3. OS PRISIONEIROS

Os passos de Kossil soaram ao longo do pátio de entrada da Casa Pequena, uniformes e deliberados. O seu vulto alto e pesado encheu a entrada do quarto, reduziu-se quando a sacerdotisa se inclinou, dobrando um joelho a tocar o chão, agigantou-se quando ela se endireitou completamente.

— Senhora.

— O que foi, Kossil?

— Até agora, foi-me permitido tomar a meu cargo certos assuntos respeitantes ao Domínio d’Aqueles-que-não-têm-Nome. Se for teu desejo, é agora tempo que aprendas, vejas e te ocupes desses assuntos que não recordaste ainda nesta vida.

A rapariga tinha estado sentada no seu quarto sem janelas, supostamente a meditar, mas na realidade sem fazer nada e em quase nada pensando. Levou algum tempo antes que a expressão fixa, soturna e altiva do seu rosto se modificasse. Porém, modificou-se, embora ela tentasse ocultá-lo. Num tom algo dissimulado, perguntou:

— O Labirinto?

— Não, não entraremos no Labirinto. Mas vai ser necessário atravessar o Subtúmulo.

Havia na voz de Kossil um tom que talvez fosse de medo, ou um medo fingido destinado a atemorizar Arha. A rapariga ergueu-se sem pressa e disse indiferentemente:

— Muito bem!

Mas no seu coração, enquanto seguia a poderosa figura da sacerdotisa do Reino-Deus, exultava: «Por fim! Por fim! Vou finalmente ver o meu próprio domínio!»

Tinha quinze anos. Já havia um ano que adquirira o estatuto de mulher e, ao mesmo tempo, fora empossada de todos os poderes como Única Sacerdotisa dos Túmulos de Atuan, a mais alta de todas as grã-sacerdotisas das Terras de Kargard, alguém a quem nem o próprio Rei-Deus podia dar ordens. Agora todos dobravam o joelho diante dela, mesmo as severas Thar e Kossil. Todos se lhe dirigiam com elaborada deferência. Mas nada mudara. Nada acontecia. Passadas as cerimônias da sua consagração, os dias continuaram a decorrer como sempre tinham decorrido. Havia lã para ser fiada, pano negro para ser tecido, farinha para ser moída, ritos a ser cumpridos. Os Nove Cânticos tinham de ser entoados todas as noites, as portas abençoadas, as Pedras alimentadas com sangue de cabra duas vezes por ano, as danças da lua nova dançadas perante o Trono Vazio. E assim decorrera todo um ano, tal como haviam decorrido os anos anteriores, e ela perguntava-se se todos os anos da sua vida iriam também passar assim.

O tédio chegava por vezes a ser tão grande dentro dela que o sentia como um terror que lhe apertava a garganta. Havia não muito tempo fora levada a falar disso. Tinha de falar, pensara, ou acabaria por endoidecer. Foi com Manane que se abriu. O orgulho impedia-a de se confiar às outras raparigas e a cautela, de se confessar às mulheres mais velhas, mas Manane era um nada, um velho carneiro fiel. Não importava o que lhe dissesse. E, para sua surpresa, Manane tivera uma resposta para lhe dar.

— Há muito tempo — disse ele —, sabes, minha pequenina, antes de os nossos quatro territórios estarem ligados a formar um império, antes de haver um Rei-Deus a governar-nos a todos, havia muitos pequenos reis e príncipes e chefes de clã. Andavam sempre em querelas uns com os outros. E vinham até aqui para resolver as suas questões. Era assim que era, vinham da nossa terra, Atuan, de Karego-At, de Atnini e até de Hur-at-Hur, todos os chefes e príncipes com os seus servos e os seus exércitos. E perguntavam-te o que fazer. E tu apresentar-te-ias perante o Trono Vazio, a dar-lhes o conselho d’Aqueles-que-não-têm-Nome. Bem, isso era há muito. Ao fim de um certo tempo, os Reis-Sacerdotes chegaram a governar sobre toda Karego-At e pouco depois estenderam o seu poder a Atuan. E agora, há quatro ou cinco vidas de homem, os Reis-Deuses têm governado os territórios em conjunto, fazendo deles um império. E assim se mudaram as coisas. O Rei-Deus pode destituir os chefes rebeldes e ele próprio resolve todas as questões. E, estás tu a ver, sendo um deus, não precisa de consultar muitas vezes Aqueles-que-não-têm-Nome.

Arha interrompeu-o para meditar no que ouvira. Ali, naquela terra desértica, à sombra das Pedras imutáveis, levando uma vida que decorrera sempre do mesmo modo desde o princípio do mundo, o tempo não tinha grande significado. Não estava habituada a pensar em coisas a mudar, em velhos costumes a morrer e outros novos a surgir. Não lhe pareceu agradável olhar as coisas a essa luz. Enrugando a testa, disse:

— Os poderes do Rei-Deus são muito menores que os d’Aqueles que eu sirvo.

— Decerto… Decerto… Mas ninguém se vai pôr a dizer isso a um deus, meu favinho de mel. Nem à sua sacerdotisa.

E perscrutando-lhe os olhos pequeninos, castanhos e brilhantes, Arha pensou em Kossil, Grã-Sacerdotisa do Rei-Deus, a quem ela temera logo desde a primeira vez que pusera pé no Lugar. E entendeu o que ele queria dizer.

— Mas o Rei-Deus e as suas gentes estão a negligenciar o culto dos Túmulos. Ninguém aqui vem.

— Bom, ele envia prisioneiros para serem aqui sacrificados. Aí não há negligência. Nem nas dádivas devidas a Aqueles-que-não-têm-Nome.

— Dádivas! O seu templo é pintado de novo todos os anos, há um quintal[1] de ouro no altar, as lâmpadas queimam essência de rosas! E olha-me para a Mansão do Trono: buracos no teto, a cúpula a abrir rachas, as paredes cheias de ratos e mochos e morcegos… Mas mesmo assim há de durar mais que o Rei-Deus e todos os seus templos, e que todos os reis que vierem depois dele. Existia antes deles e, quando tiverem desaparecido, continuará a existir. Porque é o centro das coisas.

— E o centro das coisas.

— E há riquezas. Thar fala-me delas às vezes. Suficientes para encher dez vezes o templo do Rei-Deus. Ouro e troféus oferecidos há eras atrás, cem gerações, sabe-se lá quanto tempo. Estão fechadas nos fossos e subterrâneos, lá por baixo. Ainda não me levaram lá, deixam-me constantemente à espera. Mas eu sei como é. Há câmaras sob a Mansão do Trono, sob todo o Lugar, aqui mesmo debaixo do sítio onde estamos. Há um grande emaranhado de túneis, um Labirinto. É como uma grande cidade na escuridão, debaixo do monte. Cheia de ouro, e de espadas dos antigos heróis, e velhas coroas e ossos e anos e silêncio.

Ela falava como num transe, em êxtase. Manane fitava-a. O seu rosto pétreo nunca exprimia muito mais que uma tímida e obstinada tristeza, mas estava agora mais triste que o habitual.

— Bom — acabou por dizer —, e tu és senhora de tudo isso. Do silêncio e da escuridão.

— Sou. Mas elas não me deixam ver nada, só as salas acima do solo, por trás do Trono. Nem sequer me mostraram as entradas para os lugares subterrâneos. Só resmungam umas palavras acerca delas, de vez em quando. Estão a manter longe de mim o meu próprio domínio! Porque me hão de fazer esperar, esperar constantemente?

— Tu és jovem. E talvez — aventou Manane na sua aguda voz roufenha —, talvez tenham medo, pequenina. Ao fim e ao cabo, não é o domínio delas, é o teu. Estão em perigo quando lá entram. Não há mortal que não tema Aqueles-que-não-têm-Nome.

Arha nada disse mas os seus olhos relampejaram. Uma vez mais, Manane mostrara-lhe uma nova maneira de ver as coisas. Thar e Kossil sempre lhe tinham parecido tão formidandas, tão frias, tão fortes, que nunca havia sequer imaginado que pudessem ter medo. E no entanto Manane tinha razão. Elas temiam aqueles lugares, aqueles poderes de que Arha fazia parte, a que pertencia. Elas temiam entrar nos lugares de escuridão, não fossem ser devoradas.

E agora, ao descer com Kossil os degraus da Casa Pequena, ao subir o íngreme caminho serpenteante que conduzia à Mansão do Trono, recordava aquela conversa com Manane e exultava de novo. Onde quer que a levassem, o que quer que lhe mostrassem, não teria medo. Saberia encontrar o seu caminho.

Permanecendo ligeiramente atrás dela no caminho, Kossil falou:

— Um dos deveres da minha senhora, como é de seu conhecimento, é o sacrifício de certos prisioneiros, criminosos de ascendência nobre, que por sacrilégio ou traição pecaram contra o nosso amo, o Rei-Deus.

— Ou contra Aqueles-que-não-têm-Nome — contrapôs Arha.

— Verdade. Ora, não é próprio que a Devorada, quando ainda criança, cumpra esse dever. Mas a minha senhora não é já uma criança. Há prisioneiros na Sala das Correntes, enviados dois meses atrás por graça do nosso senhor, o Rei-Deus, da sua cidade de Áuabath.

— Não sabia que tinham chegado prisioneiros. Porque é que não fui informada?

— Os prisioneiros são trazidos durante a noite, e secretamente, tal como foi prescrito desde sempre nos rituais dos Túmulos. Pelo caminho secreto que a minha senhora seguirá, se tomar pelo carreiro que corre ao longo do muro.

Arha saiu do trilho para seguir o grande muro de pedra que limitava os Túmulos por trás da sala abobadada. As rochas de que era construído eram maciças. A mais pequena de entre elas pesava mais que um homem e as maiores eram tão grandes como carroções. Embora não fossem afeiçoadas, estavam cuidadosamente dispostas e interligadas. No entanto, nalgum pontos, o cimo do muro dera de si e as rochas jaziam num amontoado informe. Só uma enorme extensão de tempo pudera causar aquilo, os séculos de dias em brasa e noites glaciais do deserto, os movimentos milenares, imperceptíveis, das próprias colinas.

— É muito fácil escalar o Muro dos Túmulos — comentou Arha, enquanto caminhavam ambas junto da construção.

— Não temos homens que cheguem para o voltar a erigir, — replicou Kossil.

— Mas temos homens que cheguem para o guardar.

— Apenas escravos. Não são de confiança.

— São, se tiverem medo. Basta que a pena seja a mesma para eles que para qualquer estranho a quem eles permitam pôr o pé no terreno sagrado dentro do muro.

— Que pena é essa?

Mas Kossil não fazia a pergunta para saber a resposta. Ela própria a tinha ensinado a Arha, muito tempo atrás.

— Ser decapitado perante o Trono.

— É desejo da minha senhora que seja postado um guarda sobre o Muro dos Túmulos?

— É — respondeu a rapariga.

Dentro das suas longas mangas negras os dedos enclavinharam-se de júbilo. Sabia que Kossil não queria ceder um escravo para aquele dever de vigiar o muro e, na verdade, era uma tarefa inútil, pois que estranhos ali vinham alguma vez? Não era provável que um homem se aproximasse, por acaso ou voluntariamente, nem que fosse uma milha do Lugar sem ser visto. E de certeza que nunca chegaria próximo sequer dos Túmulos. Mas um guarda era uma honra que se lhes devia e Kossil dificilmente poderia argumentar contra isso. Tinha de obedecer a Arha.

— Aqui — indicou a sua voz seca e fria.

Arha parou. Muitas vezes palmilhara aquele caminho ao redor do Muro dos Túmulos c conhecia-o, tal como conhecia cada centímetro do Lugar, cada pedra e espinheiro e cardo. A grande parede de pedra erguia-se para a sua esquerda, até três vezes a sua altura. Para a direita, a colina descia em talude até um vale pouco profundo e árido, que logo se erguia de novo em direção ao sopé da cordilheira ocidental. Olhou todo o espaço ao seu redor e nada descortinou que não tivesse já visto antes.

— Sob as rochas vermelhas, senhora.

Poucos metros adiante, um afloramento de lava vermelha formava uma escada ou pequena escarpa na elevação de terreno. Logo que se aproximou e ficou ao mesmo nível, de frente para as rochas, Arha percebeu que formavam uma espécie de grosseiro enquadramento de porta, com quatro pés de altura.

— O que é preciso fazer?

Aprendera havia muito que, nos lugares sagrados, de nada serve tentar abrir uma porta antes de se saber como a devemos abrir.

— A minha senhora tem todas as chaves para os lugares sombrios.

Desde os ritos da sua mudança de idade, Arha passara a usar um anel de ferro suspenso do cinto e de onde pendiam uma pequena adaga e treze chaves, umas compridas e pesadas, outras tão pequenas como anzóis. Arha ergueu o anel e abriu as chaves em leque.

— Essa — disse Kossil, apontando-a, e logo pousou o grosso indicador numa fenda entre as superfícies de duas rochas vermelhas, cavadas.

A chave, uma comprida haste de ferro com dois palhetões ornamentados, entrou na fenda. Arha fê-la girar para a esquerda, usando as duas mãos porque parecia estar um pouco perra. No entanto rodou suavemente.

— Agora?

— Juntas…

E, unindo forças, empurraram a grosseira face da rocha à esquerda da fechadura. Pesadamente, mas sem prender e com muito pouco ruído, uma seção irregular de rocha vermelha moveu-se para dentro até se abrir uma estreita frincha. Lá dentro tudo era escuridão.

Arha curvou-se para a frente e entrou.

Kossil, sendo uma mulher corpulenta e com pesadas roupagens, teve de se comprimir para passar através da estreita abertura. Logo que entrou, encostou as costas à porta e, com um esforço, empurrou-a até se fechar.

A escuridão era absoluta. Não havia luz alguma. O negrume parecia comprimir-se como um feltro molhado contra os olhos abertos.

Inclinaram-se as duas até quase se agacharem, pois o lugar onde estavam não chegava a quatro pés de altura e era tão estreito que as mãos de Arha, ao apalparem, logo tocaram em rocha úmida para ambos os lados.

— Trouxeste alguma luz? — sussurrou ela, como é costume fazer-se no escuro.

Atrás dela, Kossil replicou:

— Não trouxe luz nenhuma.

Kossil baixara também a voz, mas havia nela um tom estranho, como se sorrisse. E Kossil nunca sorria. Arha sentiu um baque no coração. O sangue pulsava-lhe na garganta. Para si própria, disse ferozmente: «Este é o meu lugar, pertenço aqui, não terei medo!»

Mas em voz alta nada disse. Pôs-se a andar em frente. Era o único caminho a seguir e conduzia para o interior da colina e para baixo.

Kossil seguiu-a, respirando pesadamente, com as vestes a roçar e a raspar contra rocha e terra.

E de súbito o teto elevou-se. Arha podia pôr-se direita e, ao estender os braços para o lado, não sentiu as paredes. O ar, que cheirara a fechado e a terra, tocou-lhe o rosto com uma frescura mais úmida e os ligeiríssimos movimentos que nele sentia deram-lhe a noção de um grande espaço. Arha deu alguns passos cuidadosos em frente, para dentro daquele absoluto negrume. Um seixo, escorregando sob a sandália que calçava, foi embater noutro seixo e o leve som acordou ecos, muitos ecos, mínimos, remotos, mais remotos ainda. A caverna devia ser imensa, alta e larga, mas não vazia. Algo na sua escuridão, as superfícies de objetos invisíveis ou de paredes interiores, quebrava o eco em mil fragmentos.

— Aqui devemos estar por baixo das Pedras — disse a rapariga num murmúrio, e o seu murmurar alongou-se pela escuridão oca e desfez-se em fios de som tão finos como teia de aranha, que se colavam ao ouvido por muito tempo.

— Sim. Esta é a região do Subtúmulo. Continua. Não posso parar aqui. Segue a parede para a esquerda. Passa três aberturas.

O murmúrio de Kossil era como um silvo (e os minúsculos ecos silvavam em resposta). Estava com medo, estava verdadeiramente com medo. Não gostava de estar ali, entre os Sem-Nome, nos seus túmulos, nas suas cavernas, na escuridão. Aquele não era o lugar dela, Kossil não pertencia ali.

— Hei de aqui voltar com um archote — afirmou Arha, guiando-se ao longo da parede da caverna pelo toque dos seus dedos, maravilhando-se perante as estranhas formas da rocha, reentrâncias e saliências, delicadas curvas e arestas, desiguais como renda aqui, lisas como bronze polido além. Só podia tratar-se de trabalho de gravura. Talvez toda a caverna fosse a obra de escultores dos dias antigos.

— A luz aqui é proibida — soou asperamente o sussurro de Kossil. Ainda ela não acabara de o dizer, já Arha compreendera que assim devia ser. Ali era o próprio lar da escuridão, o centro mais íntimo da noite.

Por três vezes os seus dedos atravessaram uma falha na continuidade da escuridão rochosa e complexa. A quarta, tateou a calcular a altura e largura da abertura e entrou. Kossil seguiu-a.

Naquele túnel, que voltava a subir em declive leve, passaram por uma abertura à esquerda e depois, numa bifurcação do caminho, enveredaram pela direita. Tudo somente pelo tato, às apalpadelas, na cegueira subtérrea e no silêncio interior do solo. Numa passagem como aquela é quase constante a necessidade de tocar ambos os lados do túnel, não se vá falhar uma das aberturas que têm de ser contadas ou não dar por uma bifurcação do caminho. O tato era a única, a exclusiva orientação. Não era possível ver o caminho, apenas colhê-lo nas próprias mãos.

— Isto é o Labirinto?

— Não. Esta é a rede de passagens menor que fica logo por baixo do Trono.

— E onde é a entrada para o Labirinto?

Arha estava a gostar daquele jogo no escuro e queria ver-se perante um quebra-cabeças mais difícil.

— A segunda abertura por onde passamos no Subtúmulo. Mas agora tenta encontrar uma porta à direita, uma porta de madeira, se calhar já passamos por ela…

Arha ouviu as mãos de Kossil tateando inquietas ao longo da parede, raspando na aspereza da pedra. Mas ela mantinha as pontas dos dedos tocando apenas ligeiramente a rocha e, em breve, sentiu sob eles o grão macio da madeira. Empurrou e a porta, embora rangendo, abriu-se facilmente. Arha estacou por um momento, cega pela luz.

Entraram numa vasta sala de teto baixo, com paredes feitas de pedra talhada e iluminada por um único archote fumegante, suspenso de uma corrente. O ambiente cheirava mal por causa do fumo do archote que não tinha por onde sair. Os olhos de Arha arderam-lhe e encheram-se de lágrimas.

— Onde estão os prisioneiros?

— Além.

Só então ela compreendeu que os três montões de qualquer coisa, junto à parede mais afastada da sala, eram homens.

— A porta não está fechada. Não há guardas.

— Não é preciso nenhum.

Arha avançou mais uns passos hesitantes pela sala, tentando ver através da fumarada. Os prisioneiros estavam acorrentados por ambos os tornozelos e um dos pulsos a grandes argolas embutidas na pedra da parede. Se um deles se quisesse deitar, o braço algemado teria de permanecer erguido, suspenso da grilheta. As suas barbas e cabelo tinham-se emaranhado de tal modo que, juntamente com a pouca luz, lhes escondiam os rostos. Um deles estava deitado, os outros dois sentados ou agachados. Estavam nus. O cheiro que deles emanava era ainda mais forte que o fedor do fumo.

Um deles parecia observar Arha. Ela julgou ver-lhe o brilho dos olhos, depois já não estava tão certa. Os outros não se tinham movido nem erguido a cabeça.

Voltou-lhes as costas.

— Já não são gente — observou.

— Nunca o foram. Eram demônios, espíritos de feras que conspiraram contra a sagrada vida do Rei-Deus!

Os olhos de Kossil brilharam à luz vermelha do archote. Arha voltou a olhar os prisioneiros, num misto de temor e curiosidade.

— Como pode um homem atacar um deus? Como foi isso? Tu, responde. Como te atreveste a atacar um deus vivo?

O mesmo homem fitou-a através do negro matagal de cabelo, mas nada disse.

— Cortaram-lhes as línguas antes de os enviarem de Áuabath, — explicou Kossil. — Não fales com eles, senhora. São profanação. São teus, mas não para lhes falares, nem os olhares, nem pensares neles. São teus para que os dês a Aqueles-que-não-têm-Nome.

— Como é que devem ser sacrificados?

Arha não olhava já os prisioneiros. Em vez disso, encarara Kossil, extraindo energia do corpo maciço, da voz fria. Sentia-se tonta e o cheiro nauseabundo do fumo, da porcaria, agoniavam-na. E no entanto parecia pensar e falar com perfeita calma. Não fizera ela aquilo tantas vezes antes?

— A Sacerdotisa dos Túmulos sabe melhor que ninguém o gênero de morte que melhor agradará aos seus Senhores e a escolha é sua. Há muitas formas.

— Então que Gobar, o comandante dos guardas, lhes corte as cabeças. E o seu sangue será derramado perante o Trono.

— Como se estivesses a sacrificar cabras? — inquiriu Kossil com um tom de troça perante a sua falta de imaginação. Arha emudeceu e a outra continuou: — Além disso, Gobar é um homem. E com certeza a minha senhora não esqueceu que nenhum homem pode entrar nos Lugares Sombrios dos Túmulos. Se entrar, já não sai…

— Quem os trouxe aqui? Quem os alimenta?

— Os vigilantes que servem no meu templo, Duby e Uahto. São eunucos e podem aqui entrar a serviço d’Aqueles-que-não-têm-Nome, tal como eu. Os soldados do Rei-Deus deixaram os prisioneiros atados de pés e mãos do lado de fora do muro e eu e os vigilantes trouxemo-los pela Porta dos Prisioneiros, a que fica nas rochas vermelhas. É assim que sempre se faz. A água e a comida são descidas por um alçapão numa das divisões por trás do Trono. Arha ergueu os olhos e viu, junto à corrente de onde pendia o archote, um quadrado de madeira inserido no teto de pedra. Era demasiado estreito para um homem por lá passar, mas uma corda que dali se fizesse baixar viria a ficar mesmo ao alcance do prisioneiro do meio. Rapidamente, a rapariga voltou a desviar o olhar.

— Pois que não lhes desçam mais comida nem água. E deixem que o archote se extingua.

Kossil fez uma reverência.

— E os corpos, quando eles morrerem?

— Que Duby e Uahto os enterrem na grande caverna que atravessamos, o Subtúmulo — disse a rapariga, a voz cada vez mais rápida e aguda. — Terão de o fazer na escuridão. Os meus Senhores comerão os corpos.

— Assim se fará.

— Está bem assim, Kossil?

— Está bem, senhora.

— Então vamo-nos daqui — determinou Ahra, a voz quase estridente agora.

Voltou-se e apressou-se a voltar à porta de madeira e a abandonar a Sala das Correntes, penetrando no negrume do túnel. Pareceu-lhe doce e calmo como uma noite sem estrelas, silente, sem vista, nem luz, nem vida. Mergulhou na límpida escuridão, apressou-se a avançar através dela como um nadador sulcando a água. Kossil seguiu-a a passos rápidos, mas ficando cada vez mais para trás, ofegante, arrastando-se pesadamente. Sem uma hesitação, Arha repetiu o trajeto, com seus desvios a seguir e a não seguir, contornou a vastidão ecoante do subtúmulo e enveredou, toda dobrada para a frente, pelo último e longo túnel, direita à porta de pedra fechada. Ali chegada, agachou-se e procurou, tateando, a longa chave que trazia na argola, à cinta. Encontrou-a, mas não conseguiu achar o buraco da fechadura. Não havia vestígio de luz, nem que fosse a entrar por um buraco de alfinete, na parede invisível à sua frente. Os seus dedos tatearam a pedra em busca de fecho, ferrolho ou puxador, mas nada encontraram. Onde serviria a chave? Como poderia sair?

— Senhora!

A voz de Kossil, ampliada pelos ecos, silvou e reboou muito longe atrás dela.

— Senhora, a porta não se abre de dentro. Não há caminho para o exterior. Não há regresso.

Arha continuava agachada de encontro à pedra. Não deu qualquer resposta.

— Arha!

— Estou aqui.

— Vem!

E foi, arrastando-se sobre as mãos e os joelhos ao longo da passagem, como um cão, até às saias de Kossil.

— Para a direita. Rápido! Não posso demorar-me aqui. Este não é o meu lugar. Segue-me.

Arha pôs-se de pé e agarrou-se às vestes de Kossil. Seguiram em frente, acompanhando a parede estranhamente gravada da caverna para a direita por uma grande extensão, entrando depois numa abertura, negra no meio do negrume. Subiam agora, por túneis, por escadas. A rapariga continuava a agarrar as vestes da mulher. Tinha os olhos fechados.

Depois houve luz, vermelha através das pálpebras. Pensou que fosse de novo a sala cheia de fumo, iluminada pelo archote, e não abriu os olhos. Mas o ar tinha agora um cheiro mais adocicado, seco e bafento, um cheiro familiar. E os seus pés pisavam uma escadaria, quase tão íngreme como uma escada de mão. Largou o vestido de Kossil e abriu os olhos. Por cima da sua cabeça havia um alçapão aberto. Trepou por ele acima logo atrás de Kossil. Dava para uma divisão que ela conhecia, uma pequena cela de pedra que continha um par de arcas e caixas de ferro, parte da miríade de pequenas divisões por trás da Sala do Trono na Mansão. A luz do dia bruxuleava, cinzenta e frouxa, no corredor para lá da porta.

— A outra, a Porta dos Prisioneiros, conduz apenas aos túneis. Não para fora deles. Este é o único caminho de saída. Se existe outro caminho, eu não o conheço, nem Thar. Terás de te lembrar por ti, caso exista. Mas não julgo que haja outro.

Kossil continuava a falar como que em segredo e com uma espécie de rancor. Dentro do capuz negro, o seu rosto estava pálido e úmido de suor.

— Não me lembro das voltas para esta saída.

— Eu digo-as. Uma vez. Terás de as recordar. Da próxima vez não irei contigo. Este não é o meu lugar. Terás de ir sozinha.

A rapariga assentiu com um aceno de cabeça. Ergueu os olhos para o rosto da mulher mais velha e pensou como se lhe afigurava estranha, pálida de um temor ainda mal dominado e no entanto triunfante, como se Kossil se regozijasse com a sua fraqueza.

— Irei sozinha a partir de hoje — asseverou Ahra e depois, tentando desviar-se de Kossil, sentiu as pernas a fraquejar e viu o quarto rodopiar. Desmaiou, ficando como um montículo negro aos pés da sacerdotisa.

— Virás a aprender — disse Kossil, respirando pesadamente e permanecendo imóvel. — Virás a aprender.

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