34 A Última Aldeia

Passava do anoitecer quando chegaram a Carysford, mais tempo do que Rand imaginara que levaria pelo que Mestre Kinch dissera ao deixá-los. Ficou se perguntando se todo o seu senso de tempo estaria prejudicado. Apenas três noites desde Howal Gode e Quatro Reis, duas desde que Paitr os havia surpreendido em Mercado de Sheran. Somente um dia desde que a Amiga das Trevas sem nome tentara matá-los no estábulo da O Homem da Rainha, mas mesmo isso parecia ter acontecido havia um ano, ou uma vida inteira.

O que quer que estivesse acontecendo ao tempo, Carysford parecia normal o bastante, pelo menos na superfície. Casas bonitinhas de tijolos vermelhos cobertas por trepadeiras e alamedas estreitas, exceto pela própria estrada de Caemlyn, quieta e aparentemente pacífica. Mas o que há por baixo disso?, Rand se perguntou. Mercado de Sheran parecera um lugar pacífico, assim como a aldeia onde a mulher… Ele não soubera o nome dela, e não queria mais pensar nisso.

A luz se derramava das janelas das casas para as ruas, que estavam quase completamente vazias. Isso agradou a Rand. Esgueirando-se de uma esquina a outra, ele evitava as poucas pessoas. Mat permanecia do seu lado, parando quando o som de cascalho esmigalhado anunciava a aproximação de um aldeão, esquivando-se de sombra em sombra quando o vulto indistinto passava.

O Rio Cary tinha pouco mais de trinta passos de largura ali, e a água negra se movia preguiçosamente, mas o vau havia sido coberto por uma ponte havia muito tempo. Séculos de chuva e vento haviam desgastado os pilares de pedra até que eles quase parecessem formações naturais. Anos de carroções de carga e comboios de mercadores também desgastaram as grossas tábuas de madeira. Tábuas soltas chacoalhavam sob suas botas, fazendo um som alto como o de tambores. Até muito tempo depois de terem atravessado a aldeia e entrado no campo adiante, Rand esperou que alguma voz lhes perguntasse quem eram. Ou, pior, que já soubesse quem eram.

O campo ia ficando cada vez mais habitado à medida que avançavam. Sempre havia uma luz de casa de fazenda à vista. Cercas-vivas e cercas de trilhos ladeavam a estrada e os campos, que se estendiam infinitamente, sem nenhum trecho de floresta perto da estrada. Parecia que estavam sempre nos arredores de alguma aldeia, mesmo quando estavam a horas de distância da cidade mais próxima. Tudo bem-cuidado e pacífico. E sem nenhuma indicação de que Amigos das Trevas ou coisa pior pudessem estar à espreita.

Subitamente Mat se sentou na estrada. Ele havia puxado o cachecol para o topo da cabeça, agora que a única luz vinha da lua.

— Dois passos para cada braça — resmungou. — Mil braças para cada milha, quatro milhas para cada légua… Não vou dar mais dez passos a menos que haja um lugar para dormir ao final deles. Algo para comer também não cairia mal. Você não escondeu nada nos bolsos, escondeu? Uma maçã, talvez? Não vou me zangar com você. Você podia pelo menos procurar.

Rand espiou a estrada para cima e para baixo. Eles eram as únicas coisas que se moviam na noite. Olhou de relance para Mat, que havia tirado uma bota e estava massageando o pé. Ou tinham sido as únicas coisas que se moviam na noite. Seus próprios pés doíam também. Um tremor lhe subiu pelas pernas como se para dizer que ele ainda não havia recuperado tanta força quanto imaginava.

Montinhos escuros se destacavam num campo logo à frente deles. Montes de feno, reduzidos de tamanho pela alimentação do inverno, mas montes de feno mesmo assim.

Ele cutucou Mat com a ponta do dedão do pé.

— Vamos dormir ali.

— Montes de feno de novo. — Mat suspirou, mas enfiou a bota no pé e se levantou.

O vento estava aumentando, o frio da noite também. Eles pularam os mourões lisos da cerca e logo estavam se enfiando no feno. A lona que protegia o feno da chuva cortava o vento também.

Rand se contorceu no buraco que havia criado até encontrar uma posição confortável. O feno ainda conseguia espetá-lo através da roupa, mas já havia aprendido a tolerar isso. Tentou contar os palheiros nos quais havia dormido desde Ponte Branca. Os heróis das histórias nunca tinham de dormir em palheiros, nem debaixo de cercas-vivas. Mas se tornara difícil fingir que era o herói de uma história, mesmo que por um instante. Com um suspiro, puxou o colarinho para cima na esperança de evitar que o feno descesse por suas costas.

— Rand? — perguntou Mat baixinho. — Rand, você acha que a gente vai conseguir chegar?

— A Tar Valon? Ainda falta muito, mas…

— Caemlyn. Você acha que a gente vai conseguir chegar a Caemlyn?

Rand levantou a cabeça, mas estava escuro no buraco deles; a única coisa que lhe dizia onde Mat estava era a voz.

— Mestre Kinch disse dois dias. No dia depois de amanhã, no dia seguinte, chegaremos lá.

— Se não houver uns cem Amigos das Trevas esperando por nós na estrada, ou um ou dois Desvanecidos. — Fez-se silêncio por um momento, então Mat falou: — Acho que somos os únicos que restaram, Rand. — Parecia apavorado. — Seja lá o que for tudo isso, somos só nós dois agora. Só nós.

Rand sacudiu a cabeça. Sabia que Mat não podia ver na escuridão, mas, de qualquer maneira, era mais para si mesmo do que para Mat.

— Vá dormir, Mat — disse, cansado. Mas ele mesmo ficou deitado acordado por um longo tempo antes que o sono chegasse. Só nós.

O canto de um galo o acordou, e ele se levantou, desajeitado, na claridade que antecede a aurora, limpando o feno das roupas. Apesar de suas precauções, um pouco do feno havia descido por suas costas; as palhas grudavam entre suas omoplatas e pinicavam. Ele tirou o casaco e puxou a camisa para fora das calças para conseguir livrar-se delas. Foi enquanto estava com uma das mãos na nuca e a outra toda retorcida nas costas que se deu conta das pessoas.

O sol ainda não havia realmente nascido, mas já um fluxo minguado e constante seguia pela estrada, pessoas sozinhas e em duplas, andando penosamente na direção de Caemlyn, uns com sacolas e bolsas nas costas, outros sem nada a não ser um cajado para andar, se tanto. A maioria era de rapazes, mas aqui e ali se via uma garota, ou alguém mais velho. Todos tinham o aspecto sujo de viagem de quem havia caminhado muito. Uns tinham os olhos voltados para os pés e os ombros caídos de cansaço, mesmo àquela hora; outros tinham o olhar fixo em algo além da vista à frente, alguma coisa na direção da aurora.

Mat rolou para fora do palheiro, coçando-se vigorosamente. Ele só parou para enrolar o cachecol ao redor da cabeça, deixando um pouco menos de sombra aos olhos naquela manhã.

— Você acha que a gente consegue algo para comer hoje?

O estômago de Rand roncou em solidariedade.

— Podemos pensar nisso quando estivermos na estrada — disse ele. Arrumando apressadamente suas roupas, ele tirou sua parte das sacolas de dentro do palheiro.

Quando chegaram à cerca, Mat também havia notado as pessoas. Ele franziu a testa, parando no campo enquanto Rand pulava a cerca. Um jovem, não muito mais velho que eles, olhou de relance para os dois ao passar. Suas roupas estavam cheias de poeira, assim como o cobertor enrolado amarrado às costas.

— Para onde você está indo? — perguntou Mat.

— Caemlyn, ora, para ver o Dragão — o sujeito gritou para trás sem se deter. Ergueu uma sobrancelha para os cobertores e alforjes que pendiam dos ombros deles e acrescentou: — Como vocês. — Com uma gargalhada, ele seguiu em frente, os olhos, ansiosos, já buscando alguma coisa à frente.

Mat fez a mesma pergunta diversas vezes durante o dia, e as únicas pessoas que não deram a mesma resposta eram gente da região. Se estes chegavam a responder alguma coisa, era cuspindo e dando-lhes as costas, enojados. Davam as costas, mas ficavam de olho também. Olhavam para todos os viajantes da mesma forma, de soslaio. Suas expressões diziam que estranhos poderiam aprontar qualquer coisa se não fossem vigiados.

O povo da região não estava apenas desconfiado dos estranhos, parecia mais do que um pouco irritado. Havia um número relativamente grande de gente na estrada e, quando as carroças e os carroções dos fazendeiros apareceram com o sol espiando sobre o horizonte, até mesmo seu ritmo normalmente lento foi reduzido à metade. Nenhum deles estava disposto a dar carona. Um sorriso amargo, e quem sabe uma imprecação pelo trabalho que estavam perdendo, eram mais prováveis.

Os carroções dos mercadores passavam com poucos obstáculos além de um punho eventualmente sacudido, estivessem indo na direção de Caemlyn ou voltando de lá. Quando o primeiro comboio de mercadores surgiu, no começo da manhã, vindo a um trote rápido com o sol pouco acima do horizonte atrás dos carroções, Rand saiu do meio da estrada. Eles não davam sinal de reduzir a velocidade por nada, e ele viu outras pessoas saindo do caminho às pressas. Seguiu para a beira da estrada, mas continuou caminhando.

O lampejo de um movimento quando o primeiro carroção passou raspando foi todo o aviso que ele teve. Caiu estirado no chão quando o chicote do condutor do carroção estalou no ar onde sua cabeça havia estado. De onde estava, encarou o condutor quando o carroção passou. Olhos duros acima de uma boca contraída num esgar. Nem um mínimo de preocupação com a possibilidade de ter tirado sangue de Rand, ou mesmo um olho.

— A Luz o cegue! — gritou Mat na direção do carroção. — Você não pode… — Um guarda montado o acertou no ombro com a parte de trás da lança, derrubando-o em cima de Rand.

— Saia do caminho, seu Amigo das Trevas sujo! — grunhiu o guarda sem diminuir a velocidade.

Depois disso, eles se mantiveram longe dos carroções. E havia muitos deles. O clangor e o sacolejar de um comboio mal terminavam antes que se ouvisse outro chegando. Guardas e condutores, todos encaravam os viajantes que se dirigiam para Caemlyn como se estivessem vendo sujeira andar.

Uma vez Rand calculou errado o chicote de um condutor, apenas pela extensão da ponta. Levando a mão ao corte raso sobre a pálpebra, ele engoliu em seco para não vomitar com a proximidade do golpe em seu olho. O condutor lhe dirigiu um sorriso cínico. Com a outra mão Rand agarrou Mat, para impedir que ele encaixasse uma flecha no arco.

— Deixe estar — disse ele. Indicou com um movimento de cabeça os guardas que cavalgavam ao lado dos carroções. Alguns deles estavam rindo; outros olhavam sérios para o arco de Mat. — Se tivéssemos sorte, eles só nos bateriam com as lanças. Se tivéssemos sorte.

Mat grunhiu com amargura, mas deixou que Rand o puxasse pela estrada.

Por duas vezes, esquadrões dos Guardas da Rainha vieram trotando estrada abaixo, as flâmulas em suas lanças tremulando ao vento. Alguns dos fazendeiros os chamavam, querendo que alguma coisa fosse feita com relação aos estrangeiros, e os Guardas sempre paravam pacientemente para escutar. Perto do meio-dia, Rand deteve-se para ouvir uma dessas conversas.

Atrás das barras de seu capacete, a boca do capitão da Guarda era uma linha reta.

— Se um deles roubar alguma coisa, ou invadir a sua terra — grunhiu para o fazendeiro magricela franzindo a testa ao lado de seu estribo —, eu o arrastarei até um magistrado, mas eles não violam nenhuma Lei da Rainha por caminhar na Estrada da Rainha.

— Mas eles estão por toda parte — protestou o fazendeiro. — Quem sabe quem eles são, ou o que são? Toda essa conversa de Dragão…

— Luz, homem! Aqui só tem um punhado. As muralhas de Caemlyn estão inchando de tanta gente, e mais e mais chega a cada dia. — A careta do capitão aumentou ao notar Rand e Mat, parados ali perto na estrada. Ele fez um gesto indicando a estrada com uma manopla de aço. — Vão andando, ou prendo vocês por bloquearem o tráfego.

A voz dele não foi mais áspera com eles do que com o fazendeiro, mas eles se puseram em movimento. Os olhos do capitão os seguiram por um tempo; Rand podia senti-los às suas costas. Suspeitava que os Guardas não tinham mais muita paciência com os errantes, e nenhuma simpatia com um ladrão com fome. Decidiu impedir Mat se ele voltasse a sugerir que roubassem ovos.

Mesmo assim, havia um lado bom em todos aqueles carroções e pessoas na estrada, especialmente todos os rapazes que se dirigiam para Caemlyn. Para qualquer Amigo das Trevas que os caçasse, seria como tentar apanhar dois pombos em um bando. Se o Myrddraal na Noite Invernal não soubera exatamente de quem estava atrás, talvez seu companheiro não se saísse melhor ali.

Seu estômago não parava de roncar, o que o lembrava de que praticamente não tinham mais dinheiro, decerto não o bastante para uma refeição aos preços cobrados ali tão perto de Caemlyn. Houve um momento em que percebeu que estava com a mão na caixa da flauta, e firmemente a empurrou para as costas. Gode sabia tudo sobre a flauta, e também sobre o malabarismo. Não havia como dizer o quanto Ba’alzamon havia sabido dele antes do fim, se o que Rand vira fora mesmo o fim, ou quanta informação havia sido passada a outros Amigos das Trevas.

Olhou pesaroso para uma fazenda pela qual passavam. Um homem patrulhava as cercas com um par de cães, que rosnavam e tentavam escapar às guias. O homem tinha cara de quem só queria uma desculpa para soltá-los. Nem todo fazendeiro exibia, ameaçador, os cachorros, mas ninguém estava oferecendo trabalho a viajantes.

Antes que o sol se pusesse, ele e Mat passaram por mais duas aldeias. O povo se reunia em grupos, conversando entre si e vendo o fluxo constante passar. Seus rostos não eram mais amigáveis que os dos fazendeiros, ou dos condutores dos carroções, ou dos Guardas da Rainha. Todos aqueles estranhos indo ver o falso Dragão. Tolos que não entendiam que era melhor ficar nos lugares de onde vinham. Talvez seguidores do falso Dragão. Talvez até Amigos das Trevas. Se houvesse alguma diferença entre os dois.

Com a noite chegando, o fluxo começou a afinar na segunda aldeia. Os poucos que tinham dinheiro desapareceram estalagem adentro, embora aparentemente tenha havido alguma discussão a respeito de deixá-los entrar ou não; outros começaram a sair à caça de cercas vivas ou campos sem cães. Ao crepúsculo, ele e Mat estavam sozinhos na Estrada de Caemlyn. Mat começou a falar sobre encontrarem outro palheiro, mas Rand insistiu para que continuassem.

— Enquanto pudermos ver a estrada — disse ele. — Quanto mais pudermos avançar antes de parar, mas adiante estaremos. — Se eles estiverem caçando você. Por que deveriam caçar agora, quando até hoje têm esperado você vir a eles?

Esse era um argumento bom o bastante para Mat. Olhando frequentemente para trás, ele apertou o passo. Rand precisou se apressar para alcançá-lo.

A noite se adensou, aliviada somente por um pouco de luar. O surto de energia de Mat foi passando, e suas queixas recomeçaram. Nós de dor se formaram nas panturrilhas de Rand. Ele dizia a si mesmo que havia caminhado mais num dia duro trabalhando na fazenda com Tam, mas, por mais que repetisse isso, ele mesmo não conseguia acreditar. Trincando os dentes, ignorou as dores e não parou.

Com Mat reclamando e ele se concentrando em dar cada passo, estavam quase na aldeia antes que ele visse as luzes. Ele parou, cambaleando, subitamente consciente de uma queimação que subia dos seus pés até o alto das pernas. Achava que estava com uma bolha no pé direito.

Ao ver as luzes da aldeia, Mat caiu de joelhos com um gemido.

— Podemos parar agora? — disse, ofegante. — Ou você quer encontrar uma estalagem e pendurar uma placa para os Amigos das Trevas? Ou um Desvanecido.

— O outro lado da cidade — respondeu Rand, encarando as luzes. Daquela distância, no escuro, parecia Campo de Emond. O que nos aguarda ali? — Mais uma milha, é só.

— Só! Eu não ando mais nem uma braça!

As pernas de Rand pareciam estar em chamas, mas ele se forçou a dar mais um passo, e depois outro. Não ficou mais fácil, mas ele seguiu em frente, um passo de cada vez. Antes de avançar dez passos, ouviu Mat cambalear atrás dele, resmungando baixinho. Achou muito bom não conseguir ouvir o que Mat estava falando.

Era tarde o suficiente para que as ruas da aldeia estivessem desertas, embora a maioria das casas tivesse luz em pelo menos uma das janelas. A estalagem no meio da cidade estava fartamente iluminada, cercada por uma poça de luz dourada que afastava as trevas. Música e risos, abafados pelas paredes grossas, vinham do prédio. A placa sobre a porta rangia ao vento. Quase na outra extremidade da estalagem, uma carroça e um cavalo estavam parados na Estrada de Caemlyn com um homem verificando os arreios. Dois homens estavam do outro lado do edifício, nas fímbrias da luz.

Rand parou nas sombras ao lado de uma casa onde não havia luz. Estava cansado demais para caçar pelas ruelas um caminho para dar a volta. Um minuto de descanso não poderia fazer mal algum. Só um minuto. Só até os homens irem embora. Mat escorregou contra a parede com um suspiro de satisfação, inclinando-se para trás, como se sua intenção fosse dormir ali mesmo.

Alguma coisa nos dois homens à margem das sombras deixava Rand inquieto. Ele não conseguia definir o que era, no começo, mas percebeu que o homem na carroça sentia o mesmo. O homem alcançou a ponta do arreio que estava verificando, ajustou o mordedor na boca do cavalo, depois voltou e começou tudo de novo. Manteve a cabeça abaixada durante todo esse tempo, os olhos no que estava fazendo e longe dos outros homens. Poderia simplesmente não estar se dando conta deles, embora estivessem a menos de dez braças, não fosse pela maneira rígida como se movia e o modo como às vezes se virava desajeitadamente no que estava fazendo para não olhar diretamente para os dois.

Um dos homens nas sombras era apenas um vulto negro, mas o outro estava mais próximo da luz, de costas para Rand. Mesmo assim era óbvio que ele não estava muito animado com a conversa que estavam tendo. Ele torcia as mãos e mantinha os olhos no chão, de vez em quando balançando a cabeça em concordância com alguma coisa que o outro dizia. Rand não conseguia ouvir nada, mas teve a impressão de que era o homem nas sombras quem falava; o outro, nervoso, apenas escutava, assentia e torcia as mãos ansiosamente.

No fim das contas, o que estava envolto em trevas se virou, e o sujeito nervoso começou a retornar para a luz. Apesar do frio, ele enxugava o rosto com o avental comprido que vestia, como se estivesse encharcado de suor.

A pele arrepiada, Rand observou o vulto se afastando na noite. Ele não sabia por quê, mas seu desconforto parecia acompanhar aquela figura, um formigamento vago em sua nuca e nos pelos que se arrepiavam em seus braços, como se ele subitamente tivesse percebido que havia alguém chegando de mansinho por trás dele. Sacudindo rapidamente a cabeça, esfregou os braços com força. Você está ficando tão tolo quanto Mat, não está?

Naquele momento, o vulto deslizou pela borda da luz que vinha de uma janela, apenas à margem dela, e a pele de Rand se arrepiou toda. A placa da estalagem fazia cri-cri-cri ao vento, mas o manto negro não se mexia.

— Desvanecido — sussurrou, e Mat se levantou de um pulo, como se tivesse ouvido um grito.

— O que…?

Ele tampou a boca de Mat.

— Baixinho. — O vulto escuro se perdera nas trevas. Onde? — Já foi embora agora. Eu acho. Espero. — Ele afastou a mão; o único som que Mat fez foi o de inspirar profundamente.

O homem nervoso estava quase na porta da estalagem. Ele parou e ajeitou o avental, visivelmente recompondo-se antes de entrar.

— Amigos estranhos esses seus, Raimun Holdwin — disse subitamente o homem da carroça. Era a voz de um velho, mas forte. Ele se endireitou, balançando a cabeça. — Amigos estranhos, no escuro, para um estalajadeiro.

O homem nervoso deu um pulo quando o outro falou, olhando ao redor como se não tivesse visto a carroça nem o outro homem até então. Então respirou bem fundo, aprumou-se e disse, sério:

— E o que você quer dizer com isso, Almen Bunt?

— Exatamente o que eu disse, Holdwin. Amigos estranhos. Ele não é daqui, é? Muita gente esquisita tem vindo nas últimas semanas. Mas muita gente esquisita mesmo.

— Você é o sujeito ideal para falar disso. — Holdwin olhou torto para o sujeito da carroça. — Eu conheço muitos homens, até mesmo de Caemlyn. Ao contrário de você, entocado sozinho naquela sua fazenda. — Ele fez uma pausa, depois continuou, como se achasse que precisava dar mais alguma satisfação. — Ele é de Quatro Reis. Está à procura de dois ladrões. Rapazotes. Roubaram dele uma espada com a marca da garça.

Rand havia prendido a respiração só de ouvir falar em Quatro Reis; à menção à espada, olhou de esguelha para Mat. Seu amigo estava com a mão pressionada com força contra a parede e olhando para as trevas com olhos tão arregalados que pareciam ser inteiramente brancos. Rand também queria vigiar a noite. O Meio-homem podia estar em qualquer lugar… Mas seus olhos voltaram aos dois homens na frente da estalagem.

— Uma espada com a marca da garça! — exclamou Bunt. — Não é à toa que ele a quer de volta.

Holdwin assentiu.

— Sim, e eles também. Meu amigo é um homem rico, um… um mercador, e eles andaram criando problemas com os homens que trabalham para ele. Contando histórias malucas e aborrecendo as pessoas. Eles são Amigos das Trevas, e seguidores de Logain também.

— Amigos das Trevas e seguidores do falso Dragão? E contando histórias malucas também? É muita coisa para rapazotes. Você disse que eles eram só rapazes, não? — Havia uma nota súbita de divertimento na voz de Bunt, mas o estalajadeiro não pareceu notar.

— Sim. Ainda não chegaram aos vinte anos. Há uma recompensa, cem coroas de ouro, pelos dois. — Holdwin hesitou, depois acrescentou: — Esses dois têm uma língua ardilosa. Sabe a Luz que espécie de histórias eles vão contar, tentando jogar as pessoas umas contra as outras. E são perigosos também, mesmo que não pareçam. Criminosos. Melhor ficar longe se achar que os viu. Dois rapazes, um com uma espada, e os dois olhando a toda hora para trás. Se forem eles mesmos, meu… meu amigo virá apanhá-los assim que forem localizados.

— Parece até que você os conhece pessoalmente.

— Vou saber quem são no instante em que olhar para eles — disse Holdwin, confiante. — Só não tente pegá-los sozinho. Ninguém precisa se machucar. Venha me contar se os vir. Meu… amigo cuidará deles. Cem coroas pelos dois, mas ele quer o par.

— Cem coroas pelos dois — considerou Bunt, contemplativo. — Quanto por essa espada que ele tanto quer?

Subitamente Holdwin pareceu perceber que o outro estava troçando dele.

— Não sei por que estou lhe contando isso — retrucou. — Você ainda está com a ideia fixa naquele seu plano idiota, pelo que vejo.

— Não é um plano tão idiota — respondeu Bunt placidamente. — Pode não haver outro falso Dragão para eu ver antes de morrer… que assim seja, pela Luz!… e estou velho demais para comer a poeira de algum mercador o caminho todo até Caemlyn. Vou ter a estrada só para mim, e chegarei a Caemlyn bem cedinho amanhã.

— Só para você? — A voz do estalajadeiro tremia sinistramente. — Nunca se sabe o que pode estar por aí, à noite, Almen Bunt. Completamente sozinho na estrada, no escuro. Mesmo que alguém ouça você gritar, não há ninguém que vá abrir a porta para ajudar. Não hoje em dia, Bunt. Nem seu vizinho mais próximo.

Nada disso pareceu perturbar o velho fazendeiro; ele respondeu tão calmamente quanto antes.

— Se os Guardas da Rainha não conseguem manter a estrada segura tão perto assim de Caemlyn, então nenhum de nós está seguro nem em nossas próprias camas. Se quer saber minha opinião, uma coisa que os Guardas poderiam fazer para garantir que as estradas estejam seguras seria pôr esse seu amigo atrás das grades. Espreitando por aí no escuro, com medo de deixar que as pessoas o vejam. Você não vai me dizer que ele não está metido em coisa que não preste.

— Medo! — exclamou Holdwin. — Seu velho tolo, se você soubesse… — Sua boca fechou-se abruptamente, batendo os dentes, e ele se sacudiu todo. — Não sei por que perco meu tempo com você. Vá amolar outro! Pare de bloquear a entrada do meu estabelecimento. — A porta da estalagem se fechou atrás dele com um estrondo.

Resmungando consigo mesmo, Bunt segurou a borda da carroça e pôs o pé no eixo da roda.

Rand só hesitou por um momento. Mat segurou seu braço quando ele começou a avançar.

— Está louco, Rand? Ele vai nos reconhecer com certeza!

— Você prefere ficar aqui? Com um Desvanecido por aí? Que distância acha que conseguiríamos percorrer a pé antes que ele nos encontrasse? — Ele tentou não pensar na distância que conseguiriam percorrer em uma carroça se ele os encontrasse. Soltou-se de Mat e seguiu pela estrada. Segurou seu manto cuidadosamente fechado em torno do corpo para que a espada ficasse escondida; o vento e o frio eram desculpa suficiente para isso.

— Não pude deixar de ouvir que o senhor está indo para Caemlyn — disse ele.

Bunt se assustou, puxando um bastão de dentro da carroça. Seu rosto curtido era uma massa de rugas, e ele não tinha metade dos dentes, mas suas mãos nodosas empunhavam o bastão com firmeza. Depois de um minuto ele abaixou uma das pontas ao chão e se apoiou nele.

— Então vocês dois estão indo para Caemlyn. Para ver o Dragão, não é?

Rand não havia percebido que Mat o seguira. Mat, porém, estava se mantendo bem atrás, fora da luz, observando a estalagem e o velho com tanta desconfiança quanto observava a noite.

— O falso Dragão — disse Rand, enfático.

Bunt assentiu.

— É claro, é claro. — Ele deu uma olhada de esguelha para a estalagem, depois enfiou bruscamente o cajado de volta sob o banco da carroça. — Bem, se vocês querem uma carona, podem subir. Já perdi muito tempo. — Ele já estava se acomodando no banco.

Rand subiu na parte de trás no momento em que o fazendeiro puxava as rédeas. Mat correu para alcançar a carroça quando ela partia. Rand o segurou pelo braço e o puxou a bordo.

A aldeia sumiu rapidamente noite adentro ao ritmo estabelecido por Bunt. Rand ficou deitado nas tábuas nuas, lutando contra o ranger sedutor das rodas. Mat abafava os bocejos com o punho fechado, olhando, desconfiado, o cenário rural. A escuridão pesava nos campos e fazendas, pontilhada com as luzes das casas, luzes que pareciam distantes, lutando em vão contra a noite. Uma coruja piou, um lamento, e o vento gemeu como almas perdidas na Sombra.

Ele poderia estar em qualquer lugar, pensou Rand.

Bunt parecia sentir a opressão da noite também, pois subitamente falou:

— Vocês dois já estiveram em Caemlyn? — Ele deu um risinho. — Suponho que não. Bem, esperem só para vê-la. A maior cidade do mundo. Ah, eu já ouvi tudo sobre Illian, Ebou Dar, Tear e tudo mais… sempre tem algum tolo que pensa que alguma coisa é maior e melhor só porque ela fica além do horizonte… mas, juro pelo meu dinheiro, Caemlyn é a maior que existe. Não poderia ser mais grandiosa. Não, não poderia. A menos, quem sabe, que a Rainha Morgase, a Luz a ilumine, se livrasse daquela bruxa de Tar Valon.

Rand estava deitado com a cabeça no cobertor enrolado por cima do manto embrulhado de Thom, vendo a noite passar, deixando as palavras do fazendeiro passarem. Uma voz humana afastava as trevas e calava o gemido do vento. Ele se virou todo para olhar a massa escura das costas de Bunt.

— Você quer dizer uma Aes Sedai?

— E do que mais eu estaria falando? Sentada lá no Palácio como uma aranha. Eu sou um bom homem da Rainha, nunca diga que não sou, mas não é certo. Eu não sou daqueles que dizem que Elaida tem muita influência sobre a Rainha. Eu não. E quanto aos tolos que dizem que Elaida é quem realmente é a rainha em tudo menos no nome… — Ele cuspiu. — Aqui para eles. Morgase não é marionete para dançar para nenhuma bruxa de Tar Valon.

Outra Aes Sedai. Se… quando Moiraine chegasse a Caemlyn, ela poderia muito bem procurar uma irmã Aes Sedai. Se o pior acontecesse, essa Elaida poderia ajudá-los a chegar a Tar Valon. Ele olhou para Mat, e, como se tivesse falado em voz alta, Mat balançou a cabeça. Ele não podia ver o rosto de Mat, mas sabia que ele estava negando com firmeza.

Bunt continuou falando, sacudindo as rédeas sempre que seu cavalo reduzia a velocidade, mas, afora isso, deixando as mãos descansarem sobre os joelhos.

— Como eu disse, sou um bom homem da Rainha, mas até mesmo os idiotas dizem algo que preste de vez em quando. Até um porco cego encontra uma bolota de vez em quando. Algumas mudanças precisam acontecer. Este tempo, as plantações minguando, vacas secando, novilhos e ovelhas nascendo mortos, ou então com duas cabeças. Corvos malditos que nem sequer esperam que as coisas morram. As pessoas estão apavoradas. Elas querem alguém para culpar. A Presa do Dragão aparecendo nas portas das pessoas. Coisas espreitando sorrateiras à noite. Celeiros sendo incendiados. Sujeitos, como aquele amigo do Holdwin, andando por aí, assustando as pessoas. A Rainha precisa fazer alguma coisa antes que seja tarde demais. Vocês percebem isso, não percebem?

Rand fez um som neutro. Parecia que eles tinham tido mais sorte do que ele pensava ao encontrar esse velho e sua carroça. Poderiam não ter ido muito além daquela última aldeia se tivessem esperado pelo amanhecer. Coisas espreitando sorrateiras à noite. Ele se levantou para olhar sobre a lateral da carroça na escuridão. Sombras e formas pareciam se contorcer nas trevas. Ele caiu para trás antes que sua imaginação o convencesse de que havia alguma coisa ali.

Bunt tomou isso como assentimento.

— Certo. Eu sou um bom homem da Rainha, e me colocarei contra qualquer um que tentar machucá-la, mas eu tenho razão. Veja a Lady Elayne e o Lorde Gawyn agora. Eis aí uma mudança que não faria mal a ninguém, e poderia até fazer algum bem. Claro, eu sei que sempre fizemos as coisas desse jeito em Andor. Mandamos a Filha-herdeira para estudar com as Aes Sedai, e o filho mais velho para estudar com os Guardiões. Eu acredito na tradição, acredito mesmo, mas veja o que ela nos trouxe da última vez. Luc morto na Praga antes mesmo de ser ungido como o Primeiro Príncipe da Espada, e Tigraine desaparecida, fugida ou morta, quando chegou a hora de ela assumir o trono. Isso ainda nos assombra.

“Há quem diga que ela ainda está viva, sabem, que Morgase não é a Rainha de direito. Tolos malditos. Eu me lembro do que aconteceu. Lembro como se fosse ontem. Nenhuma Filha-herdeira para assumir o trono quando a velha Rainha morreu, e todas as Casas de Andor tramando e lutando pelo direito. E Taringail Damodred. Não dava nem para imaginar que ele havia perdido a esposa, ele louco para saber que Casa venceria para que pudesse se casar novamente e se tornar Príncipe Consorte afinal. Bem, ele conseguiu, embora imaginar por que Morgase escolheu… ah, nenhum homem conhece a mente de uma mulher, e uma rainha é duas vezes mulher, casada com um homem e casada com a terra. De qualquer maneira, ele conseguiu o que queria, mesmo que não do jeito que queria.

“Trouxe Cairhien para a trama antes de acabar, e você sabe como isso terminou. A Árvore derrubada, e Aiel de véus negros vindo além da Muralha do Dragão. Bem, ele acabou conseguindo ser morto depois de se tornar pai de Elayne e Gawyn, então as coisas tiveram um fim, suponho. Mas por que mandá-los a Tar Valon? Está na hora de os homens não mais juntarem o trono de Andor e as Aes Sedai no mesmo pensamento. Se eles tiverem de ir a algum outro lugar para aprender o que precisam, bem, Illian tem bibliotecas tão boas quanto as de Tar Valon, e elas ensinarão a Lady Elayne tanto sobre governar e fazer intrigas quanto as bruxas. Ninguém sabe mais de intriga do que o povo de Illian. E se os Guardas não puderem ensinar ao Lorde Gawyn o suficiente sobre ser um soldado, bem, existem soldados em Illian também. E em Shienar, e Tear também. Eu sou um bom homem da Rainha, mas digo que devemos encerrar todo esse imbróglio com Tar Valon. Três mil anos é tempo suficiente. Tempo demais. A Rainha Morgase pode nos liderar e ajeitar as coisas sem ajuda da Torre Branca. Eu lhes digo, eis ali uma mulher que deixa um homem orgulhoso de se ajoelhar perante ela para ser abençoado. Ora, uma vez…”

Rand lutava contra o sono pelo qual seu corpo gritava, mas o rangido ritmado e o balanço da carroça o ninaram e ele começou a flutuar ao som monocórdio da voz de Bunt. Sonhou com Tam. No começo eles estavam à grande mesa de carvalho da casa da fazenda, tomando chá, enquanto Tam lhe contava sobre Príncipes Consortes, e Filhas-herdeiras, e a Muralha do Dragão, e homens Aiel de véus negros. A espada com a marca da garça jazia na mesa entre eles, mas nenhum dos dois olhava para ela. Subitamente ele estava na Floresta do Oeste, puxando a liteira improvisada pela noite enluarada. Quando olhou para trás, era Thom quem estava na liteira, não seu pai, sentado de pernas cruzadas e fazendo malabarismos à luz do luar.

— A Rainha é casada com a terra — disse Thom enquanto bolas coloridas brilhantes dançavam em um círculo. — Mas o Dragão… o Dragão é um com a terra, e a terra é uma com o Dragão.

Mais adiante Rand viu um Desvanecido vindo, o manto negro imperturbável pelo vento, o cavalo caminhando silencioso como um fantasma entre as árvores. Duas cabeças cortadas pendiam do alforje do Myrddraal, pingando sangue que corria em filetes mais escuros pelo ombro negro como carvão de sua montaria. Lan e Moiraine, rostos distorcidos em esgares de dor. O Desvanecido puxava um punhado de cabrestos enquanto cavalgava. Cada cabresto seguia até os punhos amarrados de um daqueles que corria atrás dos cascos silenciosos, os rostos lívidos de desespero. Mat e Perrin. E Egwene.

— Ela não! — gritou Rand. — Que a Luz o exploda! Sou eu que você quer, não ela!

O Meio-homem fez um gesto, e chamas consumiram Egwene, a carne ardendo até virar cinzas, ossos enegrecendo e se esfarelando.

— O Dragão é um com a terra — dizia Thom, ainda fazendo malabarismos despreocupadamente —, e a terra é uma com o Dragão.

Rand gritou… e abriu os olhos.

A carroça rangia pela Estrada de Caemlyn, repleta da noite e da doçura do feno havia muito desaparecido, e do leve cheiro de cavalo. Uma forma mais escura do que a noite repousava sobre seu peito, e olhos mais escuros do que a morte olhavam diretamente nos seus.

— Você é meu — disse o corvo, e o bico afiado perfurou seu olho. Ele gritou quando o corvo arrancou seu globo ocular.

Com um berro ensurdecedor, ele se sentou, levando as duas mãos ao rosto.

A luz da manhã banhava a carroça. Zonzo, ele olhou para as mãos. Não havia sangue. Não havia dor. O resto do sonho já estava desaparecendo, mas aquilo… Apalpou cautelosamente o rosto e estremeceu.

— Pelo menos… — Mat bocejou, estalando o maxilar. — Pelo menos você dormiu um pouco. — Não havia muita simpatia nos seus olhos cansados. Ele estava encolhido embaixo do manto, com o cobertor enrolado dobrado sob a cabeça. — Ele falou a noite inteira.

— Está de todo acordado? — perguntou Bunt, do banco do condutor. — Você me deu foi um susto danado gritando assim. Bom, já chegamos. — Sua mão deslizou diante deles num gesto grandioso. — Caemlyn, a maior cidade do mundo.

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