O estômago de Tertuliano Máximo Afonso deu outra vez sinal, este homem recusa-se a perceber que as emoções são sábias, que se preocupam connosco, amanhã lembrarão, Nós bem te tínhamos avisado, mas nessa altura, segundo todas as probabilidades, já será demasiado tarde. Tertuliano Máximo Afonso tem a lista nas mãos, trémulas procuram a letra S, folheiam para trás e para diante, aqui está. São três os Santa-Clara, e nenhum é Daniel.

A decepção não foi grande. Uma tão trabalhosa busca não podia terminar assim sem mais nem menos, seria ridiculamente simples. É verdade que as listas telefónicas sempre foram um dos primeiros instrumentos de investigação de qualquer detective particular ou polícia de bairro dotado de luzes básicas, uma espécie de microscópio de papel capaz de trazer a bactéria suspeita até à curva de percepção visual do pesquisador, mas também é verdade que este método de identificação tem tido os seus espinhos e fracassos, são os nomes que se repetem, são os gravadores sem compaixão, são os silêncios desconfiados, é aquela frequente e desanimadora resposta Esse senhor já não mora aqui. O primeiro e, por lógico, acertado pensamento de Tertuliano Máximo Afonso foi que o tal Daniel Santa-Clara não tinha querido que o seu nome constasse da lista telefónica. Algumas pessoas influentes, de mais relevante evidência social, adoptam esse procedimento, chama-se a isso defesa do sagrado direito à privacidade, fazem-no, por exemplo, os empresários e os financeiros, os politicantes de primeira grandeza, as estrelas, os planetas, os cometas e os meteoritos do cinema, os escritores geniais e meditabundos, os craques do futebol, os corredores de fórmula um, os modelos da alta e média costura, também os da baixa, e, por razões bastante mais compreensíveis, igualmente os delinquentes das distintas especialidades do crime têm preferido o recato, a discrição e a modéstia de um anonimato que até certo ponto os protege de curiosidades malsãs. No caso destes, mesmo se as suas façanhas vierem a tomá-los famosos, poderemos ter a certeza de que nunca os encontraremos no anuário telefónico. Ora, não sendo Daniel Santa-Clara, pelo que dele viemos conhecendo até agora, um delinquente, não sendo também, e quanto a este ponto não pode restar-nos qualquer dúvida, apesar de à mesma profissão pertencer, uma estrela de cinema, o motivo da não presença do seu nome no reduzido grupo dos apelidados Santa-Clara teria de causar uma viva perplexidade, da qual só será possível sair reflectindo. Foi essa precisamente a ocupação a que se entregou Tertuliano Máximo Afonso enquanto nós, com reprovável frivolidade, discorríamos sobre a variedade sociológica daquelas pessoas que, no fundo, apreciariam estar presentes numa lista telefónica particular, confidencial, secreta, uma espécie de outro almanaque de Gotha que registasse as novas formas de nobilitação nas sociedades modernas. A conclusão a que Tertuliano Máximo Afonso chegou, ainda que pertencendo à classe das que saltam à vista, nem por isso é menos merecedora de aplauso, porquanto demonstra que a confusão mental que tem trazido atormentados os últimos dias do professor de História ainda não se transformou em impedimento a um livre e recto pensar. É certo que o nome de Daniel Santa-Clara não se encontra na lista telefónica, mas isso não significa que não possa haver uma relação, digamos assim, de parentesco, entre uma das três pessoas que nela figuram e o Santa-Clara actor de cinema. Não menos será de admitir a probabilidade de que todos eles pertençam à mesma família, ou até mesmo, se por este caminho vamos, que Daniel Santa-Clara, afinal, more numa daquelas casas e que o telefone de que ele se serve esteja ainda, por exemplo, em nome do seu falecido avô. Se, como às crianças antigamente se contava, para ilustração das relações entre as pequenas causas e os grandes efeitos, uma batalha foi perdida por se ter soltado uma das ferraduras a um cavalo, a trajectória das deduções e induções que trouxeram Tertuliano Máximo Afonso à conclusão que acabamos de expor não se nos afigura mais duvidosa e problemática que aquele edificante episódio da história das guerras cujo primeiro agente e final responsável teria sido, no fim de contas e sem margem para objecções, a incompetência profissional do ferrador do exército vencido. Que passo irá dar agora Tertuliano Máximo Afonso, essa é a candente questão. Talvez o satisfaça haver desbastado o problema com vista ao estudo ulterior das condições para a definição de uma táctica de aproximação não frontal, daquelas prudentes que procedem por pequenos avanços e mantêm sempre um pé atrás. Quem o vê, sentado na cadeira em que teve começo esta que é já, a todos os títulos, uma nova fase da sua vida, de dorso curvado, cotovelos assentes nos joelhos e cabeça entre as mãos, não imagina o duro trabalho que vai dentro daquele cérebro, pesando alternativas, medindo opções, estimando variantes, antecipando lances, como um mestre de xadrez. Já passou meia hora, e ele não se mexe. E outra meia hora terá ainda de passar até que de repente o veremos levantar-se para ir sentar-se à secretária com a lista telefónica aberta na página do enigma. É manifesto que tomou uma viril decisão, admiremos a coragem de quem afinal deitou a prudência para trás das costas e resolveu atacar de frente. Marcou o número do primeiro Santa-Clara e esperou, Ninguém respondeu e não havia atendedor de chamadas. Marcou o segundo e uma voz de mulher atendeu, Diga, Boas tardes, minha senhora, peço desculpa se a venho importunar, mas gostaria de falar com o senhor Daniel Santa-Clara, tenho indicação de que vive nessa morada, Está equivocado, esse senhor não mora nesta casa, nem morou nunca, Mas o apelido, O apelido é uma coincidência, como tantas outras, Julguei que ao menos fosse da família dele e me pudesse ajudar a encontrá-lo, Nem sequer o conheço, A ele, A ele e a si, Perdoe, devia ter-lhe dito o meu nome, Não diga, não me interessa saber, Pelos vistos, informaram-me mal, Assim é, pelos vistos, Muito obrigado pela sua atenção, De nada, Boas tardes, desculpe tê-la incomodado, Boas tardes. Seria natural, depois desta troca de palavras, inexplicavelmente tensa, que Tertuliano Máximo Afonso fizesse uma pausa para recuperar a serenidade e a normalidade do pulso, mas tal não aconteceu. Há situações na vida em que já tanto nos dá perder por dez como perder por cem, o que queremos é conhecer rapidamente a última soma do desastre, para depois, se tal for possível. não voltarmos a pensar mais no assunto. O terceiro número foi pois marcado sem hesitação, uma voz de homem perguntou de lá, bruscamente, Quem fala. Tertuliano Máximo Afonso sentiu-se como apanhado em falta, balbuciou um nome qualquer, Que deseja, tornou a voz a perguntar, o tom continuava a ser desabrido, mas, curiosamente, não se percebia nele nenhuma hostilidade, há pessoas assim, a voz sai-lhes de tal maneira que parece que estão irritadas com toda a gente e, afinal, vai-se ver e têm um coração de ouro. Desta vez, por causa da brevidade do diálogo, não iremos chegar a saber se o coração da pessoa é realmente feito daquele nobilíssimo metal. Tertuliano Máximo Afonso manifestou o desejo de falar com o senhor Daniel Santa-Clara, o homem da voz irritada respondeu que não morava ali ninguém com esse nome, e a conversa não parecia poder avançar muito mais, não valia a pena repisar a curiosa coincidência dos apelidos nem a possível casualidade de uma relação familiar que encaminhasse o interessado ao seu destino, em casos destes as perguntas e as respostas repetem-se, são as mesmas de sempre, Fulano está, Fulano não mora aqui, mas desta vez surgiu uma novidade, e foi ela ter-se recordado o homem das cordas vocais destemperadas de que havia mais ou menos uma semana outra pessoa tinha telefonado a fazer idêntica pergunta, Suponho que não terá sido o senhor, pelo menos a voz não se parece, tenho muito bom ouvido para distinguir vozes, Não, não fui eu, disse Tertuliano Máximo Afonso, subitamente perturbado, e essa pessoa era quem, um homem, ou uma mulher, Era um homem, claro. Sim, um homem, que cabeça a sua, pois não se está mesmo a ver que por muitas diferenças que possam existir entre as vozes de dois homens, muitas mais as haveria entre uma voz feminina e uma voz masculina, Ainda que, acrescentou o interlocutor à informação, agora que o penso, houve um momento em que me pareceu que se esforçava por disfarçá-la. Depois de ter agradecido, como devia, a atenção, Tertuliano Máximo Afonso pousou o auscultador no descanso e ficou a olhar os três nomes da lista. Se o tal homem telefonara a perguntar por Daniel Santa-Clara, a simples lógica de procedimento obrigava a que, tal como ele próprio havia acabado de fazer, tivesse ligado para os três números. Tertuliano Máximo Afonso desconhecia, obviamente, se da primeira das casas lhe teria respondido alguém, e tudo indicava que a maldisposta mulher com quem falara, essa, sim, pessoa grosseira apesar do tom neutro da voz, ou não se recordava, ou não considerara necessário mencionar o facto, ou, mais naturalmente, não tinha sido ela quem atendera a chamada. Talvez porque viva sozinho, disse Tertuliano Máximo Afonso consigo mesmo, tenho tendência a imaginar que os outros vivem da mesma maneira. Da fortíssima perturbação que lhe causara a notícia de que um desconhecido andava também à procura de Daniel Santa-Clara ficara-lhe uma inquieta sensação de desconcerto como se se encontrasse diante de uma equação do segundo grau depois de se ter esquecido de como se resolvem as do primeiro. Provavelmente seria algum credor, pensou, é o mais certo, um credor, isto de artistas e literatos é gente que quase sempre leva uma vida irregular, deve ter ficado a dever dinheiro em algum desses sítios onde se joga e agora querem fazê-lo pagar. Tertuliano Máximo Afonso tinha lido em tempos passados que as dívidas de jogo são as mais sagradas de todas, há até quem lhes chame dívidas de honra, e embora não percebesse por que teria a honra que ver nestes casos mais que nos outros, aceitara o código e a prescrição como algo que não lhe dizia respeito, É lá com eles, pensara. No entanto, hoje, teria preferido que de sagrado não tivessem essas tais dívidas tanto, que fossem das comuns, daquelas que se perdoam e olvidam, como no antigo padre-nosso não só se rogava como também se prometia. Para desanuviar o espírito, foi à cozinha preparar um café e, enquanto o tomava, deu balanço à situação, Ainda me falta fazer aquela chamada, duas coisas poderão suceder quando a fizer, ou me dizem de lá que desconhecem o nome e a pessoa e por este lado fica arrumado o assunto, ou me respondem que sim, que vive ali, e então o que farei é desligar, nesta altura só me importa saber onde ele mora.

Com o ânimo fortalecido pelo impecável raciocínio lógico que acabara de produzir e pela sua não menos impecável conclusão, voltou à sala. A lista telefónica continuava aberta em cima da secretária, os três Santa-Clara não tinham mudado de sítio. Marcou o número do primeiro e esperou. Esperou e continuou à espera mesmo depois de já estar certo de que não viriam atender. Hoje é sábado, pensou, provavelmente estão fora. Desligou o telefone, tinha feito tudo quanto estava ao seu alcance, de irresolução ou timidez ninguém o poderia acusar.

Olhou o relógio, eram muito boas horas de sair para jantar, mas a tétrica recordação das toalhas do restaurante, brancas como sudários, as míseras jarras de florzinhas de plástico sobre as mesas, e, sobretudo, a permanente ameaça do tamboril, fizeram-no mudar de ideias. Numa cidade de cinco milhões de habitantes há, evidentemente, restaurantes em proporção, pelo menos alguns milhares, e mesmo tendo de excluir, por uma razão, os luxuosos, e por outra, os insofríveis, ainda lhe restaria um amplíssimo campo de escolha, por exemplo, aquele lugar simpático em que almoçou hoje com Maria da Paz, um acaso ao passar, porém a Tertuliano Máximo Afonso não lhe agradou a perspectiva de que o vissem agora entrar sozinho quando antes tinha aparecido tão bem acompanhado. Decidiu, portanto, não sair, comeria, conforme a expressão consagrada, qualquer coisa, e iria para a cama cedo. Nem precisaria de abri-la, estava ainda como a tinham deixado, os lençóis enrodilhados, as almofadas calcadas, o cheiro do amor frio. Pensou que seria conveniente telefonar a Maria da Paz, dar-lhe uma palavra simpática, um sorriso que ela com certeza sentiria do outro lado, é verdade que a relação destes está para acabar mais dia menos dia, mas há obrigações tácitas de delicadeza que não podem nem devem ser menosprezadas, seria dar mostras de uma grave insensibilidade, para não dizer de indesculpável grosseria moral, comportar-se como se, nesta casa, esta manhã, não tivessem ocorrido algumas dessas acções aprazíveis, beneficiosas e distractivas que, além do dormir, soem passar-se na cama. Ser-se homem não deveria significar nunca impedimento a proceder como cavalheiro. Não temos dúvidas de que Tertuliano Máximo Afonso iria actuar como tal se, por singular que pareça a primeira vista, a lembrança precisamente de Maria da Paz não o tivesse feito voltar à sua obsessiva preocupação dos últimos dias, isto é, como encontrar Daniel Santa-Clara. O nulo resultado das tentativas que havia feito pelo telefone não lhe deixara outro caminho que escrever uma carta à empresa produtora, uma vez que estaria fora de questão apresentar-se ele próprio, em carne e osso, arriscando-se a que a pessoa a quem estivesse a pedir a informação lhe perguntasse, Como está, senhor Daniel Santa-Clara. O recurso ao disfarce, aos clássicos postiços de barba, bigode e peruca, além de superlativamente ridículo, seria mais do que estúpido, iria fazê-lo sentir-se como um mau intérprete de melodrama oitocentista, como um pai nobre ou um cínico de quarto acto, e, como sempre havia temido que a vida se lembrasse dele para alvo das partidas de mau gosto em que não é raro esmerar-se, tinha a certeza de que o bigode e a barba lhe cairiam no justo momento em que perguntasse pelo senhor Daniel Santa-Clara e de que a pessoa interrogada desataria a rir e chamaria ao divertimento os colegas, Boa piada, boa piada, venham cá ver o senhor Daniel Santa-Clara a perguntar por si mesmo. A carta era, portanto, o único meio, e credivelmente o mais seguro, de chegar aos seus conspirativos desígnios, sob a condição sine qua non de nela não inscrever o seu nome nem mencionar a sua morada. Nesta meada de tácticas podemos jurar que havia reflectido ultimamente, embora de tão difusa e confusa maneira que a esse trabalho mental não se lhe deveria chamar com inteira propriedade pensamento, mais se tratou de um flutuar, de um vagabundear de fragmentos vacilantes de ideias que só agora lograram ajustar-se e organizar-se com pertinência suficiente, pelo que também só agora se deixam aqui registadas. A decisão que Tertuliano Máximo Afonso acaba de tomar é realmente de uma simplicidade desconcertante, de uma meridiana e transparente clareza. Não tem a mesma opinião o senso comum, que acaba de entrar pela porta dentro, perguntando, indignado, Como é possível que semelhante ideia tenha nascido na tua cabeça, E a única e é a melhor, respondeu Tertuliano Máximo Afonso friamente, Talvez seja a única, talvez seja a melhor, mas, se te interessa a minha opinião, seria uma vergonha para ti escreveres essa carta com o nome da Maria da Paz e dando o seu endereço para a resposta, Vergonha, porquê, Pobre de ti se precisas que te expliquem, Ela não se importará, E como sabes tu que não se importará, se ainda não lhe falaste do assunto, Cá tenho as minhas razões, As tuas razões, meu caro amigo, são sobejamente conhecidas, chamam-se presunção de macho, vaidade de sedutor, jactância de conquistador, Macho sou, realmente, é esse o meu sexo, mas a tal sedutor nunca o vi reflectido no espelho, e quanto a conquistador, melhor não falar, se a minha vida é um livro, esse é um dos capítulos que lhe faltam, Grande surpresa, Eu não conquisto, sou conquistado, E que explicação lhe vais dar para o facto de escreveres uma carta a pedir informações sobre um actor, Não direi que estou interessado em saber dados de um actor, Que dirás, então, Que a carta trata do estudo de que lhe tinha falado, Que estudo, Não me obrigues a repeti-lo, Seja como for, pensas que basta dar um estalinho com os dedos para que a Maria da Paz venha a correr satisfazer-te os caprichos, Limito-me a pedir-lhe um favor, No ponto em que se encontra a vossa relação perdeste o direito de lhe pedires favores, Poderia ser inconveniente assinar a carta com o meu próprio nome, Porquê, Não se sabe que consequências viria a ter no futuro, E por que não usas um nome falso, O nome seria falso, mas a direcção teria de ser a autêntica, Continuo a pensar que deverias acabar com esta maldita história de sósias, gémeos e duplicados, Talvez devesse, mas não consigo, é mais forte do que eu, Tenho a impressão de que puseste em marcha uma máquina trituradora que avança para ti, avisou o senso comum, e, como o interlocutor não lhe respondesse, retirou-se abanando a cabeça, triste com o resultado da conversa. Tertuliano Máximo Afonso marcou o número do telefone de Maria da Paz, provavelmente atendê-lo-ia a mãe, e o breve diálogo seria mais uma pequena comédia de fingimentos, grotesca e com um ligeiro toque de patético, A Maria da Paz está, perguntaria, Quem quer falar com ela, Um amigo, Como é o seu nome, Diga-lhe que é um amigo, ela saberá de quem se trata, A minha filha tem outros amigos, Não creio que tenha assim tantos, Sejam muitos, sejam poucos, aqueles que tem, têm nome, Está bem, diga-lhe então que sou Máximo. Ao longo dos seis meses da sua relação com Maria da Paz não foram muitas as vezes que Tertuliano Máximo Afonso precisou de telefonar-lhe para casa e menos as que foi atendido primeiramente pela mãe, mas sempre, por parte dela, o teor das palavras e o tom da voz haviam sido de suspicácia, e sempre, por parte dele, de uma mal refreada impaciência, ela talvez por não saber do caso tanto quanto gostaria, ele de certeza pela contrariedade de que tanto se soubesse. Os diálogos anteriores não haviam diferido muito do exemplo que aqui se deixa, apenas uma amostra mais encrespada do que poderia ter sido e afinal não foi, uma vez que a chamada a atendeu Maria da Paz, porém, todos eles, este e os outros, sem excepção, teriam tido perfeito cabimento na referência Incompreensão Mútua de um breviário de Relações Humanas. Já pensava que não me telefonarias, disse Maria da Paz, Como vês, enganaste-te, aqui estou, O teu silêncio teria querido dizer que o dia de hoje não havia representado para ti o mesmo que para mim, O que tenha representado, representou-o para ambos, Mas talvez não da mesma maneira nem pelas mesmas razões, Faltam-nos os instrumentos para medir essas diferenças, se as houve, Contínuas a gostar de mim, Sim, continuo a gostar de ti, Não o expressas com muito entusiasmo, não fizeste mais que repetir as palavras que eu disse, Explica-me por que não deveriam elas servir-me a mim, se a ti te serviram, Porque ao serem repetidas perdem uma parte do poder de convencimento que teriam se tivessem sido ditas em primeiro lugar, Claro, palmas ao engenho e à subtileza da analista, Sabê-lo-ias também se te dedicasses mais à leitura de ficções, Como queres tu que me ponha a ler ficções, romances, contos, ou lá o que for, se para a História, que é o meu trabalho, não me chega o tempo, agora mesmo ando eu aqui às voltas com um livro fundamental sobre as civilizações mesopotâmicas, Reparei nele, estava em cima da mesa-de-cabeceira, Já vês, Em todo o caso, não creio que andes assim tão apertado de tempo, Se conhecesses a minha vida, não o dirias, Conhecê-la-ia se tu ma desses a conhecer, Não é disso que falamos, mas sim da minha vida profissional, Muito mais do que um romance que estivesses a ler nas tuas horas vagas, suponho que a estará prejudicando esse famoso estudo em que andas empenhado, com tantos filmes para ver.

Tertuliano Máximo Afonso já tinha percebido que o rumo que a conversa havia tomado não lhe convinha, que se estava a afastar cada vez mais do seu objectivo, encaixar nela, com a maior naturalidade possível, a questão da carta, e agora, pela segunda vez neste dia, como se se tratasse de um jogo automático de acções e reacções, a própria Maria da Paz acabara de lhe oferecer a oportunidade, praticamente na palma da mão. Teria porém de ser cauteloso, não a levar a pensar que o motivo da chamada era unicamente o interesse, que afinal não fora para lhe falar de sentimentos que havia ligado, ou sequer dos bons momentos que tinham passado juntos na cama, se a pronunciar a palavra amor se lhe negava a língua. É verdade que o assunto me interessa, disse, conciliador, mas não ao ponto que supões, Ninguém o diria vendo-te como eu te vi, despenteado, de roupão e chinelos, a barba por fazer, rodeado de cassetes por todos os lados, não te parecias em nada ao ajuizado, ao sensatíssimo homem que eu cria conhecer, Estava à vontade, sozinho em casa, compreende-se, mas, já que falaste no assunto, tive uma ideia que poderia facilitar e apressar o trabalho, Espero que não tenciones pôr-me também a ver os teus filmes, não fiz nada que merecesse o castigo, Fica tranquila, os meus ferozes instintos não chegam a esse extremo, a ideia seria simplesmente escrever à empresa produtora pedindo-lhes um conjunto de dados concretos, relacionados, em especial, com a rede de distribuição, a localização das salas de exibição e o número de espectadores por filme, creio que me seria muito útil e me ajudaria a tirar algumas conclusões, Não vejo bem o que tenha isso que ver com os sinais ideológicos de que andas à procura, Pode ser que não tenha tanto quanto imagino, em todo o caso quero tentar, Tu saberás, Sim, mas há um pequeno problema, Qual, Não gostaria de ser eu a escrever essa carta, E por que não vais lá falar pessoalmente, há assuntos que se resolvem melhor cara a cara, e aposto que eles ficariam lisonjeados, um professor de História a interessar-se pelos filmes que produzem, E precisamente o que não quero, misturar a minha qualificação científica e profissional com um estudo que está fora da minha especialidade, Porquê, Não saberia explicar, talvez uma questão de escrúpulo, Então não estou a ver como irás solucionar uma dificuldade que tu próprio estás a criar, Poderias ser tu a escrever a carta, Aí está uma ideia absolutamente disparatada, explica-me como vou eu escrever uma carta a tratar de um assunto para mim tão misterioso como a língua chinesa, Quando digo que escreverias a carta, o que quero dizer realmente é que a escreveria eu em teu nome e dando a tua morada, dessa maneira ficaria a coberto de qualquer indiscrição, Que não seria assim tão grave, suponho que em tal caso a tua honra não se acharia posta em causa nem em dúvida a tua dignidade, Não sejas irónica, já te disse que é apenas uma questão de escrúpulo, Sim, já mo disseste, E não acreditas, Acredito, sim, não te preocupes, Maria da Paz, Sou eu, Sabes bem que te amo, Creio sabê-lo quando mo dizes, depois pergunto-me se será verdade, É verdade, E esta chamada foi porque ansiavas por mo dizer, ou para me pedires que escrevesse essa carta, A ideia da carta veio na continuação da conversa, Sim, mas não pretenderás convencer-me de que a tiveste precisamente quando conversávamos, E certo que já tinha pensado nela de um modo vago, De um modo vago, Sim, de um modo vago, Máximo, Diz, minha querida, Podes escrever a carta, Agradeço-te que tenhas aceitado, na verdade pensei que não te importaria, uma coisa tão simples, A vida, querido Máximo, tem-me ensinado que nenhuma coisa é simples, que só às vezes o parece, e que é justamente quando mais o parecer que mais nos convirá duvidar, Estás a ser céptica, Ninguém nasce céptico, que eu saiba, Então, uma vez que concordas, escreverei a carta em teu nome, Suponho que terei de assiná-la, Não creio que valha a pena, eu mesmo invento uma assinatura, Ao menos, que se pareça um pouco com a minha, Nunca tive jeito para imitar caligrafias, mas farei o melhor que puder, Tem cuidado, vigia-te, quando uma pessoa começa a falsear nunca se sabe até onde chegará, Falsear não seria o termo exacto, falsificar era o que deves ter querido dizer, Obrigado pela rectificação, meu querido Máximo, o que eu estava era a manifestar apenas o desejo de que houvesse uma palavra capaz de exprimir, por si só, o sentido daquelas duas, De ciência minha, uma palavra que em si reuna e funda o falsear e o falsificar, não existe, Se o acto existe, também deveria existir a palavra, As que temos encontram-se nos dicionários, Todos os dicionários juntos não contêm nem metade dos termos de que precisaríamos para nos entendermos uns aos outros, Por exemplo, Por exemplo, não sei que palavra poderia expressar agora a sobreposição e confusão de sentimentos que noto dentro de mim neste instante, Sentimentos, em relação a quê, Não a quê, a quem, A mim, Sim, a ti, Espero que não seja nada de muito mau, Há de tudo, como na botica, mas sossega, não to conseguiria explicar, por mais que o tentasse, Voltaremos a este tema outro dia, Queres dizer que a nossa conversa chegou ao fim, Não foram essas as minhas palavras nem foi esse o sentido delas, Realmente não, desculpa, Em todo o caso, pensando bem, conviria que nos deixássemos ficar por aqui, é visível que há demasiada tensão entre nós, saltam faíscas a cada frase que nos sai da boca, Não era essa a minha intenção, Nem a minha, Mas assim aconteceu, Sim, assim aconteceu, Por isso vamos despedir-nos como bons meninos que somos, desejar-nos boas noites e felizes sonhos, até um destes dias, Liga-me quando quiseres, Assim farei, Maria da Paz, Continuo a ser eu, Gosto de ti, Já mo havias dito.

Depois de ter deixado cair o aparelho no descanso, Tertuliano Máximo Afonso passou as costas da mão pela testa molhada de suor. Tinha conseguido o seu objectivo, não lhe deviam portanto faltar razões para estar satisfeito, mas a condução daquele longo e dificultoso diálogo correra sempre por conta dela mesmo quando não parecia que assim estivesse sucedendo, sujeitando-o a ele a um contínuo rebaixamento que não se objectivava explicitamente nas palavras por um e por outro pronunciadas, mas que, porém, uma a uma, lhe iam deixando um gosto cada vez mais amargo na boca, como é comum dizer-se do sabor da derrota. Sabia que ganhara, mas também se apercebia de que havia na vitória uma parte de ilusão, como se cada um dos seus avanços não tivesse sido mais que a consequência mecânica de um recuo táctico do inimigo, pontes douradas habilmente colocadas para o atraírem, de bandeiras desfraldadas e ao som de trombetas e tambores, a um ponto em que talvez viesse a descobrir-se cercado sem remédio. Para atingir os seus objectivos havia rodeado Maria da Paz de uma rede de discursos capciosos, calculistas, mas, ao fim e ao cabo, eram os nós com que supunha tê-la atado a ela que limitavam a liberdade dos seus próprios movimentos. Durante os seis meses de relação, para não se deixar prender demasiado, mantivera cientemente Maria da Paz à margem da sua vida particular, e agora que tinha decidido terminar a ligação, e para tal só esperasse o momento oportuno, vira-se obrigado não apenas a pedir-lhe ajuda, mas a torná-la partícipe em actos cujas origens e causas, tanto quanto as intenções finais, ela ignorava totalmente. O senso comum chamar-lhe-ia aproveitador sem escrúpulos, mas ele redarguiria que a situação que estava vivendo era única no mundo, que não existiam antecedentes que marcassem pautas de actuação socialmente aceites, que nenhuma lei previra o inaudito caso de duplicação de pessoa, e que, por conseguinte, era ele, Tertuliano Máximo Afonso, quem tinha de inventar, em cada ocasião, os procedimentos, regulares ou irregulares, que o levassem ao seu objectivo. A carta era apenas um deles e se, para a escrever, havia sido necessário abusar da confiança de uma mulher que dizia amá-lo, o crime não era assim tão grave, outros tinham feito coisas piores e ninguém os apontava à condenação pública.

Tertuliano Máximo Afonso meteu uma folha de papel na máquina de escrever e parou a pensar. A carta terá de parecer obra de uma admiradora, terá de ser entusiasta, mas sem exageros, já que o actor Daniel Santa-Clara não é precisamente uma estrela de cinema capaz de arrancar arroubos de expressão, em princípio deverá cumprir o ritual do pedido de fotografia autografada, ainda que a Tertuliano Máximo Afonso o que mais importe seja conhecer onde mora, e o nome autêntico, se, como tudo indica, Daniel Santa-Clara é pseudónimo de um homem que talvez se chame, também ele, quem sabe, Tertuliano. Enviada a carta, duas hipóteses subsequentes serão possíveis, ou a empresa produtora responde directamente dando as informações pedidas, ou diz que não está autorizada a fornecê-las e, nesse caso, segundo todas as probabilidades, transmitirá a carta ao verdadeiro destinatário. Será assim, perguntou-se Tertuliano Máximo Afonso. Um rápida reflexão fez-lhe ver que a última hipótese é de todas a menos provável porque demonstraria pouquíssimo profissionalismo e ainda menor consideração da parte da empresa sobrecarregar os seus actores com a tarefa e os gastos de responder a cartas e enviar fotografias. Oxalá seja assim, murmurou, tudo viria abaixo se ele enviasse a Maria da Paz uma resposta pessoal. Por um instante pareceu-lhe ver derrubar-se fragorosamente o castelo de cartas que desde há uma semana tem vindo a erguer com milimétricos cuidados, mas a lógica administrativa e também a consciência de que não tem outro caminho ajudaram-no, pouco a pouco, a restaurar o ânimo abalado. A redacção da carta não foi fácil, o que explica que a vizinha do andar de cima tivesse ouvido o ruído martelado da máquina de escrever durante mais de uma hora. Em certa altura o telefone tocou, tocou com insistência, mas Tertuliano Máximo Afonso não atendeu. Devia ser Maria da Paz.


Acordou tarde. A noite fora de sobressaltos, atravessada por sonhos fugazes e inquietantes, uma reunião do conselho escolar a que faltavam todos os professores, um corredor sem saída, uma cassete de vídeo que se recusava a entrar no aparelho, uma sala de cinema com o ecrã negro e em que um filme negro passava, uma lista telefónica inteira com o mesmo nome repetido em todas as linhas, mas que ele não conseguia ler, uma encomenda postal com um peixe dentro, um homem que levava uma pedra às costas e dizia Sou amorreu, uma equação algébrica com rostos de pessoas no lugar onde deveriam estar as letras. O único sonho que conseguia recordar com alguma precisão era o da encomenda postal, no entanto não havia sido capaz de identificar o peixe, e agora, ainda mal desperto, tranquilizava-se a si mesmo pensando que, pelo menos, tamboril não poderia ser, porque um tamboril não caberia dentro da caixa. Levantou-se com dificuldade, como se por causa de um esforço físico excessivo e inabitual se lhe tivessem emperrado as articulações, e foi à cozinha beber água, um copo cheio sorvido com a sofreguidão de quem tivesse jantado comida salgada. Tinha fome, mas não lhe apetecia preparar o pequeno-almoço. Voltou ao quarto para vestir o roupão e dirigiu-se à sala. A carta à produtora estava em cima da secretária, a última e definitiva das numerosas tentativas que quase enchiam até à borda o cesto de papéis. Releu-a e pareceu-lhe que servia aos fins em vista, não se limitava a pedir o envio de uma fotografia autografada do actor de quem, também, como de passagem, se solicitava a direcção da casa em que morava. Uma alusão final, que Tertuliano Máximo Afonso não tinha pejo em considerar um golpe imaginativo e estratégico de primeira ordem, insinuava algo como a urgente necessidade de um estudo sobre a importância dos actores secundários, tão essencial para o desenvolvimento da acção filmica, segundo a autora da carta, como a dos pequenos cursos de água afluentes na formação dos grandes rios. Acreditava Tertuliano Máximo Afonso que tão metafórico e sibilino remate iria eliminar por completo a possibilidade de que a empresa enviasse a carta a um actor que, embora nos últimos tempos tivesse passado a ver o seu nome no genérico dos filmes em que participava, nem por isso deixara de pertencer à legião dos considerados inferiores, subalternos e acessórios, uma espécie de mal necessário, uma importunidade irrecusável que, na opinião do produtor, sempre pesa demasiado no orçamento. Se Daniel Santa-Clara chegasse a receber uma carta redigida nestes termos, o mais natural é que começasse a pensar em reivindicações salariais e sociais na proporção do seu contributo como afluente do Nilo e das Amazonas cabeças de cartaz. E se essa primeira acção individual, tendo principiado por defender o simples bem-estar egoísta do reivindicante, viesse a multiplicar-se, a ampliar-se, a expandir-se numa copiosa e solidária acção colectiva, então toda a estrutura piramidal da indústria do cinema viria abaixo como outro castelo de cartas e nós gozaríamos a sorte inaudita, ou, melhor ainda, o privilégio histórico de testemunhar o nascimento de uma nova e revolucionária concepção do espectáculo e da vida. Não há perigo, porém, de que tal cataclismo venha a suceder. A carta assinada com o nome de uma mulher chamada Maria da Paz será remetida à secção idónea, aí um empregado chamará a atenção do chefe para a ominosa sugestão contida no seu último parágrafo, o chefe fará subir sem perda de tempo o perigoso papel à consideração do seu superior imediato, e, nesse mesmo dia, antes que o vírus, por inadvertência, pudesse sair à rua, as poucas pessoas que do caso tiveram conhecimento serão instantemente cominadas a guardar sobre ele um silêncio absoluto, de antemão recompensado por adequadas promoções e substanciais melhorias de vencimento. Ficará para decidir o que fazer com a carta, se dar satisfação aos pedidos de fotografia autografada e de informação sobre a residência do actor, de pura rotina o primeiro, mas algo insólito o segundo, ou simplesmente proceder como se nunca tivesse sido escrita ou se se tivesse extraviado na confusão dos correios. O debate do conselho de administração sobre o assunto ocupará todo o dia seguinte, não porque tivesse sido difícil conseguir uma unanimidade de princípio, mas pelo facto de todas as consequências previsíveis terem sido objecto de demorada ponderação, e não só elas, pois também o foram algumas outras que mais pareceram ter sido geradas por imaginações enfermas. A deliberação final virá a ser, ao mesmo tempo, radical e hábil. Radical porque a carta será consumida pelo fogo no final da reunião, com todo o conselho de administração a ver e a respirar de alívio, hábil porque satisfará os dois pedidos de maneira a garantir uma dupla gratidão da peticionária, o primeiro, de rotina como já se disse, sem qualquer reserva, o segundo, Em atenção à consideração particular que a sua carta nos mereceu, foram estes os termos, mas salientando o carácter de excepcionalidade da informação prestada. Não ficava excluída a possibilidade de que esta Maria da Paz, vindo a conhecer um dia Daniel Santa-Clara, agora que vai ter a direcção dele, lhe fale da sua tese sobre os rios afluentes aplicada à distribuição de papéis na arte dramática, mas, tal como a experiência da comunicação tem abundantemente demonstrado, o poder de mobilização da palavra oral, não sendo, no imediato, em nada inferior ao da palavra escrita, e mesmo, num primeiro momento, talvez mais apta que ela a arrebanhar vontades e multidões, é dotada de um alcance histórico bastante mais limitado, devido a que, com as repetições do discurso, se lhe fatiga com rapidez o fôlego e se lhe desviam os propósitos. Não se vê outra razão para que as leis que nos regem estejam todas escritas.

O mais certo, portanto, é que Daniel Santa-Clara, se um tal encontro vier a dar-se e se uma tal questão for nele levantada, não preste às teses afluenciais de Maria da Paz mais que uma atenção distraída e sugira transferir a conversa a temas menos áridos, que nos seja desculpada uma tão flagrante contradição, considerando que era de água que falávamos e dos rios que a levam.

Tertuliano Máximo Afonso, depois de colocar na sua frente uma das cartas que Maria da Paz lhe havia escrito há tempos, e após umas quantas experiências para soltar e adestrar a mão, floreteou o melhor que pôde a sóbria, mas elegante assinatura que a rematava. Fê-lo para respeitar o infantil e algo melancólico desejo que ela havia formulado, e não por acreditar que uma maior perfeição na falsificação viesse ajuntar credibilidade a um documento que, como já foi devidamente antecipado, dentro de poucos dias terá desaparecido deste mundo, desfeito em cinzas. Dá vontade de dizer, Tanto trabalho para nada. A carta já se encontra dentro do sobrescrito, o selo está no seu sítio, não falta mais agora que descer à rua e enfiá-la para dentro do marco postal da esquina. Sendo domingo este dia, a furgoneta dos correios não passará a recolher a correspondência, mas Tertuliano Máximo Afonso anseia por ver-se livre da carta o mais depressa possível. Enquanto ela aqui estiver, esta é a sua vivíssima impressão, o tempo manter-se-á parado como um palco deserto. E a mesma impaciência nervosa lhe está provocando a fileira de cassetes no chão. Quer limpar o terreno, não deixar rastos, o primeiro acto acabou, é hora de retirar os adereços de cena. Acabaram-se os filmes de Damel Santa-Clara, acabou-se a ansiedade, Será que entra neste, Será que não entra, Terá bigode, Trará a risca ao meio, acabaram-se as cruzinhas diante dos nomes, acabou-se o quebra-cabeças. Foi neste momento que lhe saltou à memória a chamada que tinha feito ao primeiro dos Santa-Clara da lista telefónica, aquela casa de onde ninguém respondera. Faço uma nova tentativa, perguntou-se. Se a fizesse, se de lá lhe respondessem, se lhe dissessem que Daniel Santa-Clara morava justamente ali, a carta que tanta laboração mental lhe havia exigido tomava-se desnecessária, dispensável, podia rasgá-la e atirá-la para o cesto dos papéis, tão inútil como os rascunhos falhados que lhe tinham preparado o caminho para a redacção final. Compreendeu que estava a precisar de uma pausa, um intervalo de descanso, nem que fosse uma semana ou duas, o tempo de chegar a resposta da produtora, um período em que fizesse de conta que nunca tinha visto Quem Porfia Mata Caça nem o empregado da recepção do hotel, sabendo no entanto que esse falso sossego, essa aparência de tranquilidade teriam um limite, um prazo à vista, e que o pano, chegando a hora, inexoravelmente abriria para o segundo acto. Mas compreendeu também que se não fizesse uma nova ligação ficaria daí para diante atado à obsessão de que se portara cobardemente numa contenda para a qual ninguém o havia desafiado e em que, depois de a ter provocado, entrara por sua única e exclusiva vontade. Andar à procura de um homem chamado Daniel Santa-Clara que não podia imaginar que estava a ser procurado, eis a absurda situação que Tertuliano Máximo Afonso tinha criado, bem mais adequada aos enredos de uma ficção policial sem criminoso conhecido que justificável na vida até aqui sem sobressaltos de um professor de História. Posto entre a espada e a parede, fez então um acordo consigo mesmo, Ligo mais uma vez, se me atenderem e disserem que ele mora lá, atiro fora a carta e aguento-me, logo verei se falo ou não falo, mas, se não me responderem, a carta segue ao seu destino e nunca mais voltarei a ligar, suceda o que suceder. A sensação de fome que tinha sentido até aí fora substituída por uma espécie de palpitação nervosa na boca do estômago, mas a decisão estava tomada, não faria marcha atrás. O número foi marcado, a campainha tocou lá longe, o suor começou a descer-lhe lentamente pela cara abaixo, a campainha tocava e tocava, era já evidente que não havia ninguém na casa, mas Tertuliano Máximo Afonso desafiava a sorte, oferecia ao adversário uma última oportunidade não desligando, até que aqueles toques se tornaram em estridente sinal de vitória e o telefone chamado se calou por si mesmo.

Pronto, disse em voz alta, que não se diga de mim que não fiz o que devia. Sentiu-se de repente tranquilo como há muito tempo não acontecia. O seu tempo de descanso começara, podia entrar na casa de banho com a cabeça desanuviada, fazer a barba, assear-se sem pressas, vestir-se com esmero, de um modo geral os domingos são dias tristonhos, aborrecidos, mas há alguns que foi uma sorte terem vindo ao mundo. Era demasiado tarde para tomar o pequeno-almoço, ainda cedo para almoçar, havia que entreter o tempo de alguma maneira, podia descer a comprar o jornal e voltar, podia passar uma vista de olhos pela lição que terá de dar amanhã, podia sentar-se a ler umas quantas páginas mais da História das Civilizações Mesopotâmicas, podia, podia, nesse momento acendeu-se-lhe uma luz num escaninho da memória, a lembrança de um dos sonhos desta noite, aquele em que um homem ia transportando uma pedra às costas e dizendo Sou amorreu, teria graça que a tal pedra fosse o famoso código de Hamurabi e não um calhau qualquer levantado do chão, o lógico, realmente, é que os sonhos históricos os devam sonhar os historiadores, que para isso estudaram. Que a História das Civilizações Mesopotâmicas o levasse à legislação do rei Hamurabi não tem nada que surpreender-nos, foi um trânsito tão natural como abrir a porta para o quarto ao lado, mas que a pedra às costas do amorreu lhe tivesse feito recordar que não telefonava à mãe há quase uma semana, isto nem o mais pintado sonflogo seria capaz de nos explicar, excluída sem dó nem piedade, por abusiva e mal-intencionada, a fácil interpretação de que Tertuliano Máximo Afonso, às ocultas, sem se atrever a confessá-lo, considera a progenitora como uma pesada carga. Pobre mulher, lá tão longe, sem notícias, e tão discreta e respeitadora da vida do filho, imagine-se, um professor de liceu, que só em casos extremos ousaria telefonar, interrompendo um labor que de certo modo se encontra para além da sua compreensão, e não e que ela não tenha as suas letras, não é que ela própria não tenha estudado História nos seus tempos de menina, o que sempre lhe fez confusão é que a História possa ser ensinada. Quando se sentava nos bancos da escola e ouvia falar dos sucessos do passado à professora, parecia-lhe que tudo aquilo não era mais que imaginações, e que, se a mestra as tinha, também ela as poderia ter, tal como às vezes se descobria a imaginar a sua própria vida. Que os acontecimentos lhe aparecessem depois ordenados no livro de História, em nada modificava a sua ideia, o que o compêndio fazia não era mais que recolher as livres fantasias de quem o havia escrito, e portanto não deveria existir uma diferença assim tão grande entre essas fantasias e as que se podiam ler num romance qualquer. A mãe de Tertuliano Máximo Afonso, cujo nome, Carolina, de apelido Máximo, aqui finalmente aparece, é uma assídua e fervorosa leitora de romances. Como tal, sabe tudo de telefones que às vezes tocam sem ser esperados e de outros que tocam às vezes quando desesperadamente se esperava que tocassem. Não foi este o caso de agora, a mãe de Tertuliano Máximo Afonso só tem andado a perguntar-se, Quando será que o meu filho me telefona, e eis que de repente tem a sua voz juntinha ao ouvido, Bons dias, minha senhora mãe, como tem passado, Bem, bem, na forma do costume, e tu, Eu também, como sempre, Tens tido muito trabalho na escola, O normal, os exercícios, as chamadas, uma reunião ou outra de professores, E essas aulas, quando é que acabam este ano, Daqui por duas semanas, depois ainda terei uma semana de exames, Quer dizer que antes de um mês estarás aqui comigo, Irei vê-la, claro, mas não poderei ficar mais que três ou quatro dias, Porquê, É que tenho ainda umas coisas para arrumar aqui, umas voltas a dar, Que coisas são essas, que voltas, a escola fecha para férias e as férias, que eu saiba, fizeram-se para descanso das pessoas, Esteja tranquila, hei-de descansar, mas há uns assuntos que devo resolver primeiro, E são sérios, esses teus assuntos, Acho que sim, Não percebo, se são sérios, são sérios mesmo, não é uma questão de achar ou não achar que o sejam, Foi uma maneira de dizer, Tem algo que ver com a tua amiga, a Maria da Paz, Até certo ponto, Pareces uma personagem de um livro que tenho andado a ler, uma mulher que quando lhe perguntam responde sempre com outra pergunta, Repare que as perguntas as tem feito a mãe, a minha, e única, foi para saber como tem passado, É porque não me falas claro e direito, dizes acho que sim, dizes até certo ponto, não estava habituada a que fizesses mistérios comigo, Não se zangue, Não me zango, mas tens de compreender que estranhe que, entrando tu de férias, não venhas logo para aqui, não me lembro de que isso tenha alguma vez sucedido, Depois lhe contarei tudo, Vais fazer alguma viagem, Outra pergunta, Vais, ou não vais, Se fosse dizia-lho, O que eu não percebo é por que disseste que a Maria da Paz tinha que ver com esses assuntos que te obrigam a ficar, Não é tanto assim, devo ter exagerado, Estás a pensar em casar-te outra vez, Que ideia, mãe, Pois talvez devesses, As pessoas agora casam-se pouco, com certeza já deduziu isso dos romances que tem lido, Não sou estúpida e sei muito bem em que mundo vivo, o que penso é que não tens o direito de andar a empatar a rapariga, Nunca lhe prometi casamento nem lhe propus vivermos juntos, Para ela, uma relação que dura há seis meses é como uma promessa, não conheces as mulheres, Não conheço as do seu tempo, E conheces pouco as do teu, É possível, realmente a minha experiência de mulheres não é grande, casei-me uma vez e divorciei-me, o resto conta pouco, Há a Maria da Paz, Também não conta muito, Não te dás conta de que estás a ser cruel, Cruel, que solene palavra, Já sei que soa a romance barato, mas as formas da crueldade são muitíssimas, algumas até se disfarçam de indiferença ou de indolência, se queres dou-te um exemplo, não decidir a tempo pode tomar-se em arma consciente de agressão mental contra os outros, Sabia que tinha dotes de psicóloga, mas não que chegassem a tanto, De psicologia não sei nada, nunca estudei uma linha, mas de pessoas creio saber alguma coisa, Falaremos quando aí for, Não me faças esperar muito, a partir de agora não terei um instante de sossego, Tranquilize-se, por favor, de uma maneira ou outra neste mundo tudo acaba por se resolver, Às vezes da maneira pior, Não há-de ser o caso, Oxalá, Um beijo, minha mãe, Outro, meu filho, tem cuidado contigo, Terei. A inquietação da mãe fez sumir-se a impressão de bem-estar que havia dado uma vivacidade nova ao espírito de Tertuliano Máximo Afonso depois da chamada feita ao Santa-Clara que não estava em casa.

Falar de assuntos sérios que teria de tratar após terminarem as aulas fora um erro imperdoável. É certo que a conversa derivara depois para a sua relação com Maria da Paz, e até, num momento determinado, parecera ir fixar-se aí, mas aquela frase da mãe, Às vezes da maneira pior, quando, para a sossegar, ele tinha dito que neste mundo tudo se resolve, soavam-lhe agora a vaticínio de desastres, a anúncio de fatalidades, como se, em lugar da idosa senhora que se chamava Carolina Máximo e era sua mãe, lhe tivesse saído do outro lado do fio uma sibila ou uma cassandra a dizer-lhe, por outras palavras, Ainda estás a tempo de parar. Por um momento pensou em meter-se no carro, fazer a viagem de cinco horas que o levaria à pequena cidade onde a mãe vivia, contar-lhe tudo e depois regressar com a alma lavada de miasmas enfermiços ao seu trabalho de professor de História pouco amante de cinema, decidido a virar esta página confusa da sua vida e até mesmo, quem sabe, disposto a considerar muito seriamente a possibilidade de se casar com Maria da Paz. Les jeux sont faits, rien ne va plus, disse em voz alta Tertuliano Máximo Afonso, que em toda a sua vida nunca entrou num casino, mas tem no seu activo de leitor alguns romances famosos de la belle époque. Guardou a carta para a produtora de filmes numa das algibeiras do casaco e saiu. Esquecer-se-á de a meter no marco postal, almoçará por aí, logo regressará a casa para tragar até ao fim as fezes desta tarde de domingo.


A primeira tarefa de Tertuliano Máximo Afonso no dia seguinte foi fazer dois pacotes das cassetes que iria devolver à loja. Depois juntou as restantes, atou-as com um cordel e foi guardá-las num armário do quarto, fechadas à chave. Metodicamente, rasgou os papéis em que tinha apontado os nomes dos actores, fez o mesmo aos rascunhos da carta esquecida na algibeira do casaco e que ainda terá de esperar uns minutos antes de dar o seu primeiro passo no caminho que a levará ao destinatário, e, por fim, como se tivesse algum motivo forte para apagar as suas impressões digitais, limpou com um pano humedecido todos os móveis do escritório em que havia tocado nestes dias. Apagou também as que Maria da Paz tinha deixado, mas nisso não pensou. Os sinais de passagem que queria fazer desaparecer não eram os seus nem os dela, eram, sim, os da presença que o arrancara violentamente ao sono na primeira noite. Não valia a pena observarem-lhe que semelhante presença só no seu cérebro tinha existido, que certamente a havia fabricado uma angústia gerada no seu espírito por um sonho de que se tinha esquecido, não valia a pena sugerirem-lhe que teria podido ser, talvez, e nada mais, a consequência sobrenatural de uma má digestão do guisado de carne, não valia a pena demonstrarem-lhe, finalmente, com as razões da razão, que, mesmo estando dispostos a aceitar a hipótese de uma certa capacidade de materialização dos produtos da mente no mundo exterior, o que de todo em todo não podemos admitir é que a inapreensível e invisível presença da imagem cinematográfica do recepcionista de hotel tivesse deixado espalhados por toda a casa vestígios de sudação dos dedos. Tanto quanto até agora se sabe, o ectoplasma não transpira. Terminado o trabalho, Tertuliano Máximo Afonso vestiu-se, pegou na sua pasta de professor e nos dois embrulhos, e saiu. Encontrou na escada a vizinha do andar de cima que lhe perguntou se precisava de ajuda, e ele disse que não, minha senhora, muito obrigado, logo, por sua vez, interessou-se ele por saber como tinha decorrido para ela o fim-de-semana, e ela respondeu que assim-assim, na forma do costume, e que o tinha ouvido a trabalhar na máquina de escrever, e ele disse que mais tarde ou mais cedo teria de resolver-se a comprar um computador, que esses, ao menos, são silenciosos, e ela disse que o ruído da máquina não a incomodava nada, pelo contrário, que até lhe fazia companhia. Como hoje seria dia de limpeza, ela perguntou-lhe se não voltava a casa antes do almoço e ele respondeu que não, que almoçaria na escola e só regressaria pela tarde. Despediram-se até logo, e Tertuliano Máximo Afonso, consciente de que a vizinha ficara a observar comiserante a sua falta de jeito para carregar com os dois embrulhos e a pasta, desceu a escada dando atenção aonde punha os pés para não tombar de cambulhada e morrer de vergonha. O carro estava do lado oposto ao marco postal. Foi guardar os embrulhos no porta-bagagem e voltou para trás, ao mesmo tempo que ia tirando a carta da algibeira. Um garoto que passou a correr deu-lhe sem querer um encontrão e a carta soltou-se-lhe dos dedos e caiu no passeio. O rapaz parou uns passos adiante e pediu desculpa, mas, talvez por temor a uma repreensão ou a um castigo, não a veio levantar e devolver, como era sua obrigação. Tertuliano Máximo Afonso fez um aceno complacente com a mão, o gesto de quem decidira aceitar as desculpas e perdoar o resto, e baixou-se para recolher a carta, Pensou que poderia fazer uma aposta consigo mesmo, deixá-la onde estava e entregar às mãos do acaso os destinos dos dois, o dela e o de si próprio. Podia suceder que a próxima pessoa a passar por ali apanhasse a carta perdida, visse que tinha o selo posto e, como bom cidadão, a fosse meter escrupulosamente no marco postal, podia suceder que a abrisse para ver o que teria dentro e a atirasse fora depois de a ter lido, podia suceder que não lhe desse atenção e indiferente a pisasse, que durante o resto do dia a calcassem muitas pessoas mais, cada vez mais suja e amassada, até que alguém decidisse de uma vez empurrá-la com a ponta do sapato para a valeta, onde o varredor de lixo a viria encontrar. A aposta não foi feita, a carta foi levantada e levada ao marco postal, a roda do destino pôs-se finalmente em movimento. Agora Tertuliano Máximo Afonso irá à loja dos vídeos, conferirá com o empregado as cassetes que traz nos embrulhos e, por exclusão de partes, as que havia deixado em casa, pagará o que deve e possivelmente dirá consigo mesmo que nunca mais ali entrará. Afinal, para alívio seu, o empregado mesureiro não estava, quem o atendeu foi a rapariga nova e inexperiente, por isso as operações demoraram um tanto mais, embora a facilidade de cálculo mental do cliente de alguma coisa novamente tivesse servido quando chegou a altura das contas. A empregada perguntou-lhe se queria alugar ou comprar alguns vídeos mais, ele respondeu que não, que tinha chegado ao fim do seu trabalho, e isto disse-o sem se lembrar que a rapariga ainda não estava na loja quando ele havia feito o seu famoso discurso sobre as marcas ideológicas presentes em todo e qualquer relato fílmico, também, naturalmente, nas grandes obras da sétima arte, mas sobretudo nas produções de consumo corrente, séries bê ou cê, aquelas de que em geral se faz nulo caso, mas que são as mais eficazes porque apanham desacautelado o espectador. Parecia-lhe que a loja era mais pequena do que quando tinha aqui entrado pela primeira vez, ainda não há uma semana, realmente era inacreditável como em tão pouco tempo a sua vida se transformara, neste momento sentia-se como se flutuasse numa espécie de limbo, num corredor de passagem entre o céu e o inferno que o fazia perguntar-se, com certo sentimento de assombro, de onde viera e para onde iria agora, porquanto, a avaliar pelas ideias que sobre o assunto correm, não pode ser a mesma coisa transportar-se uma alma do inferno ao céu ou ser empurrada do céu para o inferno. Já ia conduzindo o automóvel na direcção da escola quando estas reflexões escatológícas foram substituídas por uma analogia doutro tipo, colhida esta na história natural, secção de entomologia, a qual o fez olhar-se a si mesmo como uma crisálida em estado de recolhimento profundo e em secreto processo de transformação. Apesar do humor sombrio que o acompanhava desde que se levantara da cama, sorriu da comparação ao pensar que, neste caso, tendo entrado no casulo como lagarta, dele sairia como borboleta. Eu, borboleta, murmurou, é só o que me falta ver. Arrumou o carro não muito longe da escola, consultou o relógio, ainda teria tempo para beber um café e passar os olhos pelos jornais, se os havia livres. Sabia que tinha descuidado a preparação da lição, mas a experiência dos anos resolveria a falta, outras vezes tivera de improvisar e ninguém percebera a diferença. O que nunca faria seria entrar na aula e disparar à mão salva contra os inocentes infantes, Hoje há chamadas. Seria um acto desleal, a prepotência de quem, por ter a faca na mão, faz dela o uso que muito bem lhe apetece e varia a espessura das fatias do queijo conforme os caprichos da ocasião e as preferências estabelecidas. Quando entrou na sala dos professores, viu que ainda havia jornais disponíveis no escaparate, mas para lá chegar teria de passar por uma mesa onde, diante de chávenas de café e copos de água, três colegas conversavam. Mal pareceria seguir adiante, tanto mais que um deles era o seu amigo professor de Matemática, a quem, em compreensão e paciência, tanto estava a dever. Os outros eram uma idosa professora de Literatura e um jovem professor de Ciências Naturais com quem nunca havia criado relações de proximidade afectiva. Deu os bons-dias, perguntou se podia fazer-lhes companhia e, sem esperar resposta, puxou uma cadeira e sentou-se. A uma pessoa não informada dos costumes do lugar poderia parecer um tal procedimento bastante convizinho da má educação, mas os protocolos de relação na sala de professores assim se tinham organizado, de modo por assim dizer natural, não haviam sido passados a escrito, mas assentavam em sólidos alicerces de consenso, uma vez que não entrando na cabeça de ninguém responder negativamente à pergunta, melhor era saltar logo o coro, de concordâncias, umas sinceras, outras não tanto, e dar a coisa por feita. O único ponto delicado, esse, sim, capaz de gerar tensão entre quem já estava e quem acabou de chegar, residia na possibilidade de que o assunto em debate fosse de natureza confidencial, mas isso mesmo havia sido solucionado pelo recurso tácito a outra pergunta, esta retórica por excelência, Interrompo, para a qual só era socialmente admissível uma resposta, De modo nenhum, junte-se a nós. Dizer ao recém-chegado, por exemplo, ainda que com as melhores maneiras, Interrompe, sim senhor, vá sentar-se noutro sítio, causaria uma comoção tal que a rede intra-relacional do grupo seria gravemente abalada e posta em causa. Tertuliano Máximo Afonso voltou com o café que tinha ido buscar, instalou-se e perguntou, Que novidades há, Refere-se às de fora ou às de dentro, perguntou por seu turno o professor de Matemática, As de dentro é cedo para sabê-las, referia-me às de fora, ainda não li os jornais, As guerras que havia ontem continuam hoje, disse a professora de Literatura, Sem esquecer a probabilidade altíssima ou mesmo a certeza de que outra está pronta para começar, acrescentou o professor de Ciências Naturais como se estivessem combinados, E você, como foi o seu fim-de-semana, quis saber o professor de Matemática, Tranquilo, em paz, passei quase todo o tempo a ler um livro de que creio já lhe ter falado, um sobre as civilizações mesopotâmicas, o capítulo que trata dos amorreus é interessantíssimo, Pois eu fui ao cinema com a minha mulher, Ah, fez Tertuliano Máximo Afonso desviando os olhos, Aqui o nosso colega é pouco apreciador de cinema, aparteou o de Matemática para os outros, Nunca afirmei redondamente que não gosto, o que disse e repito é que o cinema não faz parte dos meus afectos culturais, prefiro os livros, Meu caro, não vale a pena enxofrar-se, o assunto não tem importância, sabe bem que foi com a melhor das intenções que lhe sugeri que visse aquele filme, Que significa exactamente enxofrar-se, perguntou a professora de Literatura, tanto por curiosidade como para deitar água na fervura, Enxofrar-se, respondeu o de Matemática, significa irritar-se, zangar-se, ou, com mais precisão, arrufar-se, E por que é arrufar-se, em sua opinião, mais preciso que zangar-se ou irritar-se, perguntou o professor de Ciências Naturais, Não será mais que uma interpretação pessoal que tem que ver com recordações da infância, quando a minha mãe me repreendia ou castigava por qualquer tropelia eu fechava a cara e recusava-me a falar, mantinha um silêncio total que podia durar muitas horas, então ela dizia que eu estava arrufado, Ou enxofrado, Exactamente, Em minha casa, quando eu andava por essas idades, disse a professora de Literatura, a metáfora para os amuos infantis era diferente, Diferente, em quê, Digamos que asinina, Explique-nos lá isso, Amarrar o burro, era o que se dizia, e escusam de ir procurar a expressão nos dicionários porque não a encontram, suponho que fosse exclusiva da família. Todos riram, com excepção de Tertuliano Máximo Afonso, que deixou aparecer um sorriso meio contrariado para corrigir, Exclusiva não creio que o fosse assim tanto, porque em minha casa também se usava. Houve novos risos, a paz estava feita. A professora de Literatura e o professor de Ciências Naturais levantaram-se, disseram logo nos vemos como despedida, provavelmente seriam as suas aulas mais longe, talvez no andar de cima, estes que ficaram sentados dispõem ainda de alguns minutos para o que faltar dizer, De uma pessoa que declarou ter estado durante dois dias entregue à serenidade de uma leitura histórica, observou o colega de Matemática, esperaria eu tudo, menos essa cara atormentada, É impressão sua, não tenho nada que me atormente, devo é ter cara de quem dormiu pouco, Você poderá dar-me as razões que quiser, mas a verdade é que desde que viu aquele filme não parece o mesmo, Que quer dizer com isso de que não pareço o mesmo, perguntou Tertuliano Máximo Afonso num tom inesperado de alarme, Nada senão o que disse, que o noto mudado, Sou a mesma pessoa, Não duvido, É verdade que ando algo apreensivo por causa de uns assuntos de ordem sentimental que ultimamente se me complicaram, são coisas que podem suceder a qualquer, mas isso não significa que me tenha tomado em outra pessoa, Nem eu o disse, não tenho nenhuma dúvida de que continua a chamar-se Tertuliano Máximo Afonso e é professor de História nesta escola, Então não percebo por que é que insiste em dizer que não pareço o mesmo, Desde que viu o filme, Não falemos do filme, já conhece a minha opinião sobre ele, De acordo, Sou a mesma pessoa, Claro que sim, Deveria lembrar-se que tenho andado com uma depressão, Ou marasmo, que era o outro nome que você lhe dava, Exactamente, E que isso merece respeito, Respeito tem-no todo de mim, bem o sabe, mas não era dele que falávamos, Sou a mesma pessoa, Agora é você quem insiste, É certo, ainda há poucos dias o disse, que estou a passar por um período de forte tensão psicológica, e portanto é natural que ela me venha à cara e se note nos meus modos, Claro, Mas isso não quer dizer que tenha mudado moral e fisicamente ao ponto de me parecer a outra pessoa, Eu limitei-me a dizer que você não parecia o mesmo, não que se parecesse a outra pessoa, A diferença não é grande, A nossa colega de Literatura diria que é, pelo contrário, enorme, e ela entende dessas coisas, creio que em subtilezas e matizes a literatura é quase como a matemática, Já eu, pobre de mim, pertenço à área da História, onde os matizes e as subtilezas não existem, Existiriam se a História pudesse ser, digamos assim, o retrato da vida, Estou a estranhá-lo, não é próprio de si ser tão convencionalmente retórico, Tem toda a razão, em tal caso a História não seria a vida, apenas um dos possíveis retratos dela, parecidos, sim, mas nunca iguais. Tertuliano Máximo Afonso desviou novamente os olhos, logo, com um difícil esforço de vontade, voltou a fixá-los no colega, como para averiguar o que haveria escondido por trás da serenidade aparente do seu rosto. O de Matemática sustentou o olhar sem que parecesse dar-lhe especial atenção, depois, com um sorriso em que havia tanto de ironia simpática como de franca benevolência, disse, Talvez um dia me disponha a ver outra vez a tal comédia, pode ser que consiga descobrir o que o faz andar transtornado, supondo que é lá que se encontre a origem do mal. Tertuliano Máximo Afonso estremeceu da cabeça aos pés, mas, no meio da confusão, no meio do pânico, logrou dar uma resposta plausível, Não se canse, o que me traz transtornado, para usar a sua palavra, é uma ligação de que não sei como sair, se alguma vez, na sua vida, se encontrou em situação semelhante, sabe o que se sente, e agora tenho de ir dar a aula, já estou atrasado, Se não vê inconveniente, e ainda que na história do sítio haja pelo menos um perigoso caso antecedente, acompanho-o até à esquina do corredor, disse o de Matemática, ficando porém solenemente prometido que não repetirei aquele imprudente gesto de lhe pôr a mão no ombro, Assim são as coisas, hoje até podia suceder que não me importasse, Mas eu é que não quero correr riscos, você tem todo o aspecto de estar com as pilhas carregadas até à rolha. Ambos riram, sem qualquer reserva o professor de Matemática, esforçadamente Tertuliano Máximo Afonso, em cujos ouvidos ainda ressoavam as palavras que o haviam posto em pânico, a pior das ameaças que nesta altura alguém lhe poderia fazer. Separaram-se na esquina do corredor e foi cada qual ao seu destino. O aparecimento do professor de História fez perder aos alunos a fagueira ilusão que o atraso já tinha feito nascer, a de que hoje não houvesse aula. Mesmo antes de se sentar, Tertuliano Máximo Afonso anunciou que daí a três dias, portanto na próxima quinta-feira, teriam um novo e último trabalho escrito, Ficam informados de que se trata de um exercício decisivo para a definição final das notas, disse, uma vez que não tenciono proceder a chamadas orais nas duas semanas que faltam para o fim do ano lectivo, além disso, o tempo desta aula e das duas seguintes será exclusivamente dedicado a uma repassagem das matérias dadas, de maneira que possam apresentar-se com ideias frescas no dia do exercício. O exórdio foi bem acolhido pela parte mais imparcial da turma, era patente, a Deus graças, que Tertuliano não tencionava fazer mais sangue que aquele que não pudesse evitar. Daí para diante toda a atenção dos alunos irá ser posta na ênfase com que o professor for tratando cada uma das matérias do curso, porquanto, se a lógica dos pesos e medidas é realmente coisa humana e a sorte a favor um dos seus factores variáveis, tais mudanças de intensidade comunicativa poderiam estar a prenunciar, sem que ele se apercebesse da inconsciente revelação, a escolha dos temas de que o exercício constará. Se é bastamente conhecido que nenhuns seres humanos, incluindo aqueles que já atingiram as idades a que chamamos de senectude, podem subsistir sem ilusões, essa estranha enfermidade psíquica indispensável a uma vida normal, que não diríamos então destas raparigas e destes rapazes que, depois de terem perdido a ilusão de que hoje não haveria aula, se empenham agora em alimentar uma outra ilusão muito mais problemática, a de que o exercício de quinta-feira possa ser para cada um, e portanto para todos, a dourada ponte por onde triunfalmente irão transitar para o ano seguinte. A aula já estava a ponto de acabar quando um empregado bateu à porta e entrou para dizer ao senhor professor Tertuliano Máximo Afonso que o senhor director lhe rogava a especial gentileza de passar pelo seu gabinete logo que terminasse. A exposição que estava a ser desenvolvida, sobre um tratado qualquer, foi despachada em menos de dois minutos, e tão por cima da rama que Tertuliano Máximo Afonso achou por bem dizer, Não se preocupem muito com isto porque não irá sair no exercício. Os alunos trocaram olhares de um entendimento cúmplice, dos quais facilmente se subentendia que as suas ideias sobre as valorações da ênfase tinham acabado de ser confirmadas num caso em que, mais que o significado das palavras, contara o tom despiciendo com que tinham sido pronunciadas. Pouquíssimas vezes uma aula chegou ao fim num tal ambiente de concórdia.

Tertuliano Máximo Afonso meteu os papéis na pasta e saiu. Os corredores enchiam-se rapidamente de estudantes que rompiam de todas as portas já a conversar sobre assuntos que nada tinham que ver com o que lhes fora ensinado um minuto antes, aqui e além um professor tentava passar despercebido no encrespado mar de cabeças que por todos os lados o rodeava e, fintando o melhor que podia os escolhos que lhe surgiam pela frente, esgueirava-se em direcção ao seu porto de abrigo natural, a sala. Tertuliano Máximo Afonso atalhou caminho para o corpo do edifício onde se encontrava o gabinete do director, parou para dar atenção à professora de Literatura que lhe cortava o passo, Falta-nos um bom dicionário de expressões coloquiais, dizia ela segurando-o pela manga do casaco, Mais ou menos, todos os dicionários gerais as costumam recolher, lembrou ele, Sim, mas não de maneira sistemática e analítica nem com ambição de esgotar o tema, registar aquela de amarrar o burro, por exemplo, e dizer o que significa, não bastaria, seria preciso ir mais longe, identificar nos diversos componentes da expressão as analogias, directas e indirectas, com o estado de espírito que se quis representar, Tem toda a razão, respondeu o professor de História, mais para ser agradável que porque realmente o tema lhe interessasse, e agora peço-lhe que me desculpe, tenho de ir, o director chamou-me, Vá, vá, fazer esperar Deus é o pior dos pecados. Três minutos depois Tertuliano Máximo Afonso batia à porta do gabinete, entrou quando a luz verde se acendeu, deu uns bons-dias e recebeu outros, sentou-se ao gesto do director e esperou. Não sentia nenhuma presença intrusa, fosse astral ou de outro tipo. O director pôs de parte os papéis que tinha sobre a mesa e disse, sorridente, Tenho pensado muito na nossa última conversa, aquela sobre o ensino da História, e cheguei a uma conclusão, Qual, senhor director, Pedir-lhe que nos faça um trabalho nas férias, Que trabalho, Evidentemente poderá responder-me que elas foram feitas para descansar e que é tudo menos razoável pedir a um professor, terminadas as aulas, que continue a preocupar-se com os assuntos da escola, Sabe perfeitamente, senhor director, que não lho diria por essas palavras, Dir-mo-ia por outras que significariam o mesmo, Sim, no entanto, e até este momento, não pronunciei nenhumas, nem essas nem aquelas, de modo que devo rogar-lhe que acabe de expor a sua ideia, Pensei que poderíamos tentar convencer o ministério, não a virar os pés pela cabeça ao programa, que isso seria demasiado, o ministro nunca foi pessoa para revoluções, mas a estudar, organizar e pôr em prática uma pequena experiência, uma experiência- piloto, limitada, para começar, a uma escola e a um número reduzido de estudantes, preferentemente voluntários, em que as matérias históricas fossem estudadas do presente para o passado em vez de o serem do passado para o presente, enfim, a tese que há tanto tempo tem andado a defender e de cuja bondade tive o gosto de ser convencido por si, E esse trabalho de que quer encarregar-me, em que consistiria precisamente, perguntou Tertuliano Máximo Afonso, Que elaborasse uma proposta fundamentada para enviar ao ministério, Eu, senhor director, Não é para o lisonjear, mas na verdade não encontro na nossa escola pessoa mais habilitada para o fazer, demonstrou que tem reflectido muito sobre o assunto, tem sobre ele ideias claras, realmente dar-me-ia uma grande satisfação se aceitasse a tarefa, digo-lho com toda a sinceridade, e escusado será dizer que esse trabalho seria remunerado, é com certeza possível encontrar no nosso orçamento uma rubrica onde o encargo caiba, Duvido que as minhas ideias, quer em qualidade, quer em quantidade, a quantidade também conta, como sabe, fossem suficientes para convencer o ministério, o senhor director conhece-os melhor que eu, Ai de mim, demasiado, Então, Então, permita-me que insista, creio que esta seria a melhor ocasião para tomarmos posição perante eles como uma escola capaz de produzir ideias inovadoras, Mesmo que nos mandem passear, Talvez o façam, talvez arquivem a proposta sem mais considerações, mas ela ficará lá, alguém, um dia, se lembrará dela, E nós ficaremos à espera desse dia, Num segundo tempo, poderemos chamar outras escolas a participar no projecto, organizar debates, conferências, meter nisto a comunicação social, Até que o director-geral lhe escreva uma carta a mandar-nos calar, Lamento observar que o meu pedido não o entusiasma, Confesso-lhe que há poucas coisas neste mundo que me entusiasmem, senhor director, mas o problema não é tanto esse como não saber eu o que as próximas férias me vão reservar, Não compreendo, Vou ter que enfrentar algumas questões importantes que surgiram recentemente na minha vida e temo que não me sobre o tempo nem me ajude a disposição de espírito para entregar-me a um trabalho que reclamaria da minha parte uma entrega total, Se assim é, daremos este assunto por encerrado, Deixe-me pensar um pouco mais, senhor director, conceda-me uns dias, comprometo-me a dar-lhe uma resposta até ao fim desta semana, Posso esperar que venha a ser positiva, Talvez, senhor director, mas não lho asseguro, Vejo-o realmente preocupado, oxalá consiga resolver da melhor maneira esses seus problemas, Oxalá, Como correu a aula, Sobre rodas, a turma trabalha, Estupendo, Na quinta-feira vamos ter um exercício escrito, E na sexta dá-me a resposta, Sim, Reflicta bem, Vou reflectir, Suponho que será escusado dizer-lhe em quem penso para conduzir a experiência-piloto, Obrigado, senhor director. Tertuliano Máximo Afonso desceu à sala dos professores, ia ler os jornais e fazer tempo para o almoço. Porém, à medida que a hora se ia aproximando começou a perceber que não suportaria estar com gente, que não sustentaria outra conversa como a da manhã, mesmo que ela não o implicasse directamente, mesmo que discorresse, do princípio ao fim, sobre inocentes expressões coloquiais, como fosse amarrar o burro, andar de monco pendurado ou ter-te comido a língua o gato. Antes que a campainha tocasse, saiu e foi almoçar a um restaurante. Voltou à escola para a segunda aula, não falou a ninguém e antes do fim da tarde estava em casa. Estendeu-se sobre o sofá, fechou os olhos, tentou deixar vazio de pensamentos o cérebro, dormir se o conseguisse, ser como uma pedra que onde a largam fica, mas nem o enorme esforço mental que fez depois para se concentrar no pedido do director logrou apagar a sombra com que teria de viver até chegar a resposta à carta que havia escrito com o nome de Maria da Paz.

Esperou quase duas semanas. Entretanto, deu aulas, telefonou duas vezes à mãe, preparou o exercício escrito para quinta-feira e esboçou aquele que iria apresentar aos alunos da outra classe, na sexta-feira informou o director de que aceitava o seu amável convite, no fim-de-semana não saiu de casa, falou pelo telefone com Maria da Paz para saber como estava e se já tinha recebido resposta, atendeu uma chamada do colega de Matemática que queria saber se havia problemas, terminou a leitura do capítulo sobre os amorreus e passou aos assírios, viu um documentário sobre as glaciações na Europa e outro sobre os antepassados remotos do homem, pensou que este momento da sua vida poderia dar um romance, pensou que seriam penas perdidas porque ninguém acreditaria em semelhante história, tornou a telefonar a Maria da Paz, mas com uma voz tão desmaiada que ela se preocupou e perguntou se podia ajudar em alguma coisa, disse-lhe que viesse e ela veio, e foram para a cama, e depois saíram para jantar, e no dia seguinte foi a vez de telefonar ela para comunicar que a resposta da empresa produtora dos filmes havia chegado, Estou a falar-te do banco, se queres passa por aqui, ou eu levo-ta logo, quando sair. A tremer por dentro, sacudido pela emoção, Tertuliano Máximo Afonso conseguiu reprimir no último instante a interrogação que em caso algum lhe conviria fazer, Abriste-a, e isso levou-o a demorar dois segundos a resposta terminante com que dissiparia qualquer dúvida que existisse sobre se estaria ou não disposto a partilhar com ela o conhecimento do conteúdo da carta, Eu vou aí. Se Maria da Paz havia imaginado uma enternecedora cena doméstica em que se visse a si mesma escutando a leitura enquanto iria bebendo em pequenos goles o chá que ela própria preparara na cozinha do homem amado, podia tirar daí o sentido. Vemo-la agora, sentada à sua pequena mesa de empregada bancária, com a mão ainda em cima do telefone que acabou de desligar, o sobrescrito de formato oblongo diante de si e dentro dele a carta que a sua honestidade não lhe vai permitir que leia porque não lhe pertence, embora ao seu nome tenha vindo dirigida. Ainda não passara uma hora quando Tertuliano Máximo Afonso entrou à pressa no banco e pediu para falar com a empregada Maria da Paz. Ali ninguém o conhecia, ninguém suspeitaria que tivesse negócios de coração e segredos de gabinete negro com a rapariga que se dirige ao balcão. Ela vira-o do fundo da grande sala onde tem o seu pouso de trabalhadora dos números, por isso já traz a carta na mão, Aqui a tens, diz, não se saudaram, não se desejaram um ao outro boas tardes, não disseram Olá como estás, nem coisa nenhuma dessas, havia uma carta para entregar e já está entregue, ele diz, Até logo, depois telefono, e ela, cumprida a parte que lhe havia cabido nas operações de distribuição postal urbana, regressa ao seu lugar, indiferente à atenção desconfiada de um colega mais velho que há tempos lhe andou a rondar a saia sem resultado e que a partir daí, por despeito, a tem sempre debaixo de olho. Na rua, Tertuliano Máximo Afonso caminha rapidamente, quase corre, deixou o carro num estacionamento subterrâneo a três quarteirões de distância, não leva a carta na pasta, mas num bolso interior do casaco, por medo de que lha possa arrebatar algum pequeno díscolo desencaminhado, como em tempos passados se chamava aos rapazes criados na libertinagem da rua, depois anjos de cara suja, depois rebeldes sem causa, hoje delinquentes que não beneficiam de eufemismos nem de metáforas. Vai dizendo a si mesmo que não abrirá a carta enquanto não chegar a casa, que já tem idade para não se portar como um adolescente ansioso, mas, ao mesmo tempo, sabe que estes seus adultos propósitos se vão evaporar quando estiver dentro do carro, na meia penumbra do estacionamento, com a porta fechada a defendê-lo das mórbidas curiosidades do mundo. Tardou a encontrar o sítio onde havia deixado o automóvel, o que agravou o estado de angústia nervosa em que já vinha, parecia o pobre homem, mal comparado, um cão largado no meio do deserto, olhando perdido a um lado e a outro, sem ao menos um cheiro conhecido para o guiar até casa, O nível é este, disso tenho eu a certeza, mas na verdade não a tinha. Por fim lá encontrou o carro, havia estado por três vezes a meia dúzia de passos dele e não o vira. Entrou rapidamente como se viesse a ser perseguido, fechou a porta e trancou-a, acendeu a luz interior. Tem o sobrescrito nas mãos, finalmente, é o momento de conhecer o que ele traz dentro, assim como o comandante de navio, atingido o ponto em que as coordenadas se cruzam, abre a carta de prego para saber que rumo terá de seguir daí por diante. Do sobrescrito saem uma fotografia e uma folha de papel. A fotografia é de Tertuliano Máximo Afonso, mas tem a assinatura de Daniel Santa-Clara por baixo das palavras Muito cordialmente. Quanto à folha de papel, não só informa que Daniel Santa-Clara é o nome artístico do actor António Claro como, adicionalmente e a título excepcional, dá a direcção da sua residência particular, Em atenção à consideração especial que a sua carta nos mereceu, assim está escrito. Tertuliano Máximo Afonso recorda os termos em que a redigiu e felicita-se pela brilhante ideia de sugerir à produtora a realização de um estudo sobre a importância dos actores secundários, Atirei o barro à parede e ficou pegado, murmurou, ao mesmo tempo que se deu conta, sem surpresa, de que o seu espírito recuperara a calma antiga, de que o seu corpo está distendido, nenhum vestígio de nervosismo, nenhum sinal de angústia, o afluente veio simplesmente dar ao rio, o caudal deste aumentou, Tertuliano Máximo Afonso sabe agora que rumo deve tomar. Tirou da bolsa lateral da porta do carro um roteiro da cidade e procurou a rua onde Daniel Santa-Clara vive. Está situada num bairro que não conhece, pelo menos não se lembra de por lá ter passado alguma vez, e ainda por cima encontra-se longe do centro, como acaba de verificar no mapa que desdobrou sobre o volante. Não importa, tem tempo, tem todo o tempo do mundo. Saiu para pagar o estacionamento, voltou ao carro, apagou a luz do tejadilho e arrancou. O seu objectivo, como facilmente se adivinha, é a rua onde mora o actor. Quer ver o prédio, olhar de baixo o andar em que ele vive, as janelas, que tipo de gente habita o bairro, que ambiente, que estilo, que modos. O trânsito é denso, os automóveis movem-se com lentidão exasperante, mas Tertuliano Máximo Afonso não se impacienta, não há nenhum perigo de que a rua aonde se dirige mude de lugar, está prisioneira da rede viária da cidade que por todos os lados a cerca, como muito bem se pode confirmar neste mapa. Foi durante a espera num sinal vermelho, enquanto Tertuliano Máximo Afonso acompanhava com toques ritmados dos dedos no aro do volante uma canção sem palavras, que o senso comum entrou no carro. Boas tardes, disse, Não te chamei cá, respondeu o condutor, Realmente não me lembro de que algum dia me tenhas pedido para vir, Até o faria se não conhecesse de antemão os teus discursos, Como hoje, Sim, vais dizer-me que pense bem, que não me meta nisto, que é uma imprudência de todo o tamanho, que nada me garante que o diabo não esteja atrás da porta, a conversa de sempre, Pois desta vez enganas-te, o que vais fazer não é uma imprudência, é uma estupidez, Uma estupidez, Sim senhor, uma estupidez, e das grossas, Não vejo em quê, É natural, uma das formas secundárias da cegueira de espírito é precisamente a estupidez, Explica-te, Não é necessário que me digas que te diriges à rua onde mora o teu Daniel Santa-Clara, é curioso, o gato tinha o rabo de fora e tu não reparaste, Que gato, que rabo, deixa as adivinhas e vai direito ao assunto, É muito simples, foi do apelido Claro que se criou o pseudónimo Santa-Clara, Não é pseudónimo, é nome artístico, Já o outro também não quis a vulgaridade plebeia do pseudónimo, chamou-lhe heterónimo, E de que me serviria ter visto o rabo do gato, Reconheço que não muito, à mesma terias de procurar, mas, indo aos Claros da lista telefónica, acabarias por acertar, Já tenho o que me interessa, E agora vais à rua onde ele mora, vais ver o prédio, olhar de baixo o andar em que vive, as janelas, que tipo de gente habita o bairro, que ambiente, que estilo, que modos, foram estas, se não me equívoco, as tuas palavras, Sim, Imagina agora que quando estiveres a olhar as janelas te aparece a uma delas a mulher do actor, enfim, falemos com respeito, a esposa desse António Claro, e te pergunta por que não sobes, ou então, pior ainda, aproveita para te pedir que vás à farmácia comprar uma caixa de aspirinas ou um xarope para a tosse, Disparate, Se te parece disparate, imagina agora que alguém passa e te cumprimenta, não como este Tertuliano Máximo Afonso que és, mas como o António Claro que nunca serás, Outro disparate, Então, se também esta hipótese é disparate, imagina que quando estás no passeio a olhar as janelas ou a estudar o estilo dos moradores te aparece pela frente, em carne e osso, o Daniel Santa-Clara, e os dois ficam a olhar-se iguais a dois cãezinhos de porcelana, cada um como reflexo do outro, mas um reflexo diferente, pois este, ao contrário do que faz o espelho, mostraria o esquerdo onde está o esquerdo e o direito onde está o direito, tu como reagirias se tal acontecesse. Tertuliano Máximo Afonso não respondeu logo, esteve calado durante dois ou três minutos, depois disse, A solução será não sair do carro, Mesmo assim, se eu estivesse no teu lugar não me fiaria, objectou o senso comum, podes ter de parar num sinal vermelho, pode haver um engarrafamento, uma camioneta a descarregar, uma ambulância a carregar, e tu ali posto em exposição, como um peixe no aquário, à mercê de que a adolescente cinéfila e curiosa residente no primeiro andar do prédio onde moras te pergunte qual é o teu próximo filme, Que farei, então, Isso não sei, não é da minha competência, o papel do senso comum na história da vossa espécie nunca foi além de aconselhar cautela e caldos de galinha, principalmente nos casos em que a estupidez já tomou a palavra e ameaça tomar as rédeas da acção, O remédio seria disfarçar-me, De quê, Não sei, terei de pensar, Pelos vistos, para seres quem és, a única possibilidade que te resta é a de que pareças ser outro, Tenho de pensar, Sim, já era tempo, Sendo assim, o melhor é ir para casa, Se não te incomoda, leva-me até à porta, depois cá me arranjarei, Não queres subir, Até hoje nunca me tinhas convidado, Estou a convidar-te agora, Obrigado, mas não devo aceitar, Porquê, Porque também não é saudável para o espírito viver de casa e pucarinho com o senso comum, comer com ele à mesa, dormir com ele na cama, levá-lo ao trabalho, pedir-lhe a sua aprovação ou consentimento antes de dar um passo, alguma coisa tereis de arriscar por vossa própria conta, A quem te referes, A vocês todos, ao género humano, Arrisquei-me a conseguir esta carta e tu nessa altura repreendeste-me, Não há nada que possa orgulhar-te no modo como a conseguiste, apostar na honestidade de uma pessoa como tu o fizeste é uma forma de chantagem bastante repugnante, Falas da Maria da Paz, Sim, falo da Maria da Paz, se eu estivesse no seu lugar abria a carta, lia-a e dava-te com ela na cara até que implorasses perdão de joelhos, Assim procede o senso comum, Assim deveria proceder, Adeus, até outro dia, vou pensar no meu disfarce, Quanto mais te disfarçares, mais te parecerás a ti próprio. Tertuliano Máximo Afonso encontrou um lugar livre quase à porta do prédio onde morava, arrumou o carro, recolheu o mapa e o roteiro, e saiu. No passeio do outro lado da rua, havia um homem de cara levantada, a olhar para os andares altos em frente. Não tinha quaisquer parecenças de cara ou de figura, a sua presença ali não passaria de uma casualidade, mas Tertuliano Máximo Afonso sentiu um arrepio na espinha ao passar-lhe pela cabeça, não o pôde evitar, a doentia imaginação teve mais força que ele, a possibilidade de que Daniel Santa-Clara andasse à sua procura, eu a ti, tu a mim. Logo arredou a incómoda fantasia, Estou a ver fantasmas, o tipo nem sequer sabe que eu existo, a verdade, porém, é que ainda lhe tremiam os joelhos quando entrou em casa e se deixou cair exausto no sofá. Durante uns minutos esteve imerso numa espécie de sopor, ausentado de si mesmo, como um maratonista cuja força de repente se esgotou ao pisar a linha de chegada. Da energia tranquila que o animava quando saiu do estacionamento e quando, depois, levava o automóvel a um destino que acabara por ver-se frustrado, não tinha ficado mais que uma recordação difusa, de algo não realmente vivido, ou que o havia sido por aquela parte de si agora ausente. Levantou-se com dificuldade, as pernas pareciam-lhe estranhas, como se pertencessem a outra pessoa, e foi à cozinha fazer um café. Bebeu-o em goles vagarosos, consciente da quentura reconfortante que lhe descia pela garganta até ao estômago, depois lavou a chávena e o pires, e voltou à sala. Todos os seus gestos se haviam tornado meditados, lentos, como se estivesse ocupado a manipular substâncias perigosas num laboratório de química, e contudo nada mais tinha que fazer que abrir a lista telefónica na letra C e confirmar as informações que constavam da carta. E depois, que faço, perguntou-se, enquanto ia passando as páginas até encontrar. Havia muitos Claros, mas os Antónios não eram além de meia dúzia. Aqui estava, finalmente, o que tanto trabalho lhe tinha custado, tão fácil que o podia ter feito qualquer pessoa, um nome, uma morada, um número de telefone. Copiou os dados para um papel e repetiu a pergunta, E agora, que faço. Num acto reflexo, levou a mão direita ao auscultador, deixou-a ficar ali enquanto relia uma vez e outra o que havia apontado, depois retirou-a, levantou-se e deu uma volta pela casa, discutindo consigo mesmo que o mais sensato seria deixar a continuação do assunto para depois de acabados os exames, dessa maneira teria de haver-se com uma preocupação a menos, infelizmente tinha-se comprometido com o director da escola a redigir o projecto de proposta sobre o ensino da História, não podia escapar a essa obrigação, Mais dia menos dia não terei outro remédio que pôr mãos a um trabalho de que ninguém vai fazer caso, foi uma rematada estupidez ter aceitado o encargo, porém, não valia a pena fingir que estava a enganar-se a si mesmo, parecer que admitia a hipótese de remeter só para depois do trabalho da escola o primeiro passo no caminho que o deverá levar a António Claro, já que Daniel Santa-Clara, em rigor, não existe, é uma sombra, um títere, um vulto variável que se agita e fala dentro de uma cassete de vídeo e que regressa ao silêncio e à imobilidade quando acaba o papel que lhe ensinaram, ao passo que o outro, esse António Claro, é real, concreto, tão consistente como Tertuliano Máximo Afonso, o professor de História que vive nesta casa e cujo nome pode ser encontrado na letra A da lista telefónica, por muito que alguns afirmem que Afonso não é apelido, mas nome próprio. Está outra vez sentado à secretária, tem o papel com as notas que tomou diante de si, tem a mão direita novamente sobre o auscultador, dá a ideia de que se decidiu finalmente a telefonar, mas quanto tarda a resolver-se este homem, que vacilante, que irresoluto nos saiu, ninguém dirá que é a mesma pessoa que ainda não há multas horas quase arrancou a carta das mãos de Maria da Paz. Num repente, sem pensar, como única maneira de vencer a cobardia paralisante, o número foi marcado. Tertuliano Máximo Afonso escuta o toque da campainha, uma vez, duas vezes, três, muitas, e no momento em que vai para desligar, pensando, com metade de alívio e metade de decepção, que não há ninguém para atender, uma mulher, ofegando como se tivesse vindo a correr do outro extremo da casa, disse simplesmente, Estou, Uma súbita contracção muscular constringiu a garganta de Tertuliano Máximo Afonso, a resposta demorou, deu tempo a que a mulher repetisse, impaciente, Estou, quem fala, por fim o professor de História conseguiu pronunciar quatro palavras, Boas tardes, minha senhora, mas a mulher, em lugar de responder no tom reservado de quem se dirige a um desconhecido de quem ainda por cima não pode ver a cara, disse com um sorriso que transparecia em cada palavra, Se é para disfarçar, não te canses, Desculpe, balbuciou Tertuliano Máximo Afonso, eu vinha só pedir uma informação, Que informação pode querer uma pessoa que conhece tudo da casa para onde ligou, O que eu desejava saber é se é aí que mora o actor Daniel Santa-Clara, Meu caro senhor, eu me encarregarei de comunicar ao actor Daniel Santa-Clara, quando ele chegar, que António Claro telefonou a perguntar se os dois moravam aqui, Não compreendo, começou a dizer Tertuliano Máximo Afonso para ganhar tempo, mas a mulher adiantou-se abruptamente, Não te reconheço, não é teu costume teres brincadeiras destas, diz de uma vez o que queres, a filmagem atrasou-se, é isso, Desculpe, minha senhora, há aqui um engano, eu não me chamo António Claro, Não é o meu marido, perguntou ela, Sou só uma pessoa que desejava saber se o actor Daniel Santa-Clara mora nessa casa.

Pela resposta que lhe dei já ficou a saber que mora, Sim, mas o modo como o disse deixou-me confuso, desconcertado, Não foi minha intenção, julguei que era uma brincadeira do meu marido, Pode ter a certeza de que não sou o seu marido, Custa-me a crer, Que eu não seja o seu marido, Refiro-me à voz, a sua voz é exactamente igual à dele, É uma coincidência, Não há coincidências destas, duas vozes, tal como duas pessoas, podem ser mais ou menos semelhantes, mas iguais até este ponto, não, Talvez não passe de uma impressão sua, Cada palavra está a chegar-me aqui como se saísse da boca dele, Realmente custa a crer, Quer dar-me o seu nome para lhe dizer quando ele vier, Deixe lá, não vale a pena, aliás o seu marido nem me conhece, É um admirador, Não precisamente, Mesmo assim, ele há-de querer saber, Telefonarei num outro dia, Mas ouça. A comunicação foi cortada, lentamente Tertuliano Máximo Afonso tinha pousado o telefone no descanso.


Os dias passaram e Tertuliano Máximo Afonso não telefonou. Estava satisfeito com a maneira como tinha decorrido a conversação com a mulher de António Claro, sentia-se portanto com a confiança suficiente para voltar à carga, mas, pensando bem, havia decidido optar pelo silêncio. Por duas razões. A primeira porque percebera que lhe agradava a ideia de alongar e aumentar a atmosfera de mistério que a sua chamada devia ter criado, divertia-se mesmo a imaginar o diálogo entre o marido e a mulher, as dúvidas dele sobre a suposta igualdade absoluta das duas vozes, a insistência dela em que nunca as teria confundido se essa igualdade não existisse, Oxalá tu estejas em casa quando telefonar, julgarás então por ti próprio, diria ela, e ele, Se é que telefonará, aquilo que queria saber já tu lho disseste, que moro aqui, Sem esquecer que perguntou por Daniel Santa-Clara, e não por António Claro, É isso que é estranho. A segunda e mais forte razão foi ter considerado definitivamente justificada a sua anterior ideia sobre as vantagens de despejar o terreno antes de dar o segundo passo, isto é, esperar que acabem as aulas e os exames para, com a cabeça tranquila, traçar novas estratégias de aproximação e cerco. É certo que tem à sua espera aquela aborrecida tarefa que o director lhe encomendou, mas, nos quase três meses de férias que vai ter pela frente, há-de poder achar uma aberta de tempo e a indispensável disposição de espírito para os estudos áridos. Cumprindo a promessa que havia feito, é até provável que resolva ir passar alguns dias, poucos, com a mãe, sob condição, no entanto, de descobrir a forma segura de confirmar a sua quase certeza de que o actor e a mulher não sairão para férias tão cedo, bastará que recordemos a pergunta feita por ela quando julgava estar a falar com o marido, A filmagem atrasou-se, é isso, para concluirmos, por a + b, que Daniel Santa-Clara está a participar num novo filme, e que, se a sua carreira se encontra em fase ascendente como A Deusa do Palco já mostrava, o seu tempo de ocupação profissional excederá em muito, por força de necessidade, a do pouco mais que figurante que havia sido nos seus princípios. As razões de Tertuliano Máximo Afonso para retardar a chamada são, portanto, como se acaba de ver, convincentes e substantivas. Não o obrigam, porém, nem condenam, à inactividade. A sua ideia de ir ver a rua onde reside Daniel Santa-Clara, apesar do revés daquele bruto balde de água fria lançado pelo senso comum, não tinha sido posta de parte. Considerava mesmo que essa observação, por assim dizer prospectiva, seria indispensável ao êxito das operações seguintes, porquanto constituía como um apalpar de pulso, algo parecido, nas guerras clássicas ou fora de moda, ao envio de uma patrulha de reconhecimento com a missão de avaliar as forças do inimigo. Felizmente para a sua segurança, não se lhe tinham varrido da memória os providenciais sarcasmos do senso comum sobre os mais do que prováveis efeitos de um aparecimento a cara descoberta. É certo que poderia deixar crescer o bigode e a barba, cavalgar o nariz com uns óculos escuros, enfiar um boné na cabeça, mas, excluindo o boné e os óculos, que são coisas de pôr e tirar, tinha a certeza de que os ornamentos pilosos, a barba e o bigode, fosse por caprichosa determinação da produtora, fosse por modificação de última hora no guião, começariam, nesse mesmo instante, a crescer na cara de Daniel Santa-Clara. Por conseguinte, o disfarce, indubitavelmente forçoso, teria de recorrer aos postiços de todas as mascaradas antigas e modernas, não valendo contra esta irrespondível necessidade os temores que tinha experimentado no outro dia, quando se pusera a imaginar as catástrofes que poderiam suceder se, assim dissimulado, tivesse ido à empresa pedir informações sobre o actor Santa-Clara. Como toda a gente, sabia da existência de estabelecimentos especializados na venda e aluguer de trajes, adereços e toda a restante parafernália indispensável tanto às artes do fingimento cénico como aos proteiformes avatares do ofício de espia. A hipótese de ser confundido com Daniel Santa-Clara na ocasião da compra só teria de ser tomada seriamente em consideração se fossem os próprios actores a andar por aí a comprar postiços de barba, bigode e sobrancelhas, perucas e cabeleiras, palas para olhos falsamente cegos, verrugas e sinaizinhos, enchimentos internos para dilatar as bochechas, chumaços de todo o tipo e para ambos os sexos, sem falar das cosméticas capazes de fabricar variações cromáticas à vontade do freguês. Não faltaria mais. Uma produtora de filmes que se preze deverá ter nos seus armazéns tudo quanto necessite, se algo lhe falta irá comprar, e, em caso de dificuldades orçamentais, ou simplesmente por não valer a pena, pois então que alugue, que não será por isso que lhe cairão os parentes na lama. Honestas mulheres de sua casa iam pôr os cobertores e os abafos no prego quando os primeiros calores chegavam com a primavera, e nem por isso a sua vida deveria ter sido menos merecedora do respeito da sociedade, que tem obrigação de saber o que são necessidades. Há dúvidas sobre se o que acaba de ser escrito, desde a palavra Honestas até à palavra necessidades, tenha sido obra efectiva do pensamento de Tertuliano Máximo Afonso, mas representando elas, e as que entre uma e outra se podem ler, a mais santa e pura das verdades, mal parecia deixar passar a ocasião. O que finalmente nos deve tranquilizar, aclarados já os passos a dar, é a certeza de que Tertuliano Máximo Afonso poderá deslocar-se sem nenhum receio à loja dos disfarces e enfeites, escolher e adquirir o modelo de barba que melhor condiga com a sua cara, observando, no entanto, a cláusula incondicional de que uma barbica do género geralmente conhecido por passa-piolho, mesmo que o transformasse num árbitro de elegâncias, teria de ser firmemente rejeitada, sem regateio nem cedência às tentações de uma redução de preço, pois o desenho de orelha a orelha e a relativa curteza do pêlo, sem falar da nudez do lábio superior, deixariam pouco menos que à luz crua do dia as feições que justamente se pretende levar ocultas. Por ordem inversa de razões, ou seja, porque iria chamar demasiado a atenção dos curiosos, também deverá ser excluída qualquer espécie de barba longa, mesmo não pertencendo ao tipo apostólico. O conveniente será, portanto, uma barba cheia, bastamente povoada, tirando, porém, mais para o lado do curto que para o lado do comprido. Tertuliano Máximo Afonso passará horas fazendo experiências diante do espelho da casa de banho, pegando e despegando a finíssima película em que os pêlos se encontram implantados, ajustando-a com precisão às patilhas naturais e aos contornos dos maxilares, das orelhas e dos lábios, estes em especial, porque terão de mover-se para falar e até, quem sabe, para comer, ou, sabe-se lá ainda, para beijar. Quando pela primeira vez olhou a sua nova fisionomia sentiu um fortíssimo impacte interior, aquela íntima e insistente palpitação nervosa do plexo solar que tão bem conhece, porém, o choque não tinha sido o resultado, simplesmente, de se ver distinto do que era antes, mas sim, e isso é muito mais interessante se tivermos em conta a peculiar situação em que tem vivido nos últimos tempos, uma consciência também distinta de si mesmo, como se, finalmente, tivesse acabado de encontrar-se com a sua própria e autêntica identidade. Era como se, por aparecer diferente, se tivesse tomado mais ele mesmo. Tão intensa foi a impressão do choque, tão extrema a sensação de força que dele se apoderou, tão exaltada a incompreensível alegria que o invadiu, que uma necessidade angustiosa de conservar a imagem o fez sair de casa, usando de todas as cautelas para não ser visto, e dirigir-se a um estabelecimento fotográfico longe do bairro onde vivia, para que lhe tirassem o retrato. Não queria sujeitar-se à mal estudada iluminação e aos maquinismos cegos de um fotomaton, queria um retrato cuidado, que lhe desse gosto guardar e contemplar, uma imagem de que pudesse dizer a si mesmo, Este sou eu. Pagou uma sobretaxa de urgência e sentou-se à espera. Ao empregado que lhe sugeriu que desse uma volta, a fazer tempo, Ainda demora um bocado, respondeu que não, que preferia esperar ali, e desnecessariamente acrescentou, É para oferecer. De vez em quando levava as mãos à barba, como se a cofiasse, certificava-se pelo tacto de que tudo parecia estar no seu lugar e regressava às revistas de fotografia que estavam expostas numa mesa. Quando saiu levava consigo meia dúzia de retratos de formato médio, que já tinha decidido destruir para não ter de ver-se multiplicado, e a respectiva ampliação. Entrou num centro comercial próximo, meteu-se numa privada, e ali, fora de vistas indiscretas, retirou o postiço. Se alguém tinha visto entrar nas retretes um homem barbado, dificilmente será capaz de jurar que fosse este, de cara rapada, que acaba de sair cinco minutos depois. Em geral, num homem com barba não se repara no que leva posto, e aquele sobrescrito eventualmente denunciador que antes havia entrado na mão, está agora escondido entre o casaco e a camisa. Tertuliano Máximo Afonso, até estes dias pacífico professor de História do ensino secundário, demonstra ser dotado de suficiente talento para o exercício de qualquer destas duas actividades profissionais, ou a de disfarçado delinquente, ou a do polícia que o investiga. Dêmos nós tempo ao tempo, e saberemos qual das duas vocações prevalecerá. Quando chegou a casa começou por queimar no lava-louça os seis duplicados menores da fotografia ampliada, fez correr a água que arrastou as cinzas para o ralo do desaguadouro, e, depois de contemplar complacente a sua nova e clandestina imagem, restituiu-a ao sobrescrito, que foi esconder numa prateleira da estante, por trás de uma História da Revolução Industrial que ele próprio nunca havia lido.

Alguns dias mais decorreram, o ano lectivo chegou ao fim com o último exame e a afixação da última pauta de classificações, o colega de Matemática despediu-se, Vou para férias, mas depois, se precisar de alguma coisa, telefone-me, e ande com cuidado, com muito cuidado, o director recordou-lhe, Não se esqueça do que combinámos, quando eu regressar de férias telefono-lhe para saber como vai o trabalho, se resolver sair da cidade, também tem direito a descanso, deixe-me o seu número no gravador. Num destes dias Tertuliano Máximo Afonso convidou Maria da Paz para jantar, pesara-lhe finalmente na consciência a incorrecção com que estava a portar-se com ela, sem ao menos a delicadeza formal de um agradecimento, sem uma explicação sobre os resultados da carta, mesmo tendo que inventá-la. Encontraram-se no restaurante, ela chegou um pouco atrasada, sentou-se logo e desculpou-se com a mãe, ninguém diria, olhando-os, que são amantes, ou talvez se note que o foram até há pouco tempo e que ainda não se habituaram ao seu novo estado de indiferentes um ao outro, ou a parecer que o são. Pronunciaram algumas frases de circunstância, Como estás, Como tens passado, Muito trabalho, Eu também, e quando Tertuliano Máximo Afonso uma vez mais hesitava no rumo que lhe conviria dar à conversa, ela antecipou-se e saltou a pés juntos sobre o assunto, Satisfez a carta os teus desejos, perguntou, deu-te todas as informações de que tinhas necessidade, Sim, disse ele, demasiado consciente de que a sua resposta era, ao mesmo tempo, falsa e verdadeira, A mim, na altura, não me deu essa impressão, Porquê, Seria de esperar que fosse mais volumosa, Não compreendo, Se mal não recordo, os dados de que precisavas eram tantos e tão minuciosos que não poderiam caber numa única folha de papel, e dentro do sobrescrito não havia mais que isso, E tu como o sabes, abriste-o, perguntou Tertuliano Máximo Afonso com súbita aspereza e sabendo antecipadamente que resposta iria receber a gratuita provocação. Maria da Paz fitou-o a direito nos olhos e disse serena, Não, e tu tinhas obrigação de o saber, Peço-te por favor que me desculpes, saiu-me da boca sem pensar, disse ele, Poderei desculpar-te, se fazes nisso questão, mas temo não poder ir mais longe, Mais longe aonde, Por exemplo, esquecer que me consideraste capaz de abrir uma carta que te vinha dirigida, No fundo de ti mesma, sabes que não é isso que penso, No fundo de mim mesma, sei que nada sabes de mim, Se desconfiasse do teu carácter, não te teria pedido que a carta fosse enviada com o teu nome, Ali, o meu nome não foi mais que uma máscara, a máscara do teu nome, a máscara de ti, Expliquei-te as razões por que considerei mais próprio o procedimento que seguimos, Explicaste, E tu estiveste de acordo, Sim, estive de acordo, Então, Então, a partir de agora ficarei à espera de que me mostres as informações que dizes ter recebido, e não é porque tenha qualquer interesse nelas, é simplesmente porque entendo ser teu dever mostrar-mas, Agora és tu que desconfias de mim, Sim, mas deixarei de desconfiar se me disseres como foi possível caberem numa simples folha de papel todos aqueles dados que pediste, Não mos deram todos, Ah, não tos deram todos, Foi o que eu disse, Então hás-de mostrar-me o que tiveres. A comida arrefecia nos pratos, o molho da carne coalhava, o vinho dormia esquecido nos copos e havia lágrimas nos olhos de Maria da Paz. Por um instante Tertuliano Máximo Afonso pensou que lhe daria um alívio infinito contar a história toda desde o começo, este estranhíssimo, singular, assombroso e nunca antes visto caso do homem duplicado, o inimaginável convertido em realidade, o absurdo conciliado com a razão, a demonstração acabada de que a Deus nada é impossível e que a ciência deste século é realmente, como disse o outro, uma tola. Fizesse-o ele, tivesse ele tido essa franqueza, que as suas desconcertantes acções anteriores se encontrariam explicadas por si mesmas, incluindo aquelas que para Maria da Paz haviam sido agressivas, grosseiras ou desleais, ou que, numa palavra, foram ofensivas do mais elementar senso comum, isto é, quase todas. Então a concórdia regressaria, os erros e faltas seriam perdoados sem condições nem reservas, Maria da Paz pedir-lhe-ia Não sigas com essa loucura, que pode vir a dar mau resultado, e ele responderia Pareces a minha mãe a falar, e ela perguntaria Já lhe contaste, e ele diria Só lhe dei a entender que andava com certos problemas, e ela concluiria Agora que desabafaste comigo, vamos resolvê-los juntos, São poucas as mesas que estão ocupadas, eles foram postos num canto e ninguém lhes dá particular atenção, situações como esta, de casais que vêm esgrimir os seus conflitos sentimentais ou domésticos entre o peixe e a carne ou, pior ainda, por levarem mais tempo a dirimir, entre o aperitivo e o pagamento da conta, fazem parte integrante do quotidiano histórico da hotelaria, modalidade restaurante ou casa de pasto. O bem intencionado pensamento de Tertuliano Máximo Afonso, assim como apareceu, assim se foi embora, o criado veio perguntar se tinham terminado e retirou os pratos, os olhos de Maria da Paz estão quase secos, já foi dito mil vezes que é inútil chorar o leite derramado, o pior neste caso foi o que aconteceu à vasilha que o levava, feita em cacos no chão. O criado trouxe o café e a conta que Tertuliano Máximo Afonso havia pedido, daí a poucos minutos estavam dentro do carro. Levo-te a casa, tinha dito ele, Pois sim, se fazes favor, respondera ela. Não falaram até entrarem na rua em que morava Maria da Paz. Antes de chegarem à altura da porta em frente da qual ela deveria descer, Tertuliano Máximo Afonso encostou o carro ao passeio e desligou o motor. Surpreendida pelo inopinado do gesto, ela olhou-o de relance, mas continuou calada. Sem virar a cara, sem a olhar, numa voz decidida, mas tensa, ele disse, Tudo quanto nas últimas semanas ouviste da minha boca, incluindo a conversa que tivemos agora no restaurante, foi mentira, mas não percas tempo a perguntar qual é a verdade porque não te poderei responder, Portanto, o que de facto querias da produtora não eram esclarecimentos estatísticos, Exactamente, Presumo que será inútil da minha parte esperar que digas qual era o verdadeiro motivo do teu interesse, Assim é, Terá algo que ver com os vídeos que lá tens, imagino, Contenta-te com o que disse e deixa-te de perguntas e suposições, Perguntas, posso prometer que não as farei, mas sou livre de fazer as suposições que quiser, mesmo que viessem a parecer-te disparatadas, É curioso que não tenhas ficado surpreendida, Surpreendida com quê, Sabes a que me refiro, não me obrigues a repeti-lo, Mais tarde ou mais cedo terias de mo dizer, o que não esperava era que fosse hoje, E por que teria eu de dizer-to, Porque és mais honesto do que julgas, Em todo o caso, não o suficiente para te contar a verdade, Não creio que a razão seja a falta de honestidade, o que te cerra a boca é outra coisa, Quê, Uma dúvida, uma angústia, um temor, Que te leva a pensar assim, Tê-lo lido na tua cara, tê-lo percebido nas tuas palavras, Já te disse que mentiam, Elas, sim, mas não como soavam, É a altura de usar a frase dos políticos, não confirmo nem desminto, Esse é um daqueles truques de baixa retórica que não enganam ninguém, Porquê, Porque qualquer pessoa vê logo que a frase se inclina mais para o lado da confirmação do que para o lado do desmentido, Nunca tinha dado por isso, Eu também não, ocorreu-me agora mesmo, e foi graças a ti, Não confirmei nem o temor, nem a angústia, nem a dúvida, Sim, mas não os desmentiste, O momento não é para nos entretermos a jogar com palavras, Melhor isso que ter lágrimas nos olhos à mesa de um restaurante, Desculpa, Desta vez não tenho nada que desculpar-te, já sei metade do que havia para saber, não me posso queixar, Só confessei que era mentira o que te tinha dito, É essa a metade que já sei, a partir de agora espero dormir melhor, Talvez perdesses o sono se conhecesses a outra metade, Não me assustes, por favor, Nem há razão para isso, tranquiliza-te, aqui não há morte de homem, Não me assustes, Sossega, como a minha mãe costuma dizer, tudo acaba por se resolver, Promete-me que terás cuidado, Está prometido, Muito cuidado, Sim, E que se em todos esses segredos que não sou capaz de imaginar achasses algo que me pudesses dizer, mo dirias, mesmo que a ti te parecesse insignificante, Prometo, mas, neste caso, o que não for tudo, é nada, Mesmo assim, esperarei. Maria da Paz inclinou-se, deu-lhe um beijo rápido na cara e fez um movimento para sair. Ele deitou-lhe a mão ao braço e reteve-a, Fica, vamos para minha casa. Ela desprendeu-se suavemente e disse, Hoje não, não poderias dar-me mais do que já deste, Salvo se te contasse o que falta, Nem sequer isso, imagina tu. Abriu a porta, virou ainda a cabeça para despedir-se com um sorriso e saiu. Tertuliano Máximo Afonso ligou o motor, esperou que ela entrasse no prédio e depois, com um gesto cansado, pôs o carro em movimento e foi para casa, lá onde, paciente e segura do seu poder, o estava esperando a solidão.

No dia seguinte, a meio da manhã, partiu para o primeiro reconhecimento no território ignoto em que vivia Daniel Santa-Clara com a mulher. Levava a barba postiça meticulosamente ajustada à cara, um boné que tinha por fim lançar uma sombra protectora sobre os olhos, que à última hora decidiu não ocultar por trás de uns óculos escuros porque lhe davam, com o restante disfarce, um ar de fora-da-lei capaz de despertar todas as suspeitas da vizinhança e ser causa de uma perseguição policial em regra, com as previsíveis sequências de captura, identificação e opróbrio público. Não ia à espera de colher resultados especialmente relevantes nesta incursão, quando muito apreenderia algo do exterior das coisas, o conhecimento topográfico dos sítios, a rua, o prédio, e pouco mais. Seria o cúmulo dos acasos assistir à entrada de Daniel Santa-Clara em casa, ainda com restos de maquilhagem no rosto e o aspecto irresoluto, perplexo, de quem está tardando demasiado a sair da pele do personagem que havia interpretado uma hora antes. A vida real sempre nos tem parecido mais parca em coincidências que o romance e as outras ficções, salvo se admitíssemos que o princípio da coincidência é o verdadeiro e único regedor do mundo, e nesse caso tanto deveria valer aquilo que se vive como aquilo que se escreve, e vice-versa. Durante a meia hora que Tertuliano Máximo Afonso por ali esteve, parando a ver as montras e a comprar um jornal, lendo depois as notícias sentado no terraço de um café mesmo ao lado do prédio, Daniel Santa-Clara não foi visto entrar nem sair. Talvez descanse na tranquilidade do lar com a mulher, e os filhos, no caso de os ter, talvez, como no outro dia, ande ocupado com as filmagens, talvez não haja agora ninguém no apartamento, os filhos porque foram passar as férias para casa dos avós, a mãe porque, como tantas outras, trabalha fora de casa, quer tenha sido por querer salvaguardar um estatuto de real ou suposta independência pessoal, quer seja porque a economia caseira não pode dispensar o seu contributo material, na verdade, os ganhos de um actor secundário, por muito que este se esforce a correr de papel pequeno a pequeno papel, por muito que a produtora que o tem contratado numa espécie de exclusividade tácita entenda por bem utilizá-lo, sempre estarão, eles, esses ganhos, subordinados à rigidez de critérios de oferta e procura que jamais se pautaram pelas necessidades objectivas do sujeito, mas unicamente pelos seus supostos ou verdadeiros talentos e habilidades, os que se lhe faz o favor de reconhecer ou os que, com intenção reservada e quase sempre negativa, lhe são outorgados, sem que alguma vez se houvesse pensado que outros talentos e outras habilidades, menos à vista, mereceriam ser postos à prova. Quer isto dizer que Daniel Santa-Clara talvez possa chegar a ser um grande artista se o escolher a fortuna para ser olhado com olhos de ver por um produtor sagaz e amante do risco, daqueles que se, às vezes, lhes dá para desfazer estrelas de primeira grandeza, também não é raro que, magnificamente, puxem o lustro às de segunda e terceira. Dar tempo ao tempo sempre foi o melhor remédio para tudo desde que o mundo é mundo, Daniel Santa-Clara é um homem ainda novo, simpático de cara, tem boa figura e inegáveis dotes de intérprete, não seria justo que levasse o resto da vida a desempenhar papéis de recepcionista de hotel ou quejandas ocupações. Ainda não há muito que o vimos a fazer de empresário teatral em A Deusa do Palco, enfim já devidamente identificado no genérico inicial, e isso pode ser uma indicação de que começaram a reparar nele. Lá onde quer que esteja, o futuro, ainda que não seja nenhuma novidade dizê-lo, espera. A quem não convirá esperar mais, sob pena de deixar gravado na memória fotográfica dos criados do café o inquietante negrume do seu conspecto geral, faltava mencionar que veio de fato escuro, e agora que por causa da intensa luz do sol teve de recorrer à protecção dos óculos, é a Tertuliano Máximo Afonso. Deixou o dinheiro na mesa para não ter de chamar o criado e dirigiu-se rapidamente a uma cabina telefónica no outro passeio. Tirou do bolso superior do casaco um papel com o número do telefone de Daniel Santa-Clara e marcou-o. Não queria falar, apenas queria saber se alguém responderia, e quem. Desta vez não velo uma mulher a correr do outro extremo da casa, também uma criança não disse A minha mamã não está, nem se ouviu uma voz igual à de Tertuliano Máximo Afonso a perguntar Quem fala. Ela deve estar no trabalho, pensou, e ele com certeza anda lá pelas filmagens, a fazer de polícia de estrada ou de empreiteiro de obras públicas. Saiu da cabina e olhou o relógio. Ia-se aproximando a hora do almoço, Nenhum deles virá a casa, disse, nesse momento passou uma mulher, não lhe chegou a ver a cara, atravessava já a rua dirigindo-se ao café, dava a ideia de que também ia sentar-se no terraço, mas não foi assim, prosseguiu, andou uns quantos passos mais e entrou no prédio onde Daniel Santa-Clara mora. Tertuliano Máximo Afonso fez um gesto de incontida contrariedade, Era ela de certeza, murmurou, o pior defeito deste homem, pelo menos desde que o conhecemos, tem sido o excesso de imaginação, na verdade ninguém diria que se trata de um professor de História a quem apenas os factos deveriam interessar, só por ter visto pelas costas a mulher que acaba de passar i à o temos aqui a fantasiar identidades, ainda por cima a de uma pessoa a quem não conhece, a quem nunca viu antes, nem por trás, nem pela frente. Justiça deve ser feita no entanto a Tertuliano Máximo Afonso porque, apesar da sua tendência para o desvairo imaginativo, ainda consegue, em momentos decisivos, sobrepor-lhe uma frieza de cálculo que faria empalidecer de ciúme profissional o mais encalecido dos especuladores da bolsa. Efectivamente, há uma maneira simples, elementar até, porém, como em todas as coisas, é preciso ter tido a ideia, de saber se o destino da mulher que entrou no prédio era a casa de Daniel Santa-Clara, bastará aguardar uns minutos, dar tempo a que o elevador a suba ao quinto andar onde António Claro mora, esperar ainda que abra a porta e entre, dois minutos mais para largar a carteira no sofá e pôr-se à vontade, não seria correcto obrigá-la a correr como no outro dia, que bem se lhe notava na respiração. O telefone tocou e tocou, tocou e tornou a tocar, mas ninguém atendeu. Afinal, não era ela, disse Tertuliano Máximo Afonso enquanto desligava. Já não tem nada que fazer aqui, a sua última acção preambular de aproximação está concluída, muitas das anteriores haviam sido absolutamente indispensáveis ao êxito da operação, com outras não teria valido a pena perder o tempo, mas essas, ao menos, tinham servido para enganar as dúvidas, as angústias, os temores, para fazer de conta que marcar passo era o mesmo que avançar e que o melhor significado de recuar era pensar melhor. Tinha deixado o carro numa rua próxima e para ele se encaminhava, o seu trabalho de espia havia terminado, isso era o que nós julgaríamos, mas Tertuliano Máximo Afonso, que irão elas pensar, não pode impedir-se de olhar com ardorosa intensidade todas as mulheres com quem se cruza, não todas exactamente, estão fora de campo as demasiado velhas ou demasiado novas para estarem casadas com um homem de trinta e oito anos, Que é a idade que eu tenho, e portanto deve ser a idade que ele tem, neste ponto, por assim dizer, os pensamentos de Tertuliano Máximo Afonso bifurcaram-se, uns para irem pôr em causa a discriminatória ideia subjacente na sua alusão às diferenças de idades em casamentos ou uniões similares, perfilhando assim os prejuízos de consenso social em que se têm gerado os flutuantes mas enraizados conceitos de próprio e impróprio, e o resto, aos pensamentos nos referimos, para controverterem a possibilidade depois aventurada, isto é, com base no facto de ser cada um deles o vivíssimo retrato do outro, conforme as provas videográficas a seu tempo demonstraram, terem o professor de História e o actor a mesma exacta idade em anos. No que ao primeiro ramal de reflexões respeita, não teve Tertuliano Máximo Afonso mais remédio que reconhecer que todo o ser humano, salvo intransponíveis e privados impedimentos morais, tem direito a unir-se a quem quiser, onde quiser e como quiser, desde que a outra parte interessada queira o mesmo. Quanto ao segundo ramal pensante, esse serviu para que bruscamente tivesse ressuscitado no espírito de Tertuliano Máximo Afonso, agora com mais fortes motivos, a inquietante questão de se saber quem é o duplicado de quem, posta de parte por inverosímil a hipótese de ambos terem nascido, não só no mesmo dia, mas também na mesma hora, no mesmo minuto e na mesma fracção de segundo, porquanto isso implicaria que, além de terem visto a luz no mesmo preciso instante, no mesmo preciso instante teriam conhecido o choro. Coincidências, sim senhor, mas com a solene condição de acatarem os mínimos de verosimilhança reclamados pelo senso comum. A Tertuliano Máximo Afonso desassossega-o agora a possibilidade de ser ele o mais novo dos dois,- que o original seja o outro e ele não passe de uma simples e antecipadamente desvalorizada repetição. Como é óbvio, os seus nulos poderes divinatórios não lhe permitem distinguir na bruma do futuro se isso terá alguma influência num porvir que temos todas as razões para classificar como impenetrável, mas o facto de ter sido ele o descobridor do sobrenatural portento que conhecemos havia feito nascer na sua mente, sem que de tal se tivesse apercebido, uma espécie de consciência de primogenitura que neste momento se está rebelando contra a ameaça, como se um ambicioso irmão bastardo aí viesse para o apear do trono. Absorvido nestes ponderosos pensamentos, remoído por estas insidiosas inquietações, Tertuliano Máximo Afonso entrou com a barba ainda posta na rua onde mora e onde toda a gente o conhece, arriscando-se a que alguém se ponha de repente a gritar que levam roubado o carro do senhor doutor e que um vizinho decidido lhe corte o caminho com o seu próprio automóvel. A solidariedade, porém, perdeu muitas das suas antigas virtudes, neste caso é lícito dizer-se que felizmente, Tertuliano Máximo Afonso prosseguiu o seu caminho sem impedimentos, sem que alguém desse mostra de o ter reconhecido ou ao carro que conduzia, deixou o bairro e as suas imediações, posto o que, já que a necessidade o tinha tomado em assíduo frequentador de centros comerciais, entrou no primeiro que lhe apareceu. Dez minutos depois estava outra vez fora, perfeitamente escanhoado, salvo o pouquíssimo que tinham crescido desde a manhã os pêlos da sua própria barba. Quando chegou a casa havia uma chamada de Maria da Paz no gravador, nada de importância, só para saber como ele estava. Estou bem, murmurou, estou mesmo muito bem. Prometeu a si mesmo que lhe falaria à noite, mas o mais provável é que não o faça, se se decidir a dar o passo que falta, esse que não pode demorar nem uma página mais, telefonar a Daniel Santa-Clara.


Poderei falar com o senhor Daniel Santa-Clara, perguntou Tertuliano Máximo Afonso quando a mulher dele atendeu, Suponho que é a mesma pessoa que ligou para aqui no outro dia, estou a reconhecê-lo pela voz, disse ela, Sim, sou eu, O nome, por favor, Não creio que mereça a pena, o seu marido não me conhece, Também o senhor não o conhece a ele, e apesar disso sabe como se chama, É natural, ele é actor, portanto uma figura pública, Todos nós andamos por aí, mais ou menos somos todos figuras públicas, o número de espectadores a assistir é que difere, O meu nome é Máximo Afonso, Um momento.

O auscultador foi deixado sobre a mesa, logo outra vez levantado, a voz de ambos irá repetir-se como um espelho se repete diante de outro espelho, Sou António Claro, que deseja, Chamo-me Tertuliano Máximo Afonso e sou professor de História no ensino secundário, Disse à minha mulher que se chamava Máximo Afonso, Foi para abreviar, o nome completo é este, Muito bem, que deseja, Já notou certamente que as nossas vozes são iguais, Sim, Exactamente iguais, Assim parece, Tive repetidas ocasiões de confirmá-lo, Como, Vi alguns dos filmes em que entrou nos últimos anos, o primeiro foi uma comédia já antiga que tem o título de Quem Porfia Mata Caça, o último foi A Deusa do Palco, calculo que devo ter visto, ao todo, uns oito ou dez, Confesso que me sinto um tanto lisonjeado, não imaginava que o género de filmes em que durante alguns anos não tive mais remédio que participar pudesse interessar assim tanto a um professor de História, há que dizer, no entanto, que os papéis que estou a interpretar agora são muito diferentes, Tenho uma boa razão para os ter visto e é sobre ela que gostaria de lhe falar pessoalmente, Porquê pessoalmente, Não é só nas vozes que somos parecidos, Que quer dizer, Qualquer pessoa que nos visse juntos seria capaz de jurar pela sua própria vida que somos gémeos, Gémeos, Mais que gémeos, iguais, Iguais, como, Iguais, simplesmente iguais, Meu caro senhor, eu não o conheço, nem sequer posso estar seguro de que o seu nome seja realmente esse e de que a sua profissão seja a de historiador, Não sou historiador, sou apenas professor de História, quanto ao nome nunca tive outro, no ensino não usamos pseudónimos, mal ou bem ensinamos de cara descoberta, Essas considerações não vêm ao caso, deixemos a nossa conversa por aqui, tenho que fazer, Portanto, não acredita em mim, Não acredito em impossíveis, Tem dois sinais no antebraço direito, um ao lado do outro, longitudinalmente, Tenho, Eu também, Isso não prova nada, Tem uma cicatriz debaixo da rótula esquerda, Sim, Eu também, E como sabe tudo isso se nunca nos encontrámos, Para mim foi fácil, vi-o numa cena de praia, não me lembro agora em que filme, havia um grande plano, E como poderei saber que tem os mesmos sinais que eu, e a mesma cicatriz, Sabê-lo só depende de si, As impossibilidades de uma coincidência são infinitas, As possibilidades também, é certo que os sinais de um e do outro poderiam ser de nascença ou aparecerem depois, com o tempo, mas uma cicatriz é sempre consequência de um acidente que afectou uma parte do corpo, os dois tivemos esse acidente e, com toda a probabilidade, na mesma ocasião, Admitindo que exista tal semelhança absoluta, note que só o estou admitindo como hipótese, não vejo qualquer razão para que nos encontremos, nem percebo por que me telefonou, Por curiosidade, nada mais que por curiosidade, não é todos os dias que se encontram duas pessoas iguais, Vivi toda a minha vida sem o saber, e não me fez falta, Mas a partir de agora sabe-o, Farei de conta que o ignoro, Vai-lhe acontecer o mesmo que a mim, de cada vez que se olhar num espelho nunca terá a certeza de que se o que o está vendo é a sua imagem virtual, ou a minha imagem real, Começo a pensar que tenho estado a falar com um louco, Lembre-se da cicatriz, se eu estivesse louco, o mais provável é que o estivéssemos ambos, Chamarei a polícia, Duvido que este assunto possa interessar às autoridades policiais, limitei-me a fazer duas chamadas telefónicas perguntando pelo actor Daniel Santa-Clara, a quem não ameacei nem insultei, nem de qualquer modo prejudiquei, pergunto onde está o meu crime, Incomodou-nos a minha mulher e a mim, portanto acabemos com isto, vou desligar, Tem a certeza de que não quer encontrar-se comigo, não sente ao menos um pouco de curiosidade, Não sinto curiosidade nem quero encontrar-me consigo, É a sua última palavra, A primeira e a última, Sendo assim, devo pedir-lhe desculpa, as minhas intenções não eram más, Promete-me que não voltará a ligar, Prometo, Temos direito à nossa tranquilidade, à privacidade do lar, Assim é, Agrada-me que esteja de acordo, Em tudo isto, permita-me ainda dizê-lo, só tenho uma dúvida, Qual, Se sendo iguais morreremos no mesmo instante, Todos os dias estão a morrer no mesmo instante pessoas que não são iguais nem habitam na mesma cidade, Nesses casos trata-se apenas de uma coincidência, de uma simples e banal coincidência, Esta conversa chegou ao fim, nada mais temos a dizer, agora espero que tenha a decência de cumprir a sua palavra, Prometi-lhe que não voltaria a ligar para sua casa e assim farei, Muito bem, Peço-lhe mais uma vez que me desculpe, Está desculpado, Boas noites, Boas noites. Estranha serenidade é a de Tertuliano Máximo Afonso quando o natural, o lógico, o humano teria sido, por esta ordem de gestos, poisar com violência o auscultador, desferir um murro na mesa para desafogar a sua justa irritação e logo exclamar com amargura Tanto trabalho para nada. Semana após semana delineando estratégias, desenvolvendo tácticas, calculando cada novo passo, ponderando os efeitos do anterior, manobrando as velas para aproveitar as aragens favoráveis, viessem elas donde viessem, e tudo isto para chegar ao fim a pedir humildemente desculpa e a prometer, como uma criança apanhada em falta na despensa, que não tomaria mais. Contra toda a expectativa razoável, porém, Tertuliano Máximo Afonso está satisfeito. Em primeiro lugar, por considerar que durante todo o diálogo havia estado à altura do que a situação requeria, não se intimidando nunca, argumentando, agora sim é caso para dizer, de igual para igual, e mesmo, uma ou outra vez, passando galhardamente à ofensiva. Em segundo lugar, por considerar que é simplesmente impensável que as coisas fiquem por aqui, razão, sem a menor dúvida, do mais subjectivo, mas que está avalizada pela experiência de tantas e tantas acções que, não obstante a força da curiosidade que prontamente deveria movê-las se deixaram atrasar, ao ponto, em certos casos, de terem parecido para sempre olvidadas. Mesmo na hipótese de que o efeito imediato da revelação não vá ser tão revolvente para Daniel Santa-Clara como o havia sido para Tertuliano Máximo Afonso, é impossível que António Claro, um destes dias, não dê um passo, frontal ou dissimulado, para comparar uma cara a outra cara e uma cicatriz a outra cicatriz. Realmente não sei que faça, disse ele à mulher depois de ter completado a sua parte na conversa com a parte do interlocutor, que ela não pudera ouvir, este tipo fala com uma tal segurança que dá vontade de saber se a história que conta é realmente verdade, Se eu estivesse no teu lugar, varreria da cabeça o assunto, diria cem vezes por dia que não pode haver no mundo duas pessoas iguais, até ficar convencida e esquecer, E não farias nenhuma tentativa para comunicar com ele, Creio que não, Porquê, Não sei, suponho que por medo, Evidentemente, a situação não é comum, mas não vejo motivo para tanto, No outro dia deu-me como uma vertigem quando percebi que não eras tu quem estava ao telefone, Percebo isso, ouvi-lo a ele é ouvir-me a mim, O que eu pensei, não, não foi pensado, foi antes algo sentido, como uma onda de pânico a apertar-me, a crispar-me a pele, senti que se a voz era igual, todo o mais o seria também, Não tem de ser necessariamente assim, a coincidência talvez não seja total, Ele diz que sim, Teríamos de comprová-lo, E como o faríamos, chamamo-lo aqui, tu despido e ele despido para que eu, nomeada juiz pelos dois, pronuncie a sentença, ou não a possa pronunciar por a igualdade ser absoluta, e se eu me retirar de onde estivermos e voltar logo a seguir não saberei quem é um e quem é outro, e se um dos dois sair, se se for embora daqui, com quem fiquei depois, diz-me, fiquei contigo, fiquei com ele, Distinguir-nos-ias pelas roupas, Sim, se as não tivésseis trocado, Tem calma, estamos só a conversar, nada disso sucederá, Imagina, decidir pelo que está fora e não pelo que está dentro, Tranquiliza-te, E agora pergunto-me que teria querido ele dizer quando lançou aquela de que, pelo facto de vocês serem iguais, morreriam no mesmo instante, Não o afirmou, apenas exprimiu uma dúvida, uma suposição, como se estivesse a interrogar-se a si mesmo, De toda a maneira, não entendo por que achou necessário dizê-lo, se não vinha a propósito, Terá sido para me impressionar, Quem é este homem, que quererá ele de nós, Sei o mesmo que tu, nada, nem do que é, nem do que quer, Disse que é professor de História, Será verdade, não iria inventá-lo, pelo menos pareceu-me ser pessoa culta, quanto a ter-nos telefonado, creio que sucederia o mesmo se, em vez dele, tivesse sido eu a descobrir a semelhança, E como iremos nós sentir-nos daqui em diante, com essa espécie de fantasma a andar pela casa, terei a impressão de estar a vê-lo a ele de cada vez que te olhar a ti, Ainda estamos sob o efeito do choque, da surpresa, amanhã tudo nos parecerá simples, uma curiosidade como tantas outras, não será um gato com duas cabeças nem um vitelo com uma pata a mais, só um par de siameses que nasceram separados, Há pouco falei de medo, de pânico, mas agora percebo que é outra coisa o que estou a sentir, Quê, Não sei explicar, talvez um pressentimento, Mau, ou bom, É só um pressentimento, como uma porta fechada atrás de outra porta fechada, Estás a tremer, Parece que sim. Helena, é este o seu nome e ainda não o conhecíamos, retribuiu alheada o abraço do marido, depois encolheu-se no canto do sofá em que se sentara e fechou os olhos. António Claro quis distraí-la, animá-la com um gracejo, Se algum dia eu chegar a ser um actor de primeira fila, este Tertuliano poderá servir-me de duplo, mando-o a ele fazer as cenas perigosas e enfadonhas, e fico em casa, ninguém se aperceberia da troca. Ela abriu os olhos, sorriu desmaiadamente e respondeu, Um professor de História a fazer de duplo deveria ser coisa digna de ver-se, a diferença é que os duplos de cinema só vêm quando são chamados, e este invadiu-nos a casa, Não penses mais nisso, lê um livro, vê a televisão, entretém-te, Não me apetece ler, muito menos olhar para a televisão, vou-me deitar. Quando António Claro, uma hora mais tarde, foi para a cama, Helena parecia dormir. Ele fingiu que acreditava e apagou a luz, sabendo de antemão que iria levar tempo a adormecer. Lembrava o inquietante diálogo que travara com o intruso, rebuscava intenções ocultas nas frases que lhe tinha ouvido, até que as palavras, por fim, tão cansadas como ele, começavam a tornar-se neutras, perdiam os seus significados, como se já nada tivessem que ver com o mundo mental de quem em silêncio e desesperadamente continuava a pronunciá-las, A infinitude de possibilidades de uma coincidência, Morrem juntos os que são iguais, tinha ele dito, e também, A imagem virtual daquele que se olha ao espelho, A imagem real daquele que do espelho o olha, depois a conversa com a mulher, os pressentimentos dela, o medo, de si para si tomou a resolução, ia avançada a noite, de que o assunto teria de ser resolvido a bem ou a mal, fosse como fosse, e rapidamente, Irei falar com ele. A decisão enganou-lhe o espírito, iludiu-lhe as tensões do corpo, e o sono, encontrando o caminho aberto, avançou de mansinho e deitou-se a dormir. Cansada de se ter forçado a uma imobilidade contra a qual todos os seus nervos protestavam, Helena havia finalmente adormecido, durante duas horas conseguiu repousar ao lado do seu marido António Claro como se nenhum homem se tivesse vindo interpor entre os dois, e assim provavelmente iria continuar até ao amanhecer se o seu próprio sonho não a tivesse despertado de sobressalto. Abriu os olhos para o quarto imerso numa penumbra que era quase escuridão, ouviu o lento e espaçado respirar do marido, e de súbito percebeu que havia uma outra respiração no interior da casa, alguém que tinha entrado, que se movia lá fora, talvez na sala, talvez na cozinha, agora por trás desta porta que dá para o corredor, em qualquer parte, aqui mesmo. Arrepiada de medo, Helena estendeu o braço para acordar o marido, mas, no último instante, a razão fê-la deter-se. Não há ninguém, pensou, não é possível que esteja alguém aí fora, são imaginações minhas, às vezes acontece saírem os sonhos do cérebro que os sonhava, então chamamos-lhes visões, fantasmagorias, premonições, advertências, avisos do além, quem respira e anda aí pela casa, quem há pouco se sentou no meu sofá, quem está escondido atrás da cortina da janela, não é aquele homem, é a fantasia que tenho dentro da cabeça, esta figura que avança direita a mim, que me toca com mãos iguais às deste outro homem adormecido ao meu lado, que me olha com os mesmos olhos, que com os mesmos lábios me beijaria, que com a mesma voz me diria as palavras de todos os dias, e as outras, as próximas, as íntimas, as do espírito e as da carne, é uma fantasia, nada mais que uma louca fantasia, um pesadelo nocturno nascido do medo e da angústia, amanhã todas as coisas tomarão ao seu lugar, não será preciso que cante um galo para expulsar os sonhos maus, bastará que toque o despertador, toda a gente sabe que nenhum homem pode ser exactamente igual a outro num mundo em que se fabricam máquinas para acordar. A conclusão era abusiva, ofendia o bom senso, o simples respeito pela lógica, mas a esta mulher, que toda a noite vagara entre as imprecisões de um obscuro pensar feito de movediços farrapos de bruma que mudavam de forma e de direcção a cada momento, pareceu-lhe nada menos que irrespondível e irrefutável. Até aos razoamentos absurdos deveríamos estar agradecidos se forem daqueles que no meio da amarga noite nos restituem um pouco de serenidade, mesmo que ela seja tão fraudulenta como esta é, e nos dão a chave com que finalmente franquearemos titubeantes a porta do sono. Helena abriu os olhos antes da hora a que o despertador devia tocar, travou-o para que o marido não acordasse, e, deitada de costas, com os olhos fitos no tecto, deixou que as suas confusas ideias se fossem a pouco e pouco ordenando e tomassem o caminho onde se reuniriam num pensar já racional, já coerente, livre de assombrações inexplicáveis e de fantasias com explicação demasiado fácil. Mal conseguia crer que entre as quimeras, as verdadeiras, as mitológicas, aquelas que vomitavam chamas e tinham a cabeça de um leão, a cauda de um drago e o corpo de uma cabra, porque essa também poderia haver sido a figura em que se mostrassem os flácidos monstros da insónia, mal podia crer que a tivesse atormentado, como uma tentação imprópria, para não dizer indecente, a imagem de outro homem que ela não teria necessidade de despir para saber como seria fisicamente, da cabeça aos pés, todo ele, a seu lado dorme um igual. Não se censurou porque aquelas ideias em realidade não lhe pertenciam, tinham sido o fruto equívoco de uma imaginação que, sacudida por uma emoção violenta e fora do comum, saltara dos carris, o que conta é que está lúcida e alerta neste momento, senhora dos seus pensamentos e do seu querer, as alucinações da noite, sejam as da carne, sejam as do espírito, sempre se dissiparam no ar com as primeiras claridades da manhã, essas que reordenam o mundo e o recolocam na sua órbita de sempre, reescrevendo de cada vez os livros da lei. É tempo de se levantar, o local da empresa de turismo onde trabalha está no outro extremo da cidade, seria estupendo, todas as manhãs o pensa durante o caminho, se conseguisse que a transferissem para uma das agências centrais, e o maldito trânsito, nesta hora de ponta, justifica copiosamente a designação de infernal que alguém, num momento feliz de inspiração, lhe deu não se sabe quando nem em que país. O marido continuará deitado por mais uma hora ou duas, hoje não tem filmagens que o reclamem, e as actuais, segundo parece, estão a chegar ao fim. Helena deslizou para fora da cama com uma leveza que, sendo em si natural, se viu aperfeiçoada pelos dez anos que já leva vividos como atenta e dedicada esposa, logo moveu-se sem ruído pelo quarto enquanto despendurava o roupão e o vestia, depois saiu para o corredor. Por aqui tinha andado a visita nocturna, junto à frincha desta porta havia respirado antes de entrar para se ir esconder atrás da cortina, não, não há que temer, não se trata de um vicioso segundo assalto da imaginação de Helena, é ela própria a fazer ironia com as suas tentações, tão pouca coisa, afinal, agora que as pode comparar com a rosada claridade que entra por aquela janela, a da sala de estar em que ontem à noite se sentiu tão afligida como a menina do conto abandonada no bosque. Está ali o sofá em que o visitante se sentou, e não foi por acaso que o fez, de todos os sítios em que teria podido descansar, se era isso o que queria, foi este o que escolheu, o sofá de Helena, como para partilhá-lo com ela ou dele se apropriar. Não faltam motivos para pensar que quanto mais intentemos repelir as nossas imaginações, mais elas se divertirão a procurar e atacar os pontos da armadura que consciente ou inconscientemente tínhamos deixado desguarnecidos, Um dia, esta Helena, que tem pressa e um horário profissional a cumprir, nos dirá por que razão se foi sentar ela também no sofá, por que razão durante um longo minuto ali ficou aninhada, por que razão, tendo sido tão firme ao despertar, agora se comporta como se o sonho a tivesse tomado outra vez nos braços e a embalasse docemente. E também porquê, já vestida e pronta para sair, abriu a lista telefónica e copiou para um papel a direcção de Tertuliano Máximo Afonso. Entreabriu a porta do quarto, o marido ainda parecia dormir, mas o seu sono já não era mais que o último e difuso limiar da vigília, podia portanto aproximar-se da cama, dar-lhe um beijo na testa e dizer, Cá vou, e depois receber na boca o beijo dele e os lábios do outro, meu Deus, esta mulher deve estar louca, as coisas que faz, as coisas que lhe passam pela cabeça. Estás atrasada, perguntou António Claro a esfregar os olhos, Ainda tenho dois minutos, respondeu ela, e sentou-se na borda da cama, Que vamos fazer com esse homem, Que tencionas fazer tu, Esta noite, enquanto esperava o sono, pensei que devia ir falar com ele, mas agora não sei se será o mais conveniente, Ou lhe abrimos a porta, ou lha fechamos, não vejo outra solução, de uma maneira ou outra a nossa vida mudou, já não voltará a ser a mesma, Está na nossa mão decidir, Mas não está na nossa mão, ou de quem quer que seja, obrigar o que foi a que deixe de ser, o aparecimento desse homem é um facto que não podemos apagar ou remover, mesmo que não o deixemos entrar, mesmo que lhe fechemos a porta, ficará à espera do lado de fora até não conseguirmos aguentar mais, Estás a ver as coisas demasiado negras, talvez, no fim de contas, tudo possa ser resolvido com um simples encontro, ele prova-me que é igual a mim, eu digo-lhe sim senhor tem razão, e, feito isto, adeus até nunca mais, faça-nos o favor de não voltar a incomodar-nos, Ele continuaria à espera do lado de fora da porta, Não lha abriríamos, Já entrou, está dentro da tua cabeça e da minha cabeça, Acabaremos por esquecer, É possível, não é certo. Helena levantou-se, olhou o relógio e disse, Tenho de ir, estou a atrasar-me, deu dois passos para sair, mas ainda perguntou, Vais telefonar-lhe, vais marcar um encontro, Hoje não, respondeu o marido soerguendo-se num cotovelo, nem amanhã, esperarei uns dias mais, talvez não seja má ideia apostar na indiferença, no silêncio, dar tempo ao assunto para que apodreça por si mesmo, Tu o saberás, até logo. A porta da escada abriu-se e fechou-se, não nos dirão se Tertuliano Máximo Afonso estava sentado num dos degraus, à espera. António Claro tomou a estender-se na cama, se a vida não tivesse realmente mudado, como havia dito a mulher, virar-se-ia para o outro lado e dormiria ainda uma hora, parece ser verdade o que os invejosos afirmam, que os actores precisam de dormir muito, será uma consequência da vida irregular que levam, mesmo saindo tão pouco à noite como Daniel Santa-Clara. Cinco minutos depois António Claro estava levantado, um pouco estranho na hora, embora a justiça mande que se diga que quando os deveres da sua profissão o determinam este actor, preguiçoso segundo todas as evidências, é tão capaz de madrugar como a mais matutina das cotovias. Espreitou o céu pela janela do quarto, não era difícil prever que o dia seria de calor, e foi à cozinha preparar o pequeno-almoço. Pensava no que a mulher havia dito, Temo-lo dentro da cabeça, o feitio dela é este, ser peremptória, não precisamente peremptória, o que ela tem é o dom das frases curtas, condensadas, demonstrativas, empregar quatro palavras para dizer o que outros não seriam capazes de expressar nem em quarenta, e mesmo assim ficando a meio do caminho. Não tinha a certeza de que a melhor solução fosse a que havia alvitrado, esperar um tempo antes de se passar à ofensiva, quer isso viesse a suceder num encontro pessoal e secreto, sem testemunhas que fossem depois dar com a língua nos dentes, quer por uma seca chamada telefónica, daquelas que deixam o interlocutor entupido, sem respiração e sem réplica. Mais duvidava, porém, da eficácia da sua capacidade dialéctica para cortar pela raiz, e sem protelações, a esse Tertuliano Máximo Afonso de má morte, qualquer veleidade, presente ou futura, de lançar na vida das duas pessoas que moram nesta casa factores de perturbação psicológica e conjugal tão perversos como aqueles de que implicitamente já tinha feito gala e aqueles a que explicitamente já havia dado origem, como foi, por exemplo, ter tido Helena, ontem à noite, o atrevimento de declarar, Terei a impressão de estar a vê-lo a ele de cada vez que te olhar a ti. Com efeito, só uma mulher que tivesse sido seriamente tocada nos seus fundamentos morais poderia ter atirado semelhantes palavras à cara do seu próprio marido sem reparar no elemento adulterino que nelas se encontrava presente, diáfano, é certo, mas revelador quanto baste. Tem no entretanto António Claro a passear-lhe no cérebro, ainda que sem dúvida, irritado, o negasse se lho fizéssemos notar, um esboço de ideia que só por cautela não iremos ao extremo de classificar como estando à altura de um Maquiavel, ao menos enquanto não se tiverem manifestado os seus eventuais efeitos, segundo toda a probabilidade negativos. Tal ideia, que por ora não passa de um mero bosquejo mental, consiste, nem mais nem menos, e por muito escandaloso que nos pareça, em examinar se será possível, com habilidade e astúcia, retirar da parecença, da semelhança, da igualdade absoluta, no caso de virem a confirmar-se, alguma vantagem de ordem pessoal, isto é, se António Claro ou Daniel Santa-Clara conseguirão arranjar maneira de saírem a ganhar de um negócio que de momento nada tem para apresentar de favorável aos seus interesses. Se do próprio responsável da ideia não podemos, neste momento, esperar que nos ilumine os caminhos, sem nenhuma dúvida tortuosos, por onde vagamente estará imaginando que alcançará os seus objectivos, não se conte connosco, simples transenitores de pensamentos alheios e fiéis copistas das suas acções, para que antecipemos os passos seguintes de uma procissão que ainda agora vai no adro.

O que sim pode ser desde já excluído do embrionário projecto é a aventada serventia de duplo que Tertuliano Máximo Afonso acaso viesse a prestar ao actor Daniel Santa-Clara, concordemos que seria faltar ao devido respeito intelectual pedir a um professor de História que aceitasse ser parceiro nas frivolidades pilosas da sétima arte. Bebia António Claro o último gole de café quando outra ideia lhe cruzou as sinapses do cérebro, a qual vinha a ser meter-se no carro e ir dar uma vista de olhos à rua e ao prédio onde Tertuliano Máximo Afonso reside. As acções dos seres humanos, apesar de não serem já dirigidas por irresistíveis instintos hereditários, repetem-se com tão assombrosa regularidade que cremos ser lícito, sem forçar a nota, admitir a hipótese de uma lenta mas constante formação de um novo tipo de instinto, supomos que sociocultural será a palavra adequada, o qual, induzido por variantes adquiridas de tropismos repetitivos, e desde que respondendo a idênticos estímulos, faria com que a ideia que ocorreu a um tenha necessariamente de ocorrer a outro. Primeiro foi Tertuliano Máximo Afonso a vir a esta rua dramaticamente mascarado, todo de escuro vestido numa luminosa manhã de verão, agora é António Claro que se dispõe a ir à rua dele sem cuidar das complicações que poderão advir de apresentar-se naqueles sítios de cara descoberta, salvo se, enquanto se está barbeando, duchando e arranjando, o dedo da inspiração lhe vier tocar na fronte, recordando-lhe que guardou numa gaveta qualquer da sua roupa, acomodado numa caixa de charutos vazia, em ar de sensibilizadora recordação profissional, o bigode com que Daniel Santa-Clara interpretou há cinco anos o papel de recepcionista na comédia Quem Porfia Mata Caça. Como o ditado antigo sabiamente ensina, encontrarás o que precisas se guardaste o que não prestava. Onde reside o tal professor de História vai sabê-lo não tarda António Claro pela benemérita lista telefónica, hoje um pouco de esguelha na prateleira onde sempre a têm, como se tivesse sido arrumada à pressa por uma mão nervosa depois de nervosamente ter sido consultada. Já apontou na agenda de bolso a direcção, também o número do telefone, embora fazer uso dele não se inclua nas suas intenções de hoje, se algum dia vier a ligar para casa de Tertuliano Máximo Afonso quer poder fazê-lo de qualquer sítio onde esteja, sem ter de depender de uma lista telefónica que se havia esquecido de guardar e por isso não a encontra quando tão precisa era. Já está pronto para sair, tem o bigode pegado no seu lugar, não bastante seguro por haver perdido algo de aderência com os anos, em todo o caso não é de recear que caia no momento justo, passar por diante da casa e deitar-lhe uma olhadela será só uma questão de segundos. Quando estava a colocá-lo, guiando-se pelo espelho, lembrou-se de que, cinco anos antes, havia tido que rapar o bigode natural que então lhe ornamentava o espaço entre o nariz e o lábio superior, só porque ao realizador do filme não tinham parecido apropriados aos fins em vista nem o perfil nem o desenho respectivos. Chegados a este ponto, preparemo-nos para que um leitor dos atentos, descendente em linha recta daqueles ingénuos mas espertíssimos rapazinhos que nos tempos do antigo cinema gritavam da plateia para o rapaz da fita que o mapa da mina estava escondido na fita do chapéu do cínico e malvado inimigo caído aos seus pés, preparemo-nos para que nos chamem à pedra e nos denunciem, como uma distracção imperdoável, a desigualdade de procedimento entre a personagem Tertuliano Máximo Afonso e a personagem António Claro, que, em situações em tudo semelhantes, tem o primeiro de entrar num centro comercial para poder colocar ou retirar os seus postiços de barba e bigode, ao passo que o segundo se dispõe a sair de casa com pleno à-vontade e à luz plena do dia levando na cara um bigode que, pertencendo-lhe de direito, não é seu de facto. Esquece esse leitor atento o que já por várias vezes foi assinalado no curso deste relato, isto é, que assim como Tertuliano Máximo Afonso é, a todas as luzes, o outro do actor Damel Santa-Clara, assim também o actor Daniel Santa-Clara, embora por outra ordem de razões, é o outro de António Claro. A nenhuma vizinha do prédio ou da rua parecerá estranho que esteja a sair agora com bigode quem ontem entrou sem ele, quando muito dirá, se reparar na diferença, Já vai preparado para a filmagem. Sentado dentro do carro, com a janela aberta, António Claro consulta o roteiro e o mapa, aprende deles o que nós já sabíamos, que a rua onde Tertuliano Máximo Afonso mora está no outro extremo da cidade, e, tendo correspondido amavelmente aos bons-dias de um vizinho, pôs-se em marcha. Levará quase uma hora para chegar ao destino, a tentar a sorte passará três vezes diante do prédio com um intervalo de dez minutos como se andasse à procura de um lugar livre para arrumar o carro, poderia suceder que uma coincidência afortunada fizesse descer Tertuliano Máximo Afonso à rua, porém, aqueles que gozam de informações sobre os deveres que o professor de História tem de cumprir, sabem que ele, neste preciso instante, se encontra tranquilamente sentado à secretária, trabalhando com aplicação na proposta que o director da escola lhe encomendou, como se do resultado desse esforço dependesse o seu futuro, quando o certo, e isto sim podemos já antecipá-lo, é que o professor Tertuliano Máximo Afonso não voltará a entrar numa sala de aula em toda a sua vida, seja na escola a que algumas vezes tivemos de acompanhá-lo, seja em qualquer outra. A seu tempo se saberá porquê. António Claro viu o que havia para ver, uma rua sem importância, um prédio igual a tantos, ninguém poderá imaginar que naquele segundo andar direito, por trás daquelas inocentes cortinas, esteja vivendo um fenómeno da natureza não menos extraordinário que as sete cabeças da hidra de Lerna e outras quejandas maravilhas. Que Tertuliano Máximo Afonso mereça em verdade um qualificativo que o expulsaria da normalidade humana é questão que se encontra ainda por dilucidar, uma vez que continuamos a desconhecer qual destes dois homens foi o primeiro a nascer. Se esse tal foi Tertuliano Máximo Afonso, então é a António Claro que cabe a designação de fenómeno da natureza, uma vez que, tendo surgido em segundo lugar, se apresentou para ocupar neste mundo, abusivamente, tal como a hidra de Lerna, e por isso a matou Hércules, um lugar que não era o seu. Em nada o soberano equilíbrio do universo teria sido perturbado se António Claro tivesse nascido e fosse actor de cinema noutro sistema solar qualquer, mas aqui, na mesma cidade, por assim dizer, para um observador a olhar-nos da lua, porta com porta, todas as desordens e confusões são possíveis, sobretudo as piores, sobretudo as mais terríveis. E para que não se pense que, pelo facto de o conhecermos há mais tempo, alimentamos alguma preferência especial por Tertuliano Máximo Afonso, apressamo-nos a recordar que, matematicamente, sobre a sua cabeça se suspendem tantas inexoráveis probabilidades de ter sido ele o segundo a nascer como a António Claro. Portanto, por muito estranha que a olhos e ouvidos sensíveis possa resultar a construção sintáctica, é legítimo dizer que o que tiver de ser, já foi, e não falta mais que escrevê-lo. António Claro não tornou a passar na rua, quatro esquinas adiante, disfarçadamente, não fosse dar-se a casualidade de algum bom cidadão lhe surpreender o movimento e chamar a polícia, tirou o bigode de Daniel Santa-Clara, e, como não tinha outra coisa que fazer, tomou o caminho de casa, onde o esperava, para estudo e anotações, o guião do seu próximo filme. Tornaria a sair para almoçar num restaurante perto, descansaria numa breve sesta e voltaria a trabalhar até à chegada da mulher. Não era ainda o personagem principal, mas já teria o seu nome nos cartazes que na altura seriam afixados estrategicamente na cidade, e estava quase certo de que a crítica não deixaria passar sem um comentário elogioso, ainda que breve, a interpretação do papel de advogado que desta vez lhe havia sido distribuído. A sua única dificuldade estava na enorme quantidade de advogados de todas as formas e feitios que tinha visto no cinema e na televisão, acusadores públicos e particulares de diferentes estilos de parlenda forense, desde a blandiciosa à agressiva, defensores mais ou menos bem-falantes para quem estar convencido da inocência do cliente nem sempre parecia ser o mais importante. Gostaria de criar um tipo novo de causídico, uma personalidade que em cada palavra e em cada gesto fosse capaz de atordoar o juiz e deslumbrar a assistência com a agudeza das suas réplicas, o seu implacável poder de raciocínio, a sua sobre-humana inteligência. Era verdade que nada disto se encontrava no guião, mas talvez o realizador se deixasse convencer a orientar em tal sentido o guionista se uma palavra interessada lhe fosse dita ao ouvido pelo produtor. Havia que pensá-lo. Ter murmurado consigo mesmo que havia que pensá-lo transportou-lhe instantaneamente o pensamento a outras paragens, ao professor de História, à rua dele, ao prédio, às janelas com cortinas, e daí, em retrospectiva, ao telefonema de ontem à noite, às conversas com Helena, às decisões que seria preciso tomar mais cedo ou mais tarde, agora já não estava tão certo de poder conseguir tirar algum proveito desta história, mas, como antes dissera, havia que pensá-lo. A mulher chegou um pouco mais tarde que de costume, não, não tinha ido às compras, a culpa foi do trânsito, com este trânsito nunca se sabe o que pode suceder, de mais o sabia António Claro, que tinha levado uma hora a chegar à rua de Tertuliano Máximo Afonso, mas disto não convém que se fale hoje, tenho a certeza de que ela não compreenderia por que o fiz. Helena também se calará, também tem a certeza de que o marido não compreenderia por que o tinha feito ela.


Três dias depois, a meio da manhã, o telefone de Tertuliano Máximo Afonso tocou. Não era a mãe por causa das saudades, não era Maria da Paz por causa do amor, não era o professor de Matemática por causa da amizade, e também não era o director da escola a querer saber como ia o trabalho. Fala António Claro, foi o que disseram de lá, Bons dias, Talvez esteja a ligar demasiado cedo, Não se preocupe, já estou levantado e a trabalhar, Se vim interromper, telefonarei mais tarde, O que estava a fazer pode esperar uma hora, não há perigo de lhe perder o fio, Indo direito ao assunto, pensei muito seriamente durante estes dias e cheguei à conclusão de que nos deveríamos encontrar, É essa também a minha opinião, não teria sentido que duas pessoas na nossa situação não quisessem conhecer-se, A minha mulher tinha algumas dúvidas, mas acabou por reconhecer que as coisas não podiam ficar assim, Ainda bem, O problema é que aparecer juntos em público está fora de questão, nada ganharíamos em ser notícia, em sair na televisão e na imprensa, principalmente eu, seria prejudicial à minha carreira saber-se que tenho um sósia tão parecido, até na voz, Mais que um sósia, Ou um gémeo, Mais que um gémeo, Precisamente isso é o que quero confirmar, ainda que, confesso-lhe, me custe a crer que haja entre nós essa igualdade absoluta que diz, Está nas suas mãos tirar o caso a limpo, Teremos de encontrar-nos, portanto, Sim, mas onde, Vê alguma ideia, Uma hipótese seria que viesse a minha casa, mas há o inconveniente dos vizinhos, a senhora que mora no andar de cima, por exemplo, sabe que não saí, imagine como ficaria se me visse entrar onde já estou, Tenho um postiço, poderia disfarçar-me, Que postiço, Um bigode, Não seria suficiente, ou então ela perguntar-lhe-ia, isto é, perguntar-me-ia a mim, porque julgaria estar a falar comigo, se eu agora andava a fugir à polícia, Tem assim tanta confiança, É ela quem me limpa e arruma a casa, Compreendo, de facto não seria prudente, além disso ainda há o resto da vizinhança, Pois é, Então, creio que terá de ser fora daqui, num sítio deserto, no campo, onde ninguém nos veja e onde possamos conversar à vontade, Parece-me bem, Conheço um lugar que servirá, a uns trinta quilómetros depois de sair da cidade, Em que direcção, Explicar-lhe assim não é possível, hoje mesmo lhe enviarei um croquis com todas as indicações, encontramo-nos daqui a quatro dias para dar tempo a que receba a carta, Daqui a quatro dias é domingo, Um dia tão bom como qualquer outro, E porquê a trinta quilómetros, Sabe como são estas cidades, primeiro que se saia delas leva o seu tempo, quando se acabam as ruas, principiam as fábricas, e quando as fábricas se acabam, principiam as barracas, sem falar daquelas povoações que já estão metidas dentro da cidade e ainda não o sabem, Descreve-o bem, Obrigado, no sábado telefonar-lhe-ei a confirmar o encontro, Muito bem, Há ainda uma coisa que quero que saiba, De que se trata, Irei armado, Porquê, Não o conheço, não sei que outras intenções poderão ser as suas, Se tem medo de que o sequestre, por exemplo, ou de que o elimine para ficar sozinho no mundo com esta cara que ambos temos, digo-lhe já que não levarei comigo qualquer arma, nem sequer um simples canivete, Não suspeito de si a esse ponto, Mas vai armado, Precaução, nada mais, A minha única intenção é provar-lhe que tenho razão, e, quanto a isso que diz, de não me conhecer, permito-me objectar que estamos na mesma posição, é certo que a mim nunca me viu, mas eu, até agora, só o vi a si como aquilo que não é, a representar personagens, portanto estamos empatados, Não discutamos, devemos ir calmos ao nosso encontro, sem declarações de guerra antecipadas, A arma não a levo eu, Estará descarregada, De que lhe serve então levá-la, se vai descarregada, Faça de conta que estarei a representar mais um dos meus papéis, o de um personagem atraído a uma emboscada da qual sabe que sairá vivo porque lhe deram o guião a ler, enfim, cinema, Na História é exactamente ao contrário, foi só depois que se soube, Interessante observação, nunca tinha pensado nisso, Eu também não, acabei agora mesmo de percebê-lo, Então estamos de acordo, encontramo-nos no domingo, Espero a sua chamada, Não me esquecerei, foi um prazer falar consigo, Digo o mesmo, Bons dias, Bons dias, dê os meus cumprimentos a sua mulher. Tal como Tertuliano Máximo Afonso, António Claro estava sozinho em casa. Avisara Helena de que ia telefonar ao professor de História, mas que preferia que ela não estivesse presente, depois lhe contaria a conversa. A mulher não se opôs, disse que lhe parecia bem, que compreendia que quisesse estar à vontade num diálogo que certamente não iria ser fácil, mas o que ele nunca virá a saber é que Helena efectuou duas chamadas lá da empresa de turismo onde trabalha, a primeira para o seu próprio número, a segunda para o de Tertuliano Máximo Afonso, quis a sorte que tivesse sido quando o marido e ele já estavam comunicando um com o outro, assim ficou com a certeza de que o assunto tinha ido para diante, também neste caso não saberia dizer por que o tinha feito, cada vez se vai tomando mais evidente que, depois de tantas tentativas mais ou menos malogradas, alcançaríamos por fim a explicação completa dos nossos actos se nos propuséssemos dizer por que fazemos aquilo que dizemos não saber por que o fizemos. É de espírito confiado e conciliador presumir que, no caso de encontrar desimpedido o telefone de Tertuliano Máximo Afonso, a mulher de António Claro teria cortado a comunicação sem esperar resposta, certamente não iria anunciar-se Sou a Helena, a mulher de António Claro, não perguntaria Venho saber como está, tais palavras, na situação actual, seriam de alguma maneira impróprias, se não mesmo inconvenientes de todo, porquanto entre estas pessoas, ainda que já tivessem falado uma com a outra por duas vezes, não existe intimidade bastante para que seja natural interessar-se cada uma delas pelo estado de ânimo ou pela saúde da outra, não podendo aceitar-se como razão para desculpar um excesso de confiança que se mete pelos olhos dentro a circunstância de se tratar de expressões normais, correntes, daquelas que em princípio a nada obrigam ou comprometem, salvo se quiséssemos apurar o nosso órgão auditor à complexa gama de subtons que porventura as tivessem sustentado, conforme a exaustiva demonstração que noutro passo deste relato deixámos para ilustração dos leitores mais interessados no que se esconde do que naquilo que se mostra. Quanto a Tertuliano Máximo Afonso, foi patente o alívio com que se recostou na cadeira e respirou fundo quando a conversa com António Claro chegou ao fim. Se lhe perguntassem qual dos dois, em sua opinião, no ponto em que nos encontramos, estaria a conduzir o jogo, sentir-se-ia inclinado a responder, Eu, embora não duvidasse de que o outro pensaria ter suficientes motivos para dar a mesma resposta se a pergunta lhe tivesse sido feita. Não o preocupava que estivesse tão distante da cidade o lugar escolhido para o encontro, não o inquietava saber que António Claro se dispunha a ir armado, não obstante estar convencido de que, ao contrário do que lhe havia sido assegurado, a pistola, com toda a probabilidade seria uma pistola, estaria carregada. De um modo que ele próprio percebia ser totalmente falto de lógica, de racionalidade, de senso comum, acreditava que a barba postiça que iria levar o protegeria enquanto a tivesse colocada, fundamentando esta absurda convicção na ideia firme de que não a retiraria no primeiro instante do encontro, só lá mais para diante, quando a igualdade absoluta de mãos, olhos, sobrancelhas, fronte, orelhas, nariz, cabelo, tivesse sido reconhecida sem discrepância por ambos. Levará consigo um espelho de tamanho suficiente para que, retirada enfim a barba, as duas caras, ao lado uma da outra, possam comparar-se directamente, em que os olhos possam passar da cara a que pertenciam à cara a que poderiam ter pertencido, um espelho que declare a sentença definitiva, Se o que está à vista é igual, também o resto o deverá ser, não creio que seja necessário porem-se em pelota para continuar com as comparações, isto aqui não é praia de nudistas nem concurso de pesos e medidas. Tranquilo, seguro de si mesmo, como se este lance de xadrez estivesse previsto desde o princípio, Tertuliano Máximo Afonso regressou ao trabalho, pensando que, tal como na sua arrojada proposta para o estudo da História, também as vidas das pessoas poderiam ser contadas de diante para trás, esperar que chegassem ao seu fim para depois, pouco a pouco, ir remontando a corrente até ao brotar da fonte, identificando de caminho os cursos afluentes e navegar por eles acima, compreender que cada um, até os mais acanhados e pobres de fluxo, era, por sua vez, e para si mesmo, um rio principal, e, desta maneira vagarosa, pausada, atenta a cada cintilação da água, a cada borbulhar subido do fundo, a cada aceleração de declive, a cada pantanosa suspensão, para alcançar o termo da narrativa e colocar no primeiro de todos os instantes o último ponto final, levar o mesmo tempo que as vidas assim contadas tivessem efectivamente durado. Não nos apressemos, é tanto o que temos para dizer quando calamos, murmurou Tertuliano Máximo Afonso, e continuou a trabalhar. A meio da tarde telefonou a Maria da Paz e perguntou-lhe se queria passar por ali quando saísse do banco, ela disse que sim, mas que não poderia demorar-se porque a mãe não se encontrava bem de saúde, e então ele disse-lhe que não viesse, que em primeiro lugar estava a obrigação familiar, e ela insistiu, Ao menos para te ver, e ele concordou, disse, Ao menos para nos vermos, como se ela fosse a mulher amada, e sabemos que não o é, ou talvez o seja e ele não saiba, ou talvez, parou nesta palavra por não saber como poderia terminar honestamente a frase, que mentira ou que fingida verdade iria dizer a si mesmo, é certo que a comoção lhe havia roçado de leve os olhos, ela queria vê-lo, sim, às vezes é bom haver alguém que nos quer ver e o diz, mas a lágrima denunciadora, já enxugada pelas costas da mão, se apareceu foi por ele estar sozinho e porque a solidão, de repente, lhe pesou mais do que nas piores horas. Veio Maria da Paz, trocaram dois beijos na face, depois sentaram-se a conversar, ele perguntou-lhe se era grave a doença da mãe, ela respondeu que felizmente não, são os problemas próprios da idade, vêm e vão, vão e vêm, até que ficam de vez. Ele perguntou-lhe quando principiaria as férias, ela disse que daí a duas semanas, mas que o mais provável seria não poderem sair de casa, dependia do estado da mãe. Ele quis saber como ia o trabalho lá pelo banco, e ela respondeu que na forma do costume, uns dias melhores que outros. Depois ela perguntou se ele não se aborrecia muito, agora que as aulas haviam terminado, e ele disse que por acaso não, que o director da escola lhe tinha encarregado de uma tarefa, redigir uma proposta ao ministério sobre os métodos de ensino da História. Ela disse, Que interessante, e depois ficaram calados, até que ela perguntou se ele não tinha nada para lhe dizer, e ele respondeu que ainda não era a altura, que tivesse um pouco mais de paciência. Ela disse que esperaria todo o tempo que fosse preciso, que a conversa que tinham tido no carro a seguir àquele jantar, quando ele confessou que havia mentido, fora como uma porta que se abrira por um instante para logo tornar a fechar-se, mas ao menos ela tinha ficado a saber que aquilo que os separava era apenas uma porta, não um muro. Ele não respondeu, limitou-se a acenar que sim com a cabeça, enquanto pensava que o pior de todos os muros é uma porta de que nunca se teve a chave, e ele não sabia onde a encontrar, nem sabia sequer se tal chave existia. Então, como ele não falava, ela disse, É tarde, vou-me embora, e ele disse, Não vás ainda, Tenho de ir, a minha mãe está à espera, Desculpa. Ela levantou-se, ele também, olharam um para o outro, beijaram-se na face como tinham feito à chegada, Então, adeus, disse ela, Então, adeus, disse ele, telefona-me quando estiveres em casa, Sim, olharam-se uma vez mais, depois ela agarrou-lhe na mão com que ele lhe ia tocar o ombro em despedida e, docemente, como se guiasse uma criança, levou-o para o quarto.

A carta de António Claro chegou na sexta-feira. Acompanhando o croquis vinha uma nota manuscrita, não assinada e sem vocativo, que dizia, Encontramo-nos às seis da tarde, espero que possa encontrar o sítio sem dificuldade. A letra não é exactamente igual à minha, mas a diferença é mínima, onde mais se nota é na maiúscula, murmurou Tertuliano Máximo Afonso. O croquis mostrava uma saída da cidade, assinalava duas povoações separadas por oito quilómetros, uma de cada lado da estrada, e, entre elas, um caminho para a direita que se metia pelo campo até outra povoação, de menor importância que as outras a avaliar pelo desenho. Dali, outro caminho, mais estreito, ia deter-se, a cerca de um quilómetro de distância, numa casa. O que a assinalava era a palavra casa, não um desenho rudimentar, o esboço simples que a mais inábil das mãos é capaz de traçar, um telhado com a sua chaminé, uma frontaria com porta ao meio e uma janela de cada lado. Por cima da palavra, uma seta vermelha eliminava qualquer possibilidade de engano, Não vá mais longe. Tertuliano Máximo Afonso abriu uma gaveta, tirou um mapa da cidade e das áreas limítrofes, procurou e identificou a saída conveniente, aqui está a primeira povoação, o caminho que corta para a direita antes de chegar à segunda, a povoação pequena lá adiante, só lhe falta o acesso final. Tertuliano Máximo Afonso olhou outra vez o croquis, Se é uma casa, pensou, não vale a pena ir carregado com o espelho, encontram-se em todas as casas. Tinha imaginado que o encontro se daria num descampado, longe das vistas de curiosos, talvez mesmo sob a protecção de uma árvore frondosa, e afinal iria ser debaixo de telha, algo assim como um encontro entre gente conhecida, de copo na mão e frutos secos à disposição. Perguntou-se se a mulher de António Claro também iria, se iria lá estar para conferir o tamanho e a configuração das cicatrizes do joelho esquerdo, para medir o espaço entre os dois sinais do antebraço direito e a distância que os separa, a um, do epicôndilo, ao outro, dos ossos do carpo, e depois dizer Não saiam da minha vista para que não os confonda. Pensou que não, que não teria sentido ir um homem digno deste nome a um encontro potencialmente conflituoso, para não dizer chãmente arriscado, baste recordar que António Claro teve a atenção cavalheiresca de prevenir Tertuliano Máximo Afonso de que se apresentaria armado, e levar atrás de si a mulher, como para se esconder debaixo das saias dela ao menor sinal de perigo. Irá sozinho, eu também não levo a Maria da Paz, estas palavras desconcertantes pronunciou-as Tertuliano Máximo Afonso sem ter em conta a abissal diferença que há entre uma esposa legítima, exornada de todos os inerentes direitos e deveres, e uma ligação sentimental de temporada, por mais firme que a afeição da mencionada Maria da Paz nos tenha sempre parecido, já que do outro lado é lícito, se Dão obrigatório, duvidar. Tertuliano Máximo Afonso guardou o mapa e o croquis na gaveta, mas não o bilhete manuscrito. Pô-lo diante de si, pegou na caneta e escreveu toda a frase num papel, com uma caligrafia que procurava imitar o melhor possível a outra, principalmente a maiúscula, onde a diferença mais se notava. Continuou a escrever, repetiu a frase até cobrir toda a folha de papel, na última nem o mais experiente grafólogo seria capaz de descobrir o mais insignificante indício de falsificação, o que Tertuliano Máximo Afonso conseguiu naquela rápida cópia da assinatura de Maria da Paz não tem sombra de comparação com a obra de arte que acaba de produzir. A partir de agora só terá de averiguar como é que António Claro traça as maiúsculas de A a D e de F a Z, e logo aprender a imitá-las. Isto não significa, porém, que Tertuliano Máximo Afonso esteja a alimentar no seu espírito projectos de futuro que envolvam a pessoa do actor Daniel Santa-Clara, trata-se unicamente de dar satisfação, neste caso particular, a um gosto pelo estudo que o levou, jovem ainda, ao exercício público da benemerente actividade de magíster. Tal como é sempre possível que venha a ser de utilidade saber como se pode manter de pé um ovo, também não se deverá excluir que uma correcta imitação das maiúsculas de António Claro possa vir a servir para alguma coisa na vida de Tertuliano Máximo Afonso. Como ensinavam os antigos, nunca digas desta água não beberei, sobretudo, acrescentaremos nós, se não tiveres outra, Não tendo estas considerações sido formuladas por Tertuliano Máximo Afonso, não está em nosso poder esmiuçar a relação que ainda assim poderia existir entre elas e a decisão que ele acabou de tomar e a que alguma reflexão sua que não captámos certamente o conduziu. Esta decisão manifesta o carácter por assim dizer inevitável do óbvio, porquanto, dispondo Tertuliano Máximo Afonso do croquis que o guiará ao lugar onde se realizará o encontro, nada mais natural que ter-lhe ocorrido a ideia de ir inspeccionar primeiramente o sítio, de estudar-lhe as entradas e as saídas, de tomar-lhe as medidas, se a expressão é autorizada, com a vantagem adicional nada desdenhável de que, fazendo-o, evitará o risco de se perder no domingo. A perspectiva de que a pequena viagem o distrairia durante umas horas da penosa obrigação de redigir a proposta ao ministério, não só lhe desassombrou os pensamentos como, de maneira em verdade surpreendente, lhe desanuviou a cara. Tertuliano Máximo Afonso não pertence ao número dessas pessoas extraordinárias que são capazes de sorrir até quando estão sozinhas, o próprio dele inclina-se mais para o lado da melancolia, do ensimesmamento, de uma exagerada consciência da transitoriedade da vida, de uma incurável perplexidade perante os autênticos labirintos cretenses que são as relações humanas. Não compreende satisfatoriamente as razões do misterioso funcionamento de uma colmeia nem o que fez com que o ramo de uma árvore tivesse brotado onde e como brotou, isto é, nem mais acima, nem mais abaixo, nem mais grosso, nem mais delgado, mas atribui essa sua dificuldade de entendimento ao facto de ignorar os códigos de comunicação genética e gestual em vigor entre as abelhas e, mais ainda, os fluxos informativos que mais ou menos às cegas circulam pelas malhas da rede de auto-estradas vegetais que ligam as raízes afundadas no chão às folhas que revestem a árvore e na calma descansam ou ao vento se balouçam, O que de todo em todo não compreende, por muito que tenha posto a cabeça a trabalhar, é que, desenvolvendo-se em autêntica progressão geométrica, de melhoria em melhoria, as tecnologias de comunicação, a outra comunicação, a propriamente dita, a real, a de mim a ti, a de nós a vós, continue a ser esta confusão cruzada de becos sem saída, tão enganosa de ilusórias esplanadas, tão dissimulada quando expressa como quando trata de ocultar. A Tertuliano Máximo Afonso talvez não lhe importasse chegar a ser árvore, mas nunca o há-de conseguir, a sua vida, como a de todos os humanos vívidos e por viver, não experimentará jamais a suprema experiência do vegetal. Suprema, imaginamos nós, que até agora a ninguém foi dado ler a biografia ou as memórias de um carvalho, escritas pelo próprio. Preocupe-se pois Tertuliano Máximo Afonso com as coisas do mundo a que pertence, este de homens e de mulheres que vozeiam e alardeiam por todos os meios naturais e artificiais, e deixe os arbóreos em sossego, que a eles já lhes sobram as pragas fitopatológicas, a serra eléctrica e os fogos florestais. Preocupe-se também com a condução do carro que o leva ao campo, que o transporta para fora de uma cidade que é modelo perfeito das modernas dificuldades de comunicação, na versão tráfego de veículos e peões, mormente em dias como o de hoje, sexta-feira à tarde, com toda a gente a sair para o fim-de-semana. Tertuliano Máximo Afonso sai, mas logo voltará. O pior do trânsito já ficou para trás, a estrada por onde terá de seguir não é muito frequentada,, dentro de pouco tempo encontrar-se-á diante da casa em que António Claro, depois de amanhã, estará à sua espera. Leva colocada e bem ajustada a barba, não fosse que ao atravessar a última povoação alguém o chamasse pelo nome de Daniel Santa-Clara e o convidasse a tomar uma cerveja, se, como é de presumir, a casa que vem examinar é propriedade de António Claro ou foi por ele alugada, vivenda no campo, segunda residência, grande vida levam os actores secundários de cinema se já têm entrada em comodidades que ainda não há muitos anos eram privilégio de raros. Teme no entanto Tertuliano Máximo Afonso que o caminho estreito por onde chegará à casa e que agora se lhe apresentou diante não tenha mais que esse uso, quer dizer, se não continua para além dela ou se não há outras habitações perto, então a mulher que assomou à janela estará a perguntar-se, ou em voz alta à vizinha do lado, Para onde irá aquele carro, que eu saiba não há ninguém em casa do senhor António Claro, e a cara daquele homem não me agrada nada, quem usa barba é porque tem alguma coisa a esconder, ainda bem que Tertuliano Máximo Afonso não a ouviu, passaria a ter outra séria razão para se inquietar. No caminho de macadame quase não cabem dois carros, não se deverá transitar muito por aqui. Do lado esquerdo, o terreno pedregoso desce pouco a pouco para um vale onde um extenso e ininterrupto renque de árvores altas, que a esta distância se dirá ser formado por freixos e choupos, assinala provavelmente a margem de um rio. Mesmo à velocidade prudente a que vai Tertuliano, Máximo Afonso, não seja que pela frente lhe apareça outro carro, um quilómetro vence-se em um nada, e este já está vencido, a casa deve ser aquela. O caminho continua, serpenteia na encosta de duas colinas encavaladas e desaparece do outro lado, o mais provável que sirva outras habitações que daqui não se alcançam a ver, afinal a mulher desconfiada só parece preocupar-se com o que está perto da povoação onde vive, o que esteja para lá das suas fronteiras não lhe interessa. Do terrapleno que se alarga diante da casa desce em direcção ao vale um outro caminho ainda mais estreito e com o piso em pior estado, Será outra maneira de chegar cá, pensou Tertuliano Máximo Afonso. Está consciente de que não deverá aproximar-se demasiado da vivenda, não vá algum passeante, ou pastor de cabras, que tem cara de havê-las aqui, soltar o alarme, Acudam que é ladrão, e em dois tempos aparecer aí a autoridade policial, ou na falta dela um destacamento de vizinhos armados de chuços e foices, à antiga. Tem de comportar-se como um via ante de passagem que parou um minuto para contemplar o panorama e que, já que ali está, deita um olhar apreciativo a uma casa cujos donos, agora ausentes, têm a sorte de desfrutar desta magnífica vista. A vivenda é simples, de andar único, uma típica habitação rural com todo o aspecto de haver beneficiado de um restauro criterioso, mas dando alguns sinais de abandono, como se os proprietários viessem por cá pouco e por pouco tempo de cada vez. O que se espera de uma casa no campo é que tenha plantas à porta e nos parapeitos das janelas, e esta mal as pode mostrar já, apenas uns talos meio secos, uma flor que se despede, só uma corajosa sardinheira ainda luta contra a ausência. A casa está separada do caminho por um muro baixo, e por trás dela, levantando as ramadas sobre o telhado, há dois castanheiros que, pela altura e pela longeva idade que não é difícil supor-lhes, devem ser muito anteriores à construção. Um sítio solitário, ideal para pessoas contemplativas, daquelas que amam a natureza pelo que ela é, sem fazer mais diferença entre o sol e a chuva, entre o calor e o frio, entre o vento e a calma, que a comodidade que nos dão uns e outros nos recusam. Tertuliano Máximo Afonso deu a volta pelas traseiras da casa, por um jardim que em tempos teria merecido esse nome e agora não passa de um espaço mal murado, invadido por cardos e uma maranha de plantas bravas que afogam uma macieira atrofiada e um pessegueiro com o tronco coberto de líquenes, umas quantas figueiras-do-inferno, ou estramónios, que é a palavra culta. Para António Claro, talvez também para a mulher, a casa rural deve ter sido um amor de pouca duração, uma daquelas paixonetas bucólicas que atacam por vezes os citadinos e que, como a palha solta, ardem com força mal se lhes chega um fósforo, e logo não são mais que cinzas negras. Tertuliano Máximo Afonso já pode regressar ao seu segundo andar com vista para o outro lado da rua e esperar a chamada telefónica que o fará voltar aqui no domingo. Meteu-se no carro, desandou por onde tinha vindo e, para mostrar à mulher da janela que não lhe pesava na consciência nenhum delito contra a propriedade alheia, atravessou com repousado vagar a povoação, conduzindo como se estivesse a abrir caminho por entre um rebanho de cabras acostumadas a usar as ruas com a mesma tranquilidade com que vão pastar ao campo, entre as giestas e os tomilhos. Tertuliano Máximo Afonso pensou se valeria a pena, só por satisfazer a curiosidade, procurar o atalho que, diante da casa, parecia descer em direcção ao rio, mas reconsiderou a tempo a ideia, quanto menos pessoas o vissem nestes sítios, melhor. Também é certo que depois de domingo nunca mais aqui voltará, mas sempre seria preferível que ninguém viesse a lembrar-se do homem das barbas. À saída da povoação acelerou, em poucos minutos estava na estrada principal, e menos de uma hora depois entrava em casa. Tomou um banho que o retemperou da soalheira da viagem, mudou de roupa, e, acompanhado de um refresco de limão que tirara do frigorífico, sentou-se à secretária, Não vai continuar a trabalhar na proposta para o ministério, vai, como bom filho, telefonar à mãe. Perguntar-lhe-á como tem passado, ela dirá que bem, e tu como estás, na forma do costume, sem razões de queixa, já andava a estranhar o silêncio, desculpe, é que tenho tido muito que fazer, supõe-se que estas palavras, nos seres humanos, são o equivalente daqueles rápidos toques de reconhecimento que as formigas fazem umas às outras com as antenas quando se topam no carreiro, como se dissessem, És dos meus, já podemos começar a tratar de coisas sérias. E como estão os teus problemas, perguntou a mãe, Vão a caminho de resolver-se, não se preocupe, Que ideia, como se eu não tivesse mais nada que fazer na vida senão preocupar-me, Ainda bem que não toma o assunto demasiado a peito, É porque não vês a minha cara, Vamos, mãe, sossegue, Espero sossegar quando cá estiveres, Já não falta muito tempo, E a tua relação com Maria da Paz, em que pé está neste momento, Não é fácil explicar, Pelo menos, poderás experimentar, É verdade que gosto dela e preciso dela, Outros têm casado com menos razões, Sim, mas percebo que a necessidade é apenas coisa de um momento, nada mais que isso, se amanhã deixar de a sentir, que faço, E o gostar, O gostar é o natural em um homem que vivia só e teve a sorte de conhecer uma mulher simpática, de aspecto agradável, com boa figura e, como é costume dizer-se, de bons sentimentos, Portanto, pouco, Não digo que seja pouco, digo que não é bastante, Amaste a tua mulher, Não sei, não me lembro, já passaram seis anos, Seis anos não dão para esquecer assim tanto, Pensei que a amava, ela deve ter pensado o mesmo a meu respeito, afina) estávamos equivocados os dois, é o que mais se encontra por aí, E não queres que com Maria da Paz venha a acontecer um engano idêntico, Não, não quero, Por ti, ou por ela, Por ambos, Mais por ti do que por ela. em todo o caso, Não sou perfeito, será suficiente que a poupe a ela o que não quero que de mau me suceda a mim, o meu egoísmo, neste caso, não vai ao ponto de não ser capaz de a defender também a ela, Talvez Maria da Paz não se importasse de arriscar, Outro divórcio, o meu segundo, o primeiro para ela, não, minha mãe, nem pensar, Ao fim poderia sair bem, não sabemos tudo do que nos espera para além de cada acção nossa, Assim é, Por que o dizes dessa maneira, Que maneira, COM se estivéssemos às escuras e tivesses acendido e apagado uma luz de repente, Foi impressão sua, Repete, Repito, o quê, O que disseste, Para que, Repete, peço-te, Faça-se a sua vontade, assim é, Diz só as duas palavras, Assim é, Não foi o mesmo, Como não foi o mesmo, Não foi o mesmo, Ora, minha mãe, deixe-se de fantasias, por favor, fantasiar em demasia não é o melhor caminho para a paz do espírito, as palavras que eu disse não significam mais que assentimento, concordância, Até aí alcançam as minhas luzes, no tempo em que era nova também consultei dicionários, Não se zangue, Quando vens, Já lhe disse, em breve, Precisamos de ter uma conversa, Teremos todas as conversas que quiser, Só quero uma, Qual, Não finjas que não percebes, quero saber o que se passa contigo, e por favor não me venhas para cá com histórias preparadas, jogo franco e cartas na mesa é o que espero de ti, Essas palavras não parecem suas, Eram muito do teu pai, lembra-te, Porei as cartas todas na mesa, E prometes-me que o jogo será franco, sem truques, Será franco, não haverá truques, Assim é que eu quero o meu filho, Vamos a ver o que terá para me dizer quando lhe puser diante a primeira carta deste baralho, Julgo que já vi tudo quanto havia para ver na vida, Fique-se corri essa ilusão enquanto não falarmos, É assim tão sério, O futuro o dirá quando lá chegarmos, Não tardes, por favor, Talvez esteja aí a meio da semana que vem, Oxalá, Um beijo, minha mãe. Um beijo, meu filho. Tertuliano Máximo Afonso pousou o auscultador, depois deixou vagar o pensamento à vontade, como se continuasse a falar com a mãe, As palavras são o diabo,, nós a crer que só deixamos sair da boca para fora aquelas que nos convêm, e de repente aparece uma que se mete pelo meio, não vimos de onde surgiu, não era para ali chamada, e, por causa dela, que não é raro termos depois dificuldade em recordar, o rumo da conserva muda bruscamente de quadrante, passamos a afirmar o que antes negávamos, ou vice-versa, isto que acabou de acontecer aqui foi o melhor dos exemplos, não era intenção minha falar tão cedo à minha mãe desta história de loucos, se é que realmente pensava fazê-lo alguma vez, e de um instante para outro, sem se perceber como, ela passou a ter a promessa formal de que lha contarei, neste minuto, provavelmente, está a marcar uma cruz no calendário, já na segunda-feira da semana que entra, não seja o caso de eu aparecer lá sem ser esperado, conheço-a, cada dia que ela assinalar é o dia em que eu teria obrigação de chegar, a culpa não será sua, se falto. Tertuliano Máximo Afonso não está contrariado, pelo contrário, goza uma indescritível sensação de alívio, como se de súbito lhe tivessem retirado um peso de cima dos ombros, pergunta-se que é que ganhou afinal em ter guardado silêncio durante todos estes dias e não acha uma só resposta justa, daqui a pouco talvez seja capaz de dar mil explicações, cada uma mais plausível que outra, agora só pensa que necessita desafogar-se o mais rapidamente possível, terá o encontro com António Claro no domingo, daqui a dois dias, só se não quiser é que não pega no carro logo na segunda-feira de manhã e vai mostrar à mãe todas as cartas que compõem este quebra-cabeças, verdadeiramente todas, porque uma coisa seria ter-lhe dito há tempos, Existe um homem tão parecido comigo que até a mãe nos confundiria, e outra, muito diferente, será ter de dizer-lhe, Estive com ele, e agora não sei quem sou. Neste mesmo instante, sumiu-se a breve consolação que caridosamente o tinha estado embalando e, em vez dela, como uma dor que de repente se fizesse lembrar, o medo reapareceu. Não sabemos tudo do que nos espera para além de cada acção nossa, havia dito a mãe, e esta verdade corriqueira, ao alcance de uma simples dona de casa de província, esta verdade trivial que faz parte da infinita lista das que não vale a pena perder tempo a enunciar porque já a ninguém tiram o sono, esta verdade de todos e igual para todos pode, em algumas situações, afligir e assustar tanto como a pior das ameaças. Cada segundo que passa é como uma porta que se abre para deixar entrar o que ainda não sucedeu, isso a que damos o nome de futuro, porém, desafiando a contradição com o que acabou de ser dito, talvez a ideia correcta seja a de que o futuro é somente um imenso vazio, a de que o futuro não é mais que o tempo de que o eterno presente se alimenta. Se o futuro está vazio, pensou Tertuliano Máximo Afonso, então não existe nada a que possa chamar domingo, a sua eventual existência depende da minha existência, se eu neste momento morresse, uma parte do futuro ou dos futuros possíveis ficaria para sempre cancelada. A conclusão x que Tertuliano Máximo Afonso ia chegar, Para que o domingo exista na realidade é preciso que eu continue a existir, foi bruscamente cortada pelo toque do telefone. Era António Claro a perguntar, Recebeu o croquis, Recebi, Tem alguma dúvida, Nenhuma, Fiquei de lhe telefonar amanhã, mas pensei que a carta já devia ter chegado, e portanto venho confirmar o encontro, Muito bem, lá estarei às seis horas, Não se preocupe com o facto de ter de atravessar a povoação, eu usarei um atalho que me leva directamente à casa, assim ninguém terá de estranhar a passagem de duas pessoas com a cara igual, E o automóvel, Qual, O meu, Não tem importância, se houver alguém que o confunda comigo pensará que mudei de carro, aliás, ultimamente, tenho ido poucas vezes à casa, Muito bem, Até depois de amanhã, Até domingo. Depois de desligar, Tertuliano Máximo Afonso pensou que lhe poderia ter dito que levaria uma barba postiça. Também não tem importância, tirá-la-á logo a seguir. O domingo deu um grande passo em frente, Eram seis horas e cinco 'minutos quando Tertuliano Máximo Afonso arrumou o carro em frente da casa, do outro lado do caminho. O automóvel de António Claro já ali está, junto à entrada, encostado ao muro. Entre um e outro há a diferença de uma geração mecânica, nunca Daniel Santa-Clara teria trocado o seu carro por algo que a este de Tertuliano Máximo Afonso se assemelhasse. A cancela está aberta, a porta da casa também, mas as janelas estão fechadas. No interior percebe-se um vulto que quase não se distingue de fora, porém a voz que sai lá de dentro é nítida e precisa, como deve ser a de um artista de platô, Entre, faça de conta que está em sua casa. Tertuliano Máximo Afonso subiu os quatro degraus da escada de acesso e parou no limiar. Entre, entre, repetiu a voz, não faça cerimónia, ainda que, pelo que vejo, não me pareça ser você a pessoa de quem estava à espera, supunha que era eu o actor, mas enganei-me. Sem dizer palavra, com todos os cuidados, Tertuliano Máximo Afonso despegou a barba e entrou. Eis o que se chama ter o sentido teatral do dramático, fez-me lembrar aquelas personagens que aparecem de rompante a exclamar Aqui estou, como se isso tivesse alguma importância, disse António Claro, enquanto emergia da penumbra e aparecia à luz plena que entrava pela porta aberta. Ficaram parados a olhar-se. Lentamente, como se lhe fosse penoso arrancar-se desde o mais fundo do impossível, a estupefacção desenhou-se no rosto de António Claro, não no de Tertuliano Máximo Afonso, que já sabia o que vinha encontrar. Sou a pessoa que lhe telefonou, disse, estou aqui para que se certifique, pelos seus próprios olhos, de que não pretendia divertir-me à sua custa quando lhe dizia que éramos iguais, Efectivamente, balbuciou António Claro numa voz que já não parecia a de Daniel Santa-Clara, imaginei, por causa da sua insistência, que houvesse entre nós uma semelhança grande, mas confesso-lhe que não estava preparado para o que tenho diante de mim, o meu próprio retrato, Agora que já tem a prova, poderei retirar-me, disse Tertuliano Máximo Afonso, Não, isso não, pedi-lhe que entre, agora peço-lhe que nos sentemos a conversar, a casa anda um pouco descuidada, mas estes sofás estão em bom estado e devo ter ainda por aí umas bebidas, gelo é que não há, Não quero dar-lhe trabalho, Ora essa, iria ser mais bem atendido se a minha mulher tivesse vindo, mas não é difícil imaginar como ela estaria a sentir-se neste momento, mais confusa e perturbada que eu, isso com certeza, Julgando por mim próprio, não tenho quaisquer dúvidas, o que tive de viver nestas semanas não o desejaria ao meu pior inimigo, Sente-se, por favor, que prefere para beber, uísque ou conhaque, Sou pouco bebedor, mas mesmo assim prefiro o conhaque, uma gota, nada mais. António Claro trouxe as garrafas e os copos, serviu o visitante, deitou para si três dedos de uísque sem água, depois sentou-se do outro lado da pequena mesa que os separava. Não caio em mim de assombro, disse, Eu já passei por essa fase, respondeu Tertuliano Máximo Afonso, agora só me pergunto que irá acontecer depois disto, Como foi que descobriu, Disse-lho quando lhe telefonei, vi-o num filme, Sim, já me lembro, aquele em que fiz de recepcionista de hotel, Exactamente, Depois viu-me noutros filmes, Exactamente, E como foi que conseguiu chegar até mim, se o nome de Daniel Santa-Clara não vem na lista telefónica, Antes disso ainda tive de encontrar a maneira de o identificar entre os diversos actores secundários que aparecem nos genéricos sem referência à personagem que interpretavam, Tem razão, Levou tempo, mas alcancei o que queria, E por que foi que se deu a esse trabalho, Creio que qualquer outra pessoa no meu lugar teria feito o mesmo, Suponho que sim, o caso era demasiado extraordinário para que não se lhe desse importância, Telefonei às pessoas de apelido Santa-Clara que vinham na lista, Disseram-lhe que não me conheciam, evidentemente, Sim, no entanto uma delas lembrou-se de que era a segunda vez que alguém lhe telefonava a perguntar por Daniel Santa-Clara, Que outra pessoa, antes de você, tinha perguntado por mim, Sim, Seria alguma admiradora, Não, um homem, É estranho, Mais estranho ainda foi ter-me dito que o homem parecia querer disfarçar a voz, Não percebo, por que a disfarçaria ele, Não tenho nenhuma ideia, Pode ter sido impressão da pessoa com quem falou, Talvez, E como foi que finalmente deu comigo, Escrevi à empresa produtora, Surpreende-me que o tenham informado da minha direcção, Também me deram o seu verdadeiro nome, Julguei que só o sabia da primeira conversa que teve com a minha mulher, Disse-mo a empresa, No que me diz respeito, pelo menos que seja do meu conhecimento, foi a primeira vez que o fizeram, Meti na carta um parágrafo a falar da importância dos actores secundários, suponho que isso os terá convencido, O mais natural teria sido precisamente o contrário, Ainda assim, consegui-o, E aqui estamos, Sim, aqui estamos. António Claro bebeu um trago de uísque, Tertuliano Máximo Afonso molhou os lábios no conhaque, depois olharam-se, e no mesmo instante desviaram a vista. Pela porta que continuava aberta entrava a luz declinante da tarde. Tertuliano Máximo Afonso afastou o seu copo para o lado e espalmou as duas mãos sobre o tampo da mesa, com os dedos esticados, em estrela, Comparemos, disse. António Claro tomou outro trago de uísque e colocou as suas em simetria com as dele, pressionando-as contra a mesa para não se perceber que tremiam. Tertuliano Máximo Afonso dava a impressão de estar a fazer o mesmo. As mãos eram em tudo iguais, cada veia, cada ruga, cada pêlo, as unhas uma por uma, tudo se repetia como se tivesse saído de um molde. A única diferença era a aliança de ouro que António Claro usava no dedo anelar esquerdo. Vejamos agora os sinais que temos no antebraço direito, disse Tertuliano Máximo Afonso. Levantou-se, despiu o casaco, que deixou cair no sofá, e arregaçou a manga da camisa até ao cotovelo. António Claro também se tinha levantado, mas foi primeiro fechar a porta e acender as luzes da sala. Ao colocar o casaco no espaldar de uma cadeira, não pôde evitar um ruído surdo. É a pistola, perguntou Tertuliano Máximo Afonso, É, Pensei que tivesse decidido não a trazer, Não está carregada, Não está carregada são só três palavras que dizem não está carregada, Quer que lha mostre, já que parece não acreditar em mim, Faça como quiser. António Claro meteu a mão numa algibeira interior do casaco e exibiu a arma, Aqui está. Em movimentos rápidos, eficazes, retirou o carregador vazio, fez recuar a culatra e mostrou a câmara, vazia também. Ficou convencido, perguntou, Fiquei, E não suspeita que eu tenha outra pistola no outro bolso, Já seriam pistolas demasiadas, Seriam as necessárias se eu tivesse planeado ver-me livre de si, E por que haveria o actor Daniel Santa-Clara de querer ver-se livre do professor de História Tertuliano Máximo Afonso, Você mesmo pôs o dedo na ferida quando se perguntou o que irá acontecer depois disto, Estava disposto a ir-me embora, foi você que me disse que ficasse, É certo, mas a sua retirada nada teria resolvido, aqui, ou em sua casa, ou a dar as suas aulas, ou a dormir com a sua mulher, Não sou casado, Você seria sempre a minha cópia, o meu duplicado, uma imagem permanente de mim mesmo num espelho em que eu não me estaria olhando, algo provavelmente insuportável, Dois tiros resolveriam a questão antes que ela se apresentasse, Assim é, Mas a pistola está descarregada, Exacto, E não há outra no outro bolso, Precisamente, Portanto voltamos ao principio, não sabemos o que irá suceder depois disto. António Claro já tinha puxado a manga da camisa para cima, à distância a que se encontravam um do outro não se percebiam bem os sinais na pele, mas, quando se aproximaram de uma luz, eles apareceram, nítidos, precisos, iguais. Isto parece um filme de ficção científica escrito, dirigido e interpretado por clones às ordens de um sábio louco, disse António Claro, Ainda temos a cicatriz do joelho para ver, lembrou Tertuliano Máximo Afonso, Não creio que mereça a pena, a prova está mais do que feita, mãos, braços, caras, vozes, tudo em nós é igual, só faltaria que nos despíssemos por completo. Tomou a servir-se de uísque, olhou o líquido como se esperasse que dali pudesse emergir alguma ideia, e de repente perguntou, E por que não, sim, e por que não, Seria caricato, você mesmo acabou de dizer que a prova já está feita, Caricato, porquê, da cintura para cima ou da cintura para cima e para baixo, nós, os actores de cinema, e de teatro também, quase não fazemos mais que despir-nos, Não sou actor, Não se dispa, se não quiser, mas eu vou fazê-lo, não me custa nada, estou mais do que habituado, e, se a igualdade se repetir no corpo todo, você estará a ver-se a si mesmo quando me olhar a mim, disse António Claro. Despiu a camisa num só movimento, descalçou-se e tirou as calças, depois a roupa interior, finalmente as meias. Estava nu da cabeça aos pés e era, da cabeça aos pés, Tertuliano Máximo Afonso, professor de História. Então Tertuliano Máximo Afonso pensou que não podia ficar atrás, que tinha de aceitar o repto, levantou-se do sofá e começou também a despir-se, mais contido nos gestos por causa do pudor e da falta de hábito, mas, quando terminou, um pouco encolhida a figura devido ao acanhamento, tinha-se tomado em Daniel Santa-Clara, actor de cinema, com a única excepção visível dos pés, porque não chegara a descalçar as peúgas. Olharam-se em silêncio, conscientes da total inutilidade de qualquer palavra que proferissem, presas de um sentimento confuso de humilhação e perda que arredava o assombro que seria a manifestação natural, como se a chocante conformidade de um tivesse roubado alguma coisa à identidade própria do outro. O primeiro a acabar de vestir-se foi Tertuliano Máximo Afonso, Ficou de pé, com a atitude de quem pensa que é chegada a altura de se retirar, mas António Claro disse, Peço-lhe o favor de se sentar, há ainda um último ponto que gostaria de aclarar consigo, não o reterei por muito tempo mais, De que se trata, perguntou Tertuliano Máximo Afonso enquanto, com relutância, voltava a sentar-se, Refiro-me às datas em que nascemos, e também às horas, disse António Claro, enquanto tirava do bolso do casaco a carteira e, do interior desta, um documento de identificação, que estendeu a Tertuliano Máximo Afonso por cima da mesa. Este olhou-o rapidamente, devolveu-o e disse, Nasci nessa mesma data, ano, mês e dia, Não ficará ofendido se lhe pedir que me mostre a sua identificação, De modo algum. O cartão de Tertuliano Máximo Afonso passou às mãos de António Claro, onde se demorou dez segundos, e regressou ao seu proprietário, que perguntou, Dá-se por satisfeito, Ainda não, ainda falta conhecer as horas, a minha ideia é que as escrevamos num papel, cada um no seu, Porquê, Para que o segundo a falar, se essa fosse a maneira escolhida, não cedesse à tentação de subtrair quinze minutos da hora que tivesse sido declarada pelo primeiro, E por que não aumentar esses quinze minutos, Porque qualquer aumento iria contra os interesses do segundo que falasse, O papel não garante a seriedade do processo, ninguém poderia impedir-me de escrever, isto não passa de um exemplo, que nasci no primeiro minuto do dia, quando não foi assim na realidade, Teria mentido, Pois teria, mas qualquer de nós, desde que o queira, pode sempre faltar à verdade mesmo que nos limitemos, sem mais, a dizer em voz alta a hora a que nascemos, Tem razão, é uma questão de rectidão e boa-fé. Tertuliano Máximo Afonso tremia por dentro, desde o princípio de tudo tinha a certeza de que este momento haveria de chegar, só não tinha imaginado que viesse a ser ele próprio quem o convidaria a manifestar-se, a romper o último selo, a revelar a única diferença, Sabia de antemão qual iria ser a resposta de António Claro, mas mesmo assim perguntou, E que importância terá dizermos um ao outro a hora a que viemos ao mundo, A importância que irá ter é que ficaremos a saber qual de nós dois, você ou eu, é o duplicado do outro, E que sucederá a um e a outro pelo facto de o sabermos, Disso não tenho a menor ideia, porém, a minha imaginação, os actores também são dotados de alguma, diz-me que, no mínimo, não deverá ser cómodo viver sabendo-se duplicado de outra pessoa, E está disposto, pela sua parte, a arriscar-se, Mais que disposto, Sem mentir, Espero que não seja necessário, respondeu António Claro com um sorriso estudado, uma composição plástica de lábios e dentes onde, em doses idênticas e indiscerníveis, se reuniam a franqueza e a maldade, a inocência e o descaro. Depois acrescentou, Naturalmente, se prefere, poderemos tirar à sorte aquele a quem caberá falar em primeiro lugar, Não é preciso, eu começo, você mesmo referiu que é uma questão de rectidão e boa-fé, disse Tertuliano Máximo Afonso, Nasceu então a que horas, Às duas da tarde. António Claro pôs uma cara de pena e disse, Eu nasci meia hora antes, ou, para falar com absoluta exactidão cronométrica, pus a cabeça de fora às treze horas e vinte e nove minutos, lamento-o, meu caro, mas eu já cá estava quando você nasceu, o duplicado é você. Tertuliano Máximo Afonso engoliu de um trago o resto do conhaque, levantou-se e disse, Foi a curiosidade que me trouxe a este encontro, agora que já está satisfeita, retiro-me, Homem, não se vá embora tão depressa, conversemos um pouco mais, ainda não é tarde, e até, se não tem outro compromisso a chamá-lo, podíamos jantar juntos, aqui perto há um bom restaurante, com a sua barba não haveria perigo, Obrigado pelo convite, mas não aceito, teríamos com certeza pouca coisa para dizer um ao outro, a si não creio que lhe interesse a História, e eu estou curado de cinema para os anos mais próximos, Ficou contrariado pelo facto de não ter sido o primeiro a nascer, de que seja eu o original e você o duplicado, Contrariado não será a palavra justa, simplesmente preferia que não tivesse acontecido assim, mas não me pergunte porquê, seja como for não perdi tudo, ainda ganhei uma pequena compensação, Que compensação, A de que você não lucraria nada em andar pelo mundo a gabar-se de ser o original de nós dois se o duplicado que eu sou não estivesse à vista para as necessárias comprovações, Não tenciono espalhar aos quatro ventos esta história incrível, sou um artista de cinema, não um fenómeno de feira, E eu um professor de História, não um caso teratológico, Estamos de acordo, Não há, portanto, qualquer razão para que nos voltemos a encontrar, Também creio que não, Não me resta mais, por conseguinte, que desejar-lhe as maiores felicidades no desempenho de um papel de que não irá tirar qualquer vantagem, uma vez que não haverá público a aplaudi-lo, e prometer-lhe que este duplicado se manterá fora do alcance da curiosidade científica, mais do que legítima, e da cuscovilhice jornalística, que não o é menos, porquanto disso vive, suponho que já terá ouvido dizer que o costume faz lei, se assim não fosse, posso assegurar-lhe que o código de Hamurabi não teria sido escrito, Manter-nos-emos afastados, Numa cidade tão grande como esta em que vivemos não será nada difícil, além disso, as nossas vidas profissionais são tão diferentes que nunca eu teria sabido da sua existência se não fosse aquele malfadado filme, quanto à probabilidade de que um actor de cinema viesse a interessar-se por um professor de História, essa nem sequer deve ter expressão matemática, Nunca se sabe, a probabilidade de que existíssemos tais quais somos era zero, e no entanto aqui estamos, Tentarei imaginar que não vi o filme, esse e os seguintes, ou então recordar só que suportei um longo e agónico pesadelo, para ao fim perceber que não era caso para tanto, um homem igual a outro, que importância tem, se quer que lhe fale francamente, a única coisa que me preocupa realmente neste momento é se, tendo nós nascido no mesmo dia, também num mesmo dia iremos morrer, Não vejo a que propósito vem agora semelhante preocupação, A morte sempre vem a propósito, Você dá a impressão de sofrer de uma obsessão mórbida, quando me telefonou disse as mesmas palavras, e também sem vir a propósito, Nessa altura saíram-me sem pensar, foi uma dessas frases fora de lugar e de contexto que se metem na conversa sem que as tivéssemos chamado, Não foi o caso de agora, Incomoda-o, Não me incomoda nada, Talvez o passe a incomodar se lhe der conta de uma ideia que acabou de me ocorrer, Que ideia foi essa, A de que, se somos tão iguais quanto hoje nos foi dado verificar, a lógica identitária que parece unir-nos determinará que você terá de morrer antes de mim, precisamente trinta e um minutos antes de mim, durante trinta e um minutos o duplicado ocupará o espaço do original, será original ele próprio, Desejo-lhe que viva bem esses trinta e um minutos de identidade pessoal, absoluta e exclusiva, porque a partir de agora não vai ter outros, É simpático da sua parte, agradeceu Tertuliano Máximo Afonso. Colocou a barba com todo o esmero, comprimindo-a delicadamente com as pontas dos dedos, já não lhe tremiam as mãos, deu as boas-tardes e encaminhou-se para a porta. Ali parou de repente, voltou-se e disse, Ah, tinha-me esquecido o mais importante, todas as provas ficaram feitas, excepto uma, Qual, perguntou António Claro, A prova do ADN, a análise da codificação da nossa informação genética, ou, em palavras mais simples, ao alcance de qualquer inteligência, o tira-teimas, a prova dos noves, Isso nem pensar, Tem razão, teríamos de ir os dois ao laboratório de genética, de mãos dadas, para que nos aparassem uma unha ou nos extraíssem uma gota de sangue, e então, sim, saberíamos se esta igualdade não passa de uma casual coincidência de cores e formas exteriores, ou se somos a demonstração duplicada, em original e em duplicado, quero dizer, de que a impossibilidade era a última ilusão que nos restava, Considerar-nos-iam como casos teratológicos, Ou como fenómenos de feira, E isso seria insuportável para ambos, Nada mais exacto, Ainda bem que estamos de acordo, Em algo teria de ser, Boas tardes, Boas tardes.

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