5. LUZ SOB A COLINA

Ia o ano de novo rodando, a aproximar-se do Inverno, quando Thar morreu. No Verão, viera sobre ela uma doença consumidora e ela, que fora magra, ficou esquelética, ela, que fora sisuda, deixou completamente de falar. Só a Arha dirigia por vezes a palavra, quando estavam apenas as duas. Mas depois até isso acabou e foi em silêncio que penetrou na escuridão. Depois de ela se ter ido, Arha sentiu-lhe dolorosamente a falta. Apesar da sua severidade, nunca fora cruel. Fora orgulho que ensinara a Arha e não temor.

Agora, havia apenas Kossil.

Na Primavera, viria de Áuabath uma nova Grã-Sacerdotisa para o Templo dos Irmãos-Deuses. Até lá, Arha e Kossil dividiam entre si o governo do Lugar. A mulher tratava a rapariga por «senhora» e devia obedecer a qualquer ordem dada por esta. Mas Arha em breve aprendeu a não dar ordens a Kossil. Tinha o direito de o fazer, mas não a energia, pois bem grande devia tal energia ser para enfrentar a inveja de Kossil por uma posição superior à sua, o ódio por toda e qualquer coisa que ela própria não pudesse controlar.

A partir da altura em que Arha aprendera (com a doce Penthé) que a ausência de fé existia, e o aceitara como uma realidade embora a assustasse, fora capaz de encarar Kossil muito mais friamente e de a entender. No seu coração, Kossil não tinha verdadeiro respeito por Aqueles-que-não-têm-Nome nem pelos deuses. Para ela, de sagrado só havia o poder. O Imperador das Terras de Kargad detinha agora o poder e, portanto, a seus olhos, ele era realmente um rei-deus e servi-lo-ia bem. Mas para ela os templos não passavam de aparência, as Pedras Tumulares eram rochas e os Túmulos de Atuan buracos negros no solo, terríveis mas vazios. Se pudesse, poria fim ao culto do Trono Vazio. Se se atrevesse, poria fim à Grã-Sacerdotisa.

Arha conseguira encarar mesmo este último fato com bastante firmeza. Talvez Thar a tivesse ajudado a ver as coisas tal como eram, embora sem nunca dizer nada abertamente. Nas primeiras fases da sua doença, antes que o silêncio se apoderasse dela, pedira a Arha que a viesse ver de poucos em poucos dias e falara com ela, contando-lhe muitas coisas acerca das ações do Rei-Deus e do seu predecessor e de como eram as coisas em Áuabath — assuntos que, sendo uma sacerdotisa importante, devia conhecer, mas que freqüentemente não eram lisonjeiros para o Rei-Deus nem para a sua corte. E falara também da sua própria vida e descrevera o aspecto da Arha da vida anterior e o que ela fizera. Por vezes, pouco freqüentemente, mencionara também quais poderiam ser os perigos e dificuldades na vida presente de Arha. Nem uma vez pronunciou o nome de Kossil. Mas Arha fora discípula de Thar durante onze anos, pelo que lhe bastava uma meia palavra ou uma entoação para perceber. E para recordar.

Depois de ultrapassada a sombria agitação dos Ritos do Luto, Arha deu em evitar Kossil. Logo que cumpridos os rituais e as longas tarefas do dia, dirigia-se para a sua morada solitária. E, sempre que tinha tempo, ia até à câmara por detrás do Trono, abria o alçapão e descia para o seio da escuridão. Fosse de dia ou de noite, porque isso ali não fazia qualquer diferença, prosseguia na sistemática exploração do seu domínio. O Subtúmulo, com a sua grande carga sagrada, era vedado em absoluto a qualquer ser que não fosse uma sacerdotisa e os seus eunucos de maior confiança. Qualquer outra pessoa, homem ou mulher, que se aventurasse a descer ali seria indubitavelmente ferido de morte pela ira d’Aqueles-que-não-têm-Nome. Mas entre todas as regras que aprendera, nenhuma havia que proibisse a entrada no Labirinto. Não era necessário. Ali só se podia chegar através do Subtúmulo. E, de qualquer modo, será que as moscas precisam de regras para não entrarem numa teia de aranha?

Assim, levou Manane muitas vezes até às zonas periféricas do Labirinto, para que ele aprendesse os caminhos. O eunuco não tinha a menor vontade de ali entrar mas, como sempre, obedecia-lhe. Assegurou pessoalmente que Duby e Uahto, eunucos de Kossil, aprendessem o caminho até à Sala das Correntes e de saída do Subtúmulo, mas não mais que isso. Nunca os levou para dentro do Labirinto. Não queria que mais ninguém, para além de Manane, que lhe era fiel em absoluto, conhecesse os caminhos secretos. Porque eram dela, só dela, para sempre. Começara a exploração total do Labirinto. Durante todo o Outono, passou muitos dias a caminhar pelos infindáveis corredores e, mesmo assim, ainda havia zonas deles onde nunca chegara. Havia um cansaço inerente àquele traçar da vasta e insensata teia de caminhos. As pernas cansavam-se, a mente entediava-se, naquele incessante verificar de voltas e passagens que ficavam para trás ou ainda estavam para vir. Era maravilhoso, estabelecido na rocha sólida do subsolo como as ruas de uma grande cidade. Mas fora concebido para cansar e confundir os mortais que por ele caminhassem e mesmo as suas sacerdotisas tinham de acabar por sentir que nada mais era que uma gigantesca armadilha.

E assim, cada vez mais à medida que o Inverno avançava, Arha foi deixando a sua grande exploração, trocando-a pela da própria Morada, pelos altares, as alcovas atrás e debaixo dos altares, as câmaras cheias de arcas e caixas, o conteúdo dessas arcas e caixas, as passagens e os sótãos, o vazio poeirento sob a cúpula onde faziam ninho centenas de morcegos, as caves e subcaves que eram as antecâmaras dos corredores da escuridão.

As mãos e as mangas perfumadas com a seca doçura de almíscar que se tornara em pó nas oito centenas de anos em que ficara numa arca, a fronte marcada pelo negro pegajoso de uma teia de aranha, chegava a ficar uma hora ajoelhada a estudar as figuras gravadas num belo cofre de cedro que o tempo degradara, oferta de algum rei, eras antes, aos Poderes Inominados dos Túmulos. E ali estava o rei, uma minúscula figura rígida com um grande nariz, ali estava a Sala do Trono com a sua abóbada achatada e as suas colunas no pórtico, tudo gravado em delicado relevo por algum artista que havia muitos séculos era apenas pó. Ali estava a Grã-Sacerdotisa, aspirando os fumos estupefacientes dos tabuleiros de bronze e profetizando ou aconselhando o rei, cujo nariz nesta cena estava partido. O rosto da Sacerdotisa era demasiado diminuto para se verem claramente as feições mas Arha imaginava que esse rosto fosse o seu. E ficava a pensar o que teria dito ao rei e se ele lhe ficara grato.

Arha tinha sítios favoritos na Mansão do Trono, tal como qualquer pessoa poderia ter lugares favoritos numa casa clara e bem iluminada pelo sol. Ia muitas vezes até umas pequenas águas-furtadas acima de um dos quartos de vestir nas traseiras da Mansão. Ali se guardavam antigos vestidos e outros trajes, vindos dos tempos em que grandes reis e senhores vinham prestar o seu culto no Lugar dos Túmulos de Atuan, assim reconhecendo um poder maior que o seu ou de qualquer homem. Por vezes as suas filhas, as princesas, tinham envergado estas macias sedas brancas, recamadas de topázios e escuras ametistas, e dançado com as Sacerdotisas dos Túmulos. Havia pequenas mesas de marfim, pintadas, numa das salas de tesouro, representando uma dessas danças, com os senhores e os reis à espera fora da Mansão, porque, então como agora, homem algum pisava jamais o solo dos Túmulos. Mas as donzelas podiam entrar e dançar com as Sacerdotisas, vestidas de seda branca. A Sacerdotisa, essa, vestia-se com tecido grosseiro, de fabrico caseiro, sempre negro, então como agora. Mas Arha gostava de vir passar os dedos pelo pano suave, apodrecido com os anos, pelas imperecíveis pedras preciosas que, pelo seu próprio peso, se iam desprendendo do tecido. Havia um aroma naquelas arcas diferente de todas as essências e incensos dos templos do Lugar. Um aroma mais fresco, mais sutil, mais jovem.

Nas salas de tesouro era capaz de passar toda uma noite a estudar o conteúdo de uma única arca, jóia por jóia, as armaduras enferrujadas, as plumas quebradas dos elmos, as fivelas e alfinetes e broches, de bronze, de prata, de ouro maciço.

Mochos, indiferentes à sua presença, permaneciam pousados nas vigas, abrindo e fechando os olhos amarelos. Por entre as telhas escoava-se um pouco de luz das estrelas. Ou então era a neve que vinha caindo como de um crivo, fina e fria como aquelas antigas sedas que se faziam em nada ao toque das mãos.

Em certa noite, ia o Inverno já bem avançado, Arha sentiu que estava demasiado frio na Mansão. Foi até ao alçapão, ergueu-o, rodou o corpo para alcançar os degraus e fechou o alçapão sobre si. Começou a percorrer silenciosamente o caminho que tão bem conhecia agora, a passagem para o Subtúmulo. Ali, é claro, nunca levava luz. Se trazia uma lanterna, de ter ido ao Labirinto ou entrado de noite pelo campo aberto, apagava-a antes de chegar próximo do Subtúmulo. Ela nunca vira esse lugar, nunca em todas as gerações do seu sacerdócio. Entrando na passagem, soprou a vela da lanterna que trazia e, sem abrandar o andamento, seguiu em frente naquele negrume de breu, tão facilmente como um peixinho em águas turvas. Aqui, fosse Inverno ou Verão, não havia frio nem calor. Era sempre o mesmo fresco, um pouco úmido, imutável. Lá por cima, os fortes e gélidos ventos do Inverno varriam uma neve fina por sobre o deserto. Mas ali não havia vento, não havia estação. Era fechado, calmo, seguro.

Arha encaminhava-se para a Sala Pintada. Gostava por vezes de ali ir e estudar os estranhos desenhos que o bruxulear da sua lanterna arrancava à escuridão. Eram homens com longas asas e grandes olhos, serenos e taciturnos. Ninguém lhe podia dizer de quem se tratava, pois não havia mais pinturas assim em lado algum do Lugar, mas ela julgava saber o que eram. Os espíritos dos condenados, que não voltam a nascer. A Sala Pintada ficava no Labirinto, de modo que ela tinha de passar primeiro pela caverna sob as Pedras Tumulares. Ao aproximar-se, descendo a passagem inclinada, um vago cinzento como que desabrochou, não mais que uma leve sugestão de brilho, eco do eco de uma luz distante.

Julgou que os olhos lhe estivessem a pregar uma partida, como tantas vezes acontecia naquele negrume absoluto. Fechou-os, pois, e o brilho desapareceu. Abriu-os e o brilho voltou.

Deixara de caminhar e ficara imóvel. Cinzento, não negro. Um fio pálido e mortiço, apenas visível, onde nada podia ser visível, onde tudo devia ser negro.

Deu uns poucos passos em frente e estendeu a mão para aquele ângulo da parede do túnel. E, infinitamente indistinto, viu o movimento da sua mão.

Continuou em frente. Aquilo era estranho para lá do pensamento, para lá do temor, aquele ínfimo desabrochar de luz onde luz alguma jamais existira, no mais profundo sepulcro da escuridão. Prosseguiu sem fazer ruído, os pés nus, vestida de negro. Antes da última volta do corredor deteve-se. Depois, muito lentamente, deu o último passo, olhou, viu.

Viu o que nunca vira, embora tivesse vivido uma centena de vidas. A grande caverna abandonada sob as Pedras Tumulares, que não fora escavada por mãos humanas mas pelos poderes da Terra. Surgia enriquecida de cristais, ornamentada com pináculos e filigranas de calcário branco onde as águas subterrâneas tinham agido, desde há eras. Imensa, com teto e paredes resplandecendo, cintilante, delicada e intrincada, um palácio de diamantes, uma casa de ametista e cristal, de onde a antiqüíssima escuridão fora arrancada por inaudita magnificência.

Não que fosse muito brilhante a luz que obrara aquela maravilha, mas mesmo assim ofuscante para um olhar habituado ao escuro. Era um clarão suave, como um fogo-fátuo, que se movia lentamente através da caverna, arrancando milhares de reflexos cintilantes do teto ornado de gemas e fazendo ondular milhares de sombras fantásticas ao longo da paredes esculpidas.

A luz ardia na ponta de um bordão de madeira, sem fumo, sem o consumir. O bordão era seguro por mão humana. Arha viu o rosto ao lado da luz. Um rosto escuro. O rosto de um homem.

Não se moveu.

Durante muito tempo, o homem atravessou e voltou a atravessar a vasta caverna. Movia-se como se procurasse alguma coisa, espreitando para trás das arrendadas cataratas de pedra, estudando os vários corredores que se abriam para fora do Subtúmulo mas sem neles penetrar. E ainda imóvel permanecia a Sacerdotisa dos Túmulos, no ângulo negro da passagem, esperando.

O que lhe era talvez mais difícil de conceber era que estava a olhar um estranho. Muito raramente vira um estranho. Parecia-lhe que aquele teria de ser um dos vigilantes — não, um dos homens de fora da parede, um cabreiro ou um guarda, um escravo do Lugar. E que ele viera para ver os segredos d’Aqueles-que-não-têm-Nome, talvez para roubar qualquer coisa dos Túmulos…

Para tirar alguma coisa. Para roubar os Poderes da Treva. Sacrilégio. Foi lentamente que a palavra veio à idéia de Arha. Aquele era um homem e homem algum podia jamais pisar o solo dos Túmulos, o Lugar Sagrado. E no entanto chegara até ali, ao espaço oco que era o coração dos Túmulos. Entrara nele. Fizera luz onde a luz era proibida, onde nunca existira desde o princípio do mundo. Porque não o teriam Aqueles-que-não-têm-Nome ferido de morte?

O homem estava agora a mirar o chão pétreo, que se encontrava fendido e revolvido. Via-se que tinha sido aberto e voltado a fechar. Os informes e estéreis pedaços de solo, cavados para fazer as sepulturas, não tinham sido devidamente nivelados depois.

Os Senhores de Arha tinham devorado aqueles três. Porque não faziam o mesmo a este? De que estariam à espera?

Que as mãos dela agissem, que a língua dela falasse, pois essas eram as mãos e a língua d’Aqueles-que-não-têm-Nome.

— Vai-te! Vai-te! Desaparece! — bradou ela de imediato a plenos pulmões. Grandes ecos estridentes reboaram ao longo da caverna, como que enevoando o rosto escuro, sobressaltado, que se voltou para ela e, por um momento, através do esplendor subitamente abalado da caverna, a viu. Depois a luz desapareceu. Todo o esplendor se foi. Escuridão total. E silêncio.

Arha podia agora voltar a pensar, liberta como estava do feitiço da luz.

O estranho devia ter entrado pela porta de rocha vermelha, a Porta dos Prisioneiros, portanto tentaria fugir por aí. Tão ligeira e silenciosa como os mochos de asas suaves, ela percorreu a meia periferia da caverna até ao túnel baixo que conduzia àquela porta que só abria para dentro. Inclinou-se para a frente à entrada do túnel. Não havia qualquer corrente de ar vinda do exterior. O estranho não deixara a porta aberta atrás de si. Estava fechada e, se ele se encontrasse no túnel, ficara preso na armadilha.

Mas o estranho não estava no túnel. Arha tinha a certeza. Tão próximo, naquele lugar limitado, ela ter-lhe-ia ouvido o respirar, sentido o calor e o pulsar da sua própria vida. Não havia ninguém dentro do túnel. Endireitou-se e escutou. Para onde teria ele ido?

A escuridão era como uma venda a apertar-lhe os olhos. Ter visto o Subtúmulo confundira-a. Estava desorientada. Conhecera-o apenas como uma região definida pelo ouvido, pelo tatear tias mãos, pelo perpassar de ar frio no escuro. Uma vastidão. Um mistério destinado a nunca ser visto. Mas ela vira-o e o mistério dera lugar, não ao horror, mas à beleza, um mistério mais profundo ainda que o da treva.

Seguiu então em frente, insegura. Apalpou o caminho para a esquerda, até à segunda passagem, a que conduzia ao Labirinto. Aí parou e escutou.

Os ouvidos não lhe disseram mais que os olhos. Contudo, enquanto permanecia com uma mão apoiada de cada lado da arcada de pedra, sentiu uma ligeira, uma obscura vibração na rocha e no ar frio e sediço havia o vestígio de um aroma que não pertencia ali, o cheiro da salva brava que crescia nas colinas do deserto, por cima dela, a céu aberto.

Lenta e silenciosamente, avançou pelo corredor, seguindo o que o olfato lhe dizia.

Após talvez uns cem passos, ouviu-o. Era quase tão silencioso como ela, mas não tão seguro de pés no escuro. Arha ouviu um ligeiro arrastar, como se ele tivesse tropeçado no piso desigual, recuperando de imediato o equilíbrio. Nada mais que isso. Ela esperou um pouco e depois prosseguiu devagar, com as pontas dos dedos da mão direita a tocarem muito ligeiramente a parede. Por fim, sentiu debaixo deles uma barra roliça de metal. Aí parou e foi percorrendo com a mão a tira de ferro, quase tão alto quanto podia alcançar, até tocar num punho saliente de ferro grosseiro. De súbito, com toda a sua força, puxou para baixo esse punho.

Houve um ruído terrível de metal raspando em metal e um estrondo. Chispas azuis saltaram e caíram em chuveiro. Os ecos foram morrendo pelo corredor abaixo, atrás dela. Estendeu as mãos e sentiu, poucos centímetros apenas em frente do seu rosto, a superfície irregular de uma porta de ferro.

Inspirou profundamente.

Regressando com passos lentos ao Subtúmulo e mantendo a parede deste para a sua direita, dirigiu-se ao alçapão, na Mansão do Trono. Não se apressou e caminhou silenciosamente, embora já não houvesse necessidade de silêncio. Arha apanhara o seu ladrão. A porta que ele atravessara era o único caminho para entrar ou sair do Labirinto. E só podia ser aberta do lado de fora.

O estranho estava agora ali em baixo, no negrume do subsolo, e nunca de lá voltaria a sair.

Caminhando lenta e ereta, Arha passou pelo trono e penetrou no longo átrio das colunas. Aí, onde uma bacia de bronze sobre uma alta trípode difundia o clarão vermelho de carvões incandescentes, voltou-se e aproximou-se dos sete degraus que conduziam ao Trono.

Ajoelhando-se no degrau mais baixo, inclinou a fronte até tocar a pedra fria e poeirenta, juncada de ossos de rato que os mochos ali deixavam cair.

— Perdoai-me por ter visto o Vosso negrume devassado — disse, mas sem pronunciar as palavras em voz alta. — Perdoai-me por ter visto os Vossos túmulos violados. Sereis vingados. O meus Senhores, a morte o entregará a Vós e ele nunca renascerá!

E contudo, mesmo durante a prece, com os olhos da sua mente, ela via ainda o tremeluzente esplendor da caverna iluminada, a vida no lugar da morte. E em vez do terror perante o sacrilégio e de raiva contra o ladrão, pensava apenas em como era estranho, tão estranho…

— Que hei de eu dizer a Kossil? — perguntou a si própria ao sair para as rajadas do vento invernoso e aconchegando o manto ao corpo. — Nada. Ainda não. Eu é que sou a senhora do Labirinto. Este não é um assunto para o Rei-Deus. Dir-lhe-ei depois de o ladrão ter morrido, talvez. E como deverei matá-lo? Devia obrigar a Kossil a vir vê-lo morrer. É tão amiga da morte. De que andaria ele à procura? Deve ser louco. E como terá entrado? A Kossil e eu temos as únicas chaves da porta da rocha vermelha e do alçapão. Deve ter entrado pela porta da rocha vermelha. Só um bruxo a podia abrir. Um bruxo…

Apesar do vento que quase a fazia cair, estacou.

— Ele é um bruxo, um feiticeiro das Terras Interiores, em busca do amuleto de Erreth-Akbe.

E havia naquilo um tão revoltante fascínio que ela sentiu um súbito calor invadi-la, mesmo no meio daquele vento gélido, e riu alto. Em todo o seu redor o Lugar e o deserto que o envolvia estavam negros e silenciosos. O vento gemia. Lá em baixo, na Casa Grande, não se via uma luz. Uma neve fina, quase invisível, perpassava no vento.

— Se ele abriu a porta da rocha vermelha com bruxedos, pode abrir outras. Pode fugir.

Este pensamento deixou-a momentaneamente gelada, mas não a convenceu. Aqueles-que-não-têm-Nome tinham-no deixado entrar. E porque não? Ele não podia fazer mal algum. Que mal faz um ladrão que não pode abandonar a cena do seu roubo? Feitiços e negros poderes devia ele ter, e poderosos sem dúvida, já que chegara tão longe. Mas mais longe não iria. Nenhum feitiço lançado por homem mortal podia ser mais forte que a vontade d’Aqueles-que-não-têm-Nome, as presenças nos Túmulos, os Reis cujo Trono estava vazio.

Para se assegurar do que pensava, apressou os passos em direção à Casa Pequena. Manane estava adormecido no alpendre da entrada, embrulhado na sua capa e no coçado cobertor de pele que lhe servia de cama no Inverno. Arha entrou sem barulho, de modo a não o acordar, e sem acender qualquer lâmpada. Abriu uma pequena divisão fechada à chave, pouco mais que um armário ao fundo da entrada. Fez saltar uma chispa de pederneira, apenas o suficiente para encontrar um certo ponto no chão e, ajoelhando-se, levantou um ladrilho. Um pedaço de tecido pesado e sujo, de poucos centímetros quadrados, revelou-se-lhe ao toque. Sem ruído, desviou-o para um lado e logo saltou para trás, porque um raio de luz saíra lá de baixo, direito ao seu rosto.

Após um momento, com muito cuidado, espreitou pela abertura. Tinha esquecido que o estranho trazia aquela estranha luz no seu bordão. O máximo que ela tinha esperado fora ouvi-lo, lá em baixo, na escuridão. Esquecera a luz, mas ele estava onde ela esperara que estivesse. Precisamente por baixo do orifício de observação, junto à porta de ferro que lhe bloqueava a fuga do Labirinto.

Estava ali de pé, uma das mãos na anca, a outra segurando o bordão, tão alto como ele próprio e de cuja extremidade pendia o suave fogo-fátuo, um pouco para o lado. Tinha a cabeça, que ela olhava de pouco mais de um metro acima dele, virada para cima e ligeiramente de lado. As suas roupas eram as que qualquer viajante ou peregrino usaria no Inverno, um capote curto e pesado, uma túnica de couro, polainas de lã, sandálias com cordões. Trazia às costas uma pequena mochila de onde pendia um cantil de água e à cinta uma faca na sua bainha. E ali estava, quieto como uma estátua, tranqüilo e pensativo.

Lentamente, ergueu o bordão do solo e dirigiu a extremidade luminosa para o lado da porta, que Arha não conseguia avistar do seu ponto de observação. A luz mudou, tornando-se mais pequena e mais brilhante, um intenso fulgor. O homem falou em voz alta. A língua em que falava era estranha para Arha, mas mais estranha ainda que as palavras era a voz, profunda e ressoante.

A luz do bordão avivou-se, piscou, abrandou. Por um momento desapareceu mesmo de todo e ela deixou de o ver.

A luz de um pálido violeta do fogo-fátuo reapareceu, estável agora, e ela viu o estranho desviar-se da porta. O seu feitiço de abrir tinha falhado. Os poderes que mantinham cerrada a fechadura daquela porta eram mais fortes que qualquer magia que ele pudesse possuir.

O estranho olhou em volta, como se pensasse «E agora?».

O túnel ou corredor onde ele se encontrava tinha cerca de metro e meio de largura e o teto ficava quatro a quatro metros e meio acima do grosseiro chão de pedra. Ali as paredes eram de pedra aparelhada, colocada sem recurso a qualquer argamassa mas com imenso cuidado e com junções tais que dificilmente se conseguiria introduzir nas fendas a ponta de uma faca. Iam-se inclinando para dentro cada vez mais até formarem uma abóbada.

Nada mais havia.

O estranho avançou pelo corredor. A primeira passada ficou fora do raio de visão de Arha. A luz perdeu-se na distância. A rapariga estava prestes a voltar a colocar o pano e o ladrilho quando uma vez mais o suave raio de luz se ergueu do chão à sua frente. Ele voltara para junto da porta. Teria talvez concluído que, uma vez que se afastasse dela e penetrasse na rede de passagens, poucas probabilidades teria de a voltar a encontrar.

O estranho falou, uma única palavra dita em voz baixa. «Emenn», disse e logo de novo, mais alto, «Emenn!» E a porta de ferro estralou nas ombreiras, surdos ecos reboaram ao longo do túnel abobadado como trovões, e Arha julgou sentir o chão estremecer debaixo dela.

Mas a porta permaneceu fechada.

Ele riu então, uma gargalhada curta, a de um homem que pensa «Que grande disparate que eu fui fazer!» Olhou uma vez mais em volta, para as paredes, e quando ergueu o olhar Arha viu que o sorriso permanecia no seu rosto escuro. Depois sentou-se, tirou a mochila das costas, pescou de lá de dentro um pedaço de pão seco e pôs-se a mastigá-lo. Tirou a rolha à vasilha de couro da água e sacudiu-a. Parecia leve na sua mão, como se estivesse quase vazia. Voltou a rolhá-la sem ter bebido. Pôs a mochila atrás de si a servir de almofada, embrulhou-se bem no capote e deitou-se. Na mão direita continuava a segurar o bordão. Ao mesmo tempo que se recostava, a pequena esfera de fogo-fátuo libertou-se e ficou suspensa, flutuando no ar por trás da sua cabeça, alguns palmos acima do solo. O estranho tinha a mão esquerda sobre o peito, segurando qualquer coisa que pendia de uma pesada corrente que ele trazia ao pescoço. Ficou ali deitado muito confortavelmente, de pernas cruzadas pelos tornozelos. O seu olhar perpassou pelo orifício de observação e desviou-se. Suspirou e fechou os olhos. A luz foi diminuindo muito lentamente. Adormeceu.

A mão fechada em punho sobre o peito descontraiu-se e deslizou para o lado, de modo que a observadora lá em cima pôde então ver que talismã trazia ele pendurado da sua corrente. Era um pedaço de metal sem polimento, ao que parecia em forma de crescente.

O débil brilho da sua bruxaria foi-se desvanecendo, deixando-o no silêncio e no escuro.

Arha voltou a colocar o pedaço de tecido e o ladrilho nos seus lugares, ergueu-se cuidadosamente e esgueirou-se para o seu quarto. Ali se deixou ficar acordada durante muito tempo, na escuridão cheia com o ulular do vento, vendo constantemente na sua frente o esplendor de cristal que reluzira na casa da morte, o fogo suave que não ardia, as pedras da parede do túnel e o rosto calmo do homem adormecido.

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