9. O ANEL DE ERRETH-AKBE

No Grande Tesouro dos Túmulos de Atuan, o tempo não passava. Não havia luz, nem vida, nem o mínimo movimento de aranha na poeira ou de verme na terra fria. Rocha, negrume e tempo sem passar.

Na tampa de pedra de um grande cofre, o ladrão das Terras Interiores jazia estendido de costas, como figura esculpida sobre um túmulo. O pó que os seus movimentos haviam erguido assentara sobre as suas roupas. Ele não se movia.

A fechadura da porta soltou um ruído seco. A porta abriu-se. Uma luz quebrou o negrume e um sopro mais fresco agitou o ar estagnado. O homem jazia inerte.

Arha fechou a porta e aferrolhou-a por dentro, pousou a lanterna sobre uma das arcas e aproximou-se da figura imóvel. Avançava receosamente, os olhos muito abertos, as pupilas dilatadas ainda da sua longa caminhada pela escuridão.

— Gavião!

Tocou-lhe o ombro e de novo pronunciou o seu nome e uma vez ainda.

Ele agitou-se então ligeiramente e como que gemeu. Por fim ergueu o tronco, o rosto contorcido, o olhar vazio. Fitou-a como se não a reconhecesse.

— Sou eu, Arha… Tenar. Trouxe-te água. Toma, bebe. Desajeitadamente, como se as tivesse entorpecidas, ele estendeu as mãos para o cantil e bebeu, mas não avidamente.

— Quanto tempo passou? — perguntou, falando com dificuldade.

— Dois dias desde que vieste para esta sala. Esta é a terceira noite. Não pude vir antes. Tive de roubar a comida… está aqui…

E tirou um dos pães cinzentos, achatados, de dentro do bornal que trouxera, mas ele abanou a cabeça numa negativa.

— Não tenho fome. Este… este lugar é mortal.

Pôs a cabeça entre as mãos e ficou de novo imóvel.

— Estás com frio? Eu trouxe o meu manto da Sala Pintada. Mas ele não respondeu.

A rapariga pousou o manto e ficou a olhar o homem. Tremia um pouco, os seus olhos continuavam escuros e muito abertos.

E de repente caiu de joelhos, dobrou-se para a frente e começou a chorar, com profundos soluços que lhe contorciam o corpo mas em que não havia lágrimas.

Ele desceu rigidamente do cofre e inclinou-se sobre ela.

— Tenar — disse.

— Eu não sou Tenar. Eu não sou Arha. Os deuses estão mortos, os deuses estão mortos.

Ele pousou-lhe as mãos na cabeça, puxando-lhe o capuz para trás, e começou a falar. A sua voz era suave e as palavras numa língua que ela nunca antes ouvira. O seu som penetrou-lhe o coração como chuva caindo. Aquietou-se para ouvir.

Quando ela acalmou, ele levantou-se do chão e colocou-a, como uma criança, no grande cofre onde estivera deitado. Depois pousou a mão nas dela.

— Porque choraste, Tenar?

— Eu digo-te. Porque não interessa o que te diga. Tu não podes fazer nada. Não podes ajudar. Também estás a morrer, não estás? Portanto não importa. Nada importa. Kossil, a Sacerdotisa do Rei-Deus, foi sempre cruel, só a tentar fazer com que eu te matasse. Da mesma maneira que matei aqueles outros. E eu não queria. Que direito tem ela? E então ela desafiou Aqueles-que-não-têm-Nome e troçou deles. E eu lancei-lhe uma maldição. E a partir daí tenho estado com medo dela, porque é verdade o que o Manane disse, ela não acredita nos deuses. Quer que eles sejam esquecidos e havia de me matar quando eu estivesse a dormir, de maneira que eu não dormi. Não voltei para a Casa Pequena. Fiquei na Mansão toda a noite passada, numa das divisões mais pequenas, aquela onde se guardam as vestimentas para as danças. Antes de clarear o dia, fui até à Casa Grande, roubei alguma comida da cozinha e depois voltei para a Mansão e fiquei lá todo o dia. Estive a tentar decidir o que havia de fazer. E esta noite… esta noite estava tão cansada que pensei que podia ir para um lugar sagrado e dormir, que ela teria receio de lá ir. De maneira que desci para o Subtúmulo. Aquela grande caverna onde te vi pela primeira vez. E… e ela estava lá. Devia ter entrado pela porta da rocha vermelha. Estava lá com uma lanterna. A remexer na cova que o Manane tinha aberto, para ver se lá havia algum corpo. Parecia um rato num cemitério, um grande rato preto, a escavar. E a luz a arder no Lugar Sagrado, no lugar das trevas. E Aqueles-que-não-têm-Nome nada fizeram. Não a mataram nem a fizeram endoidecer. Estão velhos, como ela disse. Estão mortos. Foram-se todos. Já não sou sacerdotisa nenhuma.

O homem, imóvel, ouvi-a, a mão ainda sobre as dela, a cabeça um pouco inclinada. Regressara algum vigor ao seu rosto, à sua postura, embora as cicatrizes no seu rosto tivessem adquirido uma lividez acinzentada e houvesse ainda poeira nas suas roupas e no cabelo.

— Passei por ela, atravessando o Subtúmulo. A lanterna fazia mais sombras que luz e ela não me ouviu. Eu só queria entrar no Labirinto para me afastar dela. Mas depois de ter entrado, estava sempre com a impressão de que a ouvia a seguir-me. Ao longo de todos os corredores, nunca deixei de ouvir alguém atrás de mim. E não sabia para onde havia de ir. Julguei que estaria a salvo aqui, que os meus Senhores me protegeriam e defenderiam. Mas não. Desapareceram, estão mortos…

— Foi por eles que choraste, pela sua morte? Mas eles estão aqui, Tenar, aqui!

— Como podes saber isso? — disse ela, apaticamente.

— Porque a cada instante desde que entrei na caverna sob as Pedras Tumulares me tenho esforçado por mantê-los imóveis, por mantê-los ignorantes. Todas as minhas capacidades foram usadas para isso, foi para isso que esgotei a minha força. Enchi estes túneis com uma rede infindável de encantamentos, encantamentos de dormir, de quietude, de ocultação, e mesmo assim eles continuam conscientes da minha presença, meio conscientes. Meio adormecidos, meio acordados. E assim mesmo estou quase completamente gasto de lutar contra eles. Este é o mais terrível dos lugares. Aqui, um homem sozinho não pode ter esperança. Eu morria de sede quando me deste água, mas não foi apenas a água que me salvou. Foi a força das mãos que a deram.

Ao pronunciar estas palavras, ele virou-lhe a palma da mão para cima, na sua própria mão, por um momento, de olhar preso nela. Depois voltou costas, deu alguns passos pela câmara e voltou a parar diante dela. A rapariga nada disse.

— Julgaste realmente que estivessem mortos? Dentro de ti, sabes bem qual é a verdade. Eles não morrem. São sombrios, não morrem e odeiam a luz, a breve e brilhante luz da nossa mortalidade. São imortais, mas não são deuses. Nunca o foram. Não merecem a adoração de nenhuma alma humana.

A rapariga ouvia-o, os olhos pesados, fixos na luz trêmula da lanterna.

— Que te deram eles alguma vez, Tenar?

— Nada — sussurrou ela.

— Eles nada têm para dar. Não têm o poder de fazer. Todo o seu poder é para estabelecer a treva e a destruição. E não podem deixar este lugar. Eles são este lugar e devia ser-lhes deixado. Não devem ser negados nem esquecidos. Mas também não devem ser adorados. A Terra é bela, brilhante e amiga, mas isso não é tudo. Porque a Terra é também terrível e escura e cruel. O coelho guincha ao encontrar a morte nos verdes prados. As montanhas enclavinham as mãos enormes, cheias de fogo oculto. Há tubarões nos mares e crueldade nos olhos dos homens. E onde os homens rendem culto a estas coisas e se prosternam perante elas, ai se gera o mal. E constroem-se lugares no mundo onde o negrume se condensa, lugares totalmente dedicados a Esses a quem nós chamamos Sem-Nome, os antigos e sagrados Poderes da Terra antes da Luz, os poderes da escuridão, da ruína, da loucura… Penso que terão enlouquecido a vossa sacerdotisa Kossil há muito já. Penso que ela terá vagueado, como o caçador atrás da presa, por estas cavernas, tal como vagueia pelo labirinto do seu próprio ser, e agora já não consegue ver a luz do dia. Ela disse que Aqueles-que-não-têm-Nome estão mortos, mas só uma alma perdida, perdida para a verdade, poderia acreditar em tal. Eles existem. Mas não são os teus Senhores. Nunca o foram. Tu és livre, Tenar. Ensinaram-te a ser escrava, mas quebraste as tuas correntes.

E ela escutava-o, embora a sua expressão não se alterasse. Ele nada mais disse. Ficaram em silêncio. Mas não era já o silêncio que pesara naquela câmara antes de ela entrar. Havia agora o respirar de ambos, o movimento da vida nas suas veias e o crepitar da vela na sua lanterna de estanho, um som minúsculo e pleno de vida.

— Como é possível que saibas o meu nome?

Ele pôs-se a andar de um lado para o outro, levantando a poeira finíssima, esticando os braços e os ombros, no esforço de se libertar do frio entorpecedor.

— Saber nomes é a minha tarefa. A minha arte. Para tecer a magia de uma coisa, sabes, é preciso desvendar o seu nome verdadeiro. Nas terras de onde venho, mantemos durante toda a vida os nossos nomes ocultos de todos, menos daqueles em quem confiamos totalmente. Porque num nome há grande poder, e grande perigo. Houve uma altura, no princípio dos tempos, quando Segoy ergueu as ilhas de Terramar do fundo do oceano, em que todas as coisas ostentavam os seus verdadeiros nomes. E tudo o que é fazer magia, toda a feitiçaria, depende ainda hoje do conhecimento, do reaprender, do relembrar, dessa verdadeira e antiga linguagem da Edificação. É claro que há encantamentos a aprender, maneiras de usar as palavras. E é também necessário saber as conseqüências. Mas no que um feiticeiro leva a sua vida é a descobrir os nomes das coisas e a descobrir formas de descobrir os nomes das coisas.

— Mas como descobriste o meu?

Ele olhou-a por um momento, num relancear profundo e límpido a atravessar as trevas entre eles. Hesitou um momento e depois disse:

— Isso não te posso dizer. Tu és como uma lanterna enfaixada e coberta, oculta num local cheio de sombra. E no entanto a luz brilha. Não conseguiram apagar a luz. Não conseguiram ocultar-te. Tal como conheço a luz, tal como te conheço, assim conheço o teu nome, Tenar. Esse é o meu dom, o meu poder. Mais não te posso dizer. Mas diz-me tu. O que farás agora?

— Não sei.

— Nesta altura já Kossil encontrou uma sepultura vazia. O que irá ela fazer?

— Não sei. Se eu voltar lá para cima, pode mandar matar-me. A punição para uma Grã-Sacerdotisa que minta é a morte. Se quisesse podia mandar sacrificar-me nos degraus do Trono. E, desta vez, Manane teria realmente de me decepar a cabeça, em vez de se limitar a levantar a espada e esperar que a figura de Negro o fizesse parar. Não, desta vez não parava. Viria até abaixo e cortava-me a cabeça.

A sua voz soava inexpressiva e lenta. Ele enrugou a testa e disse:

— Se ficarmos aqui por muito tempo, Tenar, acabarás por endoidecer. A ira d’Aqueles-que-não-têm-Nome oprime a tua mente. E a minha também. É melhor agora que estás aqui, muito melhor. Mas passou muito tempo antes que viesses e eu esgotei quase toda a minha energia. Sozinho, ninguém pode opor-se durante muito tempo aos Senhores da Treva. São demasiado fortes.

Parou. A sua voz enfraquecera muito e ele parecia ter perdido o fio ao discurso. Esfregou a testa com as mãos e, de imediato, foi uma vez mais beber do cantil. Arrancou um pedaço de pão e foi sentar-se no cofre oposto a comê-lo.

O que ele dizia era verdade. A rapariga sentia um peso, uma pressão no seu espírito, que parecia escurecer e confundir sentimentos e idéias. No entanto, não estava aterrada, como quando viera sozinha através dos corredores. Só o absoluto silêncio fora da sala parecia terrível. Porque seria isso? Ela nunca temera o silêncio do subsolo antes. Mas também nunca antes desobedecera Àqueles-que-não-têm-Nome, nunca se lhes opusera.

Finalmente, soltou uma risadinha que soou como um queixume.

— Aqui estamos nós sentados em cima do maior tesouro de todo o Império — comentou. — O Rei-Deus era capaz de dar todas as suas mulheres por um só destes cofres. E nós ainda nem levantamos uma das tampas para olhar.

— Eu levantei — disse o Gavião, continuando a mastigar.

— No escuro?

— Fiz alguma luz. O fogo-fátuo. Foi difícil de conseguir, aqui dentro. Mesmo com o meu bordão não teria sido fácil mas, sem ele, foi como se estivesse a tentar fazer uma fogueira com lenha molhada e debaixo de chuva. Mas por fim consegui. E encontrei o que tinha vindo procurar.

Ela ergueu lentamente o rosto para o olhar.

— O anel?

— O meio anel. A outra metade tens tu.

— Eu é que tenho? A outra metade perdeu-se…

— E foi encontrada. Eu trazia-a numa corrente à volta do pescoço. Tu tiraste-me e perguntaste se eu não tinha conseguido arranjar um talismã melhor. O único talismã melhor que metade do Anel de Erreth-Akbe seria o anel inteiro. Mas, como se costuma dizer, meio pão é melhor que pão nenhum. De maneira que tu agora tens a minha metade e eu a tua. E sorriu-lhe por entre as sombras do túmulo.

— Disseste, quando to tirei, que eu não sabia o que fazer com ele.

— Era verdade.

— E tu sabes?

Ele assentiu com um aceno de cabeça.

— Diz-me. Diz-me o que é o anel e como conseguiste encontrá-lo, e como vieste até aqui e porquê. Tenho de saber tudo isso. Depois, talvez veja o que hei de fazer.

— Talvez vejas, sim. Muito bem. O que é ele, o anel de Erreth-Akbe? É fácil de ver que não parece coisa preciosa, e que nem sequer é um anel. É demasiado grande. Uma pulseira, talvez, mas para isso parece pequeno de mais. Ninguém sabe para quem foi feito. Elfarran, a Bela, usou-o em tempos, antes que a Ilha de Soléa se perdesse no fundo do oceano e já era antigo quando ela o usou. E por fim chegou às mãos de Erreth-Akbe… O metal é prata endurecida e tem nove orifícios. Há um desenho semelhante a ondas feito a buril no exterior e nove Runas de Poder na parte interna. Na metade que tu tens há quatro runas e uma parte de outra e na minha a mesma coisa. Ao quebrar, foi exatamente a atravessar esse único símbolo e destruiu-o. E assim que lhe têm chamado, desde então, a Runa Perdida. Os outros oito são do conhecimento dos Magos. Pirr que protege da loucura bem como do vento e do fogo, Ges que confere resistência e assim por diante. Mas a runa quebrada era a que unia as terras. Era a Runa-Elo, o signo do domínio, o signo da paz. Nenhum rei poderia governar bem se não o fizesse sob a égide desse signo. Ninguém sabe como foi escrito. Desde que se perdeu, não voltou a haver grandes reis em Havnor. Tem havido príncipes e tiranos. Tem havido guerras e desavenças entre todas as terras de Terramar. Por isso os senhores mais sábios e os Magos do Arquipélago queriam o anel de Erreth-Akbe, a fim de restaurarem a runa perdida. Mas, por fim, desistiram de continuar a enviar homens a procurá-lo, dado que nenhum conseguia resgatar a metade que estava nos Túmulos de Atuan, e a outra metade, que Erreth-Akbe dera a um rei karguiano, há muito se perdera. Resolveram que a busca era inútil. Isto passou-se há muitas centenas de anos.

O Gavião fez uma curta pausa e logo prosseguiu:

— Ora a metade veio parar às minhas mãos assim. Era eu pouco mais velho que tu és agora, andava numa perseguição… numa espécie de caçada através do mar. Aquilo que eu perseguia iludiu-me, de maneira que fui lançado para uma ilha deserta, não muito longe das costas de Karego-at e de Atuan, para sudoeste daqui. Era um pequeno ilhéu, pouco mais que um banco de areia, com longas dunas cobertas de plantas rasteiras no meio, uma fonte de água salobra e nada mais. No entanto, viviam ali duas pessoas. Dois velhos, um homem e uma mulher, irmãos, creio. Estavam aterrados com a minha presença. Já não viam outro rosto humano há… sei lá quanto! Anos, dezenas de anos. Mas eu precisava de ajuda e eles foram bons para mim. Tinham uma cabana de madeiras trazidas pelo mar e um fogo. A mulher deu-me comida, mexilhões que apanhava das rochas na maré baixa, carne seca de aves que matavam atirando-lhes pedras. Ela tinha medo de mim mas, mesmo assim, deu-me de comer. Depois, como eu não fazia nada que a pudesse atemorizar, acabou por confiar em mim e mostrou-me o seu tesouro. Também ela tinha um tesouro… Era um vestido pequeno. Todo feito de seda, recamada de pérolas. Um vestido de criança, um vestido de princesa. E ela vestia-se com peles de foca por curtir. Não podíamos conversar. Nessa altura eu não sabia a língua de Karg e eles não conheciam a língua do Arquipélago e muito pouco da sua própria língua. Devem ter sido levados para ali ainda muito pequenos e abandonados para morrer. Não sei por que motivos e duvido de que eles os conhecessem. Nada conheciam, para além da ilha, do mar e do vento. Mas quando me vim embora, ela deu-me um presente. Deu-me a metade perdida do Anel de Erreth-Akbe.

De novo fez uma pausa.

— Sabia tanto do que se tratava como ela. Era o maior presente possível nesta era do mundo e foi dado por uma pobre mulher, velha, tonta e vestida de peles de foca, a um rústico idiota que o enfiou no bolso, disse obrigado e zarpou dali… Bom, lá segui e fiz o que tinha a fazer. Depois surgiram outras coisas e eu fui até ao Passo dos Dragões, e para ocidente, e assim. Mas mantive sempre aquilo comigo porque sentia gratidão por aquela velha que me dera o único presente que tinha para dar. Passei uma corrente por um dos orifícios que o atravessavam, habituei-me a usá-lo ao pescoço e nunca mais pensei em tal. E depois, certo dia, em Selidor, a Mais Longínqua Ilha, a terra onde Erreth-Akbe morreu em combate com o dragão Orm… em Selidor, dizia, falei com um dragão que era da linhagem de Orm. E ele disse-me o que eu trazia sobre o peito. Achou muito engraçado que eu não soubesse. Os dragões acham-nos divertidos. Mas lembram-se de Erreth-Akbe e, dele, falam como se de um dragão se tratasse, não de um homem. Quando regressei às Ilhas Interiores, fui finalmente a Havnor. Eu tinha nascido em Gont, que não fica muito longe a ocidente das vossas terras karguianas e vagueara bastante desde então, mas nunca estivera em Havnor. Era tempo de lá ir. Vi as torres brancas e falei com os grandes homens, os mercadores e os príncipes e os senhores dos antigos domínios. Disse-lhes o que tinha comigo. Disse-lhes que, se assim quisessem, iria em busca do resto do anel nos Túmulos de Atuan, a fim de encontrar a Runa Perdida, a chave para a paz. Porque precisamos seriamente de paz no mundo. Todos me louvaram muito. E um deles até me deu dinheiro para que eu provesse o meu barco. De modo que aprendi a vossa língua e vim até Atuan.

Calou-se, com o olhar perdido nas sombras à sua frente.

— Mas as pessoas nas nossas vilas não viam que eras do ocidente, pela cor da tua pele, pelo modo de falar?

— Ah, é fácil iludir as pessoas — respondeu o Gavião, distraidamente —, desde que se saibam os truques. Fazem-se algumas mudanças-de-ilusão e só outro Mago será capaz de ver através delas. E aqui, nas terras karguianas, vocês não têm feiticeiros nem Magos. É uma coisa estranha. Vocês baniram todos os vossos feiticeiros há muito tempo e proibiram que se praticasse a Arte Mágica. E agora já quase não acreditam em nada disso.

— Eu fui ensinada a não acreditar. E contrário aos ensinamentos dos Reis Sacerdotes. Mas sei que só por magia podes ter entrado nos Túmulos e pela porta da rocha vermelha.

— Não foi só feitiçaria, mas também bons conselhos. Sabes ler?

— Não. É uma das artes negras.

— Mas muito útil — retorquiu ele, com um aceno de cabeça. — Um antigo ladrão, que não teve êxito, deixou certas descrições dos Túmulos de Atuan e indicações para se poder entrar, caso alguém soubesse usar as Grandes Encantamentos de Abrir. Tudo isto estava escrito num livro, no tesouro de um príncipe de Havnor. Ele deixou que o lesse. E foi assim que consegui alcançar a caverna grande.

— O Subtúmulo.

— O ladrão que escreveu as indicações para entrar julgava que o tesouro estava lá, no Subtúmulo. Portanto, procurei por ali mas tinha a sensação de que devia estar mais bem escondido, mais para dentro do dédalo. Eu conhecia a entrada para o Labirinto e, quando te vi, entrei lá, pensando esconder-me e procurar. É claro que isso foi um erro. Aqueles-que-não-têm-Nome já se tinham apoderado de mim, confundindo-me as idéias. E desde aí tenho vindo a ficar cada vez mais fraco e mais estúpido. Não nos devemos submeter a eles, devemos resistir, manter o nosso espírito sempre forte e seguro. Aprendi isso há muito tempo. Mas aqui, onde eles são tão fortes, é difícil consegui-lo. Não são deuses, Tenar. Mas são mais fortes que qualquer homem.

Durante longo tempo ficaram ambos silenciosos. Depois, numa voz átona, ela perguntou:

— Que mais encontraste nas arcas do tesouro?

— Inutilidades. Ouro, pedrarias, coroas, espadas. Nada a que homem vivo algum tenha o menor direito… Diz-me uma coisa, Tenar. Como foste tu escolhida para seres a Sacerdotisa dos Túmulos?

— Quando a Primeira Sacerdotisa morre, vão em busca por toda a Atuan de uma criança do sexo feminino que tenha nascido na noite em que a Sacerdotisa morreu. E encontram sempre uma. Porque é a Sacerdotisa renascida. Quando a criança chega aos cinco anos, trazem-na para aqui, para o Lugar. E ao fazer os seis, é oferecida aos Senhores da Treva que lhe devoram a alma. E assim pertence-lhes e sempre lhes pertenceu, desde o princípio dos tempos. E não tem nome.

— Acreditas nisso?

— Sempre acreditei.

— Mas acreditas agora?

Ela nada disse.

Uma vez mais o silêncio ensombrado caiu entre eles. Passado muito tempo, ela disse-lhe:

— Conta-me… conta-me dos dragões, no Ocidente.

— Tenar, que vais tu fazer? Não podemos ficar aqui a contar histórias um ao outro até que a vela se apague e a escuridão regresse de novo.

— Mas eu não sei o que fazer. Tenho medo. — Sentada muito direita na arca de pedra, enclavinhou as mãos uma na outra e, como alguém que sofre uma dor, confessou alto: — Tenho medo do escuro.

Suavemente, ele respondeu:

— Tens de fazer uma escolha. Ou me deixas, fechas a porta, sobes aos teus altares e me entregas aos teus Senhores. E depois vais ter com Kossil, fazes as pazes com ela… e esse é o fim da história. Ou então abres a porta e sais comigo. Deixa os Túmulos, deixa Atuan e vem comigo até ao outro lado do mar. E esse é o início da história. Tu tens de ser ou Arha ou Tenar. Não podes ser as duas.

A voz profunda era amiga e segura. Por entre as sombras, ela olhou-lhe o rosto, um rosto duro e sulcado de cicatrizes, mas onde não havia crueldade nem engano.

— Se eu abandonar o serviço dos Senhores da Treva, eles matam-me. Se deixar este lugar, morro.

— Não. Tu não morres. É Arha que morre.

— Não posso…

— Para renascer é preciso morrer, Tenar. Não é tão difícil como parece visto do outro lado.

— Eles nunca nos deixariam sair daqui. Nunca.

— Talvez não. Mas, mesmo assim, vale a pena tentar. Tu tens o saber, eu tenho a perícia e os dois juntos temos…

Ele fez uma pausa e a rapariga disse:

— O Anel de Erreth-Akbe.

— Sim, também. Mas também pensei numa outra coisa que há entre nós. Chama-lhe confiança… É um dos nomes que tem. E é uma coisa muito grande. Embora cada um de nós, por si, seja fraco, tendo isso, essa confiança, somos fortes, mais fortes que os Poderes da Treva.

Os olhos brilhavam-lhe, claros, na cara sulcada de cicatrizes. E continuou:

— Escuta, Tenar! Vim até aqui como um ladrão, um inimigo, armado contra ti. E tu foste clemente para comigo e confiaste em mim. Mas também eu confiei em ti desde o primeiro momento em que vi o teu rosto, apenas por um momento na caverna sob os Túmulos, belo na escuridão. Já deste provas da confiança que tens em mim, mas eu ainda não retribuí. Dar-te-ei o que tenho para dar. O meu nome-verdadeiro é Gued. E isto é teu para que o guardes contigo.

Erguera-se e estendia-lhe um semicírculo de prata, perfurado com vários orifícios e cinzelado.

— Que se reúnam as partes do anel — disse ele.

A rapariga recebeu a metade da mão de Gued. Retirou do pescoço a corrente de prata de onde pendia a outra metade e soltou-a. Colocou as duas metades na palma da mão, com as arestas quebradas a tocarem-se, e o anel parecia inteiro.

Ela não ergueu o rosto.

— Irei contigo — disse.

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