, e os caos sucessivos que elas formariam se as dispersássemos antes de tornar a pegá-las para organizar histórias diferentes, e as sucessivas ordens que assim iríamos obtendo, sempre deixando atrás um caos ordenado, sempre avançando para dentro de um caos por ordenar, Os sinais ideológicos, disse Tertuliano Máximo Afonso, pouco seguro de que a referência viesse a propósito, Sim, os sinais ideológicos, se assim o queres, Dá a impressão de que não acreditas em mim, Não importa se acredito em ti ou não, tu lá saberás o que andas a procurar, O que me custa a perceber é como foi que te ocorreu esse achado, a ideia de uma ordem contida no caos e que pode ser decifrada no interior dele, Queres dizer que em todos estes meses, desde que a nossa relação principiou, nunca me consideraste suficientemente inteligente para ter ideias, Ora essa, não se trata disso, tu és uma pessoa bastante inteligente, no entanto, No entanto, não precisas terminar, menos inteligente do que tu, e, claro está, falta-me a boa preparaçãozinha básica, sou uma pobre empregada bancária, Deixa-te de ironias, nunca pensei que fosses menos inteligente do que eu, o que quero dizer é que essa tua ideia é absolutamente surpreendente, Inesperada em mim, De certo modo, sim, O historiador és tu, mas julgo saber que os nossos antepassados só depois de terem tido as ideias que os fizeram inteligentes é que começaram a ser suficientemente inteligentes para terem ideias, Agora saíste-me paradoxal, eis-me caindo de assombro em assombro, disse Tertuliano Máximo Afonso, Antes que acabes por te transformar em estátua de sal, vou fazer o café, sorriu-se Maria da Paz, e enquanto seguia pelo corredor que a levava à cozinha, foi dizendo, Arruma o caos, Máximo, arruma o caos. A lista dos nomes foi rapidamente metida numa gaveta e fechada à chave, as cassetes soltas voltaram às caixas respectivas, O Paralelo do Terror, que havia ficado no leitor de vídeos, seguiu o mesmo caminho, nunca tinha sido tão fácil ordenar um caos desde que o mundo é mundo. Tem-nos, porém, ensinado a experiência que sempre algumas pontas ficam por atar, sempre algum leite se entorna pelo caminho, sempre algum alinhamento faz barriga para dentro ou para fora, o que, aplicado à situação em análise, significa que Tertuliano Máximo Afonso está consciente de que já leva a sua guerra perdida antes de a ter começado. No ponto a que as coisas chegaram, por causa da superior estupidez do seu discurso sobre os sinais ideológicos, e agora com o golpe de mestre que foi aquela frase sobre a existência de uma ordem no caos, uma ordem decifrável, é impossível dizer à mulher que está lá dentro a fazer o café, A nossa relação chegou ao fim, poderemos continuar como amigos no futuro, se quiseres, mas nada mais do que isso, ou então, Custa-me muito dar-te este desgosto, mas, pesando os meus sentimentos para contigo, já não encontro o entusiasmo do princípio, ou ainda, Foi bonito, foi, mas acabou-se, minha rica, a partir de hoje tu vais à tua vida e eu vou à minha. Tertuliano Máximo Afonso dá voltas à conversa a tentar descobrir em que foi que a sua táctica fracassou, se é que tinha de facto alguma, se é que não se deixou apenas dirigir pelas mudanças de humor de Maria da Paz, como se se tratasse de súbitos focos de incêndio que era necessário ir apagando à medida que surgiam, sem entretanto se dar conta de que o fogo continuava a lavrar-lhe debaixo dos pés. Ela sempre esteve mais segura do que eu, pensou, e neste momento viu distintamente as causas da sua derrota, esta caricata figura que fazia despenteado e de barba crescida, com os chinelos de quarto acalcanhados, as riscas das calças do pijama a aparecerem como franjas murchas, o roupão ponta abaixo ponta acima, há decisões na vida que para Tomá-las é aconselhável estar vestido para sair, já de gravata posta e sapatos engraxados, a isso se chama a maneira nobre, exclamar em tom ofendido, Se a minha presença a incomoda, senhora, não preciso que mo diga, e acto contínuo sai-se pela porta fora, sem olhar para trás, olhar para trás é um risco tremendo, pode a pessoa transformar-se em estátua de sal e ficar para ali à mercê da primeira chuva. Mas Tertuliano Máximo Afonso tem agora outro problema para resolver, e esse requer muito tacto, muita diplomacia, uma habilidade de manobra que até este momento lhe tem faltado, uma vez que, como vimos, a iniciativa sempre esteve nas mãos de Maria da Paz, até mesmo quando à chegada se lançou aos braços do amante como uma mulher a ponto de afogar-se. Foi precisamente isto o que Tertuliano Máximo Afonso pensou, dividido entre a admiração, a contrariedade e uma espécie de perigosa ternura, Parecia que estava a afogar-se e afinal tinha os pés bem assentes no chão. Voltando ao problema, o que Tertuliano Máximo Afonso não poderá permitir-se é deixar Maria da Paz sozinha na sala. Imaginemos que ela aparece com o café, aliás não se compreende por que é que está a demorar-se tanto, um café faz-se em três minutos, já estamos longe do tempo em que era preciso coá-lo, imaginemos que, depois de o terem tomado em santa harmonia, ela lhe diz com segundas intenções ou mesmo sem primeiras, Vai-te arranjar enquanto eu ponho aqui um destes vídeos, a ver se descubro algum dos teus famosos sinais ideológicos, imaginemos que uma sorte maldita quereria que aparecesse na figura de um porteiro de buate ou de um caixa de banco o duplicado de Tertuliano Máximo Afonso, imaginemos o grito que daria Maria da Paz, Máximo, Máximo, vem cá, corre, vem ver um actor igualzinho a ti, a um auxiliar de enfermagem, realmente, poderá chamar-se-lhe tudo, bom samaritano, providência divina, irmão de caridade, sinal ideológico é que não. Nada disto, porém, irá suceder, Maria da Paz trará o café, já se lhe ouvem os passos no corredor, a bandeja com as duas chávenas e o açucareiro, umas bolachas para confortar o estômago, e tudo se passará como Tertuliano Máximo Afonso nunca teria ousado sonhar, beberam o cafezinho calados, mas era um silêncio de companhia, não hostil, o perfeito bem-estar doméstico que para Tertuliano Máximo Afonso se converteu em glória bendita quando a ouviu dizer, Enquanto tu te arranjas, eu arrumo o caos da cozinha, depois deixo-te em paz com o teu estudo, Ora, ora, o estudo, não falemos mais do estudo, disse Tertuliano Máximo Afonso para retirar esta inoportuna pedra do meio do caminho, mas cônscio de que tinha acabado de pôr outra no lugar dela, mais difícil de remover, como não tardará a verificar-se. Fosse como fosse, Tertuliano Máximo Afonso não queria deixar nada entregue ao acaso, barbeou-se num ai, lavou-se num ámen, vestiu-se num suspiro, e tão rapidamente fez tudo isto que quando entrou na cozinha ainda foi muito a tempo de secar a louça. Viveu-se então nesta casa o quadro tão enternecedoramente familiar que é um homem enxugando os pratos e a mulher arrumando-os, poderia ter sido ao contrário, mas o destino ou o azar, chamem-lhe o que quiserem, decidiu que fosse assim para que tivesse de acontecer o que aconteceu num momento em que Maria da Paz levantava altos os braços para acomodar uma travessa numa prateleira, oferecendo sem dar por isso, ou sabendo-o muito bem, a cintura delgada às mãos de um homem que não foi capaz de resistir à tentação. Tertuliano Máximo Afonso deixou a um lado o pano da louça e, enquanto a chávena, que se escapara, se estilhaçava no chão, abraçou-se a Maria da Paz, apertou-a furiosamente contra si, o espectador mais objectivo e imparcial não teria dúvidas em admitir que o chamado entusiasmo do princípio nunca poderia ter sido maior que este. A questão, a dolorosa e sempiterna questão, é saber quanto tempo irá isto durar, se será realmente o reacender de um afecto que algumas vezes terá sido confundido com amor, com paixão, até, ou se só nos encontramos, e mais uma vez, perante o arquiconhecido fenómeno da vela que ao extinguir-se levanta uma luz mais alta e insuportavelmente brilhante, insuportável só por ser a derradeira, não porque a rejeitassem os nossos olhos, que bem quereriam continuar absortos nela. Diz-se e repete-se que enquanto o pau vai e vem folgam as costas, ora, as costas, propriamente ditas, são o que menos está folgando neste momento, diríamos até, se aceitássemos ser grosseiros, que muito mais estará folgando ele, mas o certo, embora não se encontrem aqui grandes razões para lirismos exaltados, é que a alegria, o prazer, o gozo destes dois, atirados sobre a cama, um sobre o outro, literalmente enganchados de pernas e braços, nos levaria a tirar respeitosamente o chapéu e a desejar que lhes seja assim para sempre, estes, ou cada um deles com quem a sorte os vier a emparceirar no futuro, se a vela que está agora a arder não durar mais que o breve e último espasmo, aquele que no mesmo instante em que nos derrete nos costuma endurecer e apartar. Os corpos, os pensamentos. Tertuliano Máximo Afonso pensa nas contradições da vida, no facto de que para ganhar uma batalha às vezes possa ser necessário perdê-la, veja-se este caso de agora, ganhar teria sido conduzir a conversa no sentido do ansiado, total e definitivo rompimento, e essa batalha, pelo menos para os tempos mais próximos, teve de dá-la por perdida, mas ganhar seria conseguir desviar dos vídeos e do imaginário estudo sobre os sinais ideológicos a atenção de Maria da Paz, e essa batalha, por agora, ganhou-a. Diz a sabedoria popular que nunca se pode ter tudo, e não lhe falta razão, o balanço das vidas humanas joga constantemente sobre o ganho e o perdido, o problema está na impossibilidade, igualmente humana, de nos pormos de acordo sobre os méritos relativos do que se deveria perder e do que se deveria ganhar, por isso o mundo está no estado em que o vemos. Maria da Paz também pensa, mas, sendo mulher, portanto mais próxima das coisas elementares e essenciais, recorda a angústia que trazia na alma quando entrou nesta casa, a sua certeza de que se iria daqui vencida e humilhada, e afinal acontecera o que em nenhum momento lhe tinha passado pela fantasia, estar na cama com o homem a quem amava, o que mostra quanto tem ainda de aprender esta mulher se ignora que muitas dramáticas discussões dos casais é ali que acabam e se resolvem, não porque os exercícios do sexo sejam a panaceia de todos os males físicos e morais, embora não falte quem assim pense, mas porque, esgotadas as forças dos corpos, os espíritos aproveitam para levantar timidamente o dedo e pedir autorização para entrar, perguntam se se lhes permite fazer ouvir as suas razões, e se eles, corpos, estão preparados para lhes dar atenção. É então quando o homem diz à mulher, ou a mulher ao homem, Que loucos somos, que estúpidos temos sido, e um deles, misericordiosamente, cala a resposta justa que seria, Tu, talvez, eu só tenho estado à tua espera. Ainda que pareça impossível, é este silêncio cheio de palavras não ditas que salva o que se julgava perdido, como uma jangada que avança do nevoeiro a pedir os seus marinheiros, com os seus remos e a sua bússola, a sua vela e a sua arca do pão. Propôs Tertuliano Máximo Afonso, Podíamos almoçar os dois, não sei é se estás disponível, Naturalmente que sim, sempre estive, Tens lá a tua mãe, queria dizer, Explique-lhe que me apetecia dar um passeio sozinha, que talvez não fosse comer a casa, Uma desculpa para vires aqui, Não precisamente, foi só depois de ter saído de casa que decidi vir falar contigo, Já está falado, Queres dizer, perguntou Maria da Paz, que tudo entre nós continuará como antes, Claro. Esperar-se-ia um pouco mais de eloquência de Tertuliano Máximo Afonso, mas ele sempre poderá defender-se, Não tive tempo, ela agarrou-se a mim aos beijos, e logo eu a ela, daí a nada estávamos outra vez enroscados, foi um que-deus-te-ajude, E ajudou, perguntou a voz desconhecida que há tanto tempo não ouvíamos, Não sei se foi ele, mas lá que valeu a pena, valeu, E agora, Agora, vamos almoçar, E não falam mais do assunto, Qual assunto, O vosso, Já está falado, Não está, Está, Então acabaram-se as nuvens, Acabaram, Quer dizer que já não pensa em rompimentos, Isso é outra coisa, deixemos para o dia de amanhã o que ao dia de amanhã pertence, É uma boa filosofia, A melhor, Desde que se saiba o que é que pertence a esse dia de amanhã, Enquanto lá não chegarmos não se pode saber, Tem resposta para tudo, Também você a teria se se encontrasse na necessidade de mentir tanto quanto eu tenho mentido nos últimos dias, Então, vão almoçar, Pois vamos, Bom proveito, e depois, Depois levo-a a casa e volto, Para ver os vídeos, Sim, para ver os vídeos, Bom proveito, despediu-se a voz desconhecida. Maria da Paz já se tinha levantado, ouvia-se correr a água do duche, em tempos idos sempre se lavavam juntos depois de terem feito amor, mas desta vez nem ela se lembrou nem ele se fez lembrado, ou lembraram-se ambos, mas preferiram calar, há momentos em que o melhor é contentar-se uma pessoa com o que já tem, não seja que se perca tudo.
Passava das cinco horas da tarde quando Tertuliano Máximo Afonso regressou a casa. Tanto tempo perdido, pensava enquanto abria a gaveta onde guardara a lista e duvidava entre De Braço Dado com a Sorte e Os Anjos também Bailam. Não chegará a pô-los no leitor de vídeos, por isso nunca virá a saber que o seu duplicado, aquele actor igualzinho a ele, como poderia ter dito Maria da Paz, fazia de croupier no primeiro filme e de professor de dança no segundo. De repente imitara-se com a obrigação que se havia imposto a si mesmo de seguir a ordem cronológica da produção, desde o mais antigo e por aí fora até ao mais recente, achou que não seria uma má ideia variar, quebrar a rotina, Vou ver A Deusa do Palco, disse. Não tinham passado dez minutos quando o seu sósia apareceu interpretando o papel de um empresário teatral. Tertuliano Máximo Afonso sentiu um choque na boca do estômago, muita coisa deveria ter mudado na vida deste actor para representar agora uma personagem que ia ganhando cada vez mais importância depois de ter sido, durante anos, fugazmente, empregado de recepção num hotel, caixa de banco, auxiliar de enfermagem, porteiro de buate e fotógrafo da polícia. Ao cabo de meia hora não aguentou mais, fez rodar a fita a toda a velocidade até ao final, mas, ao contrário do que esperava, não encontrou no elenco de actores nenhum dos nomes que tinha na lista. Voltou ao princípio, ao elenco principal, em que, pela força do costume, não tinha reparado, e viu. O actor que representa o papel de empresário teatral no filme A Deusa do Palco chama-se Daniel Santa-Clara.
Descobrimentos em fins-de-semana não são menos válidos e estimáveis do que aqueles que se produzam ou expressem em qualquer dos outros dias, os denominados úteis. Num caso como no outro, o autor do descobrimento informará do sucedido os ajudantes, se estes estavam a fazer horas extraordinárias, ou a família, se a tinha ali por perto, à falta de champanhe brindou-se ao feito com a garrafa de espumoso que esperava no frigorífico o seu dia, deram-se e receberam-se parabéns, anotaram-se os dados para a patente, e a vida, imperturbável, prosseguiu, depois de ter demonstrado uma vez mais que a inspiração, o talento ou o acaso não escolhem, para manifestar-se, nem dias nem lugares. Raros terão sido os casos em que o descobridor, por viver sozinho e trabalhar sem auxiliares, não teve ao seu alcance ao menos uma pessoa com quem partilhar a alegria de haver presenteado o mundo com a luz de um novo conhecimento. Mais extraordinária ainda, mais rara, se não única, é a situação em que se encontra neste momento Tertuliano Máximo Afonso, que não só não tem ninguém a quem comunicar que descobriu o nome do actor que é seu vivo retrato, como teria todo o cuidado em calar-se sobre o achado. De facto, não é imaginável um Tertuliano Máximo Afonso correndo a telefonar à mãe, ou a Maria da Paz, ou ao colega de Matemática, e dizer, em palavras atropeladas pela excitação, Descobri, descobri, o tipo chama-se Daniel Santa-Clara. Se há algum segredo na vida que ele queira conservar bem guardado, que ninguém possa nem sequer suspeitar da sua existência, é precisamente este. Pelo temor das consequências, Tertuliano Máximo Afonso está obrigado, talvez para todo o sempre, a guardar silêncio absoluto sobre o resultado das suas investigações, quer as da primeira fase, que hoje culminaram, quer as que venha a realizar no futuro. E está também obrigado, pelo menos até segunda-feira, à mais completa inactividade. Sabe que o seu homem se chama Daniel Santa-Clara, mas esse saber serve-lhe de tanto como ser capaz de dizer que uma certa estrela se chama Aldebarã e ignorar tudo dela. A empresa produtora estará fechada hoje e amanhã, nem vale a pena tentar comunicar por telefone, na melhor das suposições atendê-lo-ia um vigilante da segurança que se limitaria a dizer, Telefone na segunda-feira, hoje não se trabalha, Pensei que para uma produtora de cinema não houvesse domingos nem feriados, que filmassem todos os dias que Nosso Senhor manda ao mundo, sobretudo na primavera e no verão para não se perderem as horas de sol, alegaria Tertuliano Máximo Afonso a querer fazer durar a conversa, Esses assuntos não são da minha área, não são da minha competência, sou apenas um empregado da segurança, Uma segurança bem entendida deveria estar informada de tudo, Não me pagam para isso, É pena, Deseja mais alguma coisa, perguntaria impaciente o homem, Diga-me ao menos se sabe quem dá aí informações acerca dos actores, Não sei, não sei nada, já lhe disse que sou da segurança, telefone na segunda-feira, repetiria exasperado o homem, se é que não lhe sairia pela boca fora alguma das palavras grosseiras que a impertinência do interlocutor estava a justificar. Sentado na cadeira estofada, a que está em frente do aparelho de televisão, rodeado de cassetes, Tertuliano Máximo Afonso reconhecia consigo mesmo, Não há outro remédio, vou ter de esperar até segunda-feira para telefonar à produtora. Disse-o e nesse instante sentiu um aperto na boca do estômago, como um súbito medo. Foi rápido, mas a tremura subsequente ainda se prolongou por alguns segundos, como a vibração inquietante de uma corda de contrabaixo. Para não pensar no que lhe havia parecido uma espécie de ameaça, perguntou-se que poderia ele fazer no resto do fim-de-semana, o que ainda resta de hoje e todo o dia de amanhã, como ocupar tantas horas vazias, um recurso seria ver os filmes que faltam, mas isso não lhe forneceria mais informações, apenas veria a sua cara noutros papéis, quem sabe se um professor de dança, talvez um bombeiro, talvez um croupier, um carteirista, um arquitecto, um professor primário, um actor à procura de trabalho, a sua cara, o seu corpo, as suas palavras, os seus gestos, até à saturação. Podia telefonar a Maria da Paz, pedir-lhe que viesse vê-lo, amanhã se não pudesse ser hoje, mas isso significaria atar-se pelas suas próprias mãos, um homem que se respeite não pede ajuda a uma mulher, mesmo não o sabendo ela, para depois a mandar embora. Foi nesse momento que um pensamento que já havia assomado algumas vezes a cabeça por trás de outros com mais sorte, sem que Tertuliano Máximo Afonso lhe tivesse dado atenção, conseguiu passar de súbito ao primeiro lugar, Se tu fores à lista telefónica, disse, poderás saber onde ele vive, não precisarás de perguntar à produtora, e até, no caso de estares com disposição para isso, poderás ir ver a rua onde ele mora, e a casa, claro que deverás ter a prudência elementar de te disfarçares, não me perguntes de quê, isso é lá contigo.