O sol já se tinha escondido por trás das montanhas que cerravam o horizonte do outro lado do rio, mas a luminosidade do céu sem nuvens quase não diminuíra, apenas a intensidade crua do azul fora temperada por um pálido tom rosado que lentamente se expandia. Tertuliano Máximo Afonso pôs o carro em marcha e girou o volante para entrar no caminho que atravessava a povoação. Olhando na direcção da casa, viu António Claro entreportas, mas seguiu em frente. Não houve acenos de despedida, nem de um lado, nem do outro. Continuas a usar essa barba ridícula, disse o senso comum, Tiro-a antes que cheguemos à estrada, esta será a última vez que me apanhas com ela, a partir de agora andarei de cara descoberta, disfarce-se quem quiser, Como o sabes, Saber, o que se chama mesmo saber, não sei, é apenas uma ideia, uma suposição, um pressentimento, Tenho de confessar que não esperava tanto de ti, portaste-te muito bem, como um homem, Sou um homem, Não negarei que o sejas, mas o costume tem sido ver sobreporem-se as tuas fraquezas às tuas forças, Portanto, é homem todo aquele que não estiver sujeito a fraquezas, Também o é aquele que as conseguir dominar, Nesse caso, uma mulher que for capaz de vencer as suas femininas fraquezas é um homem, é como um homem, Em sentido figurado, sim, podemos dizê-lo, Pois então digo-te eu que o senso comum se expressa como machista no mais próprio dos sentidos, Não tenho a culpa, fizeram-me assim, Não é boa escusa para quem não faz mais nada na vida que dar conselhos e opiniões, Nem sempre erro, Fica-te bem essa súbita modéstia, Seria melhor do que sou, mais eficiente, mais útil, se me ajudásseis, Quem, Vocês todos, homens, mulheres, o senso comum não passa de uma forma de média aritmética que vai subindo ou baixando consoante a maré, Previsível, portanto, Efectivamente, sou a mais previsível de todas as coisas que há no mundo, Por isso estavas à minha espera no carro, Já era hora de voltar a aparecer, podia-se mesmo acusar-me de que já estava a tardar demasiado, Ouviste tudo, De uma ponta à outra, Crês que fiz mal em vir falar com ele, Depende do que por mal ou por bem se entenda, aliás, é indiferente, vista a situação a que tinhas chegado não havia outra alternativa, Esta era a única maneira, se queria pôr ponto final no assunto, Que ponto final, Ficou assente entre nós que não haverá mais encontros, Estás a querer dizer-me que toda a confusão que armaste vai acabar assim, que tu voltas ao teu trabalho e ele ao seu, tu à tua Maria da Paz, enquanto durar, e ele à sua Helena, ou lá como se chame, e a partir de agora nem te vi nem te conheço, é isso o que me estás a querer dizer, Não há nenhum motivo para que seja doutro modo, Há todos os motivos para que seja doutro modo, palavra de senso comum, Basta que não queiramos, Se desligas o motor, o carro continuará a andar, Estamos a descer, Também continuaria a andar, é certo que durante muito menos tempo, se nos encontrássemos numa superfície horizontal, chama-se a isso força de inércia, como tens obrigação de saber, embora não se trate de uma matéria que pertença à História, ou talvez sim, agora que o penso, creio que é precisamente na História que a força de inércia se nota mais, Não dês opiniões sobre o que não aprendeste, uma partida de xadrez pode ser interrompida em qualquer momento, Eu estava a falar da História, E eu estou a falar do xadrez, Muito bem, albarde-se o burro à vontade do dono, um dos jogadores pode continuar a jogar sozinho se lhe apetecer, e esse, mesmo sem necessidade de fazer batota, em qualquer caso ganhará, quer jogue com as peças brancas, quer jogue com as peças pretas, porque com todas joga, Eu levantei-me da mesa, saí da sala, já não estou, Ainda lá ficaram três jogadores, Suponho que queres dizer que ficou esse António Claro, E também a mulher dele, e também a Maria da Paz, Que tem que ver a Maria da Paz com isto, Fraca memória a tua, meu caro, pareces esquecido de que te serviste do nome dela para as tuas investigações, mais tarde ou mais cedo, seja por ti, seja por outra pessoa, a Maria da Paz virá a conhecer o enredo em que está envolvida sem o saber, e quanto à mulher do actor, supondo que ainda não tocou peça, amanhã poderá vir a ser a rainha triunfante, Para senso comum tens demasiada imaginação, Lembra-te do que te tinha dito há urnas semanas, só um senso comum com imaginação de poeta poderia ter sido o inventor da roda, Não foi isso o que disseste, exactamente, Tanto faz, estou a dizê-lo neste momento, Serias melhor companhia se não quisesses ter sempre razão, Nunca presumi de ter sempre razão, se alguma vez errei fui o primeiro a dar a mão à palmatória, Talvez, mas mostrando cara de quem acabou de ser vítima de um clamoroso erro judiciário, E a ferradura, A ferradura, quê, Eu, senso comum, também inventei a ferradura, Com a imaginação de um poeta, Os cavalos estariam dispostos a jurar que sim, Adeus, adeus, já vamos nas asas da fantasia, Que pensas fazer agora, Duas chamadas telefónicas, uma para a minha mãe a dizer-lhe que a irei visitar depois de amanhã e a outra para a Maria da Paz a dizer-lhe que depois de amanhã vou visitar a minha mãe e que ficarei por lá uma semana, como vês, nada mais simples, nada mais inocente, nada mais familiar e doméstico. Neste momento um automóvel ultrapassou-os em grande velocidade, o condutor fez um aceno com a mão direita. Conheces aquele tipo, quem é, perguntou o senso comum, É o homem com quem estive a falar, o António Claro, o Daniel Santa-Clara, o original de que eu sou duplicado, julguei que o tivesses reconhecido, Não posso reconhecer uma pessoa a quem nunca tinha visto antes, Ver-me a mim, é a mesma coisa que vê-lo a ele, Mas não por trás de uma barba dessas, Com a conversa esqueci-me de a tirar, pronto, já está, que tal me encontras agora, O carro dele é mais potente que o teu, Muito mais, Desapareceu num instante, Vai a correr contar o nosso encontro à mulher, É possível, não é certo, És um incrédulo sistemático, Não, sou apenas isso a que chamais senso comum por não saber que melhor nome poderíeis dar-lhe, O inventor da roda e da ferradura, Nas horas poéticas, só nas horas poéticas, Prouvera que fossem mais, Quando chegarmos deixas-me à entrada da tua rua, se não te importas, Não queres subir, descansar um bocado, Não, prefiro ir pôr a imaginação a trabalhar, que bem precisa nos vai ser.
Quando Tertuliano Máximo Afonso acordou na manhã do dia seguinte soube por que havia dito ao senso comum, mal ele entrara no carro, que aquela era a última vez que o via com a barba postiça posta e que a partir daí iria passar a andar de cara descoberta, à vista de toda a gente. Disfarce-se quem quiser, foram, terminantes, as suas palavras. O que então podia não ter parecido a uma pessoa desprevenida mais que uma temperamental declaração de intenções motivada pela justificada impaciência de quem andou a ser submetido a uma sucessão de duras provas, era, afinal, sem que o suspeitássemos, a semente de uma acção prenhe de consequências futuras, como despachar um cartel de desafio ao inimigo sabendo antecipadamente que as coisas não se deixarão ficar por aí. Antes de continuarmos, porém, convirá à boa harmonia do relato que dediquemos algumas linhas à análise de qualquer despercebida contradição que haja entre a acção de que adiante daremos informação e as resoluções anunciadas por Tertuliano Máximo Afonso durante a breve viagem com o senso comum. Um rápido excurso às páginas finais do capítulo anterior mostrará de imediato a existência de uma contradição básica manifestada em variantes expressivas distintas, como foram aquelas de haver dito Tertuliano Máximo Afonso, perante o prudente cepticismo do senso comum, em primeiro lugar, que tinha posto ponto final no assunto dos dois homens iguais, em segundo lugar, que ficara assente que António Claro e ele nunca mais voltariam a encontrar-se, e, em terceiro lugar, com a retórica ingénua de um final de acto, que se havia levantado da mesa de jogo, que saíra da sala, que deixara de estar. Esta é a contradição. Como pode afirmar Tertuliano Máximo Afonso que deixou de estar, que saiu, que abandonou a mesa, se, mal engolido o pequeno-almoço, o vimos precipitar-se para a papelaria mais próxima a comprar uma caixa de cartão dentro da qual despachará a António Claro, via correio, nada mais nada menos que a mesma barba com que nos últimos tempos o vimos disfarçado. Imaginando que António Claro venha um dia destes a ter motivo para usar um disfarce, isso será coisa sua, nada terá que ver com um Tertuliano Máximo Afonso que saiu a bater com a porta e a dizer que não volta mais. Quando, daqui por dois ou três dias, António Claro abrir a caixa em sua casa e se encontrar diante de uma barba postiça que imediatamente reconhecerá, é inevitável que diga à mulher, Isto que aqui vês, parecendo uma barba, é um cartel de desafio, e a mulher perguntará, Mas como pode isso ser, se tu não tens inimigos. António Claro não perderá tempo a responder-lhe que é impossível não ter inimigos, que os inimigos não nascem da nossa vontade de os ter, mas do irresistível desejo que têm eles de nos terem a nós. No grémio dos actores, por exemplo, papéis de dez linhas despertam com desanimadora frequência a inveja dos papéis de cinco, por aí se começa sempre, pela inveja, e se depois os papéis de dez linhas passaram a vinte e os de cinco tiveram de contentar-se com sete, então fica adubado o terreno para que nele se desenvolva uma frondosa, próspera e duradoura inimizade. E esta barba, perguntará Helena, que papel é o seu no meio de tudo isto, Esta barba, tinha-me esquecido de to dizer no outro dia, é a que usava o Tertuliano Máximo Afonso quando foi encontrar-se comigo, é compreensível que a tenha levado e confesso que até lhe estou grato pela ideia, imagina que alguém o via atravessar a povoação e o confundia comigo, as complicações que daí poderiam ter nascido, Que vais fazer com ela, Poderia devolvê-la com um bilhete seco a pôr esse intrometido no seu lugar, mas isso seria entrar num dize-tu-direi-eu de imprevisíveis consequências, sabe-se como começa, mas não se sabe como acabará, e eu tenho uma carreira a defender, agora que os meus papéis já são de cinquenta linhas, com a possibilidade de subir se tudo me continuar a correr bem, como promete o guião que aí está, Se eu me visse na tua situação, rasgava-a, atirava-a fora, ou queimava-a, morrendo o bicho, acabava-se a peçonha, Não parece que isto seja um caso de morte, além disso tenho a impressão de que a barba não te ficaria bem, Não brinques, foi uma maneira de falar, o que sei é que me transtorna o espírito, que chega mesmo a desassossegar-me o corpo saber que há nesta cidade um homem exactamente igual a ti, ainda que continue a resistir a crer-me que as parecenças cheguem a esse ponto, Repito-te que são totais, que são absolutas, as próprias impressões digitais dos nossos cartões de identidade são idênticas, tive ocasião de comparar, Dá-me uma tontura só de pensá-lo, Não te deixes obcecar, toma um tranquilizante, Já tomei, estou a tomá-lo desde que esse homem telefonou para aqui, Não tinha dado por isso, E que não reparas muito em mim, Não é verdade, como poderia eu saber que andas a tomar comprimidos, se o fazes às escondidas, Desculpa, estou um pouco nervosa, mas não tem importância, isto passa, Chegará um dia em que já nem nos lembraremos desta maldita história, Enquanto ele não chegar tens de resolver o que farás com esses pêlos repugnantes, Vou pô-la juntamente com o bigode que usei naquele filme, Que interesse tens tu em guardar uma barba que foi usada na cara de outra pessoa, A questão está precisamente aí, de facto a pessoa é outra, mas a cara não, a cara é a mesma, Não é a mesma, É a mesma, Se queres que eu endoideça, continua a dizer que a tua cara é a cara dele, Por favor, acalma-te, Além disso, como vais tu meter no mesmo saco essa intenção de guardares a barba, como se se tratasse de uma relíquia, e chamar-lhe nem mais nem menos que cartel de desafio enviado por mão inimiga, que foi o que disseste quando abriste a caixa, Não disse que vinha de um inimigo, Mas pensaste-o, É possível que sim, que o tenha pensado, mas não estou certo de que seja a palavra justa, esse homem nunca me fez mal, Existe, Existe para mim da mesma maneira que eu existo para ele, Não foste tu que o procuraste, suponho, Se eu estivesse no seu caso, não teria tido procedimento diferente, Juro que o terias se te aconselhasses comigo, Bem vejo que a situação não é agradável, não o é para nenhum de nós, mas não consigo perceber por que te inflamas tanto, Eu não me inflamo, Pouco te falta para que comeces a deitar chamas pelos olhos. A Helena não lhe saltaram as chamas, mas, inesperadamente, as lágrimas. Virou costas ao marido e foi a correr encerrar-se no quarto, fechando a porta com mais força que a necessária. Uma pessoa dada a superstições e que tivesse sido testemunha da deplorável cena conjugal que acabámos de descrever, talvez não perdesse a ocasião de atribuir a causa do conflito a qualquer influência maligna do apêndice postiço que António Claro se obstinará em guardar ao lado do bigode com que praticamente se iniciou na sua carreira de actor. E o mais certo seria que essa pessoa abanasse a cabeça com ar de falsa compaixão, e soltasse o oráculo, Quem por suas próprias mãos meteu o inimigo em casa, não venha depois queixar-se, avisado estava e não fez caso.
A mais de quatrocentos quilómetros daqui, no seu antigo quarto de rapaz, Tertuliano Máximo Afonso prepara-se para dormir. Depois de ter saído da cidade, na terça-feira de manhã, veio todo o caminho a discutir com os seus botões se deveria contar à mãe algo do que estava acontecendo ou se, pelo contrário, seria mais prudente manter a boca firmemente selada. Aos cinquenta quilómetros decidiu que o melhor seria despejar o saco todo, aos cento e vinte indignou-se consigo mesmo por ter sido capaz de semelhante ideia, aos duzentos e dez imaginou que uma explicação ligeira e em tom anedótico talvez fosse suficiente para satisfazer a curiosidade da mãe, aos trezentos e catorze chamou-se estúpido e disse que era o mesmo que não a conhecer, aos quatrocentos e quarenta e sete, quando parou à porta da casa familiar, não sabia que fazer. E agora, enquanto veste o pijama, pensa que esta viagem foi um erro grave, de palmatória, que melhor haveria sido não sair da sua casa, ficar fechadinho na sua concha protectora, à espera. É certo que aqui está fora do alcance, mas, sem com isto querer ofender dona Carolina, que tanto no aspecto físico como nos considerandos morais não merecia semelhantes comparações, Tertuliano Máximo Afonso sente que veio cair na boca do lobo como um pardal desprecavido que tivesse voado em direcção à esparrela sem ligar a consequências. A mãe não lhe faz perguntas, limita-se de vez em quando a olhá-lo com uma expressão expectante para logo desviar lentamente os olhos, o gesto disse, Não pretendo ser indiscreta, mas o recado ficou dado, Se julgas que te irás embora sem falar, tira daí o sentido. Deitado na cama, Tertuliano Máximo Afonso dá voltas ao assunto e não lhe encontra solução. A mãe não é feita da mesma massa que Maria da Paz, essa satisfaz-se, ou assim o faz crer, com qualquer explicação que se lhe dê, essa não se importará de esperar toda a vida, se for necessário, o momento das revelações. A mãe de Tertuliano Máximo Afonso, em cada atitude, em cada movimento, quando lhe coloca um prato diante, quando o ajuda a vestir o casaco, quando lhe entrega uma camisa lavada, está a dizer-lhe, Não te peço que me contes tudo, tens direito a guardar os teus segredos, mas com uma única e irrenunciável excepção, a daqueles de que estejam dependentes a tua vida, o teu futuro, a tua felicidade, esses quero sabê-los, é o meu direito, e tu não mo podes negar. Tertuliano Máximo Afonso apagou a luz da mesa-de-cabeceira, tinha trazido alguns livros mas o espírito, esta noite, não lhe pede leituras, e quanto às civilizações mesopotâmicas, que sem dúvida o levariam docemente até aos diáfanos umbrais do sono, essas por tão pesadas ficaram em casa, também sobre a mesa-de-cabeceira, com o marcador a assinalar o começo do ilustrativo capítulo em que se trata do rei Tukulti-Ninurta, que floresceu, como das figuras históricas era costume dizer-se, entre os séculos doze e treze antes de Cristo. A porta do quarto, que apenas se encontrava encostada, abriu-se mansamente na penumbra. Tômarctus, o cão da casa, havia entrado. Vinha saber se este dono, que só de tempos a tempos aparece por aqui, ainda estava. É médio de tamanho, todo ele um borrão negro, não como outros que quando os olhamos de perto se nota logo que puxam para o cinzento. O estranho nome foi-lhe posto por Tertuliano Máximo Afonso, é o que sucede quando se tem um dono erudito, em lugar de ter baptizado o animal com um apelativo que ele pudesse captar sem dificuldade pelas vias directas da genética, como teriam sido os casos de Fiel, Piloto, Sultão ou Almirante, herdados e sucessivamente transmitidos de gerações em gerações, em vez disso foi-lhe pôr o nome de um canídeo que se diz ter vivido há quinze milhões de anos e que, segundo andam certificando os paleontólogos, é o fóssil Adão destes animais de quatro patas que correm, farejam e coçam as pulgas, e que, como é natural nos amigos, mordem de vez em quando. Tomarctus não veio aqui para ficar muito tempo, dormirá durante uns minutos enroscado aos pés da cama, depois levantar-se-á para ir dar uma volta pela casa, a ver se tudo está em ordem, e por fim, durante o resto da noite, será vigilante companheiro da sua ama de todas as horas, salvo se tiver de sair para ir ladrar ao pátio e de caminho beber água da tigela e alçar a perna no canteiro dos gerânios ou na moita de alecrim. Voltará ao quarto de Tertuliano Máximo Afonso ao primeiro desponte da madrugada, tomará conhecimento de que também este lado da terra não mudou de sítio, é isso o que os cães mais prezam na vida, que ninguém se vá embora. Quando Tertuliano Máximo Afonso acordar, a porta estará fechada, sinal de que a mãe já se levantou e de que Tomarctus saiu para ir com ela. Tertuliano Máximo Afonso olha o relógio, diz consigo mesmo, Ainda é cedo, pelo tempo que dure este vago e último sono as preocupações podem esperar.
Teria acordado em sobressalto se um duende malicioso lhe viesse soprar ao ouvido que algo da mais extrema importância se está a gerar a esta mesma hora em casa de António Claro, ou, para falar com precisão e justeza, no trabalhado interior do seu cérebro. A Helena têm-na ajudado muito os tranquilizantes, a prova é ver como está dormindo, com a respiração certa, o rosto plácido e ausente de uma criança, mas de quem não poderemos dizer o mesmo é do marido, este não tem aproveitado as noites, sempre a dar voltas ao assunto da barba postiça, a perguntar-se com que intenções lha teria mandado Tertuliano Máximo Afonso, a sonhar com o encontro na casa de campo, a despertar angustiado, algumas vezes banhado em suor. Hoje não foi assim. Inimiga a noite, tanto como as anteriores, mas salvadora a madrugada, como todas o deveriam ser. Abriu os olhos e aguardou, surpreendido por perceber-se a si mesmo à espreita de algo que devia estar a ponto de eclodir, e que de repente eclodiu mesmo, foi um lampejo, um relâmpago que encheu de luz todo o quarto, lembrar-se do que Tertuliano Máximo Afonso havia dito no princípio da conversa, Escrevi à produtora, foi essa a resposta que deu à pergunta que lhe tinha feito, E como foi que finalmente deu comigo. Sorriu de puro gozo como deverão ter sorrido todos os navegantes à vista da ilha desconhecida, mas o prazer exaltador do descobrimento não durou muito, estas ideias matinais têm em geral um defeito de fabrico, parece que acabámos de inventar o moto-contínuo e mal viramos costas pára a máquina. Cartas a pedir retratos e autógrafos de artistas é o que menos falta faz nas empresas de cinema, as grandes estrelas, enquanto lhes dura o favor do público, recebem-nas aos milhares por semana, isto é, receber, aquilo a que chamamos propriamente receber, não as recebem, nem sequer iriam perder o seu tempo a pôr-lhes os olhos em cima, para isso lá estão os empregados da produtora que vão buscar à prateleira a fotografia desejada, a enfiam num sobrescrito, já com a dedicatória impressa, igual para todos, e adiante que se faz tarde, o senhor que se segue. E evidente que Daniel Santa-Clara não é nenhuma estrela, que se algum dia tivessem entrado na empresa três cartas juntas a pedir o favor de um retrato seu, seria caso para correr a pôr bandeiras à janela e declarar feriado nacional, e isto sem esquecer que tais cartas não se guardam, passam logo, sem excepção, ao esfarrapador de papel, reduzidas à miséria de um montão de indecifráveis tirinhas todas aquelas ansiedades, todas aquelas emoções. Supondo, porém, que os arquivistas da produtora tivessem instruções para registar, ordenar e classificar criteriosamente, de modo a não se perder nem um só de tantos testemunhos da admiração do público pelos seus artistas, é inevitável perguntar para que serviria a António Claro a carta escrita por Tertuliano Máximo Afonso, ou, mais precisamente, em quê poderia essa carta contribuir para descobrir uma saída, se é que ela existe, ao complicado, ao insólito, ao nunca visto caso dos dois homens iguais. Há que dizer que essa desorbitada esperança, logo feita em cisco pela lógica dos factos, foi o que animou tão demonstrativamente o despertar de António Claro, e se dela ainda algo resta é apenas a possibilidade remota de que aquela parte da carta que Tertuliano Máximo Afonso disse ter escrito sobre a importância dos actores secundários tivesse sido achada suficientemente interessante para merecer a honra de um lugar no arquivo e mesmo, quem sabe, a atenção de algum especialista em mercadologia a quem os factores humanos não fossem de todo alheios. No fundo, o que aqui viemos encontrar é já só a necessidade da minúscula satisfação que proporcionaria ao ego de Damel Santa-Clara, pela pena de um professor de História, o reconhecimento da importância dos grumetes na navegação do porta-aviões, mesmo não tendo eles feito outra coisa durante o périplo que puxar o lustre aos amarelos. Que seja isto suficiente para que António Claro resolva ir à empresa esta manhã a indagar da existência de uma carta escrita por um tal Tertuliano Máximo Afonso, é francamente discutível, haja vista a incerteza de lá encontrar o que tão iludidamente imaginou, mas há ocasiões na vida em que uma urgente necessidade de arrancar-se ao marasmo da indecisão, de fazer algo, seja o que for, mesmo que inútil, mesmo que supérfluo, é o derradeiro sinal de capacidade volitiva que nos restou, como espreitar pela fechadura de uma porta por onde nos havia sido proibido entrar. António Claro já se levantou da cama, fê-lo com mil cuidados para não despertar a mulher, agora encontra-se meio estendido no sofá grande da sala e tem o guião do próximo filme aberto sobre os joelhos, será a sua justificação para ir à produtora, ele que nunca tinha precisado de as dar, nem nesta casa lhas pediram alguma vez, é o que sucede quando não se tem a consciência de todo tranquila, Há aqui uma dúvida que tenho de aclarar, dirá quando Helena aparecer, pelo menos falta uma réplica, tal como se lê a passagem não tem sentido. Afinal estará a dormir quando a mulher entrar na sala, mas o efeito não se perdeu por completo, ela julgou que ele se tinha levantado para estudar o papel, há algumas pessoas assim, gente a quem um apurado sentido da responsabilidade mantém permanentemente inquietas, como se em cada momento estivessem a faltar a um dever e de isso se acusassem. Acordou sobressaltado, explicou, balbuciando, que tinha passado mal a noite, e ela perguntou-lhe por que não voltava para a cama, e então ele explicou que havia encontrado um erro no guião que só na produtora poderia ser corrigido, e ela disse que isso não o obrigava a ir lá a correr, que fosse depois do almoço, e agora que dormisse. Ele insistiu, ela desistiu, só disse que a ela, sim, lhe apetecia meter-se outra vez entre os lençóis, Daqui a duas semanas começam as férias, verás o que eu vou dormir, de mais a mais com estes comprimidos, será o paraíso, Não vais passar as férias na cama, disse ele, A minha cama é o meu castelo, respondeu ela, por trás das suas muralhas estou a salvo, Precisas de ir a um médico, tu não eras assim, Compreende-se, nunca tinha andado com dois homens no pensamento até hoje, Suponho que não o dizes a sério, No sentido que lhe estás a dar, é evidente que não, além disso reconhece que seria bastante ridículo teres ciúmes de uma pessoa que eu nem sequer conheço e a quem, por minha vontade, nunca haverei de conhecer. Seria este o melhor momento para António Claro confessar que não é por causa de supostas deficiências do guião que vai à produtora, mas para ler, se for possível, uma carta escrita precisamente pelo segundo dos homens que ocupam o pensamento da mulher, ainda que seja lícito presumir, vista a maneira como o cérebro humano costuma funcionar, sempre pronto a resvalar para qualquer forma de delírio, que, ao menos nestes agitados dias, esse segundo homem terá passado à frente do primeiro. Reconheça-se, porém, que uma tal explicação, além de exigir demasiado esforço à confundida cabeça de António Claro, só viria enredar mais ainda a situação e, com alta probabilidade, não seria recebida por Helena com suficiente simpatia receptiva. António Claro limitou-se a responder que não tinha ciúmes, que seria estúpido tê-los, o que estava era preocupado com a saúde dela, Devíamos aproveitar as tuas férias e ir-nos para longe daqui, disse, Prefiro ficar em casa, e além disso tu vais ter esse filme, Tem tempo, não é para já, Mesmo assim, Podíamos ir para a casa de campo, peço a alguém da povoação que vá limpar-nos o jardim, Sufoco naquela solidão, Então vamos para outro sítio, Já te disse que prefiro ficar em casa, Será outra solidão, Mas nesta sinto-me bem, Se é isso o que realmente queres, Sim, é isso o que quero realmente. Não havia mais que dizer. O pequeno-almoço foi tomado em silêncio, e meia hora mais tarde Helena estava na rua, a caminho do emprego. António Claro não tinha a mesma pressa, mas também não tardou a sair. Entrou no carro a pensar que ia passar ao ataque. Só não sabia para quê.
Não é frequente aparecerem actores pelos escritórios da produtora, e esta deve ser a primeira vez que um deles vem fazer perguntas acerca da carta de um admirador, embora ela pareça distinguir-se das outras pelo desusado facto de não pedir nem fotografia nem autógrafo, apenas a direcção, António Claro não sabe o que diz a carta, supõe que pede apenas a direcção da casa onde vive. Provavelmente, António Claro não teria a tarefa fácil se não se desse a circunstância afortunada de conhecer um chefe de serviço que tinha sido seu colega nos tempos da escola e que o recebeu de braços abertos, com a frase da praxe, Então que te traz por cá, Sei que uma pessoa escreveu uma carta a pedir a minha direcção, e gostaria de a ler, disse ele, Esses assuntos não os trato eu, mas vou pedir a alguém que te atenda. Chamou por intercomunicador, explicou de modo sumário o que se pretendia, e daí a momentos apareceu uma mulher nova que vinha a sorrir, já com as palavras preparadas, Bons dias, gostei muito de o ver no seu último filme, É muito amável, O que é que quer saber, Trata-se de uma carta escrita por uma pessoa que se chama Tertuliano Máximo Afonso, Se era a pedir fotografia, já não existe, a essas cartas não as guardamos, teríamos aí os arquivos a rebentar pelas costuras se as conservássemos, Tanto quanto julgo saber, pedia a minha direcção e fazia um comentário sobre algo que me interessa, foi por isso que vim cá, Como disse que se chamava, Tertuliano Máximo Afonso, é professor de História, Conhece-o, Sim e não, quer dizer, falaram-me dele, Há quanto tempo foi escrita a carta, Talvez há mais de duas semanas e menos de três, mas a certeza não a tenho, Começarei por ver no registo de entradas, ainda que, na verdade, esse nome não me soa nada, É você que tem a cargo o registo, Não, é uma colega que está de férias, mas com um nome desses os comentários não teriam faltado, os Tertulianos devem ser poucos actualmente, Suponho que sim, Venha comigo, por favor, disse a mulher. António Claro despediu-se do amigo e seguiu-a, não era nada desagradável, tinha uma boa figura e usava um bom perfume. Atravessaram uma sala onde várias pessoas trabalhavam, duas delas abriram um pequeno sorriso quando o viram passar, o que demonstra, apesar de opiniões em contrário que, na sua maioria, se regem por cediços preconceitos de classe, que ainda há quem se fixe nos actores secundários. Entraram num gabinete rodeado de prateleiras, quase todas carregadas com livros de registo de grande formato. Um livro idêntico estava aberto em cima da única mesa que ali havia. Isto tem um ar de reconstituição histórica, disse António Claro, parece o arquivo duma Conservatória, Arquivo é, mas temporal, quando o livro que está aí na mesa chegar ao fim, irá para o lixo o mais antigo dos outros, não é o mesmo que numa Conservatória, onde tudo se guarda, vivos e mortos, Comparado com a sala de onde viemos, isto é outro mundo, Imagino que até nos escritórios mais modernos se devem encontrar sítios parecidos a este, como uma âncora ferrugenta presa ao passado e sem serventia, António Claro olhou-a com atenção e disse, Desde que aqui entrei já lhe ouvi uma quantidade de ideias interessantes, Acredita nisso, É o que penso, Talvez algo assim como um pardal que inesperadamente tivesse começado a cantar como um canário, Também essa ideia me agrada. A mulher não respondeu, virou umas quantas folhas, andou para trás três semanas e, com o dedo indicador da mão direita, começou a percorrer os nomes um a um. A terceira semana passou, a segunda também, estamos na primeira, acabámos de chegar ao dia de hoje, e o nome de Tertuliano Máximo Afonso não apareceu. Devem tê-lo informado mal, disse a mulher, esse nome não está aqui, o que significará que essa carta, se foi escrita, não entrou cá, ter-se-á perdido no caminho, Estou a dar-lhe demasiado trabalho, a abusar do seu tempo, mas, adiantou insinuante António Claro, talvez se recuássemos uma semana, Pois sim. A mulher fez passar novamente as folhas e suspirou. A quarta semana tinha sido abundantíssima em pedidos de fotografias, iria demorar um bom bocado a chegar a sábado, e a Deus graças, levantemos as mãos ao céu por que as solicitações que dizem respeito aos actores mais importantes sejam tratadas num sector dos serviços apetrechado com sistemas informáticos, nada que se assemelhe ao arcaísmo quase incunabular desta montanha de in-fólíos reservados ao vulgo. A consciência de António Claro levara tempo a perceber que o trabalho de busca que a amável mulher estava a executar podia fazê-lo ele, e que seria mesmo sua obrigação ter-se oferecido para a substituir, tanto mais que os dados ali registados, pelo seu carácter elementar, nada mais que uma lista de nomes e moradas, o mesmo que qualquer pessoa encontra numa banal lista telefónica, não implicavam o menor grau de confidencialidade, nenhuma exigência de discrição que impusesse mantê-los ao abrigo da bisbilhotice de estranhos ao serviço. A mulher agradeceu a oferta com um sorriso, mas não aceitou, que não iria ficar ali de braços cruzados a vê-lo trabalhar, disse. Os minutos passavam, as folhas iam passando, já era quinta-feira e Tertuliano Máximo Afonso não aparecia. António Claro começou a sentir-se nervoso, a dar ao diabo a ideia que havia tido, a perguntar-se para que iria a maldita carta servir-lhe se acabasse por aparecer, e não encontrava uma resposta que estivesse à altura do desconforto da situação, até mesmo a diminuta satisfação de que o seu ego, como um gato guloso, tinha vindo à procura se estava a transformar rapidamente em vergonha. A mulher fechou o livro, Lamento muito, mas não está, E eu tenho de lhe rogar que me perdoe o trabalho que vim dar-lhe por causa de uma insignificância, Se tinha tanto empenho em ver a carta, não deveria ser uma insignificância, suavizou a mulher, generosa, Disseram-me que havia lá uma passagem que me poderia interessar, Que passagem, Não tenho bem a certeza, creio que era sobre a importância dos actores secundários para o êxito dos filmes, algo neste estilo. A mulher fez um movimento brusco, como se a memória a tivesse sacudido violentamente por dentro, e perguntou, Sobre os actores secundários, foi o que disse, Sim, respondeu António Claro, sem querer acreditar que pudesse ainda vir dali alguma réstia de esperança, Mas essa carta foi escrita por uma mulher, Por uma mulher, repetiu António Claro, sentindo que a cabeça lhe dava uma volta, Sim senhor, por uma mulher, E que aconteceu com ela, estou a referir-me à carta, evidentemente, A primeira pessoa que a leu achou que aquilo estava absolutamente fora das regras e foi a correr dar conhecimento do caso ao antigo chefe do departamento, que por sua vez fez subir o papel à administração, E depois, Nunca mais regressou aos serviços, ou o meteram na caixa-forte, ou foi triturado no esfarrapador da secretária do presidente do conselho de administração, Mas porquê, porquê, As perguntas são duas, e ambas pertinentes, provavelmente por causa da tal passagem, provavelmente porque a administração não viu com bons olhos a possibilidade de que começasse a circular por aí, dentro e fora da empresa, por todo o país, um abaixo-assinado a reclamar equidade e justiça para os actores secundários, seria uma revolução na indústria, e imagine o que poderia vir depois se a reivindicação fosse retomada pelas classes inferiores, pelos secundários da sociedade em geral, Falou de um antigo chefe do departamento, porquê antigo, Porque, graças à sua genial intuição, foi logo promovido, Então, a carta desapareceu, sumiu-se, murmurou António Claro, desanimado, O original, sim, mas eu tinha guardado uma cópia para meu uso, um duplicado, Guardou uma cópia, repetiu António Claro, sentindo ao mesmo tempo que o estremecimento que acabava de lhe percorrer o corpo tinha sido causado não pela primeira, mas pela segunda das duas palavras, A ideia pareceu-me a tal ponto extraordinária que resolvi cometer uma pequena infracção aos regulamentos internos do pessoal, E essa carta, tem-na consigo, Tenho-a em casa, Ah, tem-na em casa, Se quiser um duplicado dela, não tenho nenhuma dúvida em lho dar, afinal o destinatário verdadeiro da carta é o actor Daniel Santa-Clara, aqui legalmente representado, Não sei como lhe agradeça, e, já agora, permita-me que lhe repita o que antes disse, foi um prazer conhecê-la e conversar consigo, Tenho dias, hoje veio encontrar-me de boa maré, ou talvez seja por me ter sentido na pele da personagem de um romance, Que romance, que personagem, Não tem importância, voltemos à vida real, deixemo-nos de fantasias e ficções, amanhã faço-lhe uma fotocópia da carta e mando-lha pelo correio para sua casa, Não quero que se incomode, eu passo por cá, Nem por sombras, imagine o que se pensaria nesta empresa se alguém me visse a entregar-lhe um papel, Perigaria a sua reputação, perguntou António Claro começando a desenhar um sorriso discretamente malicioso, Pior do que isso, cortou ela, perigaria o meu emprego, Desculpe, devo ter-lhe parecido inconveniente, mas não tive intenção de a magoar, Suponho que não, só confundiu o sentido das palavras, é uma coisa que está sempre a suceder, o que vale são os filtros que com o tempo e a continuação de ouvir se vão tecendo em nós, Que filtros são esses, São assim como uma espécie de coadores da voz, as palavras, ao passar, deixam sempre ficar borras, para saber o que de facto nos tinham querido comunicar há que analisar essas borras minuciosamente, Parece um processo complicado, Pelo contrário, as operações necessárias são instantâneas, como num computador, mas nunca se atropelam umas às outras, vai tudo pela sua ordem, direitinho ao fim, é uma questão de treino, Se não é antes um dom natural, como ter um ouvido absoluto, Neste caso não é preciso tanto, basta que se seja capaz de ouvir a palavra, a agudeza está noutro sítio, mas não pense que tudo são rosas, às vezes, e falo por mim, não sei o que acontece com as outras pessoas, chego a casa com os meus filtros como se estivessem entupidos, é uma pena que os duches que tomamos por fora não nos possam assear por dentro, Estou a chegar à conclusão de que não é como um canário que o pardal canta, mas como um rouxinol, Meu Deus, o que aí vai de borras, exclamou a mulher, Gostaria de voltar a vê-la, Calculo que sim, o meu filtro acaba de mo dizer, Estou a falar a sério, Mas não com seriedade, Nem sequer conheço o seu nome, Para que o quer, Não se irrite, é costume apresentarem-se as pessoas, Quando existe um motivo, E neste caso não o há, perguntou António Claro, Sinceramente, não o vejo, Imagine que venho a precisar outra vez da sua ajuda, É simples, pede ao meu chefe que chame aquela empregada que o ajudou desta vez, ainda que o mais provável seja vir atendê-lo a minha colega que está de férias, Ficarei então sem notícias suas, Cumprirei o prometido, receberá a carta da pessoa que quis saber a sua direcção, Nada mais, Nada mais, respondeu a mulher. António Claro foi agradecer ao antigo colega, conversaram um pouco, e no fim perguntou, Como se chama a empregada que me atendeu, Maria, porquê, Realmente, pensando bem, por nada, não fiquei a saber mais do que já sabia, E que soubeste tu, Nada.
As contas eram fáceis de fazer. Se alguém nos afirma que escreveu uma carta e ela nos aparece depois com a assinatura de outra pessoa, por uma de duas hipóteses haverá que optar, ou esta segunda pessoa a escreveu a pedido da primeira, ou aquela primeira, por razões que a António Claro falta conhecer, falseou o nome da segunda, Daqui não há que sair. Como quer que seja, considerando que a morada inscrita no remetente da carta não é a da primeira pessoa, mas sim a da segunda, a quem a resposta da produtora tinha evidentemente de ser endereçada, considerando que todos os passos resultantes do conhecimento do seu conteúdo foram dados pela primeira e nem um só pela segunda, as conclusões a extrair deste caso são, mais do que lógicas, transparentes. Em primeiro lugar, é óbvio, patente e manifesto que as duas partes se puseram de acordo para levar a cabo a mistificação epistolar, em segundo lugar, por razões que António Claro igualmente ignora, que o objectivo da primeira pessoa era ficar na sombra até ao último momento, e o conseguiu. Foi a dar voltas a estas induções elementares que António Claro consumiu os três dias que a carta que lhe foi enviada pela enigmática Maria tardou em chegar. Vinha acompanhada de um cartão com as seguintes palavras, manuscritas, mas sem assinatura, Espero que lhe sirva para alguma coisa. Era esta precisamente a pergunta que António Claro dirigia agora a si mesmo, E depois disto, que faço eu. No entanto, há que dizer que, se à presente situação aplicássemos a teoria dos filtros ou coadores de palavras, aqui perceberíamos a presença de um depósito, de uma lia, de um sedimento, ou simplesmente de umas borras, como assim as prefere classificar a mesma Maria a quem António Claro se atreveu a chamar, só ele saberá com que intenções, primeiro, canário, e depois rouxinol, as quais borras, dizíamos, agora que já estamos instruídos no respectivo processo de análise, denunciam a existência de um propósito, talvez ainda impreciso, difuso, mas que apostamos a cabeça não se teria apresentado se a carta recebida estivesse assinada, não por uma mulher, mas por um homem. Quer-se dizer que se Tertuliano Máximo Afonso tivesse, por exemplo, um amigo de confiança, e tivesse combinado com ele a sinuosa estrangeirinha, Daniel Santa-Clara teria simplesmente rasgado a carta porque a consideraria um pormenor sem importância em relação ao fundo da questão, isto é, a igualdade absoluta que os aproxima e ao passo em que vamos muito provavelmente os separará. Mas, ai de nós, a carta vem assinada por uma mulher, Maria da Paz é o seu nome próprio, e António Claro, que no exercício da profissão nunca foi aprovado para desempenhar um papel de galã sedutor, nem sequer dos de nível subalterno, esforça-se o mais que pode por encontrar algumas compensações equilibradoras na vida prática, ainda que nem sempre com auspiciosos resultados, como ainda recentemente tivemos ocasião de verificar naquele episódio da empregada da produtora, convindo esclarecer, já agora, que, se não se fez antes referência a estas suas propensões amatórias, foi somente porque não vinham a propósito dos sucessos então narrados. Sendo, porém, as acções humanas, no geral, determinadas por uma concorrência de impulsos provenientes de todos os pontos cardeais e colaterais do sujeito de instintos que até agora não deixámos de ser, a par, evidentemente, de alguns factores racionais que, não obstante todas as dificuldades, ainda vamos conseguindo introduzir na teia motivadora, e, uma vez que nas ditas acções tanto entra o mais puro como o mais sórdido e tanto conta a honestidade como a prevaricação, não estaríamos usando de justiça com António Claro se não aceitássemos, ainda que com carácter provisório, a explicação que sem dúvida nos prestaria acerca do perceptível interesse que está a demonstrar pela signatária da carta, isto é, a natural curiosidade, muito humana também, de saber que tipo de relações existem entre um Tertuliano Máximo Afonso, seu autor intelectual, e, assim pensa ele, a sua autora material, essa tal Maria da Paz. Bastas ocasiões temos tido para reconhecer que perspicácia e alcance de vistas são qualidades que não faltam a António Claro, mas o certo é que nem o mais subtil dos investigadores que na ciência da criminologia deixaram rasto seria capaz de imaginar que, neste irregular assunto, e contra todas as evidências, sobretudo as documentais, o autor moral e o autor material do engano são uma e a mesma pessoa. Duas hipóteses óbvias pedem para ser consideradas, por esta ordem e subindo de menos a mais, a de que sejam simplesmente amigos e a de que sejam simplesmente amantes. António Claro inclina-se para esta última hipótese, em primeiro lugar por ser a mais conforme aos enredos sentimentais de que se limita a ser testemunha nos filmes em que costuma entrar, em segundo lugar, e por consequência, porque nela se encontra em território conhecido e com roteiros traçados. É a altura de perguntar se Helena tem conhecimento do que se está a passar aqui, se António Claro um destes dias teve a atenção de a informar da sua ida à produtora, da busca no registo e do diálogo com a inteligente e aromática empregada Maria, se lhe mostrou ou vai mostrar a carta assinada por Maria da Paz, se, enfim, como esposa, a fará participar do perigoso vaivém de pensamentos que lhe anda a cruzar a cabeça. A resposta é não, três vezes não. A carta chegou ontem de manhã, e a única preocupação que nesse momento teve António Claro foi procurar um sítio onde ninguém a pudesse descobrir. Já ali está, espalmada entre as páginas de uma História do Cinema que não tornou a despertar o interesse de Helena depois que, salteando muito, a leu nos primeiros meses do casamento. Por respeito à verdade, devemos dizer que António Claro, até agora, e apesar das inúmeras voltas dadas ao assunto, não conseguiu chegar a um traçado razoavelmente satisfatório de um plano de acção merecedor desse nome. No entanto, o privilégio de que gozamos, este de saber tudo quanto haverá de suceder até à última página deste relato, com excepção do que ainda vai ser preciso inventar no futuro, permite-nos adiantar que o actor Danjel Santa-Clara fará amanhã uma chamada telefónica para casa de Maria da Paz, nada mais que para saber se há alguém, não esquecer que estamos no verão, tempo de férias, mas não pronunciará uma palavra, da sua boca não sairá um único som, silêncio total, para que não suceda criar-se uma confusão, por parte de quem do outro lado estiver, entre a sua voz e a de Tertuliano Máximo Afonso, caso em que provavelmente não teria outro remédio, para disfarçar, que assumir a identidade dele, com imprevisíveis consequências no actual estado de coisas. Por mais inesperado que possa parecer, daqui a poucos minutos, antes que Helena regresse do emprego, e também para saber se está ausente, telefonará para casa do professor de História, mas as palavras não irão faltar desta vez, António Claro já leva o discurso preparado, quer haja quem o escute de lá, quer tenha de falar para o gravador. Eis o que dirá, eis o que está dizendo, Boas tardes, fala António Claro, imagino que não estaria à espera de uma chamada minha, realmente o contrário é que me surpreenderia, suponho que não se encontra em casa, se calhar a gozar férias na província, é natural, estamos no tempo delas, seja como for, ausente ou não, venho pedir-lhe um grande favor, o favor de me telefonar logo que regresse, sinceramente penso que ainda temos muitas coisas para dizer um ao outro, creio que nos deveríamos encontrar, não na minha casa de campo, que está francamente fora de mão, mas noutro sítio, num lugar discreto em que estejamos, a salvo de olhares curiosos que em nada nos beneficiariam, espero que esteja de acordo, as melhores horas para me telefonar são entre as dez da manhã e as seis da tarde, em qualquer dia excepto sábado e domingo, mas, tome nota, só até ao fim da próxima semana. Não acrescentou, Porque a partir daí, a Helena, assim se chama a minha mulher, não sei se já lho teria dito, estará em casa, são as suas férias, em todo o caso, apesar de eu não andar ocupado com filmagens, não iremos para fora. Seria o mesmo que confessar que ela não está ao corrente do que se passa, e, faltando a confiança, que é nula na presente circunstância, uma pessoa sensata e equilibrada não se vai pôr a devassar as intimidades da sua vida conjugal, sobretudo em um caso de tanta monta como este. António Claro, cuja agudeza de engenho está provado nada ficar a dever à de Tertuliano Máximo Afonso, percebe que os papéis que ambos até agora haviam estado desempenhando foram trocados, que a contar de agora é ele quem terá de disfarçar-se, e que aquilo que havia começado por parecer uma gratuita e tardia provocação do professor de História, enviar-lhe, como uma bofetada, a barba postiça, tivera afinal uma intenção, nascera de uma prescíência, anunciava um sentido. Ao lugar onde António Claro se encontrará com Tertuliano Máximo Afonso, seja ele qual for, é António Claro quem terá de ir disfarçado, e não Tertuliano Máximo Afonso. E assim como Tertuliano Máximo Afonso veio de barba postiça a esta rua para intentar ver António Claro e a mulher dele, assim de barba postiça irá também António Claro à rua onde reside Maria da Paz para descobrir que mulher é ela, assim a seguirá até ao banco e alguma vez mesmo à vista da casa de Tertuliano Máximo Afonso, assim irá ser a sua sombra pelo tempo necessário e até que a força compulsiva do que está escrito e do que se for escrevendo disponha de outra maneira. Depois do que ficou dito, compreende-se que António Claro tenha ido abrir a gaveta da cómoda onde se encontra a caixa com o bigode que em tempos que já lá vão adornou a cara de Daniel Santa-Clara, disfarce obviamente insuficiente para as actuais necessidades, a caixa de charutos vazia que desde há alguns dias guarda igualmente a barba postiça que António Claro vai usar. Também em tempos que já lá vão, houve na terra um rei considerado de grande sabedoria que, em um momento de inspiração filosófica fácil, afirmou, supõe-se que com a solenidade inerente ao trono, que debaixo do sol não havia nada de novo. A estas frases não convém Tomá-las nunca demasiado a sério, não se dê o caso de as continuarmos a dizer quando tudo à nossa volta já mudou e o próprio sol já não é o que era. Em compensação, não variaram muito os movimentos e os gestos das pessoas, não só desde o terceiro rei de Israel como também desde aquele dia imemorial em que um rosto humano se apercebeu pela primeira vez de si mesmo na superfície lisa de um charco e pensou, Este sou eu, Agora, onde estamos, aqui, onde somos, decorridos que foram quatro ou cinco milhões de anos, os gestos primevos continuam a repetir-se monotonamente, alheios às mudanças do sol e do mundo por ele iluminado, e se de algo ainda necessitássemos para ter a certeza de que assim é, bastar-nos-ia observar como, diante da lisa superfície do espelho da sua casa de banho, António Claro ajusta a barba que havia sido de Tertuliano Máximo Afonso com os mesmos cuidados, a mesma concentração de espírito, e talvez um temor semelhante àqueles com que ainda não há muitas semanas Tertuliano Máximo Afonso, noutra casa de banho e diante de outro espelho, havia desenhado o bigode de António Claro na sua própria cara. Menos seguros porém de si mesmos que o seu bruto antepassado comum, não caíram na ingénua tentação de dizer, Este sou eu, é que desde então os medos mudaram muito e as dúvidas ainda mais, agora, aqui, em vez de uma afirmação confiante, o único que nos sal da boca é a pergunta, Este quem é, e a ela nem mais quatro ou cinco milhões de anos conseguirão provavelmente dar resposta. António Claro despegou a barba e foi guardá-la na caixa, Helena não tardará, cansada do trabalho, ainda mais silenciosa que de costume, parecerá que se move pela casa como se ela não fosse sua, como se os móveis lhe fossem estranhos, como se as esquinas e as arestas deles não a reconhecessem e, iguais a ciosos cães de guarda, ameaçadoramente rosnassem à sua passagem. Uma certa palavra do marido talvez pudesse mudar as coisas, mas já sabemos que nem António Claro nem Daniel Santa-Clara chegarão a pronunciá-la. Talvez não queiram, talvez não possam, todas as razões do destino são humanas, unicamente humanas, e quem, fundando-se em lições do passado, prefira dizer o contrário, seja em prosa, seja em verso, não sabe do que fala, com perdão do atrevido juízo.
No dia seguinte, depois de Helena ter saído, António Claro ligou para casa de Maria da Paz. Não se sentia especialmente nervoso ou excitado, o silêncio iria ser o seu escudo protector. A voz que de lá respondeu era baça, com a fragilidade hesitante de quem está convalescente de uma incomodidade física, e, sendo embora, por todos os indícios, de uma mulher já de certa idade, não soa tão quebradiça como a de uma velha, ou uma anciã, para quem prefira os eufemismos. Não foram muitas as palavras que pronunciou, Está lá, está, quem fala, faça o favor de responder, está, está, que falta de respeito, nem em sua própria casa uma pessoa pode estar tranquila, e desligou, mas Daniel Santa-Clara, apesar de não orbitar no sistema solar dos actores de primeira grandeza, tem um excelente ouvido, para parentescos neste caso, por isso não lhe deu nenhum trabalho deduzir que a idosa senhora, se não é a mãe, é a avó, e se não é a avó, é a tia, com exclusão radical, por se encontrar francamente fora das realidades actuais, daquele gasto tópico literário da criada velha que por amor aos seus amos não se casou. Evidentemente, só por uma questão de método, falta ainda averiguar se há homens na casa, um pai, um avô, algum tio, algum irmão, mas com tal possibilidade não terá por que preocupar-se muito António Claro, uma vez que, em tudo e para tudo, para a saúde e para a doença, para a vida e para a morte, não é como Daniel Santa-Clara que irá aparecer a Maria da Paz, mas como Tertuliano Máximo Afonso, e esse, quer como amigo, quer como amante, se não lhe abriram a porta de par em par, deverá, pelo menos, desfrutar das vantagens de um estatuto relacional tacitamente reconhecido. Se a António Claro perguntássemos qual seria a sua preferência, de acordo com os fins que tem em vista, quanto à natureza da relação de Tertuliano Máximo Afonso e de Maria da Paz, se a de amantes, se a de amigos, não tenhamos dúvidas de que nos responderia que se essa relação fosse simplesmente de amizade não teria, para si, nem a metade do interesse que se fossem amantes. Como se pode ver, o plano de acção que António Claro tinha vindo a delinear não só avançou muito na localização dos objectivos como principia a ganhar a consistência de motivos que lhe faltava, embora tal consistência, salvo grave equívoco de interpretação da nossa parte, pareça ter sido conseguida graças a malévolas ideias de desforra pessoal que a situação, tal como se nos apresentava, não prometia nem de modo algum justificava. É verdade que Tertuliano Máximo Afonso desafiou frontalmente Daniel Santa-Clara quando, sem uma palavra, e isso foi talvez o pior, lhe despachou a barba postiça, mas com um pouco de senso comum as coisas poderiam ter ficado por aí, António Claro poderia ter encolhido os ombros e dizer para a mulher, O tipo é imbecil, se pensou que eu me deixaria levar pela provocação, estava muito enganado, atira-me esta porcaria para o caixote do lixo, e se cai na asneira de insistir com disparates destes, chama-se a polícia e acaba-se de uma vez a história, sejam quais forem as consequências. Infelizmente, o senso comum nem sempre aparece quando é necessário, não sendo poucas as vezes em que de uma sua ausência momentânea resultaram os maiores dramas e as catástrofes mais aterradoras. A prova de que o universo não foi tão bem pensado quanto conviria está no facto de ter o Criador mandado chamar sol à estrela que nos ilumina. Levasse o astro-rei o nome de Senso Comum e já veríamos como andaria hoje esclarecido o espírito humano, e isto tanto no que se refere ao diurno como ao nocturno, porque, não há quem o ignore, a luz que dizemos da lua, luz da lua não é, mas sempre, e unicamente, luz do sol. É caso para pensar que se tantas foram as cosmogonias criadas desde o nascimento da fala e da palavra foi porque todas e] as, uma por uma, falharam miseravelmente, regularidade essa que não augura nada de bom à que, com algumas variações, nos vem consensualmente regendo… Voltemos, porém, a António Claro. Está visto que ele quer, e o mais depressa possível, conhecer Maria da Paz, por más razões meteu-se-lhe a obsessiva vindicação na cabeça, e, como decerto já se terá percebido, não há nem no céu nem na terra forças que daí o consigam arredar. Não poderá, evidentemente, ir postar-se à porta do prédio onde ela vive e perguntar a cada mulher que venha entrando ou saindo, É você a Maria da Paz, também não poderá confiar-se às mãos dos fortuitos acasos da sorte, por exemplo, ir passear uma, duas, três vezes à rua em que ela mora, e à terceira vez dizer à primeira mulher que lhe aparecer pela frente, Você tem cara de ser Maria da Paz, não pode imaginar o enorme prazer que sinto por finalmente a conhecer, sou actor de cinema e chamo-me Daniel Santa-Clara, permita-me que a convide a tomar um café, é só atravessar a rua, estou convencido de que iremos ter muito para dizer um ao outro, a barba, ali sim, a barba, felicito-a por ser tão arguta e não se deixar enganar, mas rogo-lhe que não se assuste, esteja tranquila, quando nos encontrarmos num sítio discreto, um sítio em que eu a possa tirar sem perigo, verá como diante de si vai aparecer uma pessoa a quem conhece bem, creio até que intimamente, e a quem eu, sem a mínima inveja, felicitaria agora mesmo se aqui estivesse, o nosso Tertuliano Máximo Afonso. A pobre senhora ficaria terrivelmente confundida perante a prodigiosa transmutação, inexplicável a todos os títulos nesta altura da narrativa, é indispensável ter sempre presente a ideia condutora fundamental de que as coisas deverão aguardar o seu momento com paciência, não empurrar nem estender o braço por cima do ombro das que chegaram primeiro, não gritar, Aqui estou eu, ainda que não seja de desprezar totalmente a hipótese de que, se uma vez por outra, as deixássemos passar à frente, talvez certos males que se adivinham perdessem parte da virulência, ou se desvanecessem como fumo no ar, por um motivo tão banal como terem perdido a sua vez, Este derramar de considerações e análises, este espraiar complacente de reflexões e derivados em que ultimamente nos temos demorado, não deverão fazer perder de vista a prosaica realidade de que, no fundo, no fundo, o que António Claro quer saber é se Maria da Paz vai valer a pena, se vai realmente valer o trabalho que lhe está a dar. Fosse ela uma mulher desgraciosa, um pau-de-virar-tripas ou, pelo contrário, sofresse de uma excessiva abundância de volumes, o que, tanto num caso como no outro, apressemo-nos já a dizer, não constituiria obstáculo de maior se o amor tivesse posto o resto, e aí veríamos Daniel Santa-Clara a voltar rapidamente para trás, como tantas vezes terá acontecido em tempos passados, naqueles encontros que se tratavam por carta, as estratégias ridículas, as identificações ingénuas, eu levarei uma sombrinha azul na mão direita, eu levarei uma flor branca na botoeira, e finalmente nem sombrinha nem flor, talvez um deles esperando em vão no lugar combinado, ou então nem um nem outro, a flor atirada precipitadamente para a valeta, a sombrinha a esconder um rosto que afinal não quis ser visto. Que vá, porém, Daniel Santa-Clara tranquilo, Maria da Paz é uma mulher jovem, bonita, elegante, bem torneada no corpo e bem feita no carácter, atributo este, em todo o caso, não determinante na matéria em exame, uma vez que a balança em que antes se decidia a sorte da sombrinha e o destino da flor não é hoje especialmente sensível a ponderações dessa natureza. No entanto, António Claro tem ainda uma questão importante para resolver se não quiser passar horas e horas pespegado no passeio em frente da casa de Maria da Paz à espera de que ela apareça, com as fatais e perigosas consequências resultantes da natural desconfiança dos vizinhos, que não levariam muito tempo a telefonar à polícia avisando da presença suspeita de um homem de barbas que com certeza não veio aqui para segurar o prédio com as costas. Há que recorrer, por conseguinte, ao raciocínio e à lógica. O mais provável, evidentemente, é que Maria da Paz trabalhe, que tenha um emprego regular e horas certas de entrar e sair. Como Helena. António Claro não quer pensar em Helena, a si mesmo repete que uma coisa não tem nada que ver com a outra, que o que se passar com Maria da Paz não irá pôr em risco o seu casamento, até se lhe poderia chamar um mero capricho, desses a que se diz serem facilmente sujeitos os homens, se as palavras mais exactas, no caso presente, não fossem antes as de desforra, desforço, despique, desagravo, desafronta, represália, rancor, vindicta, se não mesmo a pior de todas, ódio. Meu Deus, que exagero, o que aí vai, dirão as pessoas felizes que nunca se viram diante de uma cópia de si mesmas, que nunca receberam a insolente desfeita de uma barba postiça dentro de uma caixa e sem, ao menos, um bilhete com uma palavra simpática ou bem-humorada que amenizasse o choque. O que neste momento acaba de passar pela cabeça de António Claro vai mostrar até que ponto, contra o mais elementar bom senso, uma mente dominada por sentimentos inferiores é capaz de obrigar a própria consciência a pactuar com eles, forçando-a, ardilosamente, a por as piores acções em harmonia com as melhores razões e a justificá-las umas pelas outras, numa espécie de jogo cruzado em que sempre o mesmo terá de ganhar ou de perder. O que António Claro acabou de pensar, por incrível que nos pareça, foi que levar a amante de Tertuliano Máximo Afonso para a cama à falsa fé, além de responder à bofetada com uma bofetada mais sonora, será, imagine-se o absurdo propósito, a mais drástica maneira de desagravar a dignidade ofendida de Helena, sua mulher. Ainda que lho rogássemos com todo o empenho, António Claro não nos saberia explicar que ofensas tão singulares teriam sido essas que só uma nova e não menos chocante ofensa poderia supostamente desagravar. Ele tem esta ideia fixa, não há nada a fazer por agora. Já não é pouco que consiga ainda tornar ao raciocínio interrompido, aquele em que se havia lembrado de Helena como similar a Maria da Paz nas suas obrigações de empregadas, aquilo do trabalho regular e das entradas e saídas a horas certas. Em lugar de andar rua acima, rua abaixo, na expectativa de um mais que improvável encontro ocasional, o que deverá fazer é ir para lá muito cedo, colocar-se num sítio onde não seja notado, esperar que Maria da Paz saia e depois segui-la até ao emprego. Nada mais fácil, dir-se-á, e, contudo, que enorme engano. A primeira dificuldade está em ignorar ele se Maria da Paz, ao sair de casa, virará à esquerda ou virará à direita, e portanto até que ponto a sua posição de vigilante, em relação quer à direcção por ela escolhida, quer ao lugar onde ele próprio deixará o carro, virá a complicar ou a facilitar a tarefa do seguimento, sem esquecer ainda, e aqui se apresenta o segundo e não menor embaraço, a possibilidade de que ela tenha o seu próprio carro estacionado à porta, não lhe dando tempo a ele para correr ao seu e meter-se no trânsito sem a perder de vista. O mais provável será que falhe em tudo no primeiro dia, que volte no segundo para falhar uma e acertar noutra, e confiar que o patrono dos detectives, impressionado pela pertinácia deste, tome a seu cuidado fazer do dia terceiro uma perfeita e definitiva vitória na arte de seguir um rasto. António Claro terá ainda um problema para resolver, é certo que relativamente insignificante em comparação com as ingentes dificuldades já solucionadas, mas que requer um tacto e uma naturalidade a toda a prova no seu tratamento. Excepto quando as obrigações do trabalho, filmagens matutinas ou em lugar afastado da cidade, lhe impõem que se arranque cedo ao conforto dos lençóis, Daniel Santa-Clara, como já se terá observado, é propenso a deixar-se ficar no choco da cama uma ou duas horas depois de Helena sair para o emprego. Terá portanto de inventar uma boa explicação para o facto insólito de se propor madrugar, não um dia, mas dois, e talvez mesmo três, quando, como sabemos, se encontra num período de pousio profissional, à espera do sinal de acção para O Julgamento do Ladrão Simpático, em que interpretará o papel de um advogado auxiliar. Dizer a Helena que tem uma reunião com os produtores não seria de todo uma má. ideia se as averiguações sobre Maria da Paz ficassem concluídas em um só dia, mas a probabilidade de que tal sorte suceda é, vistas as circunstâncias, mais do que remota. Por outro lado, os dias precisos às suas indagações não terão de ser necessariamente sucessivos, nem isso seria conveniente, pensando bem, para o fim que tem em vista, porquanto o aparecimento de um homem de barbas três dias a fio na rua onde mora Maria da Paz, além de despertar suspeitas e alarme na vizinhança, como deixámos dito antes, poderia ocasionar o renascimento de pesadelos infantis historicamente fora de tempo, portanto traumáticos a dobrar, quando tão certos estávamos de que o advento da televisão havia limpado da imaginação das crianças modernas, e de uma vez para sempre, a ameaça terrível que o homem das barbas representou para gerações e gerações de infantes inocentes. Posto a pensar nesta via, António Claro chegou rapidamente à conclusão de que não tinha qualquer sentido estar a preocupar-se com hipotéticos segundos e terceiros dias ainda antes de saber o que o primeiro teria para lhe oferecer. Dirá portanto a Helena que amanhã vai participar numa reunião de trabalho na produtora, Terei de lá estar o mais tardar às oito, Tão cedo, estranhará ela, sem demasiada ênfase, Só podia ser nesta hora, o realizador sai para o aeroporto ao meio-dia, Muito bem, disse ela, e foi-se meter na cozinha, fechando a porta, para decidir o que faria para o jantar. Tinha tempo de sobra, mas queria estar sozinha.
Dissera no outro dia que a sua cama era o seu castelo,, também poderia ter dito que a cozinha era o seu baluarte. ágil e silencioso como o ladrão simpático, António Claro foi abrir a gaveta do móvel onde estava guardada a caixa dos postiços, retirou a barba e, silencioso e ágil, escondeu-a debaixo de um dos coxins do sofá grande da sala, no lado onde quase nunca ninguém se senta. Para não se amachucar demasiado, pensou.
Poucos minutos tinham passado das oito horas da manhã seguinte quando arrumou o carro quase em frente da porta por onde esperava ver sair Maria da Paz, do outro lado da rua. Parecia que o patrono dos detectives tinha ficado ali toda a noite a guardar-lhe o lugar. A maioria dos estabelecimentos de comércio ainda estão fechados, um ou outro para férias do pessoal conforme os papéis afixados explicam, vêem-se poucas pessoas, uma fila delas, mais curta que longa, espera o autocarro. António Claro não tardou a perceber que as suas laboriosas congeminações sobre como e onde deveria colocar-se para espiar Maria da Paz tinham sido não só uma perda de tempo como um gasto inútil de energia mental. Dentro do carro, a ler o jornal, é onde menos se arrisca a provocar as atenções, parecerá que está à espera de alguém, e esta é uma pura verdade, mas não se pode dizer em voz alta. Do prédio sob vigilância, a espaços, saíram umas quantas pessoas, homens quase todas, mas das mulheres nenhuma que correspondesse à imagem que António Claro, sem se aperceber, havia estado formando na sua mente com a ajuda de algumas figuras femininas dos filmes em que participou. Eram oito e meia em ponto quando a porta do prédio se abriu e uma mulher nova e bonita, agradável de ver dos pés à cabeça, saiu acompanhada por uma senhora de idade. São elas, pensou. Largou o jornal, ligou o motor e esperou, inquieto como um cavalo metido na bala, à espera do disparo de partida. Devagar, as duas mulheres seguiram pelo lado direito do passeio, a mais nova dando o braço à mais velha, não há aqui mais que saber, são mãe e filha, e provavelmente vivem sozinhas, A velha é a que respondeu ontem ao telefone, pela maneira como caminha deve ter estado doente, e a outra, a outra aposto eu a cabeça em como é a célebre Maria da Paz, que não está nada mal de físico, não senhor, o professor de História tem bom gosto. As duas já lá iam adiante, e António Claro não sabia que fazer. Podia segui-las e voltar para trás quando entrassem no carro, mas isso seria arriscar-se a perdê-las. Que faço, fico, não fico, aonde irão aquelas gajas, a culpa da grosseira expressão teve-a o nervosismo, não é costume de António Claro usar este género de linguagem, saiu-lhe sem querer. Disposto a tudo, saltou do carro e, alargando o passo, foi atrás das duas mulheres. Quando as teve à distância de uns trinta metros abrandou e procurou acertar por elas o andamento, Para evitar aproximar-se demasiado, tão devagar a mãe de Maria da Paz caminhava, teve de parar de vez em quando e fingir que olhava as montras das lojas. Surpreendeu-se a notar que a lentidão o começava a irritar, como se nela adivinhasse um obstáculo a acções futuras que, embora ainda não completamente definidas na sua cabeça, não poderiam, em qualquer caso, tolerar o mínimo estorvo. A barba postiça fazia-lhe comichão, o caminho parecia não acabar nunca mais, e a verdade é que não tinha andado assim tanto, ao todo uns trezentos metros, a próxima esquina foi o fim da jornada, Maria da Paz ajuda a mãe a subir a escada da igreja, despede-se dela com um beijo, e agora volta para trás pelo mesmo passeio, com o passo lesto que têm algumas mulheres, que andam como se dançassem. António Claro atravessou para o outro lado da rua, parou uma vez mais diante de uma montra em cujo vidro daí a pouco passaria a figura esbelta de Maria da Paz. Agora toda a atenção será pouca, uma indecisão poderá deitar tudo a perder, se ela entra num destes carros e ele não consegue chegar a tempo ao seu, adeus minhas encomendas, até ao segundo dia.
O que António Claro não sabe é que Maria da Paz não tem automóvel, que vai tranquilamente esperar o autocarro que a levará até perto do banco onde trabalha, afinal, o compêndio do perfeito detective, actualizado no que respeita a tecnologias de ponta, havia-se esquecido de que, dos cinco milhões de habitantes da cidade, alguns deveriam ter ficado para trás na aquisição de meios de locomoção próprios. A fila de espera tinha aumentado pouco, Maria da Paz entrou nela, e António Claro, para não ficar demasiado perto, deixou que lhe passassem à frente três pessoas, é certo que a barba postiça lhe tapa a cara, mas os olhos não, nem o nariz, nem as sobrancelhas, nem a testa, nem o cabelo, nem as orelhas. Alguém formado em doutrinas esotéricas aproveitaria para acrescentar a alma à lista do que uma barba não tapa, mas sobre esse ponto faremos silêncio, por nossa causa não se agravará um debate inaugurado mais ou menos no princípio dos tempos e que tão cedo não acabará. O autocarro chegou, Maria da Paz ainda conseguiu encontrar um lugar livre, António Claro irá de pé na coxia, lá para trás. Foi melhor assim, pensou, viajaremos juntos.
O que Tertuliano Máximo Afonso contou à mãe é que havia conhecido uma pessoa, um homem, cujas parecenças consigo chegavam a um tal ponto que quem os não conhecesse perfeitamente de certeza os confundiria, que se tinha encontrado com ele e que se havia arrependido de ter dado esse passo, porque ver-se repetido, corri pequenas diferenças, em um ou dois autênticos irmãos gémeos ainda vá que não vá, uma vez que é tudo a mesma família, ao passo que estar na frente de um estranho nunca visto antes e por um instante sentir-se a duvidar de quem era um e de quem era o outro, Estou convencido de que a mãe, pelo menos à primeira vista, não seria capaz de adivinhar qual dos dois era o seu filho, e se acertasse seria um puro acaso, Nem que me trouxessem aqui dez iguais a ti, vestidos da mesma maneira, e tu metido no meio deles, para o meu filho é que apontaria logo, o instinto materno não se engana, Não existe nada no mundo a que se possa chamar com propriedade instinto materno, se nos tivessem separado quando eu nasci e vinte anos mais tarde viéssemos a encontrar-nos, tem a certeza de que seria capaz de me reconhecer, Reconhecer, não digo tanto, porque não é o mesmo a carinha enrugada de uma criança acabada de nascer e o rosto de um homem de vinte anos, mas aposto o que quiseres que algo dentro de mim me faria olhar-te duas vezes, E à terceira, se calhar, desviaria os olhos a outro lado, É possível que sim, mas a partir desse momento talvez com uma dor no coração, E eu, olharia eu para si duas vezes, perguntou Tertuliano Máximo Afonso, O mais certo é que não, disse a mãe, mas isso é porque os filhos são todos uns ingratos. Riram-se ambos, e ela perguntou, E essa era a causa de andares tão preocupado, Sim, o choque foi muito forte, não posso acreditar que tivesse sucedido alguma vez outro caso semelhante, suponho que a própria genética o contrariaria, nas primeiras noites cheguei a ter pesadelos, era como uma obsessão, E agora, em que pé estão as coisas, Felizmente, o senso comum veio dar uma ajuda, fez-nos perceber que se tínhamos vivido até àquela altura ignorando cada um que o outro existia, com muito maior razão nos devíamos manter afastados depois de nos termos conhecido, repare que nem poderíamos estar juntos, não poderíamos ser amigos, Mais provavelmente inimigos, Houve uma altura em que cheguei a pensar que isso pudesse vir a suceder, mas os dias foram passando, os rios voltaram ao leito, o que ainda resta de tudo aquilo é como a recordação de um sonho mau que o tempo irá extinguindo pouco a pouco na memória, Esperemos que neste caso assim seja. Tomarctus estava deitado aos pés de dona Carolina, com o pescoço estendido e a cabeça descansando sobre as patas cruzadas, como se dormisse. Tertuliano Máximo Afonso olhou-o durante uns instantes e disse, Pergunto-me que faria este animal se se encontrasse diante do tal homem e de mim, em qual de nós dois veria ele o amo, Conhecer-te-ia pelo cheiro, Isso é supor que não cheiramos ao mesmo, e essa certeza eu não a tenho, Alguma diferença deverá haver, É possível, As pessoas poderão ser muito parecidas de cara, mas não de corpo, imagino que vocês não se foram pôr nus diante de um espelho, a comparar tudo, até às unhas dos pés, Evidentemente que não, minha mãe, respondeu rápido Tertuliano Máximo Afonso, e em rigor não era mentira, que diante de um espelho, realmente diante de um espelho, nunca havia estado com António Claro. O cão abriu os olhos, tomou a fechá-los, abriu-os outra vez, devia ter pensado que eram horas de se levantar, e ir ver ao pátio se os gerânios e o alecrim teriam crescido muito desde a última vez. Espreguiçou-se, estirou primeiro as patas dianteiras e depois as de trás, esticando a espinha o mais que podia, e caminhou para a porta. Aonde vais, Tomarctus, perguntou aquele dono que só de tempos a tempos aparece. O cão parou no limiar, virou a cabeça à espera de uma ordem que se percebesse, e, como ela não veio, saiu. E a Maria da Paz, disseste-lhe o que estava a suceder, perguntou dona Carolina, Não, não a iria sobrecarregar com preocupações que a mim já me custavam tanto a aguentar, Compreendo isso, mas também compreenderia se lho tivesses dito, Considerei que era melhor não lhe falar do caso, E agora que já passou tudo, não lho dirás, Não vale a pena, um dia em que ela me viu mais inquieto prometi-lhe que sim, que lhe diria o que se passava comigo, que naquele momento não podia, mas que um dia lhe contaria tudo, E pelos vistos esse dia não vai chegar, É preferível deixar as coisas como estão, Há situações em que o pior que se pode fazer é deixar as coisas como estão, só serve para lhes dar mais força, Também poderá servir para que se cansem e nos deixem tranquilos, Se gostasses da Maria da Paz, contar-lhe-ias, Eu gosto dela, Gostarás, mas não o bastante, se dormes na mesma cama com uma mulher que te ama e não te abres com ela, pergunto-te que estás a fazer ali, Defende-a como se a conhecesse, Nunca a vi, mas conheço-a, Só o que soube por mim, e não pode ter sido muito, As duas cartas em que me falaste dela, alguns comentários ao telefone, não precisei de mais, Para saber que ela era a mulher que me convinha, Também o poderia ter dito por essas palavras se igualmente pudesse dizer de ti que eras o homem que lhe convinha a ela, E não crê que o fosse, ou que o seja, Talvez não, A solução melhor, portanto, 'é a mais simples, acabar com a relação que temos mantido, Es tu quem o diz, não eu, Há que ser lógicos, minha mãe, se ela me convém, mas eu a ela não, que sentido tem desejar tanto que nos casemos, Para que ela ainda lá estivesse quando tu despertasses, Não ando a dormir, não sou sonâmbulo, tenho a minha vida, o meu trabalho, Há uma parte de ti que dorme desde que nasceste, e o meu medo é que um dia destes sejas obrigado a acordar violentamente, O que a mãe tem é vocação para Cassandra, Que é isso, A pergunta não deve ser que é isso, mas quem é essa, Então ensina-me, sempre ouvi dizer que ensinar quem não sabe é uma obra de misericórdia, A tal Cassada era filha do rei de Tróia, um que se chamava Príamo, e quando os gregos foram pôr o cavalo de madeira às portas da cidade, ela começou a gritar que a cidade seria destruída se o cavalo fosse trazido para dentro, vem tudo explicado em pormenor na Ilíada do Homero, a Ilíada é um poema, Já ouvi falar, e que aconteceu depois, Os troianos acharam que ela estava louca e não fizeram caso dos vaticínios, E depois, Depois a cidade foi assaltada, saqueada, reduzida a cinzas, Portanto essa Cassada que tu dizes tinha razão, A História ensinou-me que Cassada tem sempre razão, E tu declaraste que eu tenho vocação para Cassada, Disse-o e repito, com todo o amor de um filho que tem uma mãe bruxa, Logo, tu és um daqueles troianos que não acreditaram, e por isso Tróia foi queimada, Neste caso não há nenhuma Tróia para queimar, Quantas Tróias com outros nomes e noutros lugares foram queimadas depois dessa, Inúmeras, Não queiras tu então ser mais uma, Não tenho nenhum cavalo de madeira à porta de casa, E se o tiveres, escuta a voz desta Cassada velha, não o deixes entrar, Estarei atento aos relinchos, Unicamente te peço que não voltes a encontrar-te com esse homem, promete-mo, Prometo. O cão Tomaretus achou que estava na altura de regressar, tinha andado a farejar o alecrim e os gerânios do pátio, mas não era dali que vinha agora. A sua última passagem fora pelo quarto de Tertuliano Máximo Afonso, viu em cima da cama a mala aberta, e já levava em cima bastantes anos de cão para saber o que aquilo significava, por isso desta vez não se foi deitar aos pés da dona que nunca dali sai, mas sim de estoutro que está a ponto de se ir embora.
Depois de todas as dúvidas que havia tido sobre a forma mais cautelosa de informar a mãe do espinhoso caso do gémeo absoluto, ou, para usar estas fortes e populares palavras, do sósia cuspido e escarrado, Tertuliano Máximo Afonso ia agora razoavelmente convencido de que conseguira rodear a dificuldade sem deixar atrás de si demasiadas preocupações. Não tinha podido evitar que a questão de Maria da Paz viesse uma vez mais à superfície, mas surpreendia-se a recordar algo que havia sucedido durante a conversa, na altura em que dissera que o melhor era acabar de uma vez com a relação, e foi ter experimentado nesse mesmo instante, mal tinha acabado de pronunciar a sentença aparentemente irremissível, uma espécie de lassidão interior, um anseio meio consciente de abdicação, como se uma voz dentro da sua cabeça trabalhasse para lhe fazer ver que talvez a sua obstinação não fosse outra coisa que o último reduto detrás do qual ainda tentava abafar a sua vontade de içar a bandeira branca das rendições incondicionais. Se assim é, cogitou, tenho a obrigação estrita de reflectir a sério no assunto, analisar temores e indecisões que o mais provável é que sejam herança do outro casamento, e sobretudo resolver de uma vez, para meu próprio governo, que vem a ser isso de gostar de uma pessoa ao ponto de querer viver com ela, porque a verdade manda-me reconhecer que nem em tal pensei quando me casei, e a mesma verdade, já agora, manda que confesse que, no fundo, o que me assusta é a possibilidade de falhar outra vez. Estes louváveis propósitos entretiveram a viagem de Tertuliano Máximo Afonso, alternando com imagens fugazes de António Claro que o pensamento, curiosamente, se negava a representar na semelhança total que lhe correspondia, como se, contra a própria evidência dos factos, se recusasse a admitir-lhe a existência. Recordava também fragmentos das conversas que havia tido com ele, sobretudo a da casa no campo, mas com uma impressão singular de distância e alheamento, como se nada daquilo tivesse realmente que ver consigo, como se se tratasse de uma história em tempos lida num livro e da qual não restassem mais que algumas páginas soltas. Prometeu à mãe que nunca mais se encontrará com António Claro e assim será, ninguém o poderá acusar amanhã de haver dado um só passo nesse sentido. A vida vai mudar. Telefonará a Maria da Paz assim que chegar a casa, Devia ter ligado lá de cima, pensou, foi uma falta de atenção que não tem desculpa, nem que fosse, ao menos, para saber do estado de saúde da mãe, era o mínimo, tanto mais que pode bem acontecer que ela venha a ser minha sogra. Sorriu Tertuliano Máximo Afonso a uma perspectiva que vinte e quatro horas antes lhe teria feito crispar os nervos, está visto que as férias lhe fizeram bem ao corpo e ao espírito, sobretudo aclararam-lhe as ideias, é outro homem. Chegou ao fim da tarde, arrumou o carro em frente da porta, e ágil, flexível, bem-disposto, como se não tivesse acabado de fazer, sem parar uma só vez, mais de quatrocentos quilómetros, subiu a escada com a ligeireza de um adolescente, nem dava pelo peso de uma mala que, como é natural, carregava mais à volta que à ida, e pouco lhe faltou para entrar em casa em passo de dança. De acordo com as convenções tradicionais do género literário a que foi dado o nome de romance e que assim terá de continuar a ser chamado enquanto não se inventar uma designação mais conforme às suas actuais configurações, esta alegre descrição, organizada numa sequência simples de dados narrativos em que, de modo deliberado, não se permitiu a introdução de um único elemento de teor negativo, estaria ali, arteiramente, a preparar uma operação de contraste que, dependendo dos objectivos do ficcionista, tanto poderia ser dramática como brutal ou aterradora, por exemplo, uma pessoa assassinada no chão e ensopada no seu próprio sangue, uma reunião consistorial de almas do outro mundo, um enxame de abelhões furiosos de cio que confundissem um professor de História com a abelha-mestra, ou, pior ainda, tudo isto reunido em um só pesadelo, uma vez que, como se tem demonstrado à saciedade, não existem limites para a imaginação dos romancistas ocidentais, pelo menos desde o antes citado Homero, que, pensando bem, foi o primeiro de todos eles. A casa de Tertuliano Máximo Afonso abriu-lhe os braços como uma outra mãe, com a voz do ar murmurou, Vem, meu filho, aqui me encontras à tua espera, eu sou o teu castelo e o teu baluarte, contra mim não vale nenhum poder, porque sou tua mesmo quando estás ausente, e mesmo destruída serei sempre o lugar que foi teu. Tertuliano Máximo Afonso pousou a mala no chão e ligou as luzes do tecto. A sala estava arrumada, sobre os tampos dos móveis não havia um grão de pó, é uma grande e solene verdade que os homens, mesmo vivendo sozinhos, nunca conseguem separar-se inteiramente das mulheres, e agora não estávamos a pensar em Maria da Paz, que por suas pessoais e duvidosas razões apesar de tudo o confirmaria, mas à vizinha do andar de cima, que ontem passou aqui toda a manhã a limpar, com tanto cuidado e atenção como se a casa fosse sua, ou mais ainda, provavelmente, que se o fosse. O gravador de chamadas tem a luz acesa, Tertuliano Máximo Afonso senta-se para escutar. A primeira que lhe saltou lá de dentro foi a do director da escola a desejar-lhe umas boas férias e a querer saber se a redacção da proposta para o ministério ia avançando, Sem prejuízo, escusado seria dizer, do seu legítimo direito ao descanso depois de um ano lectivo tão trabalhoso, a segunda fez ouvir a voz pachorrenta e paternal do colega de Matemática, nada de importante, apenas para perguntar como andava ele a sentir-se do marasmo e sugerir que um largo passeio pelo país, sem nenhuma pressa e em boa companhia, talvez fosse a melhor terapêutica para os seus padecimentos, a terceira chamada era a que António Claro deixou no outro dia, a que começava assim, Boas tardes, fala António Claro, calculo que não estaria à espera de uma chamada minha, bastou que a voz dele tivesse ressoado naquela até aí tranquila sala para se tornar evidente que as convenções tradicionais do romance atrás citadas não são, afinal de contas, um mero e desgastado recurso de narradores ocasionalmente minguados de imaginação, mas sim uma resultante literária do majestoso equilíbrio cósmico, uma vez que o universo, sendo embora, desde as suas origens, um sistema falto de qualquer tipo de inteligência organizativa, dispôs em todo o caso de tempo mais que suficiente para ir aprendendo com a infinita multiplicação das suas próprias experiências, de modo a culminar, como o vem demonstrando o incessante espectáculo da vida, em uma infalível maquinaria de compensações que só necessitará, também ela, de um pouco mais de tempo para mostrar que qualquer pequeno atraso no funcionamento das suas engrenagens não tem a mínima importância para o essencial, tanto faz que haja que esperar um minuto ou uma hora, como um ano ou um século. Recordemos a excelente disposição com que o nosso Tertuliano Máximo Afonso entrou em casa, recordemos, uma vez mais, que, de acordo com as convenções tradicionais do romance, reforçadas pela efectiva existência da maquinaria de compensação universal a que acabámos de fazer fundamentada referência, deveria ter dado de caras com algo que no mesmo instante lhe destruísse a alegria e o afundasse nas vascas do desespero, da aflição, do medo, de tudo o que sabemos que é possível encontrar ao virar uma esquina ou ao meter a chave a uma porta. Os monstruosos terrores que então descrevemos não passaram de exemplos simples, poderiam ter sido aqueles, poderiam ter sido piores, e afinal fiem uns nem outros, a casa abriu maternalmente os braços ao seu proprietário, disse-lhe umas quantas palavras bonitas, das que todas as casas sabem dizer, mas que na maior parte das vezes os seus moradores não aprenderam a ouvir, enfim, para não ter de usar mais palavras, parecia que nada poderia estragar o regresso feliz de Tertuliano Máximo Afonso ao lar. Puro engano, pura confusão, ilusão pura. As rodagens da maquinaria cósmica tinham-se transportado para os intestinos electrónicos do gravador de chamadas, à espera de que um dedo viesse premir o botão que abriria a porta da jaula ao último e mais temível dos monstros, não já o cadáver ensanguentado no chão, não já o inconsistente consistório de fantasmas, não já a nuvem zumbidora e libidinosa dos zângões, mas a voz estudada e insinuadora de António Claro, estes seus instantes rogos, que, por favor, nos tornemos a ver, que, por favor, temos muitas coisas para falar um com o outro, quando nós, os que deste lado estamos, somos boas testemunhas de que ainda ontem, por estas precisas horas, Tertuliano Máximo Afonso estava a prometer à mãe que nunca mais voltaria a ter trato com aquele homem, fosse para se encontrar com ele em pessoa, fosse sequer para lhe telefonar a dizer que o terminado, terminado estava, e que o deixasse em paz e sossego, por favor. Aplaudamos energicamente a decisão, porém, e para isso bastará que nos coloquemos no lugar dele, compadeçamo-nos por um momento do estado de nervos em que a chamada deixou o pobre Tertuliano Máximo Afonso, a testa outra vez banhada em suor, as mãos outra vez trémulas, a sensação até agora não conhecida de que o tecto lhe vai cair em cima da cabeça de um momento para o outro. A luz do gravador permanece acesa, sinal de que ainda há lá dentro uma ou mais chamadas. Sob a violenta impressão do choque que a mensagem de António Claro lhe tinha causado, Tertuliano Máximo Afonso havia feito deter-se o mecanismo de leitura e agora treme de ouvir o resto, não vá aparecer-lhe aquela mesma voz, quem sabe se a marcar, desprezando a sua concordância, o dia, a hora e o local do novo encontro. Levantou-se da cadeira e do abatimento em que havia caído, dirigiu-se ao quarto para trocar de roupa, mas ali mudou de ideias, do que mais está a precisar é de um duche de água fria que o sacuda e revigore, que arraste pelo escoadouro abaixo as nuvens negras que lhe toldam a cabeça e lhe têm embotado o raciocínio ao ponto de nem sequer lhe haver ocorrido antes que o mais provável é que a chamada, ou ao menos uma delas, se outras há, seja de Maria da Paz. Acaba de lhe ocorrer agora mesmo, e foi como se uma bênção retardada tivesse finalmente descido do chuveiro, como se um outro banho lustral, não o das três mulheres nuas na varanda, mas o deste homem só e fechado na precária segurança da sua casa, compassivamente, no mesmo escorrer da água e da espuma, o libertasse das sujidades do corpo e dos temores da alma. Pensou em Maria da Paz com uma espécie de nostálgica serenidade, como teria pensado no porto donde partiu um barco que andasse navegando ao redor do mundo. Lavado e enxuto, refrescado e vestido com roupa limpa, voltou à sala para ouvir o resto das mensagens. Começou por suprimir as do director da escola e do professor de Matemática, que não valia a pena conservar, de testa franzida escutou novamente a de António Claro, que fez desaparecer com um golpe seco na tecla respectiva, e dispôs-se a prestar atenção ao que viria a seguir. A quarta chamada foi de alguém que não quis falar a ligação durou a eternidade de trinta segundos, mas do outro lado não saiu nem um sussurro, nenhuma música se percebeu ao fundo, nem sequer uma levíssima respiração se deixou captar por inadvertência, muito menos de propósito resfolegada, como é de uso no cinema quando se quer fazer subir até à angústia a tensão dramática. Não me digam que é outra vez aquele tipo, pensava Tertuliano Máximo Afonso, furioso, enquanto esperava que desligassem. Não era ele, não poderia ser, quem antes havia deixado um discurso tão completo não iria com certeza fazer outra chamada para ficar calado. A quinta e última ligação foi de Maria da Paz, Sou eu, disse ela, como se no mundo não existisse nenhuma outra pessoa que pudesse dizer, Sou eu, sabendo de antemão que seria reconhecida, Imagino que estarás a chegar por estes dias, espero que tenhas descansado bastante, ainda pensei que me telefonarias de casa da tua mãe, mas já devia saber que contigo não se pode contar para estas coisas, enfim, não importa, ficam-te aí as palavras de recebimento de uma amiga, fala-me quando te apetecer, quando tiveres vontade, mas não como quem se sentiu obrigado a fazê-lo, isso seria mau para ti e para mim, às vezes ponho-me a imaginar o maravilhoso que seria se me telefonasses apenas porque sim, simplesmente como alguém a quem lhe deu a sede e vai beber um copo de água, mas isso já sei que seria pedir-te demasiado, nunca finjas comigo uma sede que não sintas, desculpa, o que eu te vinha dizer não era isto, só desejar-te que regresses a casa com saúde, ah, a propósito de saúde, a minha mãe está muito melhor, já sai para ir à missa e a fazer as suas compras, em poucos dias estará tão bem como antes, um beijo, outro, ainda outro. Tertuliano Máximo Afonso fez correr a cassete para trás e repetiu a audição, primeiro com o sorriso convencido de quem escuta louvores e lisonjas de cujo merecimento não parece ter dúvidas, a pouco e pouco a expressão foi-se-lhe tornando séria, logo reflexiva, logo inquieta, tinha-lhe vindo à lembrança o que a mãe dissera, Oxalá ela ainda lá esteja quando tu acordares, e estas palavras ressoavam agora na sua mente como o último aviso de uma Cassada já cansada de não ser ouvida. Olhou o relógio, Maria da Paz deveria ter voltado do banco. Deu-lhe ainda um quarto de hora, depois ligou. Quem fala, perguntou ela, Sou eu, respondeu ele, Até que enfim, Cheguei ainda não há uma hora, foi só tomar um banho e fazer tempo para ter a certeza de te apanhar em casa, Ouviste o recado que te deixei, Ouvi, Tenho a impressão de que disse coisas que deveria haver calado, Como por exemplo, Já não sou capaz de as recordar exactamente, mas foi como se estivesse a pedir-te pela milésima vez que repares em mim, juro sempre que não voltará a suceder e volto sempre a cair na mesma humilhação, Não digas essa palavra, não é justa para ti, e também não o é para mim, apesar de tudo,, Chama-lhe então o que queiras, o que claramente vejo é que esta situação não poderá continuar, ou então acabarei por perder o pouco respeito por mim mesma que ainda conservo, Continuará, O quê, estás a querer dizer-me que os nossos desencontros vão continuar como até aqui, que não terá fim este meu miserável falar para uma parede que nem ao menos me devolve os ecos, Digo-te que te amo, Já te ouvi outras vezes essas palavras, sobretudo na cama, antes, durante, mas nunca depois, E contudo é verdade, amo-te. Por favor, por favor, não me atormentes mais, Ouve-me, Estou a ouvir-te, nunca quis tanto alguma coisa como ouvir-te, A nossa vida vai mudar, Não acredito, Acredita, tens de acreditar, E tu tem cuidado com o que estás a dizer-me, não me dês hoje esperanças que depois não possas ou não queiras cumprir, Nem tu nem eu sabemos o que nos trará o futuro, por isso é para este dia em que estamos que rogo me concedas a tua confiança, E para que vens pedir-me hoje uma coisa que sempre tiveste, Para viver contigo, para que vivamos juntos, Devo estar a sonhar, é impossível que seja verdade o que acabei de ouvir, Não tenho dúvidas em dizê-lo outra vez, se quiseres, Com a condição de que seja pelas mesmas palavras, Para viver contigo, para que vivamos juntos, Repito que não é possível, as pessoas não mudam assim, de uma hora para a outra, que foi que se passou nessa cabeça ou nesse coração para que estejas a pedir-me que vá viver contigo, quando até agora toda a tua preocupação tinha sido fazer-me perceber que semelhante ideia não entrava nos teus planos e que o melhor era não alimentar ilusões, As pessoas podem mudar de uma hora para a outra continuando a ser as mesmas, É então certo que queres que vivamos juntos, Sim, Que amas Mana da Paz o suficiente para querer viver com ela, Sim, Diz-me outra vez, Sim, sim, sim, Basta, não me afogues, que quase estalo, Cuidado, quero-te completa, Importas-te que diga à minha mãe, levava a vida à espera desta alegria, Claro que não me importo, embora ela não morra propriamente de amores por mim, A pobre lá tinha as suas razões, tu andavas a empatar, não te decidias, ela queria ver a filha feliz, e eu de felicidade não dava grandes mostras, as mães são todas iguais, Queres saber o que a minha me disse ontem, num momento em que falávamos de ti, Que foi, Oxalá ela ainda lá esteja quando tu acordares, Suponho que essas eram as palavras que andavas a precisar de ouvir, Assim é, Acordaste e eu ainda aqui estava, não sei por quanto tempo mais, mas estava, Diz à tua mãe que a partir de agora pode dormir descansada, Quem não vai dormir sou eu, Quando nos vemos, Amanhã, mal saia do banco, tomo um táxi e vou para aí, Vem a correr, Para os teus braços. Tertuliano Máximo Afonso pousou o telefone, cerrou os olhos e ouviu Maria da Paz a rir e a gritar, Mãezinha, mãezinha, depois viu as duas abraçadas, e em vez de gritos, murmúrios, em vez de risos, lágrimas, às vezes perguntamo-nos por que tardou tanto a felicidade a chegar, por que não veio mais cedo, mas se nos aparece de improviso, como neste caso, quando já não a esperávamos, então o mais provável é que não saibamos que fazer, e não é tanto a questão de escolher entre o rir e o chorar, é a secreta angústia de pensar que talvez não consigamos estar à altura. Como se estivesse a voltar a hábitos esquecidos, Tertuliano Máximo Afonso foi à cozinha ver se encontrava algo para comer. As eternas latas, pensou. Pegado ao frigorífico havia um papel que dizia em grandes letras, vermelhas para que melhor se vissem, Tem sopa no frigorífico, era da vizinha de cima, bendita seja, desta vez as latas esperarão. Moído da viagem, cansado pelas emoções, Tertuliano Máximo Afonso foi para a cama ainda não eram onze horas. Tentou ler uma página das civilizações mesopotâmicas, por duas vezes se lhe foi o livro das mãos, por fim apagou a luz e dispôs-se a dormir. Deslizava devagarinho para o sono quando Maria da Paz lhe veio sussurrar ao ouvido, Que maravilhoso seria se me telefonasses apenas porque sim. Provavelmente diria o resto da frase, mas ele já se tinha levantado, já tinha vestido o roupão por cima do pijama, já mareava o número. Maria da Paz perguntou, És tu, e ele respondeu, Sou eu, deu-me a sede, venho pedir um copo de água.
Ao contrário do que em geral se pensa, tomar uma decisão é uma das decisões mais fáceis deste mundo, como cabalmente se demonstra pelo facto de não fazermos mais nada que multiplicá-las ao longo de todo o santíssimo dia, porém, e aí esbarramos com o busílis da questão, elas sempre nos vêm a posteriori com os seus problemazinhos particulares, ou, para que fiquemos a entender-nos, com os seus rabos por esfolar, sendo o primeiro deles o nosso grau de capacidade para mantê-las e o segundo o nosso grau de vontade para realizá-las. Não é que uma e outra andem a faltar a Tertuliano Máximo Afonso em suas relações sentimentais com Maria da Paz, fomos testemunhas de que elas experimentaram nas últimas horas uma importante alteração qualitativa, como se tornou uso dizer. Decidiu que irá viver com ela e aí se tem mantido firme, e se a resolução ainda não foi concretizada, ou levada à prática, como também usualmente se diz, é porque passar da palavra ao acto tem igualmente os seus quês, os seus rabos por esfolar, é indispensável, por exemplo, que o espírito se arme de forças bastantes para empurrar o indolente corpo ao cumprimento do dever, sem falar dos prosaicos assuntos de logística que não podem resolver-se assim do pé para a mão, como saber-se quem irá viver para casa de quem, se Maria da Paz para a pequena casa do amado, se Tertuliano Máximo Afonso para casa mais ampla da amada. Recostados neste sofá ou deitados naquela cama, as últimas considerações dos prometidos, apesar da natural resistência de cada um a abandonar a concha doméstica a que estava habituado, terminaram por inclinar-se para a segunda alternativa, uma vez que se em casa de Mana da Paz haverá espaço mais que suficiente para os livros de Tertuliano Máximo Afonso, em casa de Tertuliano Máximo Afonso não o haveria para a mãe de Maria da Paz. Por este lado não poderiam correr melhor as coisas. O mau é que se Tertuliano Máximo Afonso, depois de tanto ter hesitado entre vantagens e inconvenientes, acabou por contar à mãe, é certo que desbastando as arestas mais vivas e as rebarbas mais cortantes, o extraordinário caso dos homens duplicados, aqui não se vislumbra quando se decidirá ele a cumprir a promessa que fez a Maria da Paz naquela ocasião em que, depois de ter reconhecido que era mentira tudo quanto lhe havia dito sobre os motivos da famosa carta escrita à produtora cinematográfica, pospôs para outra ocasião o que à meia confissão havia ficado a faltar para ser completa, sincera e concludente. Ele não o disse, ela não lho perguntou, as poucas palavras que abririam esta derradeira porta, Recordas, meu amor, quando te menti, Recordas, meu amor, quando me mentiste, não puderam ser pronunciadas, e quer este homem, quer esta mulher, assim lhes fosse ainda dado tempo para rematar o doloroso assunto, o mais provável seria que justificassem os seus silêncios alegando não terem querido manchar a felicidade destas horas com uma história de malvadez e de perversão genética. Não tardaremos a conhecer as nefastas consequências de deixar enterrada onde caiu uma bomba da segunda guerra mundial, por crermos que, tendo passado já a sua hora, nunca virá a rebentar. Cassada bem avisou, os gregos vão incendiar Tróia.
Há dois dias que Tertuliano Máximo Afonso, determinado a acabar de uma vez o trabalho que lhe foi pedido pelo director da escola para o ministério da educação, quase não levanta a cabeça da secretária. Embora a data em que se mudará para casa de Maria da Paz ainda não tenha sido decidida, quer ver-se livre do compromisso o mais cedo possível para não vir a ter complicações na sua nova instalação, já lhe bastará a arrumação dos papéis, a quantidade de livros que terá de pôr por ordem. Para evitar distraí-lo, Maria da Paz não tem telefonado, e ele prefere assim, de alguma maneira é como se estivesse a despedir-se da sua vida anterior, da solidão, do sossego, do recolhimento da casa que o ruído da máquina de escrever surpreendentemente não consegue perturbar. Foi almoçar ao restaurante e regressou logo, com mais dois ou três dias conseguirá chegar ao cabo da sua tarefa, depois só lhe faltará corrigir e passar a limpo, escrever tudo de novo, o que é certo é que, antes mais cedo que mais tarde, terá de se decidir a comprar um computador e uma impressora como quase todos os seus colegas já fizeram, é uma vergonha que continue a cavar com uma enxada quando os arados e charruas de última geração já se tornaram de uso corrente. Maria da Paz iniciá-lo-á nos mistérios da informática, ela estudou, sabe do assunto, no banco onde trabalha vêem-se computadores em cima de todas as mesas, não é como nas antigas conservatórias. A campainha da porta tocou. Quem será a estas horas, perguntou-se impaciente com a interrupção, não é dia da vizinha de cima, o carteiro deixa a correspondência na caixa, ainda há poucos dias cá estiveram os empregados da água, gás e electricidade a fazer a leitura dos respectivos contadores, se calhar é um desses jovens que andam a fazer publicidade de enciclopédias em que se explicam os costumes do tamboril. A campainha tocou outra vez. Tertuliano Máximo Afonso foi abrir, na sua frente estava um homem com barba, e esse homem disse, Sou eu, ainda que possa não o parecer, Que quer de mim, perguntou Tertuliano Máximo Afonso em voz baixa e tensa, Simplesmente falar consigo, respondeu António Claro, pedi-lhe que me telefonasse quando regressasse das férias, e não o fez, O que tínhamos para dizer um ao outro já foi dito, Talvez, mas falta o que eu tenho para lhe dizer a si, Não percebo, É natural, porém não esperará que lho venha dizer aqui no patamar, à entrada da sua casa, com perigo de que a vizinhança nos ouça, Seja o que for, não me interessa, Pelo contrário, tenho a certeza de que lhe interessará muitíssimo, trata-se da sua amiga, creio que é Maria da Paz o nome dela, Que aconteceu, Por enquanto, nada, e é justamente disso que temos de falar, Se nada aconteceu, nada há de que falar, Eu disse por enquanto. Tertuliano Máximo Afonso abriu mais a porta e afastou-se para O lado, Passe, disse. António Claro entrou, e, como o outro não Parecia disposto a mover-se dali, perguntou, Não tem uma cadeira para me oferecer, creio que sentados conversaríamos melhor. Tertuliano Máximo Afonso conteve mal um gesto de irritação, e, sem dizer palavra, entrou na sala que lhe servia de escritório. António Claro seguiu-o, olhou em redor como se estivesse a escolher o melhor sítio e decidiu-se pela cadeira de assento estofado, depois disse, ao mesmo tempo que ia despegando cuidadosamente a barba da cara, Calculo que estava sentado neste lugar quando me viu pela primeira vez. Tertuliano Máximo Afonso não respondeu. Deixara-se ficar de pé, a postura crispada do seu corpo era um protesto vivo, Diz o que tens a dizer e desaparece da minha vista, mas António Claro não tinha pressa, Se não se senta, disse, obriga-me a que me levante, C realmente não me apetece. Passeou serenamente os olhos em redor, detendo-se nos livros, nas gravuras penduradas nas paredes, na máquina de escrever, nos papéis espalhados na secretária, no telefone, depois disse, Vejo que estava a trabalhar, que escolhi uma má hora para vir falar consigo, mas, dada a urgência daquilo que me trouxe, não tinha outra solução, E que foi que o trouxe a minha casa sem ser chamado, Disse-lho à entrada, trata-se da sua amiga, Que tem você que ver com Maria da Paz, Mais do que poderia imaginar, mas antes que lhe explique como, porquê e até que ponto, dê-me licença que lhe mostre isto. Tirou do bolso interior do casaco um papel dobrado em quatro, que desdobrou e estendeu nas pontas dos dedos como se estivesse preparado para o deixar cair, Aconselho-o a que pegue nesta carta e a leia, disse, se não quer obrigar-me a ser mal-educado e a atirá-la para o chão, aliás, para si não é novidade, deve estar lembrado de que me falou dela quando nos encontrámos na minha casa de campo, a única diferença foi ter-me dito nessa altura que havia sido escrita por si, quando a assinatura é da sua amiga. Tertuliano Máximo Afonso lançou um rápido olhar ao papel e devolveu-o, Como foi isto parar às suas mãos, perguntou, sentando-se, Deu algum trabalho a encontrar, mas valeu a pena, respondeu António Claro, e acrescentou, Em todos os sentidos, Porquê, Devo começar por reconhecer que foi um sentimento inferior o que me fez ir aos arquivos da produtora, um grãozinho de vaidade, de narcisismo, creio que é assim que se lhes chama, enfim, quis ver o que você poderia ter escrito sobre os actores secundários numa carta de que era eu o sujeito, Foi um pretexto, uma desculpa para saber o seu verdadeiro nome, nada mais, E conseguiu-o, Melhor teria sido que não me respondessem, Tarde de mais, meu caro, tarde de mais, você destapou a caixa de Pandora, agora aguente-se, não tem outro remédio, Não há nada que aguentar, o assunto está morto e enterrado, Isso é o que lhe parece, Porquê, Esquece-se da assinatura da sua amiga, Tem uma explicação, Qual, Considerei que era mais conveniente que eu permanecesse fora das vistas, É a minha vez de lhe perguntar porquê, Queria ficar na sombra até ao último momento, aparecer de surpresa, Sim senhor, e de tal maneira que a Helena não e a mesma pessoa desde esse dia, o abalo que lhe causou foi tremendo, saber que existe nesta cidade um homem igual ao marido deu-lhe cabo dos nervos, agora, à força de tranquilizantes, vai passando um pouco melhor, mas só um pouco, Lamento, não esperava que pudesse acontecer tal contrariedade, Não lhe teria sido difícil, bastava que se tivesse posto no meu lugar, Ignorava que fosse casado, Mesmo assim, imagine, só como um exemplo, que eu ia daqui dizer à sua amiga Maria da Paz que você, Tertuliano Máximo Afonso, e eu, António Claro, somos iguais, iguaizinhos em tudo, até no tamanho do pénis, pense no choque que sofreria a pobre senhora, Proíbo-lhe que o faça, Sossegue, não só não lho disse, como não lho direi. Tertuliano Máximo Afonso levantou-se de golpe, Que significa isso, não disse, não direi, que significam essas palavras, Aí está uma pergunta oca, retórica, daquelas que são feitas para ganhar tempo ou porque não se sabe como reagir, Deixe-se de merdas, responda-me, Guarde o seu apetite de violência para mais tarde, contudo, para seu governo, aviso-o de que tenho suficientes conhecimentos de karaté para o derrubar em cinco segundos, é certo que nos últimos tempos tenho descuidado o treino, mas para uma pessoa como você ainda chego e sobejo, o facto de sermos iguais no tamanho do pénis não quer dizer que o sejamos também na força, Saia daqui agora mesmo, ou chamo a polícia, Chame também as televisões, os fotógrafos, a imprensa, em poucos minutos seremos um acontecimento mundial, Recordo-lhe que se este caso fosse conhecido a sua carreira ficaria prejudicada, defendeu-se Tertuliano Máximo Afonso, Suponho que sim, ainda que a carreira de um actor secundário a ninguém importe, excepto ao próprio, É um motivo bastante para que acabemos com isto, você vai-se embora, esquece o que se passou, e eu tratarei de fazer o mesmo, De acordo, mas essa operação, podemos chamar-lhe Operação Olvido, só começará daqui a vinte e quatro horas, Porquê, A razão chama-se Maria da Paz, aquela mesma Maria da Paz por causa de quem você se encrespou tanto há bocado e a quem agora parece querer meter debaixo do tapete para que não se fale mais dela, A Maria da Paz está fora do assunto, Sim, tão fora do assunto que sou capaz de apostar a cabeça em como ela desconhece a minha existência, Como sabe, Não tenho a certeza, é uma suposição, mas você não o nega, Achei preferível assim, não quis que pudesse suceder-lhe o mesmo que à sua mulher, Excelente coração, o seu, e está nas suas mãos que tal não venha a acontecer, Não compreendo, Acabemos com os rodeios, você fez-me uma pergunta e desde então tem estado a dar voltas para não ouvir a resposta que tenho para dar-lhe, Vá-se embora, Não tenciono ficar cá, Vá-se embora já, imediatamente, Muito bem, irei apresentar-me em carne e osso à sua amiga e contar-lhe-ei o que lhe ocultou por falta de coragem ou qualquer outra razão que só você conhece, Se tivesse aqui uma arma, matava-o, É possível, mas isto não é cinema, meu caro, na vida as coisas são muito mais simples, mesmo quando há assassinos e assassinados, Despeje o saco de uma vez, falou com ela, responda-me de uma vez, Falei, sim, pelo telefone, E que lhe disse, Convidei-a para ir hoje comigo ver uma casa de campo que está para alugar, A sua casa de campo, Exactamente, a minha casa de campo, mas fique descansado, quem falou pelo telefone com a sua amiga Maria da Paz não foi António Claro, mas sim Tertuliano Máximo Afonso, Você está doido, que diabólica tramóia é esta, que pretende, Quer que lhe diga, Exijo-o, Pretendo passar esta noite com ela, nada mais. Tertuliano Máximo Afonso levantou-se de rompante e avançou para António Claro de punhos cerrados, mas tropeçou na pequena mesa que os separava e teria ido ao chão se o outro não o tivesse segurado no último instante. Esbracejou, debateu-se, mas António Claro, agilmente, dominou-o com uma prisão rápida de braço que o deixou imobilizado, Meta isto na cabeça antes que se aleije, disse, você não é homem para mim. Empurrou-o para o sofá e voltou a sentar-se. Tertuliano Máximo Afonso olhou-o com ressentimento, ao mesmo tempo que esfregava o braço dorido. Não quis magoá-lo, disse António Claro, mas era a única maneira de evitar que repetíssemos aqui a mais que vista e sempre caricata cena de pancadaria de dois machos a disputar a fêmea, Maria da Paz e eu vamos casar-nos, disse Tertuliano Máximo Afonso, como se se tratasse de um argumento de autoridade irrespondível, Não me surpreende, quando falei com ela fiquei com a ideia de que a vossa relação era realmente a sério, e o certo é que tive de recorrer à minha experiência de actor para acertar com o tom da conversa, no entanto posso assegurar-lhe que em nenhum momento duvidou de que estava a falar consigo, e mais, agora posso compreender melhor a alegria com que recebeu o convite para ir ver a casa, já estava a ver-se a viver nela, A mãe tem estado doente, não acredito que a vá deixar sozinha, De facto, falou-me nisso, mas não demorou a convencer-se, uma noite passa depressa. Tertuliano Máximo Afonso remexeu-se no sofá, exasperado consigo mesmo por parecer que havia admitido com as suas últimas palavras a possibilidade de consumação das intenções de António Claro. Porquê fazer isto, perguntou, apercebendo-se, mais uma vez demasiado tarde, de que tinha acabado de dar outro passo no caminho da resignação, Não é fácil explicar, mas vou tentar, respondeu António Claro, talvez seja como desforço da perturbação que o seu aparecimento veio introduzir na minha relação conjugal e de que você não pode ter ideia, talvez seja por capricho don-juanesco de obsessivo derrubador de fêmeas, talvez seja, e isso é de certeza o mais provável, por puro e simples rancor, Rancor, Sim, rancor, você disse ainda não há muitos minutos que se tivesse uma arma me mataria, era a sua maneira de declarar que um de nós está a mais neste mundo, e eu estou inteiramente de acordo consigo, um de nós está a mais neste mundo e é pena que não se possa dizer isto com maiúsculas, a questão já estaria resolvida se a pistola que levei comigo quando nos encontrámos estivesse carregada e eu tivesse a coragem de dispará-la, mas já se sabe, somos gente de bem, temos medo da prisão, e portanto, como não sou capaz de o matar a si, mato-o doutra maneira, fodo-lhe a mulher, o pior é que ela nunca o irá saber, vai julgar todo o tempo que estará a fazer amor consigo, tudo quanto me disser de terno e apaixonado será a Tertuliano Máximo Afonso que o dirá e não a António Claro, ao menos sirva-lhe isto de consolação. Tertuliano Máximo Afonso não respondeu, baixara os olhos rapidamente como para impedir que neles se pudesse ler o pensamento que acabara de cruzar-lhe de lado a lado o cérebro. De um momento para outro sentira-se como se estivesse a disputar uma partida de xadrez, à espera do movimento seguinte de António Claro. Pareceu que tinha deixado descair os ombros, vencido, quando o outro disse, depois de ter olhado o relógio, É tempo de ir andando, ainda tenho de passar por casa de Maria da Paz a recolhê-la, mas logo se aprumou com renascida energia quando o ouviu acrescentar, Evidentemente, não posso ir tal qual estou, preciso de roupas suas e do seu carro, se vou levar a sua cara, também terei de levar o resto, Não percebo, disse Tertuliano Máximo Afonso pondo no rosto um ar de perplexidade, e logo, Ali, sim, é óbvio, não se pode arriscar a que ela lhe estranhe o fato que leva vestido e lhe pergunte aonde foi buscar o dinheiro para comprar um carro daqueles, Exactamente, E portanto quer que eu lhe empreste roupas e o carro, Foi isso o que eu disse, E que faria se eu me recusasse, Algo muito simples, pegaria naquele telefone e contaria tudo a Maria da Paz, e se você tivesse a infeliz ideia de querer impedir-me, esteja certo de que o poria a dormir em menos tempo do que leva a dizê-lo, tenha cuidado, até aqui pudemos evitar violências, mas se elas forem necessárias não hesitarei, Muito bem, disse Tertuliano Máximo Afonso, e de que tipo de roupas vai necessitar, traje completo com gravata, ou assim como o estou a ver, à verão, Roupas leves, deste género. Tertuliano Máximo Afonso saiu, foi ao quarto, abriu o guarda-fato, abriu gavetas, em menos de cinco minutos estava de volta com tudo o que era necessário, uma camisa, umas calças, jérsei, peúgas, sapatos. Vista-se na casa de banho, disse. Quando António Claro regressou, viu em cima da mesa de centro um relógio de pulso, uma carteira e documentos de identificação, Os papéis do carro encontram-se no compartimento das luvas, disse Tertuliano Máximo Afonso, e aqui estão também as chaves, e ainda as desta casa para a hipótese de eu não estar cá quando você vier trocar de roupa, suponho que virá trocar de roupa, Virei a meio da manhã, prometi à minha mulher que não chegaria depois do meio-dia, respondeu António Claro, Calculo que lhe terá dado uma boa razão para O facto de passar a noite fora, Coisas do trabalho, já não é a primeira vez, e António Claro, confuso, ia perguntando a si mesmo Por que carga de água estaria a dar todas estas explicações se a autoridade e o perfeito domínio da situação tinham estado da sua parte desde que aqui entrara. Disse Tertuliano Máximo Afonso, Não deve levar os seus documentos, nem o relógio, nem) as chaves da sua casa e do carro, nenhum objecto pessoal, nada que o possa identificar, as mulheres, além de serem curiosas por natureza, pelo menos é o que sempre se tem dito, reparam muito nos pormenores, E as suas chaves, com certeza virá a precisar delas, Pode levá-las, não se preocupe, a vizinha do andar de cima tem duplicados, ou cópias, se preferir esta palavra, é ela quem se encarrega da limpeza da casa, Ah, muito bem. António Claro não conseguia libertar-se da sensação de desassossego que passara a ocupar o lugar da firme frieza com que antes havia conduzido o sinuoso diálogo pelo rumo que lhe interessava. Tinha-o conseguido, mas agora parecia-lhe que se desviara num ponto qualquer da discussão ou que fora empurrado para fora do caminho por um subtil toque lateral de que não chegara a aperceber-se.
O momento em que tem de recolher Maria da Paz aproxima-se, mas, além dessa urgência, por assim dizer com hora marcada, há outra, interior, ainda Mais instante, que aperta com ele, Vai-te embora, sai daqui, lembra-te de que até mesmo das maiores vitórias é conveniente saber retirar-se a tempo. À pressa, colocou sobre a mesa do centro, lado a lado, os documentos de identificação, as chaves da casa, as do carro, o relógio de pulso, a aliança de casamento, um lenço com as suas iniciais, um pente de bolso, disse desnecessariamente que os papéis do automóvel estão no porta-luvas, e logo perguntou, Conhece o meu carro, deixei-o muito perto da porta de entrada, e Tertuliano Máximo Afonso respondeu que sim, Vi-o diante da sua casa de campo quando cheguei, E o seu, onde está, Vai encontrá-lo mesmo à esquina da rua, vire à esquerda quando sair do prédio, é um duas portas azul, disse Tertuliano Máximo Afonso, e, para que não houvesse confusões, completou a informação com a marca do carro e o número de matrícula. A barba postiça estava sobre o braço da cadeira em que António Claro havia estado sentado. Não vai levá-la, perguntou Tertuliano Máximo Afonso, Foi você quem a comprou, fique com ela, a cara com que vou sair agora é a mesma com que hei-de entrar amanhã quando vier mudar de roupa, respondeu António Claro, recuperando um pouco da autoridade anterior, e acrescentou, sarcástico, Até lá, serei eu o professor de História Tertuliano Máximo Afonso. Olharam-se durante alguns segundos, agora, sim, eram certas, certas para sempre, as palavras com que o outro Tertuliano Máximo Afonso havia recebido à chegada António Claro, O que tínhamos para dizer um ao outro já foi dito. Tertuliano Máximo Afonso abriu sem ruído a porta da escada, afastou-se para deixar sair o visitante, e, devagar, com os mesmos cuidados, tomou a fechá-la. O mais natural será pensar que procedeu assim para não despertar a curiosidade maliciosa da vizinhança, mas Cassada, se aqui estivesse, não deixaria de nos recordar que precisamente desta maneira se baixa também a tampa de um caixão. Tertuliano Máximo Afonso voltou para a sala, sentou-se no sofá e, fechando os olhos, deixou-se reclinar para trás. Durante uma hora não se moveu, mas, ao contrário do que se poderia julgar, não dormiu, esteve simplesmente a dar tempo para que o seu velho carro saísse da cidade. Pensou em Maria da Paz sem mágoa, apenas como alguém que aos poucos se desvanecesse na distância, pensou em António Claro como um inimigo que havia vencido a primeira batalha, mas que irá perder a segunda se neste mundo ainda resta um pouco de justiça. A luz da tarde decaía, o seu carro já devia ter abandonado a estrada principal, o mais provável foi que o tivessem levado pelo desvio que poupa a travessia da povoação, neste momento detém-se diante da casa de campo, António Claro tirou uma chave do bolso, a esta não podia tê-la deixado em casa de Tertuliano Máximo Afonso, dirá a Maria da Paz que lhe foi cedida pelo proprietário da vivenda, mas, evidentemente, ele não sabe que vamos passar aqui a noite, É meu colega da escola, pessoa de toda a confiança, mas não ao ponto de que eu lhe dê conta dos meus assuntos particulares, agora esperas aqui um pouco, vou ver se está tudo em ordem lá dentro. Maria da Paz ia perguntar a si mesma que coisas poderiam não encontrar-se em ordem numa casa de campo que está para alugar, mas um beijo de Tertuliano Máximo Afonso, daqueles profundos, daqueles avassaladores, distraiu-a, e depois, durante os minutos que ele esteve ausente, foi atraída pela beleza da paisagem, o vale, a linha escura de choupos e freixos que acompanha o leito do rio, os montes ao fundo, o sol que quase já roça a lomba mais alta. Tertuliano Máximo Afonso, este que acabou de se levantar do sofá, adivinha o que António Claro anda a fazer lá dentro, passa friamente revista a tudo quanto o possa denunciar, alguns cartazes de filmes, mas desses não virá o perigo, deixá-los-á onde estão, um professor pode muito bem ser um cinéfilo, o pior era aquele retrato seu, ao lado de Helena, que está em cima de uma mesa da sala de entrada. Apareceu enfim à porta, chamou-a, Já podes vir, havia aqui umas cortinas velhas caídas no chão que davam um péssimo aspecto à casa. Ela saiu do carro, feliz subiu correndo os degraus de acesso, a porta cerrou-se ruidosamente, à primeira vista poderá ter parecido uma recriminável falta de cuidado, mas há que levar em conta que a vivenda se encontra isolada, não tem vizinhos nem perto nem longe, além disso, é nosso dever ser compreensivos, as duas pessoas que acabaram de entrar têm assuntos muito mais interessantes a resolver que preocuparem-se com o barulho que uma porta faz ao fechar-se.
Tertuliano Máximo Afonso levantou do chão, onde tinha caído, a fotocópia da carta que António Claro trouxera, abriu depois a gaveta da secretária em que havia guardado a resposta da produtora, e, com os dois papéis na mão, mais a fotografia que havia tirado com a barba postiça, dirigiu-se à cozinha. Pô-los dentro do lava-louça, chegou-lhes um fósforo aceso e ficou a olhar o rápido trabalho do fogo, a labareda que ia mastigando e engolindo os papéis e logo os vomitava feitos em cinza, as rápidas cintilações que teimavam em mordê-los quando a chama, aqui e além, parecia ter-se extinguido. Deu um jeito ao que ainda restava para que acabassem de queimar-se, depois deixou correr a água da torneira até que a última partícula de cinza desapareceu pelo cano abaixo. A seguir foi ao quarto, retirou as cassetes de vídeo do armário onde as havia escondido e regressou à sala. A roupa de António Claro, por ele trazida da casa de banho, encontrava-se arrumada em cima da cadeira de assento estofado. Tertuliano Máximo Afonso despiu-se todo. Franziu o nariz de repugnância ao pôr a roupa interior que havia sido usada pelo outro, mas não havia remédio, a tanto o obrigava a necessidade, que é um dos nomes que toma o destino quando lhe convém disfarçar-se. Agora que se via convertido à situação de outro de Tertuliano Máximo Afonso, mais não lhe restava que tornar-se no António Claro que o mesmo António Claro abandonara. Por sua vez, quando amanhã voltar para recuperar a roupa, António Claro só como Tertuliano Máximo Afonso poderá sair à rua, terá de ser Tertuliano Máximo Afonso por todo o tempo que roupas suas, próprias, estas que aqui deixou ou outras, tardarem a devolver-lhe a identidade de António Claro. Quer se queira, quer não, o hábito é o melhor que há para fazer o monge. Tertuliano Máximo Afonso aproximou-se da mesa em que António Claro tinha deixado os objectos pessoais e, metodicamente, concluiu o seu trabalho de transformação. Principiou pelo relógio de pulso, enfiou a aliança no dedo anelar esquerdo, meteu num bolso das calças o pente e o lenço com as iniciais AC, no bolso do outro lado as chaves da casa e do carro, no de trás os documentos de identificação que, em caso de dúvida, como indiscutível António Claro o haverão de acreditar. Está pronto para sair, só lhe falta o retoque final, a barba postiça que António Claro trazia quando aqui entrou, dir-se-ia que adivinhara que iria ser necessária, mas não, a barba só tinha ficado à espera de uma coincidência, se às vezes tardam anos a chegar, outras vezes vêm a correr, todas em fila, umas atrás das outras. Tertuliano Máximo Afonso foi à casa de banho para rematar o disfarce, de tanto tirar e pôr, de tanto passar de cara a cara, a barba já pega mal, já ameaça tornar-se suspeita ao primeiro olhar de lince de um agente de autoridade ou à sistemática desconfiança de um cidadão timorato. Melhor ou pior, acabou finalmente por agarrar-se à pele, agora só terá de aguentar-se o tempo necessário para que Tertuliano Máximo Afonso encontre um contentor de lixo num local não demasiado concorrido. Aí culminará a barba postiça a sua breve mas agitada história, aí acabarão, entre restos fétidos e trevas, as cassetes de vídeo. Tertuliano Máximo Afonso voltou à sala, passou os olhos em redor a ver se esquecia algo que lhe viesse a fazer falta, depois entrou no quarto, sobre a mesa-de-cabeceira está o livro das antigas civilizações mesopotâmicas, não existe nenhum motivo para o ter consigo, mas apesar disso irá levá-lo, na verdade não há quem perceba o espírito humano, que falta faria a Tertuliano Máximo Afonso a companhia dos semitas amorreus e dos assinos, se em menos de vinte e quatro horas vai estar outra vez nesta sua casa. Alea jacta est, murmurou para os seus adentros, não há mais que discutir, o que tiver de acontecer, acontecerá, não poderá escapar a si mesmo. O rubicão é esta porta que se fecha, esta escada que se desce, estes passos que levam àquele automóvel, esta chave que o abre, este motor que suavemente o faz deslizar pela rua fora, a sorte está lançada, agora os deuses que decidam. Este mês é Agosto, o dia é sexta-feira, há pouco trânsito de carros e pessoas, tão longe estava a rua aonde se dirige e de repente fez-se perto. É noite há mais de meia hora. Tertuliano Máximo Afonso arrumou o carro em frente do prédio. Antes de sair olhou para as janelas e em nenhuma delas viu luz. Hesitou, perguntou-se, E agora, que faço, ao que respondeu o raciocínio, Vamos a ver, não percebo essa indecisão, se és, como quiseste parecer, António Claro, o que tens a fazer é subir tranquilamente a tua casa, e se as luzes estão apagadas, por algum motivo há-de ser, repara que não são as únicas em todo o prédio, e, como não és gato para poderes ver na escuridão, o que tens que fazer é acendê-las, isto supondo que, por qualquer causa que desconhecemos, não há ninguém à tua espera, ou melhor, a causa sabemo-la todos, lembra-te de que disseste à tua mulher que, por questões de trabalho, terias de ficar esta noite fora de casa, agora aguenta-te. Tertuliano Máximo Afonso atravessou a rua com o livro dos mesopotâmicos debaixo do braço, abriu a porta do prédio, entrou no elevador e viu que tinha companhia, Boas noites, estava à tua espera, disse o senso comum, Era inevitável que aparecesses, Que ideia é essa de aqui vires, Não armes em ingénuo, sabe-lo tão bem como eu, Vingar-te, desforrar-te, dormir com a mulher do inimigo, já que a tua está na cama com ele, Exacto, E depois, Depois, nada, à Maria da Paz nunca lhe passará pela cabeça que dormiu com o homem trocado, E estes daqui, Estes vão ter de viver a pior parte da tragicomédia, Porquê, Se és o senso comum devias sabê-lo, Perco qualidades nos ascensores, Quando o António Claro entrar amanhã em casa vai ter a maior das dificuldades para explicar à mulher como foi que conseguiu dormir com ela e ao mesmo tempo estar a trabalhar fora da cidade, Não imaginei que fosses capaz de tanto, é um plano absolutamente diabólico, Humano, meu caro, simplesmente humano, o diabo não faz planos, aliás, se os homens fossem bons, ele nem existiria, E amanhã, Arranjarei um pretexto para sair cedo, Esse livro, Não sei, talvez o deixe ficar aqui como recordação. O elevador parou no quinto andar, Tertuliano Máximo Afonso perguntou, Vens comigo, Sou o senso comum, aí dentro não há lugar para mim, Então, até à vista, Duvido.
Tertuliano Máximo Afonso encostou o ouvido à porta. Do interior não vinha qualquer ruído. Teria de proceder com naturalidade, como se fosse o dono da casa, mas parecia que as pancadas do coração, de tão violentas, lhe sacudiam o corpo todo. Não ia ter coragem para avançar. De repente o elevador começou a descer, Quem será, pensou assustado, e sem mais hesitação meteu a chave à porta e entrou. A casa estava às escuras, mas uma luminosidade vaga, esbatida, que devia provir das janelas, começou, lentamente, a desenhar contornos, a avolumar vultos. Tertuliano Máximo Afonso apalpou a parede ao lado da porta até encontrar um interruptor. Nada se moveu na casa, Não há ninguém, pensou, posso ver tudo, sim, é preciso que conheça urgentemente a casa que por uma noite será sua, talvez apenas sua, talvez sozinho nela, imaginemos, por exemplo, que Helena tem família na cidade e, aproveitando a ausência do marido, foi visitá-la, imaginemos que só volta amanhã, então o tal plano que o senso comum tinha classificado de diabólico irá por água abaixo como a mais banal das artimanhas mentais, como um castelo de cartas que o bafo de uma criança tomba. Que a vida tem ironias, diz-se, quando o certo é ser ela a mais obtusa de todas as coisas conhecidas, um dia deve ter havido alguém que lhe disse, Segue em frente, sempre em frente, não saias do caminho, e desde aí, inepta, incapaz de aprender com as lições que faz gala de nos dar, não tem feito mais que cumprir às cegas a ordem que lhe deram, atropelando quanto vai encontrando por diante, sem parar para avaliar os estragos, para pedir-nos desculpa, ao menos uma vez. Tertuliano Máximo Afonso percorrera a casa de ponta a ponta, acendera e apagara luzes, abrira e fechara portas, armários, gavetas, viu roupas de homem, roupas de mulher íntimas e perturbadoras, a pistola, mas não tocou em nada, só queria saber onde se tinha vindo meter, que relação há entre e os espaços da casa e o que dos seus habitantes se mostra, da mesma maneira que procedem os mapas, dizem-te por onde deverás ir, mas não te garantem que chegues. Quando deu por concluída a inspecção, quando já poderia circular de olhos fechados por toda a casa, foi sentar-se no sofá que devia ser o de António Claro e começou a esperar. Que venha Helena, é tudo quanto pede, que Helena entre por aquela porta e me veja, que alguém possa testemunhar que ousei vir aqui, no fundo é só isso o que quer, um testemunho. Passava das onze horas quando chegou. Assustada por ver luzes acesas, perguntou ainda da porta da escada, És tu, Sim, sou eu, disse Tertuliano Máximo Afonso com a garganta seca. No instante seguinte ela entrava na sala, Que foi que se passou, só te esperava amanhã, trocaram um beijo rápido entre pergunta e resposta, O trabalho foi adiado, e imediatamente Tertuliano Máximo Afonso se teve de sentar porque as pernas lhe tremiam, seria por nervosismo, seria por efeito do beijo. Mal ouviu o que a mulher lhe disse, Fui ver os meus pais, Como estão eles, conseguiu perguntar, Bem, foi a resposta, e logo, Jantaste, Sim, não te preocupes, Estou cansada, vou-me deitar, que livro é este, Comprei-o por causa de um filme histórico em que entrarei, É usado, tem notas, Vi-o num alfarrabista. Helena saiu, daí a poucos minutos havia outra vez silêncio. Era tarde quando Tertuliano Máximo Afonso entrou no quarto. Helena dormia, sobre a almofada estava o pijama que devia pôr-se. Duas horas depois o homem continuava desperto. Tinha o sexo inerte. Depois a mulher abriu os olhos, Não dormes, perguntou, Não, Porquê, Não sei. Então ela virou-se para ele e abraçou-o.
O primeiro a acordar foi Tertuliano Máximo Afonso. Estava nu. A colcha e o lençol tinham escorregado para o chão no seu lado, deixando a descoberto um seio de Helena. Ela parecia dormir profundamente. A claridade da manhã, mal quebrada pela espessura dos cortinados, enchia todo o quarto de uma penumbra cintilante. Lá fora já devia fazer calor. Tertuliano Máximo Afonso sentiu a tensão do sexo, a sua dureza novamente insatisfeita. Foi então que se lembrou de Maria da Paz. Imaginou outro quarto, outra cama, o corpo deitado dela, que conhecia palmo a palmo, o corpo deitado de António Claro, igual ao seu, e de repente pensou que havia chegado ao fim do caminho, que tinha na sua frente, a cortá-lo, um muro com um letreiro que dizia, Abismo, Não Passar, e depois viu que não podia voltar para trás, que a estrada por onde tinha vindo desaparecera, que dela só havia ficado o espaço reduzido em que os seus pés ainda assentavam. Sonhava, e não o sabia. Uma angústia que já era terror fê-lo despertar violentamente no exacto momento em que o muro se rompia, e os braços dele, coisas muito piores que nascerem braços a um muro se têm visto, o arrastavam para o precipício. Helena estava a apertar-lhe a mão, tratava de sossegá-lo, Calma, foi um pesadelo, já passou, agora estás aqui. Ele arfava, aos arrancos, como se a queda lhe tivesse esvaziado de golpe os pulmões. Tranquilo, tranquilo, repetia Helena. Apoiava-se sobre um cotovelo, com os seios expostos, a colcha delgada a desenhar-lhe a quebra da cintura, o contorno da anca, e as palavras que dizia desciam sobre o corpo do homem aflito como uma chuva fina, dessas que nos tocam a pele como uma carícia, como um beijo de água. Aos poucos, igual a uma nuvem de vapor que refluísse ao lugar de origem, o espavorido espírito de Tertuliano Máximo Afonso foi regressando à sua mente exausta, e quando Helena perguntou, Que mau sonho foi esse, conta-me, este homem confuso, enredador de labirintos e perdido neles, e agora, aqui, deitado ao lado de uma mulher que, excepto no conhecer dos sexos, em tudo lhe é desconhecida, falou de um caminho que deixara de ter princípio, como se os próprios passos que foram dados tivessem vindo a devorar-lhe as substâncias, quaisquer que sejam, que dão ou emprestam duração ao tempo e dimensões ao espaço, e o muro, que, ao cortar um, igualmente cortava o outro, e o lugar onde os pés assentam, essas duas pequenas ilhas, esse minúsculo arquipélago humano, um aqui, outro além, e o letreiro em que estava escrito Abismo, Não Passar, remember, quem te avisa, teu inimigo é, como poderia ter dito o Hamlet ao seu tio e padrasto Cláudio. Ela escutara-o surpreendida, de algum modo perplexa, não a tinha o marido acostumada a escutar-lhe reflexões assim, menos ainda no tom em que as havia exprimido agora, como se cada palavra já viesse acompanhada do seu duplo, uma espécie de retumbar de caverna habitada, em que não é possível saber quem está respirando, quem acaba de murmurar, quem suspirou. Gostou de pensar que também os seus pés eram duas pequenas ilhas dessas, e que muito perto delas outras duas repousavam, e que as quatro juntas podiam compor, compunham, tinham composto um arquipélago perfeito, se a perfeição já é deste mundo e o lençol da cama o oceano onde quis ser ancorada. Estás mais sossegado, perguntou, Melhor que isto não creio que haja, disse ele, É estranho, esta noite vieste para mim como nunca tinha antes acontecido, senti que entravas com uma doçura que depois pensei que viera amassada em desejo e em lágrimas, e era também uma alegria, um gemido de dor, um pedido de perdão, Tudo isso foi assim, se o sentiste, Infelizmente, há coisas que sucedem e não se voltam a repetir, Outras há que sucedem e tomam a suceder, Acreditas que sim, alguém disse que quem deu rosas uma vez, não pode voltar a dar menos que rosas, É questão de experimentar, Agora, Sim, já que estamos despidos, É uma boa razão, Suficiente, embora não seja com certeza a melhor de todas. As quatro ilhas juntaram-se, o arquipélago refez-se, o mar bateu revolto nos alcantilados, se lá em cima houve gritos soltaram-nos as sereias que cavalgavam as ondas, se houve gemidos nenhum foi de dor, se alguém pediu perdão, que tenha sido perdoado, agora e para sempre jamais. Descansaram brevemente nos braços um do outro, depois, com um último beijo, ela deslizou para fora da cama, Não te levantes, dorme um pouco mais, eu vou tratar do pequeno-almoço.
Tertuliano Máximo Afonso não dormiu. Tinha de sair rapidamente desta casa, não podia arriscar-se a que António Claro voltasse para casa mais cedo do que havia dito, antes do meio-dia foram as suas formais palavras, imaginemos que as coisas lá pela casa de campo não correram como ele esperava e que já vem por aí desenfreado, irritado consigo mesmo, com pressa de esconder a frustração na paz do lar, enquanto irá contando à esposa como lhe tinha ido o trabalho, inventando, para fazer passar o seu mau humor, contrariedades que não existiram, discussões que não aconteceram, acordos que não se realizaram. A dificuldade de Tertuliano Máximo Afonso está em não poder ir-se daqui sem mais nem menos, tem de dar a Helena uma justificação que não se preste a desconfianças, lembremos que até este momento ela não teve qualquer motivo para pensar que o homem com quem dormiu e gozou esta noite não é o seu marido, e, assim sendo, com que desplante se lhe vai dizer agora, ainda por cima tendo ocultado a informação até ao último instante, que há assuntos de urgência a tratar fora de casa numa manhã como esta, de sábado estival, quando o lógico, tendo em conta que a harmonia do casal atingiu a sublimidade que presenciámos, seria que continuassem na cama para prosseguir a conversação interrompida, a par do que mais e melhor pudesse suceder. Não tarda que Helena apareça aí com o pequeno-almoço, há tanto tempo já que o não tomavam assim, juntos, na intimidade de um leito ainda rescendente das particulares fragrâncias do amor, que seria imperdoável deitar a perder uma ocasião que todas as probabilidades, pelo menos as já por nós conhecidas, estão expressamente conspirando para que seja a última. Tertuliano Máximo Afonso pensa, pensa e torna a pensar, e, pensando, pensando, a este extremo pôde chegar na sua pessoa o que designamos por energia paradoxal da alma humana, cada vez se vai tornando mais desmaiada, menos imperiosa a necessidade de sair, e, ao mesmo tempo, sobrepassando imprudentemente todos os previsíveis riscos, cada vez vai tomando mais consistência no seu espírito uma louca vontade de ser testemunha presencial do seu definitivo triunfo sobre António Claro. Em carne e osso, e sujeitando-se a todas as consequências. Ele que venha e o encontre aqui, ele que se enfureça, que esbraveje, que use de violência, nada poderá diminuir, faça o que fizer, a extensão da sua derrota. Ele sabe que a última arma a maneja Tertuliano Máximo Afonso, bastará que esse mil vezes maldito professor de História lhe pergunte donde vem a estas horas e que Helena, finalmente, conheça o lado sórdido da prodigiosa aventura dos dois homens iguais nos sinais do braço, nas cicatrizes do joelho e nas dimensões do pénis, e, a partir de hoje, iguais também em emparelhamentos. Talvez tenha de vir uma ambulância para recolher o corpo maltratado de Tertuliano Máximo Afonso, mas a ferida do seu agressor, essa, não fechará mais. Poderiam ter ficado por aqui as mesquinhas ideias de vingança produzidas pelo cérebro do homem deitado que espera o pequeno-almoço, mas isso seria não contar com a atrás mencionada energia paradoxal da alma humana, ou, se preferirmos dar-lhe outro nome, a possibilidade da emergência de sentimentos de uma desusada nobreza, de um cavalheirismo tanto mais digno de aplausos quanto é certo não abonarem em seu favor alguns antecedentes pessoais em tudo passíveis de censura. Por incrível que nos pareça, o homem que por cobardia moral, por medo a conhecer-se a verdade, deixou ir Maria da Paz para os braços de António Claro, é o mesmo que, não só está preparado para levar a maior tareia da sua vida, como passou a pensar que é seu estrito dever não deixar Helena sozinha na delicada situação de ter um marido ao lado e ver entrar outro pela porta dentro. A alma humana é uma caixa donde sempre pode saltar um palhaço a fazer caretas e a deitar-nos a língua de fora, mas há ocasiões em que esse mesmo palhaço se limita a olhar-nos por cima da borda da caixa, e se vê que, por acidente, estamos procedendo segundo o que é justo e honesto, acena aprovadoramente com a cabeça e desaparece a pensar que ainda não somos um caso perdido. Graças à decisão que acaba de tomar, Tertuliano Máximo Afonso limpou do seu cadastro umas quantas suas faltas leves, mas ainda terá de penar muito antes que a tinta que regista as outras comece a desvanecer-se do papel pardo da memória. Costuma-se dizer, Dêmos tempo ao tempo, mas aquilo que sempre nos esquecemos de perguntar é se haverá tempo para dar. Helena entrou com o pequeno-almoço quando Tertuliano Máximo Afonso se levantava, Afinal, não queres tomá-lo na cama, perguntou, e ele respondeu que não, que preferia sentar-se comodamente numa cadeira em vez de ter que estar de olho numa bandeja que escorrega, numa chávena que desliza, nas lambuzantes escorrências de manteiga, nas migalhas que se insinuam pelas dobras dos lençóis e sempre se vão cravar nos pontos mais sensíveis da pele. Foi um discurso que fez quanto pôde por parecer gracioso e bem-humorado, mas o seu único objectivo era disfarçar uma nova e premente preocupação de Tertuliano Máximo Afonso, isto é, se António Claro vem aí, ao menos que não nos surpreenda no tálamo conjugal mordiscando pecadoramente scones e torradas, se António Claro vem aí, aos menos que encontre já a sua cama feita e o seu quarto arejado, se António Claro vem aí, ao menos que possa ver-nos lavados, penteados e vestidos como Deus manda, porque isto de aparências é o mesmo que se passa com o vício, já que andamos mano a mano com ele, e não se vislumbra maneira de o evitar nem verdadeira vantagem em que tal aconteça, ao menos que preste de vez em quando homenagem à virtude, ainda que simplesmente o faça nas formas, aliás, é bastante duvidoso que valesse a pena pedir-lhe mais do que isso.
A manhã vai adiantada, passa das dez e meia. Helena foi fazer umas compras, disse Até já com um beijo, resto morno e ainda consolador do fogaréu de paixão que nas últimas horas ilicitamente havia juntado e abrasado este homem e esta mulher Agora, sentado no sofá, com o livro das antigas civilizações mesopotâmicas aberto sobre os joelhos, Tertuliano Máximo Afonso espera que António Claro chegue, e, sendo pessoa a quem facilmente se lhe costumam soltar as travas da imaginação, figurou-se que o dito Claro e a mulher poderiam ter-se encontrado na rua e subido juntos para esclarecer o enredo de uma vez, Helena protestando, Você não é o meu marido, o meu marido está em casa, é aquele que está ali sentado, você e o professor de História que nos tem andado a fazer a vida negra, e António Claro jurando, O teu marido sou eu, ele é que é o professor de História, repara no livro que estava a ler, aquele tipo é o maior impostor que há no mundo, e ela, cortante e irónica, Sim, sim, mas primeiro faça-me o favor de explicar por que é que a aliança de casamento está no dedo dele e não no seu. Helena acaba de entrar sozinha com as compras e são já onze horas dadas. Daqui a pouco perguntará, Tens alguma preocupação, e ele responderá que não, Onde é que foste buscar essa ideia, e ela dirá que, sendo assim, Não percebo por que estás a olhar constantemente para o relógio, e ele responderá que não sabe porquê, é um jeito, talvez esteja um pouco nervoso, Imagina que me entregavam o papel do rei Hamurabi, a minha carreira de actor daria uma volta de cento e oitenta graus. As onze e meia chegaram, falta um quarto para as doze, e António Claro não vem. O coração de Tertuliano Máximo Afonso parece um cavalo furioso descarregando coices em todas as direcções, o pânico aperta-lhe a garganta e grita-lhe que ainda está a tempo, Aproveita que ela está lá para dentro e foge, ainda tens quase dez minutos, mas cuidado, não uses o elevador, desce pelas escadas e olha bem para um lado e para o outro antes de pores o pé na rua. É meio-dia, o relógio da sala contou lentamente as pancadas como se ainda quisesse dar a António Claro uma última oportunidade para aparecer, para cumprir, nem que fosse no último segundo, o que havia prometido, porém, não servirá de nada que Tertuliano Máximo Afonso queira enganar-se a si mesmo, Se não veio até agora, não virá mais. Qualquer pessoa se pode atrasar, uma avaria no carro, uma roda furada, são coisas que acontecem todos os dias, ninguém está livre delas. A partir de agora, cada minuto vai ser uma agonia, depois virá a vez do desconcerto, da perplexidade, e, inevitavelmente, um pensamento, Admitamos que se atrasou, sim senhor atrasou-se, e os telefones para que servem, por que não telefona ele a dizer que se lhe partiu o diferencial, ou a caixa de velocidades, ou a correia da ventoinha, tudo o que pode suceder a um carro velho e cansado como este. Uma hora mais passou, de António Claro nem a sombra, e quando Helena veio anunciar que o almoço estava na mesa, Tertuliano Máximo Afonso disse que não sentia apetite, que comesse ela sozinha, e que, além disso, precisava absolutamente de sair. Ela quis saber porquê e ele podia ter-lhe retorquido que não eram casados, que portanto não tinha obrigação de lhe dar satisfações acerca do que fazia ou não fazia, mas o momento de pôr as cartas na mesa e começar jogo limpo ainda não havia chegado, de modo que se limitou a responder que mais adiante lhe contaria tudo, promessa que Tertuliano Máximo Afonso sempre tem na ponta da língua e que cumpre, quando cumpre, tarde e mal, a mãe dele que o diga, que o diga Maria da Paz, de quem também não há notícias. Helena perguntou-lhe se não achava conveniente mudar de roupa, e ele disse que sim, que realmente o que levava posto não era o indicado para o que tinha de tratar, o mais próprio seria um fato normal, casaco e calças, nem sou turista nem vou veranear ao campo. Quinze minutos depois saía, Helena acompanhou-o até à entrada do elevador, havia nos olhos dela o brilho anunciador do choro, ainda Tertuliano Máximo Afonso não teve tempo de chegar à rua e já ela estará desfeita em lágrimas, repetindo a pergunta até agora sem resposta, Que se passa, que se passa.
Tertuliano Máximo Afonso entrou no automóvel, a primeira ideia é afastar-se daqui, ir estacionar num sítio tranquilo para reflectir a sério sobre a situação, pôr em ordem a confusão que há vinte e quatro horas se atropela dentro da sua cabeça, e, finalmente, decidir o que fará. Pôs o carro em andamento, e foi só virar a esquina e compreender que não precisava para nada de pensar, que o que tinha de fazer era simplesmente telefonar a Maria da Paz, é incrível como não me ocorreu antes, teria sido por estar fechado naquela casa e dali não poder fazer a chamada. Poucas centenas de metros adiante encontrou uma cabina telefónica. Parou o carro, entrou de um salto e rapidamente marcou o número. Dentro da cabina fazia um calor sufocante. A voz de mulher que perguntou de lá, Quem fala, não era sua conhecida, Desejava falar com a Maria da Paz, disse, Sim, mas, quem fala, Sou um colega dela, do banco onde trabalha, A menina Maria da Paz morreu esta manhã, um desastre de automóvel, vinha com o noivo e morreram os dois, foi uma desgraça, uma grande desgraça. Em um instante, da cabeça aos pés, o corpo de Tertuliano Máximo Afonso ficou alagado de suor. Balbuciou algumas palavras que a mulher não conseguiu perceber, Que disse, que foi que disse, algumas palavras que já não recorda nem recordará, que se lhe esqueceram para sempre, e, sem se dar conta do que fazia, como um autómato a que de repente foi cortada a energia, deixou cair o auscultador. Imóvel dentro da fornalha da cabina, ouvia uma palavra, uma só, a retumbar-lhe nos ouvidos, Morreu, mas logo outra palavra lhe veio tomar o lugar, e essa gritava, Mataste-a. Não a matou por condução temerária António Claro, supondo que tivesse sido essa a causa do acidente, matou-a ele, Tertuliano Máximo Afonso, matou-a a sua fraqueza moral, matou-a uma vontade que o tomou cego para tudo quanto não fosse a desforra, foi dito que um deles, ou o actor, ou o professor de História, estava a mais neste mundo, mas tu não, tu não estavas a mais, de ti não existe um duplicado que venha substituir-te ao lado da tua mãe, tu sim, eras única, como qualquer pessoa comum é única, verdadeiramente única. Diz-se que só odeia o outro quem a si mesmo se odiar, mas o pior de todos os ódios deve ser aquele que leva a não suportar a igualdade do outro, e provavelmente será ainda pior se essa igualdade vier a ser alguma vez absoluta. Tertuliano Máximo Afonso saiu da cabina cambaleando em passos de bêbedo, meteu-se no carro com violência, como se se atirasse a si mesmo para dentro, e ali ficou, olhando em frente sem ver, até que não pôde aguentar mais e as lágrimas e os soluços lhe sacudiram o peito. Neste momento ama Maria da Paz como nunca a tinha amado antes nem nunca a chegaria a amar no futuro. A dor que sente é da perda dela que nasce, mas a consciência da sua culpa é o que está esvurmando uma ferida que irá segregar pus e merda para sempre. Algumas pessoas olharam-no com aquela curiosidade gratuita e impotente que não faz nem bem nem mal ao mundo, mas uma delas aproximou-se a perguntar se lhe podia ser útil em alguma coisa, e ele disse que não muito obrigado, e por ter agradecido chorou ainda mais, foi como se lhe tivessem vindo pôr uma mão no ombro e lhe dissessem, Tenha paciência, com o tempo o seu desgosto há-de passar, é verdade, com o tempo tudo passa, mas há casos em que o tempo se demora a dar tempo para que a dor se canse, e casos houve e haverá, felizmente mais raros, em que nem a dor se cansou nem o tempo passou. Esteve assim até não ter mais lágrimas para chorar, até que o tempo decidiu pôr-se outra vez em movimento e perguntar, E agora, aonde pensas tu ir, e eis que Tertuliano Máximo Afonso, de acordo com todas as probabilidades convertido em António Claro para o resto da vida, compreendeu que não tinha onde acolher-se. Em primeiro lugar, a casa a que antes chamava sua pertencia a Tertuliano Máximo Afonso, e Tertuliano Máximo Afonso está morto, em segundo lugar, não pode ir daqui à casa que era de António Claro e dizer a Helena que o seu marido morreu porque, para ela, António Claro é ele próprio, e, finalmente, quanto à casa de Maria da Paz, aonde aliás nunca foi convidado, só se fosse para apresentar uns inúteis pêsames à pobre mãe órfã da sua filha. O natural seria que neste exacto momento Tertuliano Máximo Afonso pensasse em uma outra mãe que, se já foi informada da triste novidade, igualmente estará chorando as lágrimas inconsoláveis da orfandade materna, mas a firme consciência de que, entre ele e ele mesmo, é e sempre há-de ser Tertuliano Máximo Afonso, e que, por consequência, está vivo como tal, devia ter-lhe bloqueado temporariamente o que de certeza teria sido, em outras circunstâncias, o seu primeiro impulso. Por enquanto ainda terá de encontrar resposta à pergunta que havia ficado atrás, E agora, aonde pensas tu ir, dificuldade, vendo bem, das mais fáceis de resolver numa cidade que nem necessitaria ser a metrópole imensa que esta é, com hotéis e pensões para todos os gostos e preços. Aí é que terá de ir, e não apenas por algumas horas para se defender do calor e chorar à vontade. Uma coisa foi ter dormido a noite passada com Helena, quando fazê-lo não passava de um simples lance de jogo, se tu vais dormir com a minha mulher, eu vou dormir com a tua, isto é, olho por olho, dente por dente, como manda a lei de talião, nunca com mais propriedade aplicada como neste caso, porque, significando a nossa actual palavra idêntico o mesmo que o étimo latino talis, donde o nome lhe veio, se idênticos foram os delitos cometidos, idênticos foram também os que os cometeram. Um coisa, permita-se-nos que voltemos ao começo da frase, foi haver passado a noite com Helena quando ninguém podia adivinhar que a morte se estava a preparar para entrar no jogo e dar xeque-mate, outra coisa seria, sabendo-se que António Claro está morto, e mesmo que amanhã os jornais digam que o defunto se chamava Tertuliano Máximo Afonso, ir dormir segunda noite com ela, carregando assim sobre um engano outro engano pior. Nós, seres humanos, embora continuemos a ser, uns mais, outros menos, tão animais como antes, temos alguns sentimentos bons, às vezes até um resto ou um princípio de respeito por nós próprios, e este Tertuliano Máximo Afonso, que em tantas ocasiões se comportou de modo a justificar as nossas mais acerbas censuras, não ousará dar o passo que, aos nossos olhos, de uma vez para sempre o condenaria. Irá portanto à procura de um hotel, e amanhã se verá. Pôs o carro em marcha e conduziu-o em direcção ao centro, onde terá mais possibilidades de escolha, no fim de contas bastar-lhe-á um hotelzinho de duas estrelas, é só por uma noite, E quem me diz a mim que vai ser só por uma noite, pensou, aonde irei eu dormir amanhã, e depois, e depois, e depois, pela primeira vez o futuro apareceu-lhe como um lugar em que certamente continuarão a ser precisos os professores de História, mas não este, em que o próprio actor Damel Santa-Clara não terá outro remédio que renunciar à sua auspiciosa carreira, em que será preciso descobrir um qualquer ponto de equilíbrio que exista entre ter sido e continuar a ser, sem dúvida é reconfortante que a nossa consciência nos diga, Sei quem és, mas ela própria poderá começar a duvidar de nós e do que diz se perceber, ao redor, que as pessoas andam a passar umas às outras a incómoda pergunta, E este, quem é.
O primeiro que teve oportunidade de manifestar esta curiosidade pública foi o empregado da recepção do hotel quando a Tertuliano Máximo Afonso pediu um documento que o identificasse, e há que dar graças ao céu por não lhe ter perguntado primeiro como se chamava, porque bem poderia ter sucedido que Tertuliano Máximo Afonso tivesse deixado sair, pela força do hábito, o nome que durante trinta e oito anos havia sido o seu e agora é pertença de um corpo destroçado que numa câmara frigorífica qualquer aguarda a autópsia a que os mortos de acidente por via de regra não escapam. O cartão de identidade que apresentou tem pois o nome de António Claro, a cara da fotografia aposta nele é a mesma que o recepcionista tem na sua frente e que detidamente se poria a examinar se houvesse razão para dar-se a esse trabalho. Não a há, Tertuliano Máximo Afonso já assinou a sua ficha de hóspede, nestes casos serve um simples rabisco desde que mostre alguma semelhança com a assinatura formal, já tem a chave do quarto na mão, já disse que não traz bagagem, e para reforçar uma verosimilhança que ninguém lhe havia pedido, explicou que perdeu o avião, que deixou as malas no aeroporto, e por isso é que não fica mais que uma noite. Tertuliano Máximo Afonso mudou de nome, mas continua a ser a mesma pessoa que acompanhámos à loja dos vídeos, que sempre fala mais do que é preciso, que não sabe ser natural, o que lhe valeu foi que o empregado da recepção tem outros assuntos em que pensar, o telefone que toca, uns quantos estrangeiros que acabam de chegar ajoujados de malas e sacos de viagem. Tertuliano Máximo Afonso subiu ao quarto, pôs-se à vontade, foi à casa de banho para aliviar a bexiga, salvo ter perdido o avião, como disse ao recepcionista, parecia que não tinha outras preocupações, mas isso foi enquanto não se estendeu na cama com a intenção de descansar um pouco, imediatamente a imaginação lhe pôs diante um automóvel reduzido a um montão de sucata e dentro dele, miseramente sangrando, dois corpos destroçados. Voltaram as lágrimas, voltaram os soluços, e sabe-se lá por quanto tempo continuaria assim se de súbito a escandalizada recordação da mãe não tivesse irrompido no seu desnorteado cérebro. Sentou-se de um pulo, deitou mão ao telefone ao mesmo tempo que se ia cobrindo mentalmente de insultos, sou uma besta, um estúpido, um idiota total, um imbecil, não passo de um cretino, como foi possível não ter pensado que a polícia me iria bater à porta, que interrogaria os vizinhos para averiguar se tenho parentes, que a vizinha de cima lhe daria a morada e o número do telefone da minha mãe, como foi possível esquecer-me de uma coisa que se metia pelos olhos dentro, como foi possível. Ninguém atendia de lá. O telefone tocava, tocava, mas ninguém apareceu a perguntar, Quem fala, para que finalmente Tertuliano Máximo Afonso pudesse responder, Sou eu, estou vivo, a polícia enganou-se, depois explico. A mãe não se encontrava em casa, e este facto, insólito noutra situação, só podia significar que vinha a caminho, que tinha alugado um táxi e vinha a caminho, talvez até já tivesse chegado, e, sendo assim, foi pedir a chave à vizinha de cima e agora está chorando o seu desgosto, pobre mãe, que bem me tinha avisado. Tertuliano Máximo Afonso marcou o número do seu telefone, e uma vez mais não lhe responderam. Esforçou-se por pensar serenamente, por aclarar a turvação do espírito, ainda que a polícia tivesse sido exemplarmente diligente precisou de tempo para realizar e concluir as investigações, há que recordar que esta cidade é um imenso formigueiro de cinco milhões de habitantes irrequietos, que são muitos os acidentes e os acidentados muitos mais, que é necessário identificá-los, ir depois à procura das famílias, tarefa nem sempre fácil porque há pessoas tão descuidadas que vão para a estrada sem ao menos um papel no bolso que previna, Se me suceder algum desastre, chamem fulano ou fulana de tal. Felizmente Tertuliano Máximo Afonso não é dessas pessoas, pelos vistos também Maria da Paz não o era, na agenda de cada um deles, na folhinha reservada aos dados pessoais, estava tudo quanto era necessário a uma identificação perfeita, pelo menos para as primeiras necessidades, que quase sempre acabam por ser as últimas. Ninguém que não fosse um fora-da-lei andaria a passear-se por aí com documentos falsos ou subtraídos a outra pessoa, donde é legítimo concluir, reportando-nos ao caso presente, que aquilo que pareceu à polícia o era de facto, tanto mais que, Dão havendo quaisquer motivos para duvidar da identidade de uma das vítimas, não se vê por que diabo de razão teria de havê-los em relação à outra. Tertuliano Máximo Afonso ligou novamente, e novamente não teve resposta. Já não pensa em Maria da Paz, agora o que quer saber é onde está Carolina Máximo, os táxis de hoje são máquinas potentíssimas, não as chocolateiras de antigamente, e, numa situação dramática como esta, nem seria preciso aliciar o condutor com a promessa de uma gratificação para que ele pisasse o acelerador, em menos de quatro horas deveria aqui estar, e, sendo este dia sábado e tempo de férias, com o trânsito nas ruas reduzido ao mínimo, ela já tinha mais do que obrigação de estar em casa para tranquilizar o desassossego deste filho. Tornou a ligar e, desta vez, sem que o esperasse, o gravador entrou em funcionamento, Fala Tertuliano Máximo Afonso, deixe o seu recado por favor, o choque foi fortíssimo, de tão perturbado que tem estado não se deu conta de que o mecanismo de gravação não havia entrado em acção antes, e agora foi como se de repente tivesse ouvido uma voz que não era sua, a voz de um morto desconhecido que amanhã vai ser necessário substituir pela de um vivo qualquer para que não impressione as pessoas sensíveis, operação de tirar-e-pôr que todos os dias é realizada milhares e milhares de vezes em todos os lugares do mundo, ainda que em tal não nos agrade pensar. Tertuliano Máximo Afonso precisou de alguns segundos para serenar e recuperar a sua própria voz, depois, trémulo, disse, Minha mãe, não é verdade o que lhe disseram, estou vivo e são, depois lhe explicarei o que se passou, repito, estou vivo e são, vou dar-lhe o nome do hotel em que me encontro hospedado, o número do quarto e o número do telefone, ligue assim que chegar aí, não chore mais, não chore mais, talvez Tertuliano Máximo tivesse dito terceira vez estas palavras, se ele próprio não tivesse rebentado em lágrimas, pela mãe, por Maria da Paz, cuja recordação aí estava outra vez, também por piedade de si mesmo. Exausto, deixou-se cair na cama, sentia-se fraco, débil como uma criança doente, lembrou-se de que não havia ali-doçado e a ideia, em vez de lhe despertar o apetite, provocou-lhe uma náusea tão violenta que teve de levantar-se e correr como pôde à casa de banho onde os sucessivos arrancos não lhe fizeram subir do estômago mais do que uma espuma amarga, Voltou ao quarto, sentou-se na cama com a cabeça entre as mãos deixando vogar o pensamento como um barquinho de cortiça que desce a corrente e de vez em quando, ao chocar com uma pedra, por um instante muda de rumo. Foi graças a este divagar meio consciente que se lembrou de algo importante que deveria ter comunicado à mãe. Ligou para casa pensando que a máquina lhe iria fazer outra vez a desfeita de não funcionar, e soltou um suspiro de alívio quando o gravador, após uns segundos de hesitação, deu sinal de vida. Usou poucas palavras para deixar o recado, disse apenas, Tome nota de que é António Claro o nome, não se esqueça, e depois, como se tivesse acabado de descobrir um elemento de peso para a definitiva elucidação das comutativas e instáveis identidades em liça, aditou a seguinte informação, O cão chama-se Tomarctus. Quando a mãe chegar já não precisará de lhe recitar os nomes do pai e dos avós, dos tios maternos e paternos, já não terá de falar do braço partido quando caiu da figueira, nem da sua primeira namorada, nem do raio que deitou abaixo a chaminé da casa quando ele tinha dez anos. Para que Carolina Afonso venha a ter a certeza absoluta de que diante de si se encontra o filho das suas entranhas não fará falta o maravilhoso instinto maternal nem as científicas provas confirmadoras do ADN, o nome de um simples cão bastará.
Passou quase uma hora antes que o telefone tocasse. Sobressaltado, Tertuliano Máximo Afonso levantou-o rapidamente, esperando ouvir a voz da mãe, mas o que lhe saiu foi o empregado da recepção, que dizia, Está aqui a senhora Carolina Claro, que lhe quer falar, É a minha mãe, balbuciou, eu desço, eu desço já. Saiu a correr, ao mesmo tempo que se ia repreendendo, Tenho de dominar-me, não devo exagerar nas mostras de carinho, quanto menos dermos nas vistas, melhor. A lentidão do elevador ajudou-o a moderar o caudal de emoções, e foi já um Tertuliano Máximo Afonso bastante aceitável aquele que apareceu no átrio do hotel e abraçou a idosa senhora, a qual, fosse por acerto do instinto ou por efeito de meditada ponderação no táxi que a trouxe aqui, retribuiu com comedimento as demonstrações de afecto filial, sem as vulgares exuberâncias passionais que se exprimem em frases do tipo Ai o meu rico filho, embora, no caso do presente drama, devesse ser Ai o meu pobre filho a mais adequada à situação. Os abraços, os choros convulsos tiveram de esperar até chegarem ao quarto, até que a porta se fechou e o filho ressuscitado pôde dizer Minha mãe, e ela não teve outras palavras senão as que conseguiam sair-lhe do coração agradecido, És tu, és tu. Esta mulher, porém, não é das que são fáceis de contentar, daquelas a quem um afago faz logo olvidar um agravo, que neste caso nem contra ela havia sido, mas contra a razão, o respeito, e também o senso comum, para que não se diga que já nos esquecemos de quem fez tudo quanto pôde para que a história dos homens duplicados não terminasse em tragédia. Carolina Máximo não empregará este termo, dirá apenas, Há duas pessoas mortas, agora conta-me desde o princípio como foi possível que isto acontecesse, e não me ocultes nada, por favor, o tempo das meias verdades chegou ao fim, e o das meias mentiras também. Tertuliano Máximo Afonso puxou uma cadeira para a mãe se sentar,. sentou-se ele próprio na borda da cama, e começou o seu relato. Desde o princípio, como lhe fora exigido. Ela não o interrompeu, somente por duas vezes se alterou a sua expressão, a primeira na altura em que António Claro dizia que ia levar Maria da Paz à casa de campo para fazer amor com ela, a segunda quando o filho explicou como e porque havia ido a casa de Helena e o que depois lá se passou. Moveu os lábios a dizer, Loucos, mas a palavra não se ouviu. A tarde havia descido, a penumbra já encobria as feições de um e do outro. Quando Tertuliano Máximo Afonso se calou, a mãe fez a pergunta inevitável, E agora, Agora, minha mãe, o Tertuliano Máximo Afonso que fui está morto, e o outro, se quiser continuar a fazer parte da vida, não terá outro remédio que ser António Claro, E por que não contar a verdade, por que não dizer o que se passou, por que não pôr todas as coisas nos seus lugares, Acabou de ouvir o que sucedeu, Sim, e depois, Pergunto-lhe, minha mãe, se realmente acha que estas quatro pessoas, as mortas e as vivas, deveriam ser atiradas à praça pública para regalo e disfrute da feroz curiosidade do mundo, e que ganharíamos com isso, os mortos não ressuscitariam e os vivos começariam a morrer nesse dia, Que fazer, então, A mãe acompanhará o enterro do falso Tertuliano Máximo Afonso e chorá-lo-á como se ele fosse o seu filho, a Helena irá também, mas ninguém poderá saber por que está ela ali, E tu, Já lhe disse, sou António Claro, quando acendermos a luz a cara que lhe aparecerá será a dele, não a minha, És o meu filho, Sim, sou o seu filho, mas não o poderei ser, por exemplo, na cidade onde nasci, estou morto para as pessoas de lá, e quando a mãe e eu nos quisermos ver terá de ser num lugar em que ninguém tenha tido conhecimento da existência de um professor de História chamado Tertuliano Máximo Afonso, E Helena, Amanhã irei pedir-lhe que me perdoe e restituir-lhe este relógio e esta aliança de casamento, E para chegar a isso tiveram de morrer duas pessoas, Que eu matei, e uma delas vítima inocente, sem nenhuma culpa. Tertuliano Máximo Afonso levantou-se e foi acender a luz. A mãe estava a chorar. Durante alguns minutos permaneceram calados, evitando olhar-se um ao outro. Depois a mãe murmurou enquanto passava o lenço húmido pelas pálpebras, A velha Cassada tinha razão, não devias ter deixado entrar o cavalo de madeira, Agora já não há remédio, Sim, agora já não há remédio, e no futuro também não o haverá, todos estaremos mortos. Ao cabo de um curto silêncio Tertuliano Máximo Afonso perguntou, A polícia falou-lhe das circunstâncias do acidente, Disseram-me que o carro saiu da faixa e foi chocar contra um camião TIR que seguia em sentido contrário, também me disseram que a morte deles deve ter sido instantânea, É estranho, Estranho, quê, Tinha a ideia de que ele seria um bom condutor, Algo terá sucedido, Podia ter derrapado, podia haver óleo na estrada, Disso não me falaram, só que o carro saiu da faixa e foi chocar com o camião. Tertuliano Máximo Afonso tomou a sentar-se na borda da cama, olhou o relógio e disse, Vou pedir à recepção que lhe reservem um quarto, jantamos e fica no hotel esta noite, Prefiro ir para casa, depois de comermos chamas um táxi, Eu levo-a, ninguém me verá, E como me vais levar tu, se já não tens carro, Estou com o que era dele. A mãe abanou a cabeça tristemente e disse, O carro dele, a mulher dele, só falta que passes a ter também a sua vida, Terei de descobrir outra melhor para mim, e agora, por favor, vamos comer qualquer coisa, tréguas à desgraça. Estendeu as mãos para a ajudar a levantar-se, depois abraçou-a e disse, Lembre-se de apagar as chamadas que deixei no gravador, todos os cuidados são poucos com os gatos que se esquecem de meter o rabo para dentro. Quando acabaram de jantar, a mãe tornou a pedir, Chama-me um táxi, Eu levo-a a casa, Não podes arriscar-te a que te vejam, além disso arrepia-me só de pensar em sentar-me nesse carro, Acompanho-a no táxi e volto, Já tenho idade para andar sozinha, não insistas. À despedida Tertuliano Máximo Afonso disse, Faça por descansar, minha mãe, que bem precisa, O mais certo é que não consigamos dormir os dois, nem eu nem tu, respondeu ela.
Teve razão. Pelo menos Tertuliano Máximo Afonso não pôde fechar os olhos durante horas e horas, via o carro a sair da faixa e a precipitar-se contra o focinho enorme do camião, porquê, perguntava-se, porquê se desviou dessa maneira, talvez lhe tivesse rebentado um pneu, não, não pode ser, se assim fosse a polícia não deixaria de o referir, é certo que o carro já levava às costas um bom par de anos de contínuo serviço, mas ainda não há três meses tinha passado por uma revisão a sério e não se lhe encontrou nenhuma mazela, quer mecânica, quer eléctrica. Adormeceu já pela madrugada, mas o sono durou pouco, mal passava das sete quando bruscamente acordou com a ideia de que havia algo urgente à sua espera, seria a visita a Helena, mas para isso ainda era demasiado cedo, que será então, de repente fez-se luz na sua cabeça, o jornal, tinha de ver o que trazia o jornal, um acidente destes, praticamente às portas da cidade, é notícia. Levantou-se de um salto, vestiu-se à pressa, e saiu a correr. O recepcionista nocturno, não o que o atendera na véspera, olhou-o com desconfiança, e Tertuliano Máximo Afonso teve de dizer, Vou comprar o jornal, não fosse o outro pensar que o agitado hóspede se queria ir embora sem pagar. Não teve de ir longe, havia um quiosque na primeira esquina. Comprou três jornais, algum deles deveria falar do desastre, e voltou rapidamente ao hotel. Subiu ao quarto e começou a folheá-los ansiosamente à procura da secção dos acidentes de trânsito. Só no terceiro jornal encontrou a notícia. Havia uma fotografia que mostrava o estado de ruína em que o carro tinha ficado. Com todo o corpo a tremer, Tertuliano Máximo Afonso leu, saltando por cima dos pormenores, direito ao essencial, Ontem, pelas 9.30 da manhã, registou-se quase à entrada da cidade um violento choque entre um automóvel de turismo e um camião TIR. Os dois ocupantes do automóvel, Fulano e Fulana, imediatamente identificados pela documentação de que eram portadores, já estavam mortos quando os socorros chegaram. O condutor do camião apenas sofreu ligeiros ferimentos nas mãos e na cara. Interrogado pela polícia, que não lhe atribuiu qualquer responsabilidade pelo acidente, declarou que quando o automóvel ainda vinha a certa distância, antes de se ter desviado, lhe tinha parecido ver os dois ocupantes forcejando um com o outro, embora não pudesse dar uma certeza absoluta por causa dos reflexos dos pára-brisas. Informações posteriormente colhidas pela nossa redacção revelaram que os dois infortunados viajantes eram noivos. Tertuliano Máximo Afonso leu outra vez a notícia, pensou que àquela hora ainda ele se encontrava na cama com Helena, e depois, como era inevitável, relacionou a hora matutina a que António Claro regressava com a declaração do motorista do camião. Que se teria passado entre eles, perguntou-se, que teria sucedido na casa de campo para que ainda continuassem a discutir no automóvel, e mais que a discutir, a forcejar, como havia dito, com aptidão expressiva pouco comum, a única testemunha presencial do acidente. Tertuliano Máximo Afonso olhou o relógio. Faltavam poucos minutos para as oito horas, Helena já deveria estar levantada, Ou porventura não, o mais provável foi ter tomado um comprimido para dormir, ou para escapar, que é verbo mais certo, pobre Helena, tão inocente de tudo como estava Maria da Paz, mal ela imagina o que a espera. Eram nove horas quando Tertuliano Máximo Afonso saiu do hotel. Tinha pedido na recepção o necessário para barbear-se, tomou o pequeno-almoço e agora vai dizer a Helena a palavra que ainda falta para que a incrível história dos homens duplicados se acabe de uma vez e a normalidade da vida retome o seu curso, deixando as vítimas atrás de si, conforme é uso e costume. Se Tertuliano Máximo Afonso tivesse perfeita consciência do que vai fazer, do golpe que vai desferir, talvez fugisse dali sem dar explicações nem justificações, talvez deixasse as coisas na situação a que chegaram, a apodrecer, mas a sua mente encontra-se como embotada, sob a acção de uma espécie de anestesia que lhe ensurdeceu a dor e agora o está a empurrar mais além da vontade. Estacionou o carro em frente do prédio, atravessou a rua, entrou no elevador, Leva o jornal dobrado debaixo do braço, mensageiro da desgraça, voz e palavra do destino, ele é a pior das Cassandras, aquela que tem por único ofício dizer, Aconteceu. Não quis abrir a porta com a chave que tem no bolso, em verdade não há mais espaço para desforços, desforras e vinganças. Tocou a campainha como aquele vendedor de livros que gabava as sublimes virtudes culturais da enciclopédia em que minuciosamente se descrevem os hábitos do tamboril, mas o que ele agora deseja, com todas as forças da sua alma, é que a pessoa que vier atendê-lo lhe diga, mesmo mentindo, Não preciso, já tenho. A porta abriu-se e Helena apareceu na meia penumbra do corredor. Encarava-o com assombro, como se tivesse perdido toda a esperança de voltar a vê-lo, mostrava-lhe o pobre rosto desfeito, os olhos pisados, era evidente que tinha falhado o comprimido que tomara para escapar de si própria. Onde estiveste, balbuciou, que se passou, não vivo desde ontem, não vivo desde que saíste daqui. Deu dois passos para os braços dele, que não se abriram, que só por piedade a não repeliram, e depois entraram juntos, ela ainda agarrada a ele, ele desajeitado, tosco, como um boneco de engonços que não acerta com os movimentos. Não falou ainda, não pronunciará uma palavra antes que ela esteja sentada no sofá, e o que lhe vai dizer parecerá apenas a inócua declaração de quem desceu à rua para comprar o jornal e agora, sem qualquer intenção oculta, se limita a comunicar, Trouxe-lhe as notícias, e estenderá a página aberta, e apontará o lugar da tragédia, Aqui está, e ela não reparará que ele não a tratou por tu, lerá com atenção o que está escrito, desviará os olhos da fotografia do carro esmagado, e murmurará, pesarosa, quando terminar, Que horror, porém, se desta maneira falou foi só porque é uma mulher de coração sensível, na verdade aquela desgraça não lhe toca a ela directamente, notou-se até, em contradição com a significação solidária das palavras pronunciadas, um certo tom que se assemelhava a alívio, obviamente involuntário, mas que as palavras ditas a seguir já expressaram de modo inteligível, Foi uma infelicidade, não me dá nenhuma alegria, pelo contrário, mas ao menos serviu para acabar com a confusão. Tertuliano Máximo Afonso não se tinha sentado, estava de pé diante dela, como devem permanecer os mensageiros em exercício, porque outras notícias há para dar, e estas vão ser as piores. Para Helena, o jornal já é uma coisa do passado, o presente concreto, o presente palpável, é este seu marido regressado, António Claro se chama, ele vai dizer-lhe o que fez na tarde de ontem e esta noite, que assuntos importantes foram esses para a ter deixado sem uma palavra durante tantas horas. Tertuliano Máximo Afonso percebe que não pode esperar nem mais um minuto, ou então será obrigado a calar-se para sempre. Disse, O homem que morreu não era Tertuliano Máximo Afonso. Ela fitou-o inquieta e deixou sair da boca três palavras que de pouco serviam, Quê, que disseste, e ele repetiu, sem a olhar, Não era Tertuliano Máximo Afonso o homem que morreu. A inquietação de Helena transformou-se de súbito em um medo absoluto, Quem era, então, O seu marido. Não havia outra maneira de lho dizer, não havia no mundo um só discurso preparatório que valesse, era inútil e cruel pretender aplicar a ligadura antes da ferida. Em desespero, alucinada, Helena ainda tentou defender-se da catástrofe que lhe desabava em cima, Mas os documentos de que o jornal fala eram desse Tertuliano de má morte. Tertuliano Máximo Afonso tirou a carteira do bolso do casaco, abriu-a, extraiu lá de dentro o cartão de identidade de António Claro e estendeu-lho. Ela pegou-lhe, olhou a fotografia que havia nele, olhou o homem que tinha na frente, e compreendeu tudo. A evidência dos factos reconstituiu-se-lhe na mente como um jorro brutal de luz, a monstruosidade da situação asfixiava-a, durante um rápido momento pareceu que ia perder os sentidos. Tertuliano Máximo Afonso adiantou-se, agarrou-lhe as mãos com força, e ela, abrindo uns olhos que eram como uma lágrima imensa, retirou-as bruscamente, mas depois, sem força, abandonou-as, o choro convulso tinha-lhe evitado o desmaio, agora os soluços abalavam-lhe o peito sem compaixão, Também chorei assim, pensou ele, é assim que choramos perante o que não tem remédio. E agora, perguntou ela lá do fundo da cisterna onde se afogava, Desapareço para sempre da sua vida, respondeu ele, não me tomará a ver nunca mais, gostaria de lhe pedir perdão, mas não me atrevo, seria ofendê-la outra vez, Não foste o único culpado, Sim, mas a minha responsabilidade é maior, sou réu de cobardia e por causa dela duas pessoas estão mortas, Maria da Paz era realmente tua noiva, Sim, Amava-la, Gostava dela, íamos casar, E deixaste que ela fosse com ele, Já lhe disse, por cobardia minha, por fraqueza, E vieste aqui para te vingares, Sim. Tertuliano Máximo Afonso endireitou-se, deu um passo atrás. Repetindo os movimentos que António Claro havia feito quarenta e oito horas antes, desafivelou o relógio de pulso, que pôs sobre a mesa, e depois colocou-lhe ao lado a aliança de casamento. Disse, Mando-lhe pelo correio este fato que tenho vestido. Helena pegou no anel, olhou-o como se fosse esta a primeira vez. Distraidamente, parecendo que queria desfazer o invisível sinal deixado, Tertuliano Máximo Afonso esfregou entre o indicador e o polegar da mão direita o dedo da esquerda de onde retirara a aliança. Nenhum deles pensou, nenhum deles virá alguma vez a pensar que a falta deste anel no dedo de António Claro poderia ter sido a causa directa das duas mortes, e contudo assim foi. Ontem de manhã, na casa de campo, António Claro dormia ainda quando Maria da Paz acordou. Ele estava deitado sobre o lado direito, com a mão esquerda descansando na almofada onde ela pousava a cabeça, mesmo à altura dos olhos.
Os pensamentos de Maria da Paz eram confusos, oscilavam entre o mole bem-estar do corpo e um desassossego do espírito para o qual não encontrava explicação. A luz cada vez mais intensa que vinha penetrando pelas frinchas das rústicas portadas das janelas iluminava a pouco e pouco o quarto. Maria da Paz suspirou e virou a cabeça para o lado de Tertuliano Máximo Afonso. A mão esquerda dele quase lhe encobria o rosto. O dedo anelar mostrava a marca circular e esbranquiçada que as alianças longamente usadas deixam na pele. Maria da Paz estremeceu, julgou que estava a ver mal, que estava a sonhar o pior dos pesadelos, este homem igual a Tertuliano Máximo Afonso não é Tertuliano Máximo Afonso, Tertuliano Máximo Afonso não usa anéis desde que se divorciou, a marca do seu dedo há muito tempo que se desvaneceu. O homem dormia placidamente. Maria da Paz deslizou com mil cautelas para fora da cama, recolheu as suas roupas dispersas e saiu do quarto. Vestiu-se na sala de entrada, ainda demasiado aturdida para pensar com lucidez, impotente para encontrar uma resposta à pergunta que lhe dava voltas na cabeça, Estarei louca. Que o homem que a tinha trazido aqui e com quem passara a noite não era Tertuliano Máximo Afonso, disso tinha completa certeza, mas, se não era ele, quem seria então, e como é possível que neste mundo existam duas pessoas exactamente iguais, ao ponto de em tudo se confundirem, no corpo, nos gestos, na voz. Pouco a pouco, como quem vai procurando e descobrindo as peças certas para o puzzle, começou a relacionar acontecimentos e acções, recordou palavras equívocas que havia escutado a Tertuliano Máximo Afonso, as suas evasivas, a carta recebida da produtora de cinema, a promessa que ele fizera de que um dia lhe contaria tudo. Não podia ir mais longe, continuaria a não saber quem era este homem, salvo se ele próprio o dissesse. A voz de Tertuliano Máximo Afonso ouviu-se lá de dentro, Maria da Paz. Ela não respondeu, e a voz insistiu, insinuante, cariciosa, Ainda é cedo, vem para a cama. Ela levantou-se da cadeira onde se havia deixado cair e dirigiu-se ao quarto. Não passou da entrada. Ele disse, Que ideia foi essa de te vestires, vá, tira a roupa e salta para aqui, a festa ainda não acabou, Quem é você, perguntou Maria da Paz, e antes que ele respondesse, De que anel é a marca que tem no dedo. António Claro olhou a mão e disse, Ah, isto, Sim, isso, você não é o Tertuliano, Não sou, de facto não sou o Tertuliano, Quem é, então, Por agora, contenta-te com saber quem não sou, mas quando estiveres com o teu amigo podes perguntar-lhe, Perguntarei, preciso de saber por quem fui enganada, Por mim, em primeiro lugar, mas ele ajudou, ou melhor, o pobre homem não teve outro remédio, o teu noivo não é propriamente um herói. António Claro saiu da cama completamente despido e veio para Maria da Paz a sorrir, Que importância tem que eu seja um ou seja outro, deixa-te de perguntas e vem para a cama. Desesperada, Maria da Paz deu um grito, Canalha, e fugiu para a sala. António Claro apareceu daí a pouco, já vestido e pronto para sair. Disse com indiferença, Não tenho paciência para mulheres histéricas, vou-te pôr à porta de casa, e adeus. Trinta minutos depois, a grande velocidade, o automóvel chocava com o camião, Não havia óleo na estrada. A única testemunha presencial declarou à polícia que, embora não pudesse ter a certeza absoluta por causa dos reflexos dos pára-brisas, lhe tinha parecido ver que os dois ocupantes do carro forcejavam um com o outro.
Tertuliano Máximo Afonso dissera finalmente, Oxalá chegue um dia em que possa perdoar-me, e Helena respondeu, Perdoar não é mais que uma palavra, As palavras são tudo quanto temos, Aonde vais agora, Por aí, a recolher os cacos e a disfarçar as cicatrizes, Como António Claro, Sim, o outro está morto, Helena ficou calada, tinha a mão direita pousada em cima do jornal, a sua aliança de casamento brilhava-lhe na mão esquerda, a mesma que ainda segurava na ponta dos dedos o anel que fora do marido. Então disse, Resta-te uma pessoa que pode continuar a chamar-te Tertuliano Máximo Afonso, Sim, a minha mãe, Está na cidade, Sim, Há outra, Quem, Eu, Não terá ocasião, não nos voltaremos a ver, Depende de ti, Não compreendo, Estou a dizer-te que fiques comigo, que tomes o lugar do meu marido, que sejas em tudo e para tudo António Claro, que lhe continues a vida, já que lha tiraste, Que eu fique aqui, que vivamos juntos, Sim, Mas nós não nos amamos, Talvez não, Pode vir a odiar-me, Talvez sim, Ou odiá-la eu a si, Aceito o risco, seria mais um caso único no mundo, uma viúva que se divorciou, Mas o seu marido devia ter família, pais, irmãos, como posso eu fazer as vezes dele, Ajudar-te-ei, Ele era actor, eu sou professor de História, Esses são alguns dos cacos que terás de recompor, mas cada coisa tem seu tempo, Talvez venhamos a amar-nos, Talvez sim, Não creio que possa odiá-la, Nem eu a ti. Helena levantou-se e aproximou-se de Tertuliano Máximo Afonso. Pareceu que o ia beijar, mas não, que ideia, um pouco de respeito, por favor, ainda não nos esquecemos de que há um tempo para cada coisa. Tomou-lhe a mão esquerda e, devagar, muito devagar, para dar tempo a que o tempo chegasse, enfiou-lhe a aliança no dedo. Tertuliano Máximo Afonso puxou-a levemente para si e ficaram assim, quase abraçados, quase juntos, à beira do tempo.
O enterro de António Claro foi daí a três dias. Helena e a mãe de Tertuliano Máximo Afonso tinham ido representar os seus papéis, uma a prantear um filho que não era seu, outra a fingir que o morto lhe era desconhecido. Ele havia ficado em casa, a ler o livro sobre as antigas civilizações mesopotâmicas, capítulo dos arameus. O telefone tocou. Sem pensar que poderia ser algum dos seus novos pais ou irmãos, Tertuliano Máximo Afonso levantou o auscultador e disse, Estou. Do outro lado uma voz igual à sua exclamou, Até que enfim. Tertuliano Máximo Afonso estremeceu, nesta mesma cadeira deveria ter estado sentado António Claro na noite em que lhe telefonou. Agora a conversação vai repetir-se, o tempo arrependeu-se e voltou para trás. É o senhor Daniel Santa-Clara, perguntou a voz, Sim, sou eu, Andava há semanas à sua procura, mas finalmente encontrei-o, Que deseja, Gostaria de me encontrar pessoalmente consigo, Para quê, Deve ter reparado que as nossas vozes são iguais, Parece-me notar uma certa semelhança, Semelhança, não, igualdade, Como queira, Não é só nas vozes que somos parecidos, Não entendo, Qualquer pessoa que nos visse juntos seria capaz de jurar que somos gémeos, Gémeos, Mais que gémeos, iguais, Iguais, como, Iguais, simplesmente iguais, Acabemos com esta conversa, tenho que fazer, Quer dizer que não acredita em mim, Não acredito em impossíveis, Tem dois sinais no antebraço direito, um ao lado do outro, Tenho, Eu também, Isso não prova nada, Tem uma cicatriz debaixo da rótula esquerda, Sim, Eu também. Tertuliano Máximo Afonso respirou fundo, depois perguntou, Onde está, Numa cabina telefónica não muito longe da sua casa, E onde posso encontrá-lo, Terá de ser num sítio isolado, sem testemunhas, Evidentemente, não somos quaisquer fenómenos de feira. A voz do outro lado sugeriu um parque na periferia da cidade e Tertuliano Máximo Afonso disse que estava de acordo, Mas os carros não podem entrar, observou, Melhor assim, disse a voz, É essa também a minha opinião, Há uma parte de bosque depois do terceiro lago, espero-o aí, Talvez eu chegue primeiro, Quando, Agora mesmo, dentro de uma hora, Muito bem, Muito bem, repetiu Tertuliano Máximo Afonso pousando o telefone. Puxou uma folha de papel e escreveu sem assinar, Voltarei. Depois foi ao quarto, abriu a gaveta onde estava a pistola. Introduziu o carregador na coronha e transferiu um cartucho para a câmara. Mudou de roupa, camisa lavada, gravata, calças, casaco, os sapatos melhores. Entalou a pistola no cinto e saiu.