7 Fora da Floresta

A primeira luz cinzenta surgiu enquanto Rand ainda cambaleava pela floresta. A princípio ele não a enxergou de verdade. Quando finalmente conseguiu vê-la, encarou surpreso a escuridão que se dissipava. Independentemente do que os olhos lhe diziam, ele mal conseguia acreditar que havia passado a noite inteira tentando cobrir a distância entre a fazenda e Campo de Emond. Naturalmente, a Estrada da Pedreira durante o dia, com pedras e tudo, era muito diferente da floresta à noite. Por outro lado, ele tinha a impressão de que haviam se passado dias desde que vira o cavaleiro do manto negro na estrada, semanas desde que ele e Tam haviam entrado em casa para a ceia. Ele não sentia mais a faixa de tecido enterrando-se em seus ombros, mas tampouco sentia nos ombros outra coisa que não dormência, nem nos pés. Entre uma extremidade e outra, porém, a história era diferente. A respiração saía em arquejos ofegantes que havia muito tempo queimavam sua garganta e seus pulmões, e a fome revirava seu estômago a ponto de lhe causar enjoo.

Tam estava calado fazia algum tempo. Rand não sabia ao certo quanto se passara desde que os murmúrios haviam cessado, mas não se atrevia a parar para conferir o estado do pai. Se parasse, não conseguiria se forçar a recomeçar. De qualquer maneira, fosse qual fosse a situação de Tam, ele não podia fazer nada além do que estava fazendo. A única esperança estava adiante, na aldeia. Ele tentou, exausto, acelerar o passo, mas as pernas pesadas como troncos continuavam a se arrastar lentamente pela terra. Ele mal percebia o frio ou o vento.

Sentiu vagamente o odor de lenha queimando. Se conseguia sentir o cheiro das chaminés da aldeia, pelo menos estava quase lá. Entretanto, um sorriso cansado mal havia começado a se esboçar em seu rosto quando se transformou em uma expressão de preocupação. A fumaça no ar era pesada — pesada demais. Com a temperatura do jeito que estava, era bem provável que houvesse um fogo queimando em cada lareira da aldeia, mas ainda assim a fumaça era intensa demais. Em sua mente, ele viu mais uma vez os Trollocs na estrada. Trollocs vindo do leste, da direção de Campo de Emond. Forçou a vista para enxergar melhor à frente, tentando distinguir as primeiras casas, pronto para gritar pedindo ajuda assim que visse qualquer pessoa, até mesmo Cenn Buie ou um dos Coplins. Uma vozinha no fundo da mente o mandava ter a esperança de que alguém ali ainda pudesse ajudar.

Subitamente uma casa se tornou visível por entre as últimas árvores de galhos nus, e ele precisou se conter para não parar de andar. Com a esperança transformando-se em desespero agudo, ele entrou cambaleante na aldeia.

Pilhas carbonizadas de escombros erguiam-se nos pontos antes ocupados por metade das casas em Campo de Emond. Chaminés de tijolos cobertas de fuligem espetavam o céu como dedos sujos erguendo-se de pilhas de toras enegrecidas. Fiapos de fumaça ainda subiam das ruínas. Aldeões de rostos sujos, alguns ainda em suas roupas de dormir, remexiam as cinzas, puxando uma panela aqui, simplesmente cutucando sem esperança os escombros com paus ali. O pouco que fora resgatado das chamas pontilhava as ruas; espelhos de corpo inteiro, aparadores polidos e cômodas altas se destacavam no pó entre cadeiras e mesas enterradas sob roupas de cama, utensílios de cozinha e pequenas pilhas de roupas e pertences pessoais.

A destruição parecia aleatória ao longo da aldeia. Cinco casas encontravam-se intocadas uma ao lado da outra, enquanto em outro lugar um sobrevivente solitário estava parado em meio à desolação.

Do outro lado do Rio Fonte de Vinho, as três imensas fogueiras do Bel Tine rugiam, atiçadas por um grupo de homens. Espessas colunas de fumaça negra se curvavam para o norte com o vento, salpicadas por fagulhas indiferentes. Um dos garanhões de Mestre al’Vere arrastava uma coisa que Rand não conseguia ver na direção da Ponte das Carroças e das chamas.

Antes que Rand se afastasse muito das árvores, um Haral Luhhan com o rosto coberto de fuligem correu em sua direção, segurando firme um machado de lenhador em uma das mãos de dedos grossos. O camisolão manchado de cinzas do ferreiro corpulento ia até as botas; uma marca vermelha e inflamada de queimadura cruzava-lhe o peito, aparecendo por um rasgão no tecido. Ele caiu ajoelhado ao lado da maca. Os olhos de Tam estavam fechados, a respiração, fraca e difícil.

— Trollocs, rapaz? — Mestre Luhhan perguntou com uma voz rouca de fumaça. — Aqui também. Aqui também. Bem, talvez nós tenhamos tido mais sorte do que podíamos esperar, se é que dá para crer nisso. Ele precisa da Sabedoria. Agora, onde ela está, pela Luz?! Egwene!

Egwene, correndo com os braços cheios de lençóis rasgados fazendo as vezes de ataduras, olhou na direção deles sem reduzir o passo. Seus olhos fitavam alguma coisa à distância; círculos escuros faziam com que parecessem bem maiores do que eram de fato. Então ela viu Rand e parou, respirando fundo e estremecendo.

— Ah, não, Rand, seu pai não… Ele está…? Venha, vou levar vocês a Nynaeve.

Rand estava cansado demais, aturdido demais, para falar. Durante toda a noite, Campo de Emond fora um refúgio, onde ele e Tam estariam seguros. Naquele momento tudo que ele parecia fazer era encarar, consternado, o vestido sujo de fuligem dela. Ele reparava em detalhes estranhos como se fossem muito importantes. Os botões da parte de trás do vestido estavam abotoados errado. E as mãos dela estavam limpas. Ele se perguntou por que as mãos dela estavam limpas se as bochechas estavam sujas de fuligem.

Mestre Luhhan pareceu entender o que se passava com ele. Colocando o machado em cima das traves, o ferreiro pegou a parte de trás da maca e seguindo-a deu um empurrão suave, impulsionando Rand para que fosse atrás de Egwene. Ele cambaleou atrás dela como um sonâmbulo. Por um breve instante ficou se perguntando como Mestre Luhhan sabia que as criaturas eram Trollocs, mas foi um pensamento que passou rapidamente. Se Tam podia reconhecê-los, não havia motivo para que Haral Luhhan não pudesse também.

— Todas as histórias são verdadeiras — ele murmurou.

— É o que parece, rapaz — disse o ferreiro. — É o que parece.

Rand mal conseguiu ouvi-lo. Estava se concentrando em acompanhar a forma esguia de Egwene. Ele se recuperou o suficiente apenas para desejar que se apressasse, embora na verdade ela estivesse contendo o passo para que os dois homens pudessem segui-la com seu fardo. Ela os levou, atravessando o Campo, até a casa dos Calders. O carvão enegrecera as bordas do telhado de palha, e a fuligem manchava as paredes caiadas. Das casas de ambos os lados restavam apenas as pedras das fundações e dois amontoados de cinzas e toras queimadas. Uma era a casa de Berin Thane, um dos irmãos do moleiro. A outra era a de Abell Cauthon, o pai de Mat. Até mesmo as chaminés haviam desabado.

— Esperem aqui — disse Egwene e lhes dirigiu um olhar como se esperasse resposta.

Quando eles se limitaram a ficar parados em pé ali, ela resmungou alguma coisa entredentes e entrou correndo.

— Mat — disse Rand. — Ele está…?

— Está vivo — disse o ferreiro. Ele abaixou sua extremidade da maca e lentamente endireitou o corpo. — Eu o vi há pouco. É de se admirar que qualquer um de nós esteja vivo. Do jeito como eles atacaram minha casa e a forja, parecia que eu tinha ouro e joias lá dentro. Alsbet rachou o crânio de um com uma frigideira. Ela deu uma olhada nas cinzas da nossa casa esta manhã e saiu caçando ao redor da aldeia com o maior martelo que conseguiu desenterrar do que restou da forja, para o caso de algum deles ter se escondido em vez de fugir. Eu quase tive pena da coisa que ela por acaso encontrasse. — Ele indicou com a cabeça a casa dos Calders. — A Senhora Calder e outros receberam alguns dos feridos, aqueles cuja casa não está mais de pé. Depois que a Sabedoria tiver visto Tam, vamos encontrar um leito para ele. Talvez na estalagem. O Prefeito já ofereceu, mas Nynaeve disse que os feridos iriam se curar melhor se não ficassem tantos em um mesmo lugar.

Rand caiu de joelhos. Retirando seus arreios de cobertor, verificou, exausto, as cobertas de Tam, que não se moveu nem emitiu um som sequer, nem mesmo quando as mãos rígidas de Rand o sacudiram. Mas pelo menos ele ainda estava respirando. Meu pai. Aquilo era apenas por causa da febre.

— E se voltarem? — ele perguntou, ausente.

— Há de ser o que a Roda tecer — Mestre Luhhan disse, desconfortável. — Se voltarem… Bem, eles se foram, por ora. Então vamos juntar os pedaços, reconstruir o que foi destruído. — Ele suspirou, o rosto relaxando enquanto massageava a base da coluna com os nós dos dedos.

Pela primeira vez Rand percebeu que o homem enorme estava tão cansado quanto ele, talvez até mais. O ferreiro olhou para a aldeia, sacudindo a cabeça.

— Acho que hoje não vai ser o melhor Bel Tine que já tivemos por aqui. Não. Mas nós vamos superar isso. Sempre superamos. — Pegou o machado bruscamente, e seu rosto ficou sério. — Tenho trabalho me esperando. Não se preocupe, rapaz. A Sabedoria tomará conta dele direitinho, e a Luz cuidará de todos nós. E se não cuidar, bem, nós mesmos cuidaremos. Lembre-se: somos dos Dois Rios.

Ainda de joelhos, Rand olhou para a aldeia enquanto o ferreiro se afastava — ele a olhou de fato pela primeira vez. Mestre Luhhan tinha razão, pensou, e ficou surpreso por não estar surpreso com o que via. As pessoas ainda remexiam as ruínas de suas casas, mas mesmo no curto tempo em que ele estava ali um número maior delas havia começado a se movimentar com um senso de propósito. Ele conseguia quase sentir a determinação crescente. E se perguntou: eles haviam visto Trollocs; será que tinham visto o cavaleiro de manto negro? Será que haviam sentido seu ódio?

Nynaeve e Egwene surgiram de dentro da casa dos Calders, e ele se levantou de um salto. Ou melhor, tentou se levantar de um salto; foi mais um tropeço, que quase o fez cair de cara na poeira.

A Sabedoria se ajoelhou ao lado da maca sem lhe dirigir sequer um olhar. O rosto e o vestido estavam ainda mais sujos que os de Egwene, e as mesmas sombras escuras circundavam seus olhos, embora as mãos também estivessem limpas. Ela apalpou o rosto de Tam e abriu suas pálpebras com os polegares. Franzindo a testa, puxou as cobertas e afastou devagar o curativo para ver a ferida. Antes que Rand pudesse ver o que havia por baixo ela já havia recolocado o pano atoalhado no lugar. Com um suspiro, ajeitou o cobertor e o manto novamente até o pescoço de Tam com um movimento delicado, como se estivesse ajeitando uma criança na hora de dormir.

— Não há nada que eu possa fazer — ela disse. Teve de pôr as mãos nos joelhos para se levantar. — Lamento, Rand.

Por um momento ele ficou ali, parado, sem entender, enquanto ela começava a voltar para a casa. Então correu atrás dela e a puxou para que o encarasse.

— Ele está morrendo! — gritou.

— Eu sei — respondeu ela simplesmente, e ele quase desabou de franqueza.

— Você precisa fazer alguma coisa. Tem de fazer. Você é a Sabedoria.

A dor contorceu o rosto dela, mas somente por um momento. Depois ela se mostrou resoluta novamente, os olhos fundos e a voz firme e sem emoção.

— Sim, eu sou. Sei o que posso fazer com meus remédios e sei quando é tarde demais. Não acha que eu faria algo se pudesse? Mas não posso. Não posso, Rand. E há outros que precisam de mim. Pessoas a quem eu posso ajudar.

— Eu o trouxe até você o mais rápido que pude — ele murmurou.

Mesmo com a aldeia em ruínas, a Sabedoria era uma esperança. Sem isso, ele não tinha mais nada.

— Eu sei que sim — ela disse gentilmente. E tocou-lhe o rosto com a mão. — Não é culpa sua. Você fez o melhor que qualquer um poderia fazer. Desculpe, Rand, mas tenho outros para tratar. Receio que nossos problemas estejam apenas começando.

Ele a seguiu com o olhar vazio até a porta da casa se fechar atrás dela. Não conseguia pensar em nada, a não ser em que ela não iria ajudar.

Subitamente Rand cambaleou para trás quando Egwene se atirou sobre ele, envolvendo-o com os braços. O abraço foi forte o bastante para fazer com que ele soltasse um grunhido em qualquer outra ocasião; agora ele ficou simplesmente olhando em silêncio para a porta atrás da qual suas esperanças haviam desaparecido.

— Lamento tanto, Rand — ela disse encostada em seu peito. — Luz, eu queria poder fazer alguma coisa!

Anestesiado, ele passou os braços ao redor dela.

— Eu sei. Eu… eu tenho de fazer alguma coisa, Egwene. Não sei o quê, mas não posso simplesmente deixar que ele… — Sua voz falhou, e ela o abraçou ainda mais forte.

— Egwene! — Com o grito de Nynaeve vindo da casa, Egwene deu um pulo. — Egwene, preciso de você! E lave as mãos de novo!

Ela se soltou dos braços de Rand.

— Ela precisa da minha ajuda, Rand.

— Egwene!

Rand pensou ter ouvido um soluço quando ela se virou, afastando-se. Então ela se foi, e ele ficou sozinho ao lado da maca. Por um momento olhou para Tam no chão, sem sentir nada além de uma sensação vazia de desamparo. Subitamente seu rosto endureceu.

— O Prefeito saberá o que fazer — ele disse, levantando as traves mais uma vez. — O Prefeito saberá.

Bran al’Vere sempre sabia o que fazer. Com uma obstinação exausta ele partiu para a Estalagem Fonte de Vinho.

Outro dos garanhões Dhurran passou por ele, as tiras de seus arreios atadas nos tornozelos de uma forma grande coberta por um cobertor sujo. Braços cobertos de pelos duros arrastavam-se na poeira atrás do cobertor, e um canto estava levantado, revelando um chifre de bode. Os Dois Rios não eram lugar para as histórias se tornarem horrivelmente reais. Se os Trollocs pertenciam a algum canto, era ao mundo lá fora, a lugares onde havia Aes Sedai e falsos Dragões e somente a Luz saberia mais o quê, coisas saídas das histórias de menestréis. Não aos Dois Rios. Não a Campo de Emond.

Enquanto ele percorria o Campo, as pessoas o chamavam, algumas de dentro das ruínas de suas casas, perguntando se podiam ajudar. Ele as ouvia apenas como murmúrios ao fundo, mesmo quando caminhavam ao seu lado por um tempo enquanto falavam. Sem de fato pensar no que dizia, ele conseguia emitir palavras que expressavam que ele não precisava de ajuda, que tudo estava sendo resolvido. Quando as pessoas o deixavam, com olhares preocupados, e às vezes um comentário sobre enviar Nynaeve, ele notava apenas vagamente. A única coisa de que tinha consciência era do objetivo que havia metido na cabeça. Bran al’Vere poderia fazer alguma coisa para ajudar Tam. No que de fato poderia ser feito, ele tentou não pensar demais. Mas o Prefeito seria capaz de fazer alguma coisa, de pensar em algo.

A estalagem escapara quase completamente à destruição que havia arrasado metade da aldeia. Algumas poucas marcas de incêndio maculavam suas paredes, mas as telhas vermelhas reluziam na luz do sol com o brilho de sempre. Tudo que restava da carroça do mascate, porém, eram os aros de ferro das rodas, enegrecidos, encostados na carcaça esturricada, agora caída no chão. Os grandes elos redondos que sustentavam a cobertura de lona inclinavam-se para todos os lados, cada um num ângulo diferente.

Thom Merrilin estava sentado de pernas cruzadas nas pedras da velha fundação, cortando cuidadosamente as pontas chamuscadas dos remendos de seu manto com uma pequena tesoura. Pôs de lado manto e tesoura quando Rand se aproximou. Sem perguntar se Rand precisava ou queria ajuda, ele pulou das pedras e segurou a parte de trás da maca.

— Lá dentro? Claro, claro. Não se preocupe, garoto. Sua Sabedoria vai cuidar dele. Eu a vi trabalhar, desde ontem à noite, e ela tem a mão boa e grande habilidade. Poderia ser bem pior. Alguns morreram ontem à noite. Talvez não muitos, mas qualquer morte já é demais para mim. O velho Fain simplesmente desapareceu, e isso é o pior. Trollocs comem qualquer coisa. Você deveria agradecer à Luz por seu pai ainda estar aqui, e vivo para que a Sabedoria o cure.

Rand bloqueou as palavras — Ele é meu pai! — reduzindo a voz a um ruído sem sentido que não passou de um zumbido de mosca. Não podia suportar mais compaixão, mais nenhuma tentativa de animá-lo. Não agora. Não até que Bran al’Vere lhe dissesse como ajudar Tam.

De repente ele se descobriu encarando algo rabiscado na porta da estalagem, uma linha curva arranhada com um pedaço de pau chamuscado, uma lágrima de carvão equilibrada na ponta. Tanta coisa havia acontecido que ele não se surpreendeu ao encontrar a Presa do Dragão marcada na porta da Estalagem Fonte de Vinho. Por que alguém iria querer acusar o estalajadeiro ou sua família de praticar o mal ou de trazer má sorte à estalagem, ele não fazia ideia, mas a noite o havia convencido de uma coisa: tudo era possível. Absolutamente tudo.

Com um empurrão do menestrel, ele ergueu o trinco e entrou.

O salão estava vazio, exceto por Bran al’Vere, e frio também, pois ninguém havia encontrado tempo para acender a lareira. O Prefeito estava sentado a uma das mesas, mergulhando sua pena em um tinteiro, a testa franzida em concentração e a cabeça de franja grisalha curvada sobre uma folha de pergaminho. Com o camisolão enfiado apressadamente dentro das calças, sobrando ao redor da cintura considerável, ele coçava distraído um pé descalço com os dedos do outro. Seus pés estavam sujos, como se ele tivesse estado do lado de fora mais de uma vez sem se importar em calçar botas, apesar do frio.

— Qual é o seu problema? — ele perguntou sem levantar a cabeça. — Fale rápido. Eu tenho duas dúzias de coisas a fazer neste instante, e outras tantas que já deveriam ter sido feitas há uma hora. Portanto não tenho nem muito tempo nem paciência. Então? Desembuche!

— Mestre al’Vere? — disse Rand. — É o meu pai.

O Prefeito levantou a cabeça bruscamente.

— Rand? Tam! — Ele jogou a caneta em cima da mesa e derrubou a cadeira ao se levantar num salto. — Talvez a Luz não tenha nos abandonado completamente. Temia que vocês dois estivessem mortos. Bela chegou galopando à aldeia uma hora depois que os Trollocs foram embora, espumando e resfolegando, como se tivesse corrido o tempo todo da fazenda até aqui, e eu pensei… Bem, não há tempo para isso agora. Vamos levá-lo para cima. — Ele agarrou a parte de trás da maca, empurrando o menestrel com o ombro, tirando-o do caminho. — Você vá buscar a Sabedoria, Mestre Merrilin. E diga a ela que mandei que se apressasse, ou vou querer saber o porquê! Fique tranquilo, Tam. Num instante você vai estar numa cama boa e macia. Vá, menestrel, vá!

Thom Merrilin desapareceu porta afora antes que Rand pudesse falar.

— Nynaeve não fez nada. Disse que não podia ajudá-lo. Eu sabia… esperava que o senhor pensasse em algo.

Mestre al’Vere lançou um olhar mais agudo a Tam, e então balançou a cabeça.

— Vamos ver, garoto. Vamos ver. — Mas sua voz já não soava confiante. — Vamos pô-lo numa cama. Pelo menos ele vai poder descansar tranquilo.

Rand deixou-se conduzir na direção da escada nos fundos do salão. Esforçou-se muito para manter a certeza de que de algum modo Tam ficaria bem, mas ela já não era muito grande desde o início, e a súbita dúvida na voz do Prefeito o abalou.

No segundo andar da estalagem, na parte da frente, havia meia dúzia de quartos aconchegantes e bem localizados, com janelas que davam para o Campo. A maior parte deles era usada pelos mascates, ou pelas pessoas que desciam da Colina da Vigília ou subiam de Trilha de Deven, mas os mercadores que vinham todo ano frequentemente ficavam surpresos ao encontrar quartos tão confortáveis. Três deles estavam ocupados agora, e o Prefeito apressou Rand a ocupar um dos outros.

Rapidamente o edredom e os cobertores foram retirados da cama larga, e Tam foi transferido para o colchão de penas grossas, com travesseiros de penas de ganso enfiados sob sua cabeça. Ele não emitiu nenhum som além da respiração laboriosa ao ser movido, nem mesmo um gemido, mas o Prefeito afastou as preocupações de Rand e mandou que ele acendesse o fogo para espantar a friagem do quarto. Enquanto Rand tirava lenha e gravetos da caixa ao lado da lareira, Bran abriu as cortinas da janela, deixando a luz da manhã entrar, e depois começou a lavar gentilmente o rosto de Tam. Quando o menestrel retornou, as chamas já aqueciam o aposento.

— Ela não vem — Thom Merrilin anunciou ao entrar furtivamente no quarto. Lançou um olhar furioso para Rand, as sobrancelhas brancas e peludas franzindo-se bruscamente. — Você não me falou que ela já o tinha visto. Ela quase arrancou minha cabeça.

— Eu achei… Não sei… talvez o Prefeito pudesse fazer alguma coisa, pudesse fazê-la ver… — Mãos cerradas de ansiedade, Rand se virou da lareira para Bran. — Mestre al’Vere, o que posso fazer?

O homem rotundo sacudiu a cabeça, impotente. Ele colocou um pano que acabara de umedecer na testa de Tam e evitou o olhar de Rand.

— Não posso simplesmente ficar aqui e vê-lo morrer, Mestre al’Vere. Preciso fazer alguma coisa.

O menestrel se mexeu como se fosse falar. Rand ansioso se virou para ele.

— O senhor tem alguma ideia? Eu tento qualquer coisa.

— Eu só estava me perguntando — disse Thom, batendo com o polegar no cachimbo comprido — se o Prefeito saberia quem rabiscou a Presa do Dragão em sua porta. — Ele espiou dentro do fornilho, depois olhou para Tam e voltou a colocar o cachimbo apagado entre os dentes com um suspiro. — Parece que alguém não gosta mais dele. Ou talvez não gostem dos seus hóspedes.

Rand lhe dirigiu um olhar de desgosto e virou-se para fitar o fogo. Seus pensamentos dançavam como chamas e, como elas, concentravam-se fixamente em uma coisa. Não iria desistir. Não podia ficar ali parado vendo Tam morrer. Meu pai, pensou ferozmente. Meu pai. Assim que a febre passasse, isso também poderia ser esclarecido. Primeiro, porém, a febre. Mas como?

Bran al’Vere contraiu os lábios enquanto olhava as costas de Rand, e o olhar furioso que ele lançou ao menestrel teria feito um urso titubear, mas Thom se limitou a ficar aguardando com expectativa, como se não tivesse nem notado.

— Isso provavelmente é obra de um dos Congars, ou um Coplins — disse o Prefeito finalmente —, embora só a Luz saiba qual deles. Eles são muitos, e se houver algo de ruim a se dizer de alguém, ou mesmo que não haja, eles dirão assim mesmo. Eles fazem Cenn Buie parecer bonzinho.

— Aquele bando que chegou logo antes do amanhecer? — perguntou o menestrel. — Eles não sentiram sequer o cheiro de um Trolloc, e tudo que queriam saber era quando o Festival ia começar, como se não pudessem ver que metade da aldeia estava em cinzas.

Mestre al’Vere assentiu, taciturno.

— Um ramo da família. Mas nenhum deles é muito diferente. Aquele tolo do Darl Coplin passou metade da noite exigindo que eu expulsasse a Senhora Moiraine e Mestre Lan da estalagem e da aldeia, como se fosse nos restar ainda alguma aldeia de pé sem eles.

Rand só havia ouvido metade da conversa, mas essas últimas palavras o levaram a falar.

— O que foi que eles fizeram?

— Ora, ela invocou bolas de raios em um céu noturno límpido — respondeu Mestre al’Vere. — Mandou-as direto para cima dos Trollocs. Já vimos árvores estilhaçadas por raios. Os Trollocs não tiveram sorte diferente.

— Moiraine? — Rand perguntou, incrédulo.

E o Prefeito assentiu.

— Senhora Moiraine. E Mestre Lan virou um redemoinho com aquela espada dele. Espada? O homem por si só já é uma arma, e estava em dez lugares ao mesmo tempo, ou assim parecia. Que me queimem, mas eu não acreditaria se não tivesse saído e visto… — Passou a mão pela careca. — As visitas da Noite Invernal mal tinham começado. Estávamos com as mãos cheias de presentes e bolos de mel, e a cabeça cheia de vinho, e então os cães começaram a rosnar. De repente os dois saíram em disparada da estalagem, correndo pela aldeia, gritando sobre Trollocs. Eu achei que haviam bebido vinho demais. Afinal de contas… Trollocs? Então, antes que qualquer um de nós entendesse o que estava acontecendo, aquelas… aquelas coisas estavam nas ruas junto com a gente, cortando as pessoas com suas espadas, ateando fogo às casas, soltando uivos de congelar o sangue de um homem. — Ele emitiu um som gutural de nojo. — Nós simplesmente fugimos como galinhas, como se houvesse uma raposa no galinheiro, até Mestre Lan nos dar um pouco de coragem.

— Não precisa ser tão duro — disse Thom. — Você fez o possível. Nem todo Trolloc lá fora caiu pelos golpes dos dois.

— Hummm… Bem, sim. — Mestre al’Vere se sacudiu. — Ainda é demais para acreditar. Uma Aes Sedai em Campo de Emond. E Mestre Lan é um Guardião.

— Uma Aes Sedai? — sussurrou Rand. — Não pode ser. Eu conversei com ela. Ela não é. Ela não…

— Você achou que elas usavam placas? — perguntou o Prefeito, irônico. — “Aes Sedai” pintado nas costas e, quem sabe, “Perigo, mantenha distância”? — Subitamente ele bateu a mão na testa. — Aes Sedai. Eu sou um velho idiota, e estou perdendo meu tino. Existe uma chance, Rand, se você estiver disposto a correr o risco. Não posso lhe dizer como fazer isso, e não sei se eu teria coragem se fosse comigo.

— Uma chance? — replicou Rand. — Eu corro qualquer risco se ajudar.

— As Aes Sedai podem curar, Rand. Que me queimem, rapaz, você já ouviu as histórias! Elas podem curar o que os remédios não conseguem. Menestrel, você deveria saber disso mais do que eu. Histórias de menestréis são cheias de Aes Sedai. Por que não falou, em vez de me deixar aqui me debatendo?

— Eu sou um estranho aqui — disse Thom, olhando, saudoso, para seu cachimbo apagado —, e o Senhor Coplin não é o único que não quer ter nada a ver com as Aes Sedai. É melhor que a ideia tenha partido de você.

— Uma Aes Sedai — murmurou Rand, tentando fazer a mulher que havia sorrido para ele se encaixar nas histórias.

A ajuda de uma Aes Sedai às vezes era pior do que nenhuma ajuda, assim diziam as histórias, como veneno em uma torta, e seus presentes sempre tinham uma armadilha, como uma isca de peixe. Subitamente a moeda em seu bolso, a moeda que Moiraine lhe dera, pareceu um carvão em brasa. Ele teve de se controlar para não arrancá-la do casaco e atirá-la pela janela.

— Ninguém quer se envolver com Aes Sedai, rapaz — disse o Prefeito lentamente. — É a única chance que consigo ver, mas mesmo assim não é uma decisão fácil. Não posso tomá-la por você, mas não vi a Senhora Moiraine fazer nada além do bem… Moiraine Sedai, suponho que é como deveria chamá-la. Às vezes… — Ele lançou um olhar significativo para Tam — …é preciso correr o risco, mesmo que as chances não sejam grandes.

— Algumas histórias são exagero, de certa forma — Thom adicionou, como se as palavras estivessem sendo arrancadas dele à força. — Algumas. Além disso, garoto, que escolha você tem?

— Nenhuma. — Rand suspirou.

Tam ainda não havia movido um só músculo; seus olhos estavam afundados, como se ele estivesse doente por uma semana.

— Eu vou… eu vou tentar encontrá-la.

— Do outro lado das pontes — disse o menestrel —, onde eles estão… se livrando dos Trollocs mortos. Mas tome cuidado, garoto. As Aes Sedai fazem o que fazem por motivos próprios, e nem sempre são os motivos que os outros pensam.

A última frase foi um grito que acompanhou Rand porta afora. Ele precisou segurar o cabo da espada para evitar que a bainha esbarrasse em suas pernas enquanto corria, mas não parou para tirá-la. Desceu a escada ruidosamente e saiu da estalagem em disparada, esquecendo todo o cansaço naquele instante. Uma chance para Tam, por menor que fosse, era o bastante para ele superar uma noite sem dormir, pelo menos por algum tempo. Que essa chance viesse de uma Aes Sedai, ou qual preço teria, eram coisas em que não queria pensar. E quanto a realmente encarar uma Aes Sedai… Ele respirou fundo e tentou ir ainda mais rápido.

As fogueiras estavam bem além das últimas casas ao norte, do lado da estrada que levava para a Colina da Vigília, que dava para a Floresta do Oeste. O vento ainda carregava as colunas de fumaça preta e oleosa para longe da aldeia, mas mesmo assim um cheiro doce e enjoativo preenchia o ar, como o de um assado que tivesse ficado tempo demais no espeto. Rand teve ânsia de vômito com o cheiro, mas engoliu em seco quando percebeu de onde vinha. Uma coisa boa a se fazer com as fogueiras do Bel Tine. Os homens que mexiam nas fogueiras estavam usando panos cobrindo o nariz e a boca, mas suas caretas deixavam claro que o vinagre que umedecia os panos não era o bastante. Mesmo que aquilo eliminasse o fedor, eles ainda sabiam que o fedor estava ali e ainda sabiam o que estavam fazendo.

Dois homens estavam desamarrando as tiras dos arreios de um dos Dhurrans dos tornozelos de um Trolloc. Lan, agachado ao lado do corpo, havia afastado o cobertor o suficiente para revelar os ombros e a cabeça com focinho de bode. Quando Rand se aproximava, o Guardião retirou um emblema de metal, um tridente pintado de vermelho-sangue, de um ombro espinhento da cota de malha preta.

— Ko’bal — ele anunciou. Jogou o emblema que tinha na palma da mão para o alto e o agarrou no ar, grunhindo. — Isso contabiliza sete bandos até agora.

Moiraine, sentada de pernas cruzadas no chão ali perto, balançava a cabeça, cansada. Um cajado, coberto de uma ponta a outra com entalhes de vinhas e flores, descansava sobre seus joelhos, e seu vestido tinha o aspecto amarrotado de uma roupa que não era tirada fazia tempo.

— Sete bandos. Sete! Um número grande assim não agia junto desde as Guerras dos Trollocs. Uma notícia ruim atrás da outra. Estou com medo, Lan. Achei que tivéssemos alguma vantagem em relação a eles, mas podemos estar mais para trás do que nunca.

Rand ficou olhando fixo para ela, incapaz de falar. Uma Aes Sedai. Tentara se convencer de que ela não teria um aspecto diferente agora que ele sabia para quem… ou o que ele estava olhando, e para sua surpresa era verdade. Ela não parecia mais tão imaculada, não com fiapos de cabelo arrepiados em todas as direções e uma leve mancha de fuligem no nariz, mas tampouco estava assim tão diferente. Certamente devia haver alguma coisa numa Aes Sedai que indicasse o que ela era. Por outro lado, se a aparência externa refletisse o interior, e se as histórias fossem verdadeiras, então ela deveria se parecer mais com um Trolloc do que com uma linda mulher cuja dignidade não havia sido afetada por estar sentada na terra. E ela podia ajudar Tam. Fosse qual fosse o custo, isso estava acima de tudo.

Ele respirou fundo.

— Senhora Moiraine… Quer dizer, Moiraine Sedai.

Os dois se viraram para encará-lo, e ele congelou sob o olhar dela. Não o olhar calmo e sorridente do qual ele se lembrava do Campo. O rosto estava cansado, mas os olhos escuros eram os de um gavião. Aes Sedai. Destruidoras do mundo. Titereiras que manipulavam e faziam tronos e nações dançarem de acordo com os desígnios que somente as mulheres de Tar Valon conheciam.

— Um pouco mais de luz na escuridão — a Aes Sedai murmurou. Ela levantou a voz. — Como estão seus sonhos, Rand al’Thor?

Ele a encarou.

— Meus sonhos?

— Uma noite como esta pode fazer um homem ter pesadelos, Rand. Se você tiver pesadelos, deve me falar deles. Às vezes eu posso ajudar com sonhos ruins.

— Não há nada de errado com meus… É o meu pai. Ele está ferido. Não é muito mais do que um arranhão, mas a febre o está consumindo. A Sabedoria não vai ajudar. Diz que não pode. Mas as histórias…

Ela ergueu uma sobrancelha, e ele parou e engoliu em seco. Luz, existe alguma história com uma Aes Sedai em que ela não seja a vilã? Ele olhou para o Guardião, mas Lan parecia mais interessado no Trolloc morto do que em qualquer coisa que Rand pudesse dizer. Constrangido com o olhar dela, ele prosseguiu:

— Eu… hã… dizem que as Aes Sedai podem curar. Se a senhora puder ajudá-lo… Qualquer coisa que puder fazer por ele… Qualquer que seja o custo… Quer dizer… — Ele respirou fundo e terminou de uma só vez: — Pagarei qualquer preço que estiver em meu poder se a senhora ajudá-lo. Qualquer um.

— Qualquer preço — ponderou Moiraine. — Falaremos de preços depois, Rand, se chegarmos a esse ponto. Não posso prometer nada. A Sabedoria sabe o que faz. Farei o que puder, mas está além do meu poder impedir a Roda de girar.

— A Morte chega mais cedo ou mais tarde para todos — disse o Guardião, sombrio —, a menos que se sirva ao Tenebroso, e apenas tolos estão dispostos a pagar esse preço.

Moiraine estalou a língua.

— Não seja tão lúgubre, Lan. Até que temos um motivo para comemorar. Pequeno, mas temos. — Ela usou o cajado para se erguer. — Leve-me a seu pai, Rand. Vou ajudá-lo como puder. Muita gente aqui tem recusado minha ajuda. Eles também ouviram as histórias — acrescentou secamente.

— Ele está na estalagem — disse Rand. — Por aqui. E obrigado. Obrigado!

Eles seguiram Rand, mas os passos apressados dele o levaram rapidamente adiante. Ele reduziu, impaciente, para que eles o alcançassem, então disparou à frente mais uma vez e teve de esperar novamente.

— Por favor, rápido — ele pediu, tão concentrado em obter ajuda para Tam que nem por um instante levou em conta a temeridade de provocar uma Aes Sedai. — A febre o está consumindo.

Lan o fuzilou com os olhos.

— Não vê que ela está cansada? Mesmo com um angreal, o que ela fez noite passada foi como correr ao redor da aldeia com um saco cheio de pedras nas costas. Não sei se você vale o sacrifício, pastor de ovelhas, não importa o que ela diga.

Rand piscou e conteve a língua.

— Calma, meu amigo — disse Moiraine.

Sem diminuir o passo, ela estendeu a mão para dar palmadinhas no ombro do Guardião. Ele se avultava, protetor, sobre ela, como se pudesse lhe dar forças simplesmente por estar perto.

— Você pensa apenas em cuidar de mim. Por que ele não deveria pensar o mesmo em relação ao pai dele?

Lan fechou a cara, mas ficou em silêncio.

— Estou indo o mais rápido que posso, Rand, eu lhe garanto.

Entre a ferocidade nos olhos dela e a calma na voz — que não era exatamente suavidade; era mais uma firmeza de comando —, Rand não sabia em qual acreditar. Ou talvez as duas coisas se combinassem, afinal. Aes Sedai. Ele estava comprometido agora. Acertou o passo com o deles e tentou não pensar em qual seria o preço sobre o qual conversariam depois.

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