Tudo o que acontece, acontece.
Tudo o que, ao acontecer, faz com que outra coisa aconteça, faz com que outra coisa aconteça.
Tudo o que, ao acontecer, faz com que ela mesma aconteça de novo, acontece de novo.
Isso, contudo, não acontece necessariamente em ordem cronológica. Para Ron,
com agradecimentos especiais
a Sue Freestone e a Michael Bywater,
pelo apoio, ajuda e insultos construtivos.
CAPÍTULO 1
A história da Galáxia ficou meio confusa por vários motivos: em parte porque aqueles que tentavam acompanhá-la ficaram meio confusos, mas também porque coisas incrivelmente confusas aconteceram de fato.
Um dos problemas tem a ver com a velocidade da luz e com as dificuldades encontradas em tentar ultrapassá-la. Não dá. Nada viaja mais rápido do que a velocidade da luz, com exceção talvez das más notícias, que obedecem a leis próprias e especiais. Os Hingefreel de Arkintoofle Menor bem que tentaram construir naves espaciais movidas a más notícias, mas elas não funcionavam particularmente bem e, como eram extremamente mal recebidas sempre que chegavam a algum lugar, não fazia o menor sentido estar lá.
Então, de modo geral, as pessoas da Galáxia acabavam ficando entretidas com suas próprias confusões locais e a história da Galáxia em si foi, por um bom tempo, basicamente cosmológica.
O que não quer dizer que as pessoas não estivessem se esforçando. Tentaram enviar frotas de naves espaciais para lutar ou para fazer negócios em lugares distantes, mas elas geralmente levavam milhares de anos para chegar lá. Quando finalmente chegavam, já haviam sido descobertas outras formas de viagem usando o hiperespaço para superar o problema da velocidade da luz. Então, qualquer batalha para as quais essas frotas mais-lentas-que-a-luz tivessem sido enviadas já teria sido resolvida séculos antes de elas chegarem.
Isso não impedia, é claro, que as tripulações quisessem lutar assim mesmo. Estavam treinados, preparados, tinham cochilado durante alguns séculos, vieram de muito longe para fazer um trabalho árduo e, por Zarquon, iriam fazê-lo de qualquer maneira.
Foi então que ocorreram algumas das primeiras grandes confusões da História Galáctica, com batalhas ressurgindo continuamente séculos depois de as questões que as motivaram supostamente já terem sido resolvidas. Essas confusões, contudo, não eram nada se comparadas às que os historiadores precisavam destrinchar depois que a viagem no tempo foi descoberta e as batalhas começaram a pré-surgir centenas de anos antes que as questões envolvidas sequer fossem conhecidas. Quando o Gerador de Improbabilidade Infinita foi criado e planetas inteiros começaram a virar pudim inesperadamente, a renomada faculdade de história da Universidade de Maximegalon finalmente decretou seu próprio fechamento e cedeu seus prédios para a próspera faculdade de Divindade e Pólo Aquático, que estava de olho neles há anos. Isso não tem nada demais, é claro, mas provavelmente significa que ninguém jamais saberá com certeza de onde os grebulons vieram, por exemplo, ou exatamente o que queriam. E isso é uma pena porque, se alguém soubesse alguma coisa sobre eles, talvez uma horrível catástrofe pudesse ser evitada — ou, pelo menos, teria que encontrar uma outra maneira para acontecer.
Click, hum.
A gigantesca e cinzenta nave de reconhecimento grebulon movia—se em silêncio pelo vácuo negro. Viajava a uma velocidade espantosa, de tirar o fôlego, mas, ainda assim, recortada sobre o fundo cintilante de um bilhão de estrelas longínquas, parecia não estar se movendo. Era apenas um grão escuro congelado em meio aos infinitos grãos de brilho noturno.
A bordo da nave tudo permanecia exatamente igual há milênios: extremamente escuro e silencioso.
Click, hum.
Bem, quase tudo.
Click, click, hum.
Click, hum, click, hum, click, hum.
Click, click, click, click, click, hum.
Hmmm.
Um programa de supervisão de baixo nível acordou um programa de supervisão de nível um pouquinho mais alto lá dentro do semi-sonolento cibercérebro da nave e relatou que toda vez que fazia click, a resposta era apenas hum. O programa de supervisão de nível mais alto perguntou qual deveria ser a resposta, e o programa de supervisão de baixo nível disse que não se lembrava exatamente, mas achava que deveria ser algo como um suspiro de satisfação distante, não? Ele não tinha idéia do que era aquele hum. Click, hum, click, hum. Era só o que recebia.
O programa de supervisão de nível mais alto analisou a situação e não ficou nem um pouco satisfeito. Perguntou ao programa de supervisão de baixo nível o que exatamente ele estava supervisionando, mas o programa de supervisão de baixo nível também não conseguia se lembrar o que era. Sabia apenas que algo deveria fazer click e depois soltar um suspiro de satisfação a cada dez anos ou algo assim, o que em geral acontecia sem problemas. Tinha tentado consultar sua tabela de erros, mas não conseguiu encontrá-la, e por isso decidiu comunicar o problema ao programa de supervisão de nível mais alto.
O programa de supervisão de nível mais alto foi consultar uma de suas próprias tabelas de códigos para tentar descobrir o que o programa de supervisão de baixo nível deveria supervisionar.
Não conseguiu encontrar sua tabela de códigos.
Estranho.
Procurou novamente. Recebia apenas uma mensagem de erro. Tentou encontrar aquela mensagem em sua tabela de mensagens de erros, mas não conseguiu achá-la também. Aguardou alguns nanos-segundos e repetiu a coisa toda. Então resolveu acordar o supervisor de função setorial.
O supervisor de função setorial encontrou problemas logo de cara. Acionou o seu agente supervisor, que também encontrou problemas. Em alguns milionésimos de segundo, circuitos virtuais que passaram anos, ou mesmo séculos, adormecidos, estavam cintilando de volta à vida por toda a nave. Alguma coisa, em algum lugar, tinha dado terrivelmente errado, mas nenhum dos programas de supervisão conseguia detectar o que era. Em todos os níveis, instruções vitais haviam desaparecido e as instruções sobre o que fazer caso as instruções vitais estivessem desaparecidas também estavam desaparecidas.
Pequenos módulos de software — agentes — corriam pelos circuitos lógicos, agrupando, consultando, reagrupando. Rapidamente concluíram que a memória da nave, até o módulo central de missão, estava em frangalhos. Todas as perguntas do universo não seriam suficientes para determinar o que havia acontecido. Até mesmo o módulo central de missão parecia estar avariado.
O que, na verdade, tornou o problema bem simples de se resolver. Bastava substituir o módulo central de missão. Havia uma cópia de reserva, uma réplica exata do original. Era preciso substituí-lo fisicamente porque, por motivos de segurança, não havia nenhuma conexão entre o original e sua cópia. Uma vez substituído, o módulo central poderia supervisionar a reconstrução do resto do sistema minuciosamente e tudo ficaria bem.
Os robôs foram instruídos a apanhar o backup do módulo central de missão no cofre blindado, onde ficava armazenado, e levá-lo para a câmara de lógica da nave, onde seria instalado.
Isso acarretou uma longa troca de códigos de emergência e protocolos enquanto os robôs questionavam a autenticidade das instruções dos agentes. Por fim, os robôs se convenceram de que todos os procedimentos estavam corretos. Tiraram à cópia reserva do módulo central de missão de seu invólucro, a retiraram da câmara de armazenamento, caíram para fora nave e saíram rodopiando pelo vazio. Esse fato forneceu a primeira boa pista sobre o que estava errado. Investigações adicionais logo determinaram o que havia acontecido. Um meteorito abriu um rombo gigantesco na nave. A nave não detectou isso antes porque o meteorito atingiu justamente o equipamento que deveria detectar se a nave havia sido atingida por um meteorito.
A primeira coisa a fazer era tentar tapar o buraco. Perceberam que seria impossível, porque os sensores da nave não conseguiam ver que havia um buraco e os supervisores que deveriam alertar que os sensores não estavam funcionando direito também não estavam funcionando direito e insistiam que os sensores estavam bem. A nave só conseguia deduzir a existência do rombo porque os robôs haviam inegavelmente caído nele, levando junto o seu cérebro sobressalente _ o mesmo que teria permitido que ela notasse o rombo.
A nave se esforçou para pensar de maneira coerente sobre o assunto, falhou e depois apagou completamente por instantes. Não chegou a perceber que tinha apagado, é claro, porque estava apagada. Ficou apenas surpresa ao ver as estrelas pularem. Depois da terceira vez em que as estrelas pularam, a nave finalmente percebeu que devia estar apagando e que era hora de tomar decisões importantes. Relaxou.
Percebeu então que ainda não havia tomado as decisões importantes e entrou em pânico. Apagou novamente. Quando voltou a si, vedou todos os compartimentos que ficavam em volta de onde o buraco impossível de visualizar deveria estar. Obviamente ainda não havia alcançado o seu destino, pensou ela, inquieta, mas, como já não tinha a menor idéia de qual era o seu destino ou de como chegaria lá, não fazia mais sentido continuar. Consultou cada mínimo fragmento de instrução que havia conseguido recuperar a partir do módulo central de missão avariado.
— Sua !!!!! !!!!! !!!!! missão de !!!!! anos é !!!!! !!!!!, !!!!!, !!!!! !!!!! !!!!! !!!!!, aterrissar !!!!! !!!!! !!!!! distância segura !!!!! !!!!! monitorá-lo.!!!!! !!!!! !!!!.'... O resto era lixo puro.
Antes de apagar de vez, a nave deveria transmitir aquelas instruções, do jeito que estavam, para os seus sistemas auxiliares mais primitivos. Precisava também reanimar toda a tripulação.
Havia um outro problema. Enquanto a tripulação estava hibernando, as mentes de todos os seus membros, suas memórias, suas identidades e sua noção do que estavam fazendo ali haviam sido transferidas para o módulo central de missão da nave para mantê-los em segurança. Dessa forma, porém, os membros da tripulação não fariam mais a menor idéia de quem eram ou do que estavam fazendo ali. Paciência. Antes de apagar de vez, a nave percebeu que os seus motores também estavam começando a pifar.
A nave e a sua reanimada e confusa tripulação foram se arrastando sob o controle de seus sistemas auxiliares automáticos, que se preocuparam simplesmente em aterrissar no primeiro lugar que fosse possível e monitorar qualquer coisa que encontrassem para monitorar.
No que diz respeito ao local para aterrissar, não se saíram lá muito bem. O
planeta encontrado era desoladoramente gelado e deserto, tão dolorosamente distante do sol que deveria aquecê-lo que precisaram de toda a maquinaria de Formatrônica Ambiental e dos Sistemas Suportrônicos de Vida que traziam consigo para torná-lo —
ou parte dele, ao menos — habitável. Havia planetas melhores ali por perto, mas o Estrategiotron da nave estava obviamente no módulo Furtivo e escolheu o planeta mais distante e discreto. A única pessoa que poderia contestar sua escolha era o Comandante
—Chefe de Estratégia. Como todo mundo na nave havia perdido a memória, ninguém sabia quem era o Comandante-Chefe de Estratégia e, mesmo que pudessem identificálo, como é que ele iria discutir com o Estrategiotron da nave?
No que diz respeito a algo para monitorar, contudo, acertaram em cheio. CAPÍTULO 2
Uma das coisas mais extraordinárias da vida é o tipo de lugares nos quais ela está preparada para sobreviver. Seja nos mares inebriantes de Santragino V, com peixes que parecem não dar a mínima para onde estejam nadando, nas tempestades de fogo em Frastra, onde, segundo dizem, a vida começa aos 40.000 graus, ou simplesmente entocada no intestino grosso de um rato pela mais pura diversão, a vida encontra uma maneira de ir levando as coisas em qualquer lugar.
Ela suporta viver até mesmo em Nova York, embora seja difícil entender o porquê. No inverno a temperatura cai para muito abaixo do limite legal, ou pelo menos cairia, se alguém tivesse o bom senso de estipular um limite legal. A última vez em que fizeram uma pesquisa sobre as cem características mais marcantes dos nova-iorquinos, o bom senso foi parar em septuagésimo nono lugar.
No verão é quente pra burro. Uma coisa é ser uma dessas formas de vida que florescem no calor e achar, como os frastranos, que uma temperatura entre 40.000 e 40.004 graus é muito agradável. Outra coisa completamente diferente é ser um animal que precisa se enrolar nas peles de diversos outros animais quando seu planeta está em um ponto da órbita para descobrir, meia órbita mais à frente, que sua própria pele está
fervendo.
Há um enorme exagero quanto à primavera. Muitos habitantes de Nova York se vangloriam orgulhosamente dos prazeres da primavera, mas, se entendessem o mínimo que fosse dos tais prazeres da primavera, saberiam que existem 5.983 lugares melhores do que Nova York para desfrutá-la — e isso sem sair da mesma latitude. Mas o pior mesmo é o outono. Poucas coisas são piores do que o outono em Nova York. Alguns dos seres que vivem no intestino grosso dos ratos talvez discordem, mas a maioria das coisas que vivem nos intestinos grossos de ratos são bastante desagradáveis — então podemos e iremos ignorar sua opinião. Durante o outono, Nova York cheira como se alguém tivesse fritado cabras por lá e, se você estiver realmente precisando respirar, a melhor solução é abrir uma janela e enfiar a cara em um prédio. Tricia McMillan adorava Nova York. Vivia repetindo isso para si mesma. O
Upper West Side. Midtown. Boas lojas. O SoHo. O East Village. Roupas. Livros. Sushi. Comida italiana. Delicatessens. Isso aí.
Filmes. Isso aí, também. Tricia acabara de ver um filme de Woody Alien sobre a angústia de ser neurótico em Nova York. Como ele já tinha feito um ou dois filmes explorando o mesmo tema,
Tricia se perguntou se ele já tinha pensado em se mudar dali, mas ficou sabendo que ele abominava essa idéia. Então: mais filmes, adivinhou ela. Tricia adorava Nova York porque adorar Nova York era uma boa estratégia para a sua carreira. Boa em termos de lojas, de restaurantes, não tão boa em termos de táxis e qualidade das calçadas, mas definitivamente uma das maiores e melhores estratégias para a sua carreira. Tricia era âncora de tevê e a maior parte das tevês do mundo estão ancoradas em Nova York. Até então Tricia só havia sido âncora na Inglaterra: reportagem local, depois jornal da manhã e daí jornal da tarde. Se o idioma permitisse, poderia se dizer que era uma âncora em rápida ascensão, mas... bolas, aquilo era tevê, então qual o problema? Ela era uma âncora em rápida ascensão. Tinha tudo o que precisava ter: um cabelo sensacional, uma compreensão profunda de uso estratégico de brilhos labiais, inteligência suficiente para entender o mundo e uma pequena e secreta apatia interior que fazia com que ela se lixasse. Todo mundo tem uma grande oportunidade na vida. Se você por acaso perde a única que realmente interessa, todo o resto se torna assustadoramente fácil.
Tricia perdera apenas uma oportunidade na vida. Naqueles tempos já nem estremecia mais quando se lembrava dela. Achava que tinha a ver com a parte que tinha ficado apática.
A NBS precisava de uma nova âncora. Mo Minetti estava deixando o programa matinal Bom Dia Estados Unidos para ter um bebê. Haviam lhe oferecido uma quantia absurda para que o parto fosse transmitido ao vivo, mas ela surpreendentemente recusou a proposta, alegando zelar pela sua privacidade e bom gosto. Equipes de advogados da NBS vasculharam minuciosamente o seu contrato para verificar se aquelas eram alegações legítimas, mas, no fim das contas, tiveram que deixá-la ir embora, não sem uma certa relutância. Aquilo era particularmente odioso para eles, porque em geral
"deixar alguém partir com uma certa relutância" não passava de um eufemismo educado para demiti-lo.
Começou a circular o boato de que talvez, apenas talvez, estivessem procurando um sotaque britânico. O cabelo, a cor da pele e a prótese dentária seriam de acordo com os padrões das emissoras americanas, mas havia muitos sotaques britânicos nos Estados Unidos agradecendo às suas mães na cerimônia do Oscar, sotaques britânicos cantando na Broadway e um público considerável acompanhando sotaques britânicos com perucas no Masterpiece Theatre. Sotaques britânicos contavam piadas no programa do David Letterman e no Jay Leno. Ninguém entendia as piadas, mas estavam gostando do sotaque, então talvez, apenas talvez, fosse a hora certa de inserir um sotaque britânico no Bom Dia Estados Unidos. E daí?
Era por isso que Tricia estava lá. Era por isso que adorar Nova York era uma boa estratégia para sua carreira.
Esse não era, é claro, o motivo oficial. A sua emissora de tevê no Reino Unido jamais teria bancado a passagem de avião e a conta do hotel para ela sair caçando emprego em Manhattam. Como ela estava procurando algo que pagasse umas dez vezes o seu salário atual, poderiam ter pensado que ela teria condições de se manter por conta própria. Então, ela arrumou uma história, arrumou um pretexto, ficou bem quieta quanto às suas pretensões e eles bancaram a viagem. Bilhete executivo, é claro, mas seu rosto já
era conhecido e ela conseguiu um upgrade com alguns sorrisos. Com jeitinho, ela conseguiu um bom quarto no Hotel Brentwood e lá estava ela, esquematizando o seu próximo passo.
Conhecer gente era uma coisa; fazer contatos era outra completamente diferente. Tinha alguns nomes, alguns telefones, mas tudo o que conseguira até o momento era ficar aguardando na linha por um tempo indeterminado algumas vezes. Estava de volta à estaca zero. Sondou aqui e ali, deixou alguns recados, mas, até o momento, ninguém havia retornado as suas ligações. O trabalho que ela disse que fora fazer tinha terminado em uma manhã; o trabalho dos seus sonhos brilhava hipnoticamente em um horizonte inalcançável.
Merda.
Pegou um táxi do cinema de volta para o Brentwood. O táxi não pôde deixá-la mais perto da calçada porque uma limusine gigantesca estava ocupando todo o espaço livre, de modo que ela teve de se espremer para ultrapassá-la. Saiu do ar fétido, com cheiro de cabra frita, e adentrou no abençoado frescor do lobby. O delicado algodão de sua blusa estava grudado como fuligem no seu corpo. O seu cabelo parecia algodão—
doce comprado em uma feirinha. Perguntou na recepção se tinha algum recado, desanimada. Havia um.
Humm...
Bom.
Tinha funcionado. Ela foi ao cinema especificamente para fazer com que o telefone tocasse. Não agüentava ficar sentada em um quarto de hotel esperando. Hesitou. Será que devia abrir o recado ali mesmo? Suas roupas estavam grudentas e ela queria se livrar delas e ficar deitada na cama. Deixara o ar—
condicionado ligado na temperatura mais baixa possível e com a maior ventilação possível. O que mais desejava no mundo naquele momento era ficar arrepiada de frio. Depois, um banho bem quente, seguido de um banho bem frio e depois ficar deitada só
de toalha na cama, deixando o corpo secar no ar—condicionado. Então leria o recado. Talvez mais arrepios. Talvez todo tipo de coisa.
Não. O que mais desejava no mundo era um emprego em uma rede de tevê
americana que pagasse dez vezes o seu salário atual. Mais do que qualquer outra coisa no mundo. No mundo inteiro. O que ela desejava mais do que qualquer outra coisa não existia mais.
Sentou—se em uma poltrona no lobby, sob uma palmeira kentia e abriu o pequeno envelope com uma abertura em papel celofane.
"Favor entrar em contato" — estava escrito. "Triste" — e um número de telefone. O nome da pessoa era Gail Andrews.
Gail Andrews.
Não era um nome pelo qual estivesse esperando. Foi pega de surpresa. Conseguia reconhecê-lo, mas não sabia o porquê. Seria a secretária de Andy Martin? A assistente de Hilary Bass? Martin e Bass eram os contatos mais importantes que fizera, ou tentara fazer, na NBS. E o que significava aquele "Triste"?
"Triste?"
Estava completamente passada. Seria Woody Alien tentando contatá-la usando um pseudônimo? O código de área era 212. Alguém de Nova York. Que estava triste. Bom, aquilo reduzia um pouco as possibilidades, não? Voltou até a recepção.
—
A mensagem que o senhor me entregou está um pouco estranha — disse ela. — Alguém que não conheço tentou me ligar e disse que estava triste. O recepcionista olhou para o recado e franziu a testa.
—
A senhora conhece essa pessoa? — perguntou ele.
—
Não — respondeu Tricia.
—
Hum — disse o recepcionista. — Parece que ela não está feliz com alguma coisa.
—
Pois é — concordou Tricia.
—
Parece que deixou o nome aqui — disse ele. — Gail Andrews. A senhora conhece alguém com esse nome?
—
Não — disse ela.
—
Você sabe por que ela não está feliz?
—
Não — respondeu Tricia.
—
Já tentou ligar para este telefone? Tem um número aqui.
—
Não — repetiu Tricia. — O senhor acabou de me dar esse recado. Estou tentando levantar mais informações antes de retornar a ligação. Seria possível falar com a pessoa que anotou o recado?
—
Humm — fez o recepcionista, analisando cuidadosamente o recado. —
Acho que não temos nenhuma Gail Andrews trabalhando aqui, não.
—
Sim, eu sei disso — disse Tricia. — Eu só...
—
Eu sou Gail Andrews.
A voz veio por trás de Tricia. Ela se virou.
—
Como?
—
Eu sou Gail Andrews. Você me entrevistou hoje cedo.
—
Ah. Ah, meu Deus, é verdade — disse Tricia, um pouco envergonhada.
—
Deixei um recado para você há algumas horas. Como não tive nenhuma resposta, resolvi vir até aqui. Não queria que nos desencontrássemos.
—
Ah, sim. Claro — disse Tricia, esforçando—se para entender logo o que estava acontecendo.
—
Estou um pouco confuso com isso — disse o recepcionista, para quem entender logo não era importante. — Você deseja que eu ligue para esse número agora?
—
Não, tudo bem, obrigada — disse Tricia. — Eu posso resolver isso sozinha.
—
Posso ligar para esse quarto aqui para você, se for ajudar — disse o recepcionista, olhando para o recado novamente.
—
Não, não vai ser necessário, obrigada — assegurou Tricia. — Esse número é do meu próprio quarto. O recado era para mim. Acho que já resolvemos isso, não?
—
Tenha um bom dia, então — disse o recepcionista.
Tricia não estava particularmente interessada em ter um bom dia. Estava ocupada demais para isso.
Também não queria conversar com Gail Andrews. Tinha limites bem definidos quanto a bater papo com os "cristãos". Seus colegas chamavam de cristãos as pessoas que ela entrevistava e costumavam se benzer quando os viam entrando inocentemente no estúdio para encarar Tricia, especialmente quando ela estava sorrindo calorosamente e mostrando os dentes.
Virou-se e deu um sorriso glacial, tentando definir o que ia fazer. Gail Andrews era uma quarentona bem cuidada. As suas roupas estavam dentro dos limites de um bom gosto caro, mas definitivamente amontoadas na parte mais extravagante dos limites. Ela era astróloga — famosa e, se os boatos eram de fato verdadeiros, influente, já tendo supostamente influenciado diversas decisões do falecido presidente Hudson, desde o sabor de cobertura que ele deveria colocar em suas sobremesas em cada dia da semana até a sua decisão de bombardear ou não Damasco. Tricia realmente havia pegado pesado com ela. Não sobre a veracidade das histórias sobre o presidente, aquilo já estava mais do que batido. Na época, Gail Andrews negara enfaticamente ter aconselhado o presidente Hudson em qualquer assunto além de questões pessoais, espirituais e dietéticas, o que, aparentemente, não tinha nada a ver com bombardear Damasco. ("NADA PESSOAL, DAMASCO!" alardearam os jornais na época.)
Não, aquilo era peixe pequeno perto das perguntas que Tricia preparara sobre a questão da astrologia em si. A Sra. Andrews não estava exatamente preparada para aquilo. Tricia, por outro lado, não estava exatamente preparada para um segundo round no lobby do hotel. O que fazer?
—
Posso esperá-la no bar, se precisar de um tempinho – sugeriu Gail Andrews. — Mas gostaria de conversar com você e estou indo embora hoje à noite. Ela parecia um pouco aflita, mais do que magoada ou irada.
—
O.k. — respondeu Tricia. — Me dá uns dez minutinhos.
Subiu para o quarto. Antes de mais nada, confiava tão pouco na capacidade do sujeito da recepção para lidar com uma coisa tão complicada como um recado que precisava se certificar se havia algum outro debaixo da porta. Não seria a primeira vez em que os recados da recepção e os debaixo da porta discordariam completamente um do outro.
Não havia nada.
Mas uma luz no telefone estava piscando.
Ela apertou o botão de recados e foi transferida para a operadora do hotel.
—
Você tem uma mensagem de Gary Andress — disse ela.
—
Pois não — disse Tricia. Um nome desconhecido. — Qual é?
—
Traste — disse ela.
—
Como é que é? — perguntou Tricia.
—
Traste. É o que está escrito aqui. O sujeito diz que é um traste. Acho que queria que você soubesse disso. Quer que eu passe o telefone?
Assim que a telefonista começou a ditar o número, Tricia percebeu subitamente que aquela era apenas uma versão deturpada do recado anterior.
—
Está bem, está bem — disse ela. — Mais algum recado pra mim?
—
Qual o número do quarto?
Tricia não conseguia compreender por que a operadora decidira perguntar o número do quarto àquela altura da conversa, mas respondeu assim mesmo.
—
Qual o seu nome?
—
McMillan, Tricia McMillan — soletrou, pacientemente.
—
Não é o Sr. MacManus?
—
Não.
—
Acabaram seus recados. — Click.
Tricia suspirou e discou novamente. Desta vez, disse o número do quarto e o seu nome novamente, de cara. A operadora não demonstrou o menor indício de lembrar que haviam acabado de se falar há dez segundos.
—
Estarei no bar — explicou Tricia. — No bar. Se aparecer alguma ligação para mim, a senhora pode pedir, por gentileza, que transfiram para o bar?
—
Qual o seu nome?
Repetiram tudo novamente, até Tricia ter certeza absoluta de que tudo que eventualmente poderia ser esclarecido havia sido tão esclarecido quanto possivelmente pudesse ser.
Tomou uma ducha, colocou roupas limpas e retocou a maquiagem com a rapidez de uma profissional. Suspirou ao olhar para a sua cama e saiu do quarto. Chegou a pensar em sair de fininho e se esconder.
Não. Que nada.
Olhou—se no espelho do hall enquanto esperava o elevador. Parecia tranqüila e no comando da situação; se conseguia enganar a si mesma, conseguia enganar qualquer um.
Bastava ser dura com Gail Andrews. Tudo bem, pegara pesado com ela. Sentia muito, mas era parte do jogo — essas coisas. Gail concordara em dar a entrevista porque estava prestes a lançar um livro novo, e exposição na tevê era publicidade gratuita. Mas tudo na vida tem um preço. Não, ia cortar aquela parte. O que tinha acontecido era o seguinte:
Na semana anterior, astrônomos anunciaram que haviam finalmente descoberto um décimo planeta, bem longe, além da órbita de Plutão. Há anos procuravam por ele, guiados por determinadas anomalias orbitais nos planetas mais externos e, agora que haviam encontrado, estavam incrivelmente felizes e todos estavam incrivelmente contentes por eles e etc. e tal. O planeta foi batizado de Perséfone, mas rapidamente ganhou o apelido de Rupert, por causa do papagaio de um dos astrônomos — havia uma bela história tediosamente sentimental por trás disso tudo —, e aquilo era lindo e maravilhoso.
Tricia acompanhara os acontecimentos com muito interesse, por vários motivos.
Então, quando estava procurando uma boa desculpa para viajar para Nova York às custas de sua emissora, um press-release sobre o novo livro de Gail Andrews, Você e os seus planetas, chamou sua atenção.
Gail Andrews não era muito conhecida na Inglaterra, mas bastava mencionar o presidente Hudson, cobertura para doce e a amputação de Damasco (o mundo havia evoluído desde os ataques com precisão cirúrgica — o termo oficial havia sido
"Damascotomia", significando a "remoção" de Damasco), que todo mundo sabia de quem se tratava.
Tricia percebeu que havia uma brecha e convenceu seu produtor. Com certeza a idéia de que blocos gigantescos de pedra rodopiando no espaço poderiam saber algo a respeito do seu dia que você mesmo não sabe deve ter sido impactado com a descoberta súbita de um novo bloco de pedra que ninguém conhecia. Isso deve ter invalidado alguns cálculos, certo?
E todos aqueles mapas astrais, movimentações planetárias e etc. e tal? Todos nós sabemos (a princípio) o que acontece quando Netuno está em Virgem e por aí vai, mas o que será que acontece quando Rupert está em ascendência? Será que a astrologia como um todo não teria de ser repensada? Quem sabe não fosse uma boa hora para admitir que aquilo tudo não passava de uma baboseira e se dedicar à criação de porcos, cujos princípios eram, ao menos, baseados em fundamentos racionais? Se soubéssemos da existência de Rupert há três anos, será que o presidente Hudson teria comido calda de chocolate às quintas—feiras em vez de às sextas? Será que Damasco ainda estaria de pé? Esse tipo de coisa.
Gail Andrews aceitara tudo numa boa. Estava começando a se recuperar do primeiro ataque quando cometeu o erro de tentar enrolar Tricia com uma conversa fiada sobre arcos diurnos, ascensões diretas e algumas das áreas mais obscuras da trigonometria tridimensional.
Ficou chocada ao descobrir que Tricia rebatia todas as suas frases com mais efeito do que ela podia enfrentar. Ninguém avisara a Gail que ser uma perua de televisão representava, para Tricia, uma segunda oportunidade de ser alguém na vida. Por trás da sua maquiagem Chanel, seu coupe sauvage e suas lentes de contato azuis cristalinas havia um cérebro que havia adquirido, em uma fase antiga e abandonada da sua vida, um respeitável diploma em matemática e um doutorado em astrofísica. Ao entrar no elevador, Tricia percebeu que estava levemente preocupada por ter esquecido a bolsa no quarto e pensou se devia voltar depressa e apanhá-la. Não. Provavelmente estaria mais segura lá dentro e, de qualquer forma, não havia nada na bolsa que ela estivesse precisando. Deixou a porta fechar—se atrás de si. Além do mais, repetiu para si mesma, respirando fundo, se havia uma coisa que a vida a ensinara era isso: nunca volte para buscar sua bolsa. Enquanto o elevador descia, ela olhou para o teto com uma certa obstinação. Qualquer pessoa que não conhecesse bem Tricia McMillan teria dito que era exatamente daquele jeito que as pessoas às vezes olham para cima quando querem conter as lágrimas. Ela devia estar observando a minúscula câmera de segurança montada no teto. Saiu do elevador com passos enérgicos e dirigiu—se novamente à recepção.
—
Veja bem, eu vou anotar isso aqui — explicou ela — porque não quero que nada dê errado.
Escreveu o seu nome em letras garrafais em um pedaço de papel. Depois acrescentou o número do seu quarto e a mensagem "ESTOU NO BAR" e entregou o papel ao recepcionista, que o examinou.
—
Caso haja alguma mensagem para mim. Está bem?
O recepcionista continuou examinando o pedaço de papel.
—
A senhora quer que eu verifique se ela está no quarto? — perguntou ele. Dois minutos depois, Tricia acomodou—se no bar ao lado de Gail Andrews, que estava sentada diante de uma taça de vinho branco.
—
Você me pareceu o tipo de pessoa que prefere sentar—se no bar a ficar quietinha numa mesa — disse ela.
Aquilo era verdade e deixou Tricia um pouco surpresa.
—
Vodca? — perguntou Gail.
—
Sim — respondeu Tricia, desconfiada. Estava quase perguntando "como é que você sabe?" quando Gail respondeu:
—
Perguntei ao barman — explicou ela, com um sorriso simpático. O
barman preparou a vodca e deslizou elegantemente o copo sobre a mesa lustrada de mogno.
—
Obrigada — agradeceu Tricia, mexendo sua bebida com gestos curtos. Não sabia o que aquela gentileza repentina significava e estava determinada a não se deixar enganar por ela. As pessoas em Nova York não eram gentis umas com as outras à toa.
—
Olha — disse ela, firme —, sinto muito se a senhora está triste. Sei que deve estar achando que eu fui muito dura hoje pela manhã, mas a astrologia, no final das contas, não passa de uma diversão popular e, até aí, tudo bem. Faz parte do showbiz e é uma coisa que a senhora faz muito bem, lhe desejo boa sorte. É divertido. Contudo, não é uma ciência e não devemos confundir as coisas. Acho que isso é algo que nós duas conseguimos demonstrar muito bem hoje cedo e ainda proporcionamos diversão popular aos outros, que é exatamente o nosso trabalho. Lamento muito se isso a desagrada.
—
Estou bem feliz — disse Gail Andrews.
—
Ué — disse Tricia, sem saber o que pensar. — Seu recado dizia que estava triste.
—
Não — respondeu Gail Andrews. — Eu deixei um recado dizendo que achava que você estava triste e fiquei curiosa para saber o porquê. Tricia se sentiu como se tivesse levado um chute na nuca. Piscou os olhos.
—
O quê? — perguntou ela, baixinho.
—
O astros. Você me pareceu muito irritada e triste em relação aos astros e aos planetas quando estávamos discutindo hoje cedo e isso está me incomodando. Por isso eu vim até aqui, para ver se você estava bem.
Tricia olhou fixamente para ela.
—
Senhora Andrews — começou ela, e então percebeu que tinha soado exatamente irritada e triste, o que iria tirar o valor de seu protesto.
—
Por favor, pode me chamar de Gail, se preferir.
Tricia parecia desnorteada.
—
Eu sei que astrologia não é uma ciência — disse Gail. — Claro que não é. Não passa de um conjunto de regras arbitrárias como xadrez ou tênis, ou... qual é
mesmo o nome daquela coisa esquisita de que vocês ingleses brincam?
—
Humm... críquete? Autodepreciação?
—
Democracia parlamentar. As regras meio que surgiram do na da. Não fazem o menor sentido, a não ser quando pensadas no próprio contexto. Mas, quando a gente começa a colocar essas regras em prática, vários processos acabam acontecendo e você começa a descobrir mil coisas sobre as pessoas. Na astrologia, as regras são sobre astros e planetas, mas poderiam ser sobre patos e gansos que daria no mesmo. É apenas uma maneira de pensar sobre um problema que permite que o sentido desse problema comece a emergir. Quanto mais regras, quanto menores, mais arbitrárias, melhor fica. É
como assoprar um punhado de poeira de grafite em um pedaço de papel para visualizar os entalhes escondidos. Permite que você veja as palavras que haviam sido escritas sobre o papel que estava por cima e que foi removido. O grafite não é importante. É
apenas uma maneira de revelar os entalhes. Então, veja, a astrologia de fato nada tem a ver com a astronomia. Tem a ver com pessoas pensando sobre pessoas. Ela continuou:
—
Então, quando você ficou tão, sei lá, tão emocionalmente concentrada nos astros e nos planetas hoje de manhã, eu comecei a pensar: ela não está irritada com a astrologia, está irritada e triste com os astros e os planetas. As pessoas normalmente só
ficam assim, tristes e irritadas, quando perdem alguma coisa. Isso foi tudo o que eu consegui imaginar e não passei desse ponto. Então vim ver se você estava bem. Tricia estava embasbacada.
Uma parte do seu cérebro já havia começado a funcionar a pleno vapor. Estava ocupada construindo várias réplicas malcriadas sobre como os horóscopos de jornal eram ridículos e como usavam truques estatísticos para pegar as pessoas. Mas, aos poucos, aquilo tudo foi desaparecendo, porque percebeu que o resto do seu cérebro não estava ouvindo. Ela estava completamente embasbacada.
Uma total desconhecida acabara de lhe dizer algo que ela mantivera em segredo por dezessete anos.
Virou-se para Gail.
—
Eu...
Parou.
Uma minúscula câmera de segurança acima do bar girou para acompanhar o seu movimento. Aquilo a deixou completamente baratinada. A maioria das pessoas não teria sequer notado. Não era feita para ser notada. Não havia sido projetada para sugerir que atualmente até mesmo um hotel caro e elegante em Nova York não tinha certeza de que sua clientela não iria puxar uma arma subitamente ou deixar de usar uma gravata. Mas, apesar de cuidadosamente escondida atrás de uma garrafa de vodca, não podia enganar o instinto apurado de uma âncora de tevê que deveria saber exatamente quando uma câmera estava girando em sua direção.
—
Aconteceu alguma coisa? — perguntou Gail.
—
Não, é que eu... eu tenho que admitir que você me deixou espantada —
disse Tricia. Decidiu ignorar a câmera de segurança. Devia ser apenas a sua imaginação pregando—lhe uma peça por estar tão obcecada com televisão naquele dia. Não era a primeira vez que aquilo acontecia. Estava convencida de que uma câmera de monitoramento de trânsito tinha se virado para acompanhar o seu andar e que uma outra, de segurança, na Bloomingdale's, tinha feito questão de vigiá-la enquanto experimentava uns chapéus. Estava ficando doida, é claro. Chegara até mesmo a imaginar que um passarinho no Central Park havia encarado—a de propósito. Decidiu tirar aquilo da cabeça e tomou um gole da vodca. Um sujeito estava andando pelo bar perguntando quem era o Sr. MacManus.
—
O.k. — disse Tricia, decidindo colocar tudo para fora. — Não sei como foi que você descobriu isso, mas...
—
Eu não descobri nada, ao contrário do que você diz. Apenas escutei o que você estava dizendo.
—
O que eu perdi, acho eu, foi uma outra vida inteira.
—
Acontece com todos nós. A cada momento de cada dia. Cada decisão que tomamos, cada vez que respiramos, abre algumas portas e fecha várias outras. Não percebemos a maioria, mas notamos algumas. Acho que você percebeu uma delas.
—
Ah, sim, e como — respondeu Tricia. — Vamos lá, eu vou contar. É
muito simples. Há vários anos eu conheci um cara em uma festa. Ele disse que era de outro planeta e perguntou se eu queria ir embora com ele. Eu disse tá, tudo bem. Era uma senhora festa. Pedi pra ele esperar um pouquinho enquanto eu ia buscar minha bolsa, depois iria com ele numa boa para outro planeta. Ele disse que eu não ia precisar da bolsa. Respondi que ele com certeza devia vir de um lugar muito atrasado ou então saberia que uma mulher sempre precisa carregar sua bolsa. Ele ficou meio impaciente, mas eu não ia me fazer de fácil só porque ele tinha dito que era de outro planeta.
—
Fui até o segundo andar. Demorei um tempo para encontrar a bolsa e depois o banheiro estava ocupado. Quando desci, ele tinha ido embora. Tricia fez uma pausa.
—
E...? — perguntou Gail.
—
A porta do jardim estava aberta. Fui lá fora. Havia umas luzes, uma coisa brilhante. Cheguei a tempo de vê—la levantar vôo, partir silenciosa pelas nuvens e desaparecer. E foi isso. Fim da história. Fim de uma vida, início de outra. Mas não passo um minuto desta vida sem imaginar como teria sido a outra Tricia. A que não teria voltado para apanhar a bolsa. Fico achando que ela está lá fora, em algum lugar, e que sou apenas a sua sombra.
Um membro da equipe do hotel estava rondando o bar perguntando se alguém era o Sr. Miller. Ninguém era.
—Você realmente acredita que essa... pessoa era de um outro planeta? —
perguntou Gail.
—
Com certeza. Eu vi a nave. E, ah, ele tinha duas cabeças.
—
Duas? E ninguém mais percebeu?
—
Era uma festa à fantasia. —Ah, tá...
—
E ele havia coberto a outra cabeça com uma gaiola. Com um pano por cima. Fingia ter um papagaio. Ficava batendo na gaiola, falando aquelas bobagens de
"Dá o pé, louro" e grunhindo. Mas teve uma hora em que ele jogou o pano para trás e deu uma gargalhada. Havia outra cabeça lá dentro, gargalhando também. Foi um momento bem estranho, devo dizer.
—
Eu acho que você fez a coisa certa, minha querida. Não acha? —disse Gail.
—
Não — respondeu Tricia. — Não, não fiz. E também não consegui continuar a fazer o que estava fazendo na época. Eu era astrofísica, sabe. Não dá para continuar sendo uma astrofísica decente após ter conhecido um sujeito de outro planeta com uma segunda cabeça disfarçada de papagaio. É impossível. Eu, pelo menos, não consegui.
—
Deve ser difícil, de fato. E provavelmente é por isso que você tende a ser um pouco dura com pessoas que falam coisas que parecem absurdas.
—
Pois é — concordou Tricia. — Acho que você tem razão. Desculpe.
—
Tudo bem.
—
Você é a primeira pessoa para quem conto isso, por sinal.
—
Imagino. Você é casada?
—
Ah, não. Difícil saber se alguém é casado nos nossos dias, não? Mas sua pergunta faz sentido, porque provavelmente foi essa a causa. Cheguei bem perto algumas vezes, sobretudo porque queria ter um filho. Mas todos os caras sempre acabavam perguntando por que eu ficava olhando constantemente por sobre os ombros deles. O que eu ia dizer? Cheguei a pensar em ir até um banco de esperma e tentar a sorte. Ter o filho de alguém, aleatoriamente.
—
Você não faria isso de fato, faria?
Tricia riu.
— Provavelmente, não. Nunca cheguei a ir para ver como seria. Nunca consegui. Minha vida é sempre assim. Nunca cheguei a fazer algo de verdade. Suponho que seja por isso que estou trabalhando na televisão, sabe? Nada é real.
—
Com licença, senhora, o seu nome é Tricia McMillan?
Tricia virou-se, surpresa. Havia um homem parado diante dela usando um chapéu de chofer.
—
É — disse ela, aprumando-se instantaneamente.
—
Senhora, estou há uma hora procurando-a. O hotel disse que não tinha ninguém com esse nome, mas eu confirmei com o escritório do Sr. Martin e eles afirmaram que a senhora realmente estava hospedada aqui. Então perguntei novamente e eles continuaram dizendo que nunca tinham ouvido falar na senhora. Depois consegui que fossem procurá-la, mas não conseguiram encontrá-la. Acabei pedindo para o escritório enviar um fax com uma foto sua para o carro e saí procurando-a pessoalmente.
Ele deu uma olhadela no relógio.
—
Talvez seja tarde demais agora, mas a senhora quer ir assim mesmo?
Tricia estava em estado de choque.
—
Sr. Martin? Você diz, Andy Martin, da NBS?
—
Isso mesmo, senhora. Teste de vídeo para o programa Bom Dia Estados Unidos.
Tricia levantou-se de supetão. Não podia nem pensar em todos aqueles recados que havia escutado para o Sr. MacManus e o Sr. Miller.
—
Mas temos que correr — disse o chofer. — Pelo que ouvi, o Sr. Martin acha que vale a pena testar um sotaque britânico. O chefe dele na emissora, o Sr. Zwingler, é completamente contra a idéia. Eu sei que ele vai viajar hoje no final do dia, porque sou eu quem deve buscá-lo e levá-lo ao aeroporto.
—
O.k. — disse Tricia. — Estou pronta. Vamos lá.
—
Está bem, senhora. É a limusine grandona estacionada aqui na porta. Tricia virou-se para Gail.
—
Sinto muito — disse ela.
—
Vai, vai! — disse Gail. — E boa sorte, hein? Gostei de conversar com você.
Tricia fez menção de apanhar a bolsa para pegar um dinheiro.
—
Droga — disse ela. Deixara a bolsa lá em cima.
—
Os drinques são por minha conta — insistiu Gail. — Sério. Foi muito interessante.
Tricia deixou escapar um suspiro.
—
Olha, sinto muito por hoje de manhã e...
—
Não diga mais nada. Estou bem. É só astrologia. É inofensivo. Não é o fim do mundo.
—
Obrigada. —Tricia abraçou—a, impulsivamente.
—
Está pronta, senhora? — perguntou o chofer. — Não quer ir buscar a bolsa ou algo assim?
—
Olha, se tem uma coisa que a vida me ensinou — disse Tricia — é jamais voltar para buscar a bolsa.
Mais ou menos uma hora depois, Tricia estava sentada em uma das camas do seu quarto de hotel. Por alguns minutos, não se moveu. Apenas ficou encarando a sua bolsa, que repousava inocentemente em cima da outra cama.
Estava segurando um bilhete de Gail Andrews, que dizia: "Não fique muito decepcionada. Ligue, se quiser falar a respeito. Se eu fosse você, ficaria em casa amanhã à noite. Descanse um pouco. Mas não me dê ouvidos e não se preocupe. É só
astrologia. Não é o fim do mundo. Gail."
O chofer estava coberto de razão. Para falar a verdade, o chofer parecia saber mais sobre os bastidores da NBS do que qualquer outra pessoa da empresa que ela conhecera. Martin estava a fim, mas Zwingler, não. Tivera uma única oportunidade de provar que Martin tinha razão e estragara tudo.
Tudo bem. Tudo bem, tudo bem, tudo bem.
Hora de voltar para casa. Hora de ligar para a companhia aérea e ver se ainda dava tempo de pegar o vôo noturno para Heathrow naquela noite. Pegou o enorme catálogo.
Ah. Precisava fazer uma coisa antes.
Largou o catálogo, apanhou a bolsa e a levou ao toalete. Apoiando-a, catou o pequeno estojo de plástico onde guardava suas lentes de contato, sem as quais não havia conseguido ler nem o texto nem o teleprompter.
Enquanto encaixava as lentes nos olhos, refletiu sobre uma coisa: se havia algo que a vida lhe ensinara, era que existem momentos em que você não deve voltar para apanhar a bolsa e outros momentos em que deve. Agora só faltava a vida lhe ensinar a distinguir entre os dois.
CAPÍTULO 3
O Guia do Mochileiro das Galáxias teve, no que nós chamamos ridiculamente de passado, muito que dizer sobre universos paralelos. No entanto, a maior parte desse conteúdo é incompreensível para qualquer um abaixo do nível Deus Avançado e, como já havia sido determinado que todos os deuses conhecidos tinham surgido uns bons três milionésimos de segundo após o início do universo e não, como costumam dizer por aí, uma semana antes, eles já têm muita coisa para explicar só por causa disso e não estão disponíveis para tecer comentários sobre temas profundos de física.
Uma coisa encorajadora que o Guia tem a dizer sobre os universos paralelos é
que você não tem a menor chance de compreendê-los. Você pode, portanto, dizer coisas como "O quê?" e "Hein?" e até mesmo ficar vesgo e fazer papel de tolo sem ter medo de parecer ridículo.
A primeira coisa que devemos saber sobre os universos paralelos, explica o Guia, é que eles não são paralelos.
Também é importante saber que eles não são, estritamente falando, universos, mas fica mais fácil tentar compreender isso um pouco depois, após compreender que tudo o que você havia compreendido até então não é verdade.
O motivo pelo qual não são universos é que qualquer universo em particular não chega exatamente a ser uma coisa, mas sim uma maneira de compreender o que é
tecnicamente conhecido como MGTC, Mistureba Generalizada de Todas as Coisas. A Mistureba Generalizada de Todas as Coisas também não existe na prática — é apenas a soma total de todas as maneiras diferentes que haveria para compreendê-la, caso existisse uma.
O motivo pelo qual não são paralelos é o mesmo pelo qual o mar não é
paralelo. Não significa nada. Você pode fatiar a Mistureba Generalizada de Todas as Coisas do jeito que quiser e geralmente vai acabar com algo que alguém vai chamar de lar.
Por favor, sinta-se à vontade para enlouquecer agora.
A Terra que nos interessa aqui, devido à sua orientação particular dentro da Mistureba Generalizada de Todas as Coisas, foi atingida por um neutrino que não atingiu nenhuma das outras Terras.
Um neutrino não é algo grande com que se possa ser atingido. Para falar a verdade, é difícil imaginar algo menor pelo qual alguém poderia ser atingido. E ser atingido por neutrinos nem chega a ser uma coisa assim tão rara para algo do tamanho da Terra. Pelo contrário. Seria um nanossegundo bem fora do comum aquele em que a Terra não fosse atingida por inúmeros bilhões deles. Tudo depende do que você entende por "ser atingido", é claro, já que na verdade a matéria consiste quase que inteiramente em absolutamente nada. As chances de um neutrino atingir de fato alguma coisa enquanto viaja por esse imenso vazio são comparáveis às de jogar aleatoriamente uma bolinha de metal de um Boeing 747 em pleno vôo e acertar, digamos, um sanduíche de ovo.
Enfim, esse neutrino atingiu algo. Isso não é terrivelmente importante na escala das coisas, você diria. Mas o problema em dizer coisas desse tipo é que pode ter tanto sentido quanto uma cusparada de texugo vesgo. Quando algo acontece em algum lugar em uma coisa tão complicada como o Universo, Kevin sabe muito bem onde tudo isso vai parar — leia-se como "Kevin" qualquer entidade aleatória que não sabe nada de nada.
Esse neutrino atingiu um átomo.
O átomo fazia parte de uma molécula. A molécula era parte de um ácido nucléico. O ácido nucléico fazia parte de um gene. O gene fazia parte de uma receita genética para crescer... e por aí vai. O resultado final é que uma folha extra acabou crescendo em uma planta. Em Essex. Ou naquilo que, depois de muita tagarelice e dificuldades locais de natureza geológica, viria a ser Essex. A planta em questão era um trevo. Ela espalhou sua influência, melhor dizendo, suas sementes, de maneira extremamente eficaz, tornando—se rapidamente o tipo de trevo dominante em todo o mundo. A conexão causai exata entre esse simples acontecimento biológico fortuito e algumas variações menores que existem na mesma fatia da Mistureba Generalizada de Todas as Coisas — tais como Tricia McMillan ter perdido a oportunidade de partir com Zaphod Beeblebrox, uma queda anormal nas vendas de sorvete de nozes e o fato de a Terra na qual tudo isso se passou não ter sido demolida pelos vogons para a construção de uma via expressa hiperespacial —ocupa atualmente o número 4.763.984.132 na lista de prioridades para projetos de pesquisa do que um dia já foi o Departamento de História da Universidade de Maximegalon, e nenhuma das pessoas que estão neste exato momento reunidas em um retiro espiritual em volta de uma piscina parece experimentar qualquer sentimento de urgência em relação ao problema.
CAPÍTULO 4
Tricia começou a achar que o mundo estava conspirando contra ela. Sabia que era perfeitamente normal sentir-se assim após um vôo noturno indo para o leste, quando você subitamente nota que terá que enfrentar um novo dia misteriosamente ameaçador para o qual não está nem um pouco preparado.
Havia marcas no seu gramado.
Não que ligasse muito para as marcas. Elas podiam pintar e bordar se quisessem que Tricia não estava nem aí. Era uma manhã de sábado. Acabara de chegar de Nova York sentindo-se cansada, irritada e paranóica, e tudo o que queria era ir para a cama com o rádio ligado baixinho e dormir ao som de Ned Sherrin mostrando-se incrivelmente inteligente sobre qualquer assunto.
Mas Eric Bartlett não ia permitir que ela passasse direto sem inspecionar minuciosamente as marcas. Eric era o velho jardineiro que nas manhãs de sábado ia cutucar o jardim com uma vara. Ele não acreditava em pessoas voltando de Nova York tão cedo pela manhã. Simplesmente não engolia aquilo. Era antinatural. Acreditava em praticamente tudo, menos naquilo.
—
Provavelmente foram os alienígenas — disse ele, debruçando-se e futucando as bordas das pequenas marcas com a vara. — A gente ouve muitas histórias de ETs hoje em dia. Para mim, foram eles.
—
Você acha? — perguntou Tricia, lançando uma olhadela furtiva para o seu relógio. Dez minutos, computou. Era o máximo que conseguiria ficar em pé: dez minutos. Depois cairia de joelhos e se deitaria, fosse na sua cama ou ali mesmo no jardim. Isso se tivesse apenas que ficar de pé. Se ainda tivesse que balançar a cabeça demonstrando interesse e compreensão e dizendo "Você acha?" de vez em quando, talvez só agüentasse cinco minutos.
—
Ah, acho — respondeu Eric. — Eles costumam baixar por essas bandas, aterrissam no seu jardim e depois se mandam, às vezes levando um gato. A Sra. Williams, do correio, sabe aquele gato caramelo dela? Foi abduzido pelos alienígenas, coitado. Tudo bem que o trouxeram de volta no dia seguinte, mas ele estava muito esquisito. Ficava caçando a manhã inteira e depois dormia à tarde. Antes era o contrário, aqui é que está. Dormia de manhã, caçava de tarde. Foi o fuso horário, por ter viajado em uma nave espacial.
—
Sei — disse Tricia.
—
E eles também o tingiram para ficar malhado, ela me disse. Essas marcas aqui são iguaizinhas às que as cápsulas de aterrissagem deles fariam.
—
Não pode ter sido o cortador de grama? — perguntou Tricia.
—
Se as marcas fossem mais redondas, até podia. Mas são retas. Têm um jeitão de coisa de alienígena.
—
É porque você tinha comentado que o cortador estava dando defeito e que, se não fosse consertado, poderia acabar fazendo buracos na grama.
—
Eu realmente disse isso, dona Tricia, eu assumo. Não estou dizendo que não foi o cortador de grama, só estou dizendo o que acho mais provável pelo formato dos buracos. Eles descem por trás daquelas árvores, nas cápsulas de aterrissagem...
—
Eric... — interrompeu Tricia, paciente.
—
De qualquer jeito, dona Tricia — disse Eric —, vou dar uma olhada no cortador, como queria ter feito na semana passada, e deixar a senhora ir fazer as suas coisas.
—
Obrigada, Eric — disse Tricia. —Vou me deitar agora, para falar a verdade. Fique à vontade para apanhar o que quiser na cozinha, está bem?
—
Obrigado, dona Tricia, e boa sorte — disse Eric. Ele inclinou-se e apanhou alguma coisa no gramado.
—
Aqui está — disse ele. — Um trevo de três folhas. Dá sorte, sabe. Examinou de perto para verificar se era mesmo um trevo de três folhas, e não um comum de quatro folhas que tivesse perdido um pedaço.
—
Se eu fosse a senhora, em todo caso, ficaria atento aos sinais de atividade alienígena por aqui. — Ele vasculhou o horizonte atenta mente. — Especialmente por aquelas bandas lá de Henley.
— Obrigada, Eric — repetiu Tricia. — Pode deixar.
Foi para a cama e teve sonhos intermitentes com papagaios e outros pássaros. À tarde levantou-se e zanzou pela casa, inquieta, sem saber direito o que fazer com o resto do dia e com o resto da vida. Passou pelo menos uma hora indecisa, sem saber se valia a pena ir para a cidade e dar um pulo no Stavro's. Lá era o lugar da moda para pessoas bem—sucedidas da mídia. Talvez encontrar alguns amigos pudesse ajudá-la a entrar no ritmo das coisas. Finalmente decidiu que iria. Seria uma boa. Era um lugar divertido. Gostava muito do próprio Stavro, um grego com pai alemão, o que era uma combinação um tanto quanto esquisita. Tricia estivera no Alpha algumas noites antes. O
Alpha fora a primeira casa noturna de Stavro em Nova York e, atualmente, era dirigida pelo seu irmão Karl, que se achava um alemão com uma mãe grega. Stavro ficaria contente em saber que Karl estava metendo os pés pelas mãos na gerência da casa em Nova York, então Tricia iria até o Stavro's e o deixaria contente. Afinal de contas, os dois irmãos não se davam muito bem mesmo.
O.k. Era isso o que ela ia fazer.
Passou então mais uma hora indecisa, tentando definir a roupa que iria vestir. Finalmente escolheu um pretinho básico elegante que comprara em Nova York. Ligou para um amigo para sondar quem estaria no Stavro's naquela noite e ficou sabendo que a casa estava fechada para uma festa de casamento.
Concluiu que tentar viver seguindo qualquer tipo de plano que pudesse ser arquitetado com antecedência era como tentar comprar ingredientes para uma receita no supermercado. Você pega um daqueles carrinhos que simplesmente não andam na direção que você quer e acaba comprando coisas completamente diferentes. O que fazer com tudo aquilo? O que fazer com a receita? Ela não tinha idéia. De qualquer maneira, uma nave espacial pousou no seu gramado naquela noite.
CAPÍTULO 5
Observou-a enquanto se aproximava, vinda lá das bandas de Henley, no início com uma leve curiosidade, imaginando o que seriam aquelas luzes. Quem morava, como ela, a menos de um milhão de quilômetros de Heathrow estava acostumado a ver luzes no céu. Mas não tão tarde da noite nem tão baixas, por isso a leve curiosidade. Quando o objeto, fosse lá o que fosse, começou a ficar mais e mais próximo, a sua curiosidade transformou-se em perplexidade.
"Humm", pensou ela, sendo aquilo o máximo que conseguia pensar. Ainda estava grogue e indisposta por causa do fuso horário, e as mensagens que uma parte do seu cérebro enviava para a outra não estavam necessariamente chegando a tempo ou fazendo sentido. Saiu da cozinha, onde estava preparando um café, e foi abrir a porta dos fundos, que dava para o jardim. Respirou profundamente o ar fresco da noite, saiu de casa e olhou para o céu.
Havia algo do tamanho aproximado de um ônibus estacionado há cerca de trinta metros acima do seu gramado.
Estava realmente lá. Parado. Praticamente em silêncio.
Algo se moveu no fundo da alma de Tricia.
Abaixou os braços devagar. Não percebeu que derrubou o café pelando no seu pé. Mal conseguia respirar enquanto, bem devagarzinho, centímetro por centímetro, a nave concluía a aterrissagem. As luzes vasculhavam delicadamente o gramado, como se estivessem sondando, sentindo o terreno. Então viraram-se para ela. Parecia impossível que ela pudesse estar sendo agraciada com uma segunda chance. Será que ele a encontrara? Será que tinha voltado?
A nave continuou a descer aos poucos até finalmente pousar silenciosamente no seu jardim. Não era exatamente parecida com a que ela vira partir anos atrás, pensou, mas luzes piscando no céu à noite não são muito fáceis de se distinguir. Silêncio.
Depois um click e um hum.
Depois outro click e outro hum. Click hum, click hum.
Uma portinhola se abriu, derramando luz pelo jardim na direção dela. Tricia aguardou, fervilhando.
Uma silhueta surgiu contra a luz, depois outra e mais outra. Olhos arregalados piscavam vagarosamente para ela. E, vagarosamente, levantaram as mãos para saudá-la.
—
McMillan? — perguntou finalmente uma voz estranha e fininha que pronunciou as sílabas com dificuldade. — Tricia McMillan. Srta. Tricia McMillan?
—
Sim — respondeu Tricia, quase afônica.
—
Temos monitorado você.
—
M... monitorado? A mim?
—
Sim.
Olharam para ela por alguns instantes, mexendo os seus imensos olhos para cima e para baixo devagar.
—
Você parece mais baixa na vida real — comentou um deles finalmente.
—
O quê? — perguntou Tricia.
—
É.
—
Eu... eu não estou entendendo — disse Tricia. Obviamente não esperava uma coisa daquelas, mas, mesmo para uma coisa que ela jamais havia esperado, aquilo não estava indo da maneira que ela esperava. Por fim, continuou: — Vocês são... vocês vieram de... Zaphod?
A pergunta pareceu causar uma certa consternação nas três figuras. Confabularam entre eles em uma língua esganiçada e voltaram-se para ela.
—
Achamos que não. Até onde sabemos, não — disse um deles. — Onde fica Zaphod? — perguntou o outro, olhando para o céu.
—
Eu... eu não sei — respondeu Tricia, sem graça.
—
É muito longe daqui? Em qual direção? Não sabemos.
Tricia constatou, com um aperto no peito, que eles não faziam a menor idéia de quem ou do que ela estava falando. E ela não fazia a menor idéia do que eles estavam dizendo. Colocou as esperanças no saco novamente e esforçou-se para dar partida no seu cérebro. Não fazia sentido ficar decepcionada. Tinha de perceber que estava com o furo de reportagem do século nas suas mãos. O que fazer? Voltar para dentro de casa e pegar uma câmera de vídeo? Estava absolutamente confusa em relação à estratégia que deveria adotar. Mantenha—os falando, pensou ela. Resolva o resto depois.
—
Vocês estavam me monitorando?
—
Todos vocês. Tudo no seu planeta. TV. Rádio. Telecomunicações. Computadores. Circuitos de vídeo. Armazéns.
—
O quê?
—
Estacionamentos. Tudo. Monitoramos tudo. Tricia olhava fixamente para eles.
—
Isso deve ser muito chato, hein?
—
É.
—
Então por que...
—
Exceto...
—
Ahn? Exceto o quê?
—
Os programas de auditório. Gostamos dos programas de auditório. Um silêncio assustadoramente longo instalou-se enquanto Tricia olhava para os alienígenas e eles olhavam de volta.
—
Só tem uma coisinha que eu queria buscar lá dentro — disse Tricia, calmamente. — Melhor ainda. Será que vocês, ou um de vocês, gostariam de entrar comigo e dar uma olhada?
—
Pois não! — responderam todos eles, entusiasmados.
Os três ficaram desconfortavelmente parados na sala de estar, enquanto ela corria para lá e para cá, apanhando uma câmera de vídeo, uma câmera fotográfica, um gravador e qualquer outro aparelho de gravação que pudesse encontrar. Eles eram bem magros e, sob as condições de iluminação doméstica, meio verde-arroxeados.
—Vai ser rápido, rapazes — disse Tricia, enquanto vasculhava as gavetas atrás de fitas e filmes.
Os alienígenas estavam examinando as prateleiras onde ficavam os seus CDs e antigos LPs. Um deles cutucou discretamente os outros.
—
Olha só — disse ele. — Elvis.
Tricia estacou e tornou a olhar para eles.
—
Vocês curtem Elvis?
—
Claro — disseram eles.
—
Elvis Presley?
—
Isso mesmo.
Ela sacudiu a cabeça, atônita, enquanto tentava enfiar uma fita nova na câmera de vídeo.
—
Tem gente aqui no seu planeta — disse um dos visitantes, um pouco hesitante — que acha que Elvis foi seqüestrado por alienígenas.
—
O quê? — perguntou Tricia. — E isso é verdade?
—
É possível.
—
Vocês estão me dizendo que seqüestraram Elvis? — sussurrou Tricia. Estava tentando manter a calma para não fazer confusão com seu equipamento, mas aquilo era demais para ela.
—
Não. Nós, não — responderam os seus convidados. — Alienígenas. É
uma possibilidade deveras interessante. Costumamos conversar a respeito. Preciso gravar isso, resmungou Tricia para si mesma. Verificou se a câmera estava ligada e funcionando. Virou para eles, sem apontar para os olhos deles, para não assustá-los. Mas era experiente o bastante para filmá-los direitinho com a câmera na altura do quadril.
—
Está bem — disse ela. — Agora me contem com calma, bem devagar, quem são vocês. Começando por você — disse para o que estava mais à esquerda. —
Qual é o seu nome?
—
E u n
ão sei.
—
Você não sabe. —Não.
—
Sei — disse Tricia. — E vocês dois?
—
Também não sabemos.
—
Está bem. Vamos lá. Talvez possam me dizer de onde vêm? Balançaram a cabeça.
—
Vocês não sabem de onde vêm? Balançaram a cabeça novamente.
—
Sei — repetiu Tricia. — Mas o que vocês... hum...
Estava enrolando, mas, sendo uma profissional, conseguia manter a câmera imóvel enquanto enrolava.
—
Estamos em uma missão — disse um dos alienígenas.
—
Uma missão? Para fazer o quê?
—
Não sabemos.
Continuou mantendo a câmera imóvel.
—
Então, o que estão fazendo aqui na Terra?
—
Viemos buscá-la.
Imóvel, fixamente imóvel. Para todos os fins práticos, poderia ser um tripé. Perguntou-se se deveria estar usando um tripé, por sinal. Teve tempo para confabular consigo mesma por alguns segundos, pois ainda estava digerindo o que eles haviam acabado de dizer. Não, pensou ela, a câmera na mão lhe dava mais flexibilidade. Também pensou: socorro, o que vou fazer agora?
—
Por que — perguntou ela, calmamente — vocês vieram me buscar?
—
Porque perdemos nossas mentes.
—
Com licença — disse Tricia —, tenho que pegar um tripé. Pareceram satisfeitos por ficarem parados na sala, sem nada para fazer, enquanto Tricia apanhava rapidamente um tripé e apoiava a câmera sobre ele. O seu rosto estava completamente imóvel, mas ela não fazia a menor idéia do que estava acontecendo e do que pensar a respeito.
—
O.k. — disse ela, quando estava tudo pronto. — Por que...
—
Gostamos da sua entrevista com a astróloga.
—
Vocês viram?
—
Assistimos a tudo. Nos interessamos muito por astrologia. Gostamos bastante. É muito interessante. Nem tudo é interessante. Astrologia é interessante. O que os astros nos dizem, o que os astros prevêem. Informações assim são bastante úteis.
—
Mas...
Tricia não sabia nem por onde começar.
Desista, pensou ela. Não faz sentido tentar bolar nenhuma estratégia. Então, ela disse:
—
Mas eu não sei nada sobre astrologia.
—
Mas nós sabemos.
—
Vocês sabem?
—
Sim. Acompanhamos os nossos horóscopos. Avidamente. Consultamos todos os seus jornais e revistas, ardorosamente. Mas nosso líder diz que temos um problema.
—
Vocês têm um líder7.
—
Temos.
—
Qual o nome dele?
—
Não sabemos.
—
Qual o nome que ele se dá, caramba? Desculpem, vou precisar editar essa parte. Qual o nome que ele se dá?
—
Ele também não sabe.
—
Então como é que vocês sabem que ele é o líder?
—
Ele assumiu o poder. Disse que alguém tem que fazer alguma coisa por lá.
—
Ah! — disse Tricia, captando uma pista. — Onde é "lá"?
—
Rupert.
—
O quê?
—
Vocês chamam de Rupert. O décimo planeta do sol de vocês. Fixamos residência lá há vários anos. É muito frio e desinteressante. Mas é bom para monitorarmos vocês.
—
Por que estão nos monitorando?
—
É só o que sabemos fazer.
—
Está bem — disse Tricia. — Beleza. Qual é esse problema que seu líder diz que vocês têm?
—
Triangulação.
—
Como é que é?
—
A astrologia é uma ciência muito precisa. Sabemos disso.
—
Bem... — começou Tricia e deixou pra lá.
—
Mas é precisa para vocês aqui na Terra.
—
S...i...m... — Estava com a terrível impressão de estar captando vagamente o que eles queriam dizer.
—
Quando Vênus está em Capricórnio, por exemplo, isso acontece do ponto de vista da Terra. Como é que funciona se estivermos em Rupert? E se a Terra estiver entrando em Capricórnio? Fica complicado saber. Entre as inúmeras e significativas coisas que esquecemos está a trigonometria.
—
Deixa eu ver se entendi — disse Tricia. — Vocês querem que eu vá com vocês para... Rupert...
—
Sim.
—
Recalcular os seus horóscopos para poderem levar em conta as posições relativas da Terra e de Rupert?
—
Sim.
—
Vocês me garantem uma exclusiva?
—
Sim.
—
Então está fechado — disse Tricia, pensando que poderia, no mínimo, vender a sua matéria para o National Enquirer ou para alguma outra revista doida. Enquanto embarcava na nave que a levaria para os limites mais longínquos do sistema solar, a primeira coisa na qual bateu os olhos foi uma bancada com monitores de vídeo, nos quais passavam milhares de imagens. Um quarto alienígena estava sentado assistindo a tudo, mas parecia particularmente interessado em uma determinada tela que exibia uma imagem fixa. Era um replay da entrevista improvisada que Tricia acabara de conduzir com seus três colegas. Ele levantou os olhos quando a viu embarcar, apreensiva, na nave.
—
Boa noite, Srta. McMillan — disse ele. — Fez um bom trabalho com a câmera.
CAPÍTULO 6
Ford Prefect atingiu o solo rapidamente. O chão ficava uns sete centímetros mais longe do tubo de ventilação do que ele se lembrava, então calculou mal em que ponto iria cair, começou a correr antes do tempo, tropeçou desajeitadamente e torceu o tornozelo. Droga! Saiu correndo assim mesmo, mancando um pouco. Em todo o edifício, alarmes estavam disparando seu típico frenesi de excitação. Tentando se esconder, Ford agachou-se atrás dos típicos armários de almoxarifado, olhou à sua volta para se certificar de que estava bem escondido e começou a pescar dentro da mochila as coisas de que tipicamente precisava.
O seu tornozelo, atipicamente, estava doendo infernalmente.
O chão não só ficava uns sete centímetros mais distante do tubo de ventilação do que ele se lembrava como também ficava em um planeta diferente do que ele se lembrava, mas foram os tais sete centímetros que o deixaram intrigado. Os escritórios do Guia do Mochileiro das Galáxias eram freqüentemente realocados, sem aviso prévio, para outro planeta — por causa do clima local, da hostilidade local, das contas de luz ou dos impostos —, mas costumavam ser reconstruídos exatamente da mesma maneira, com uma precisão molecular. Para uma grande parte dos funcionários da empresa, o layout dos seus escritórios representava a única constante que eles conheciam em um universo pessoal severamente distorcido.
Havia, no entanto, algo de estranho.
Aquilo não era por si só surpreendente, pensou Ford, apanhando a sua toalha de arremesso peso-pena. Praticamente tudo na sua vida era, em menor ou maior escala, estranho. O problema é que aquilo era estranho de uma maneira um pouquinho diferente da que ele estava acostumado, o que era no mínimo esquisito. Não conseguiu focar na questão muito claramente.
Sacou a sua ferramenta de extração bitola 3.
Os alarmes estavam disparando do mesmo jeito que ele conhecia tão bem. Havia uma espécie de melodia neles que quase se podia cantarolar. Aquilo tudo era bastante familiar. O mundo do lado de fora era novo para Ford. Nunca estivera em Saquo-Pilia Hensha antes e gostara do que vira. Tinha uma atmosfera meio carnavalesca.
Apanhou da mochila um arco-e-flecha de brinquedo que havia comprado em um camelô.
Descobrira que o motivo para a atmosfera carnavalesca em Saquo-Pilia Hensha era a comemoração da Concepção de São Antwelm, celebrada anualmente pelos habitantes locais. São Antwelm havia sido, em vida, um rei magnífico e muito popular, que chegara a uma conclusão igualmente magnífica e popular. Havia concebido que, de maneira geral, todos queriam ser felizes, se divertir e aproveitar ao máximo a companhia uns dos outros. Na ocasião de sua morte, doara toda a sua fortuna para financiar um festival anual que servisse de lembrete de sua descoberta, com fartura de comidas deliciosas, muita dança e brincadeiras bobas como a Caça ao Wocket. A sua Concepção fora tão extraordinária que ele virou santo por causa dela. Mais do que isso: todas as pessoas que haviam sido canonizadas por terem feito coisas como serem apedrejadas até a morte de maneira absolutamente penosa ou viverem de cabeça para baixo em barris de esterco foram instantaneamente rebaixadas e passaram a ser vistas como figuras um tanto embaraçosas.
O familiar prédio em forma de H dos escritórios do Guia erguia—se acima dos arredores da cidade, e Ford Prefect o invadira, como sempre costumava fazer. Sempre entrava pelo sistema de ventilação e não pelo lobby principal, porque o lobby principal era patrulhado por robôs cuja tarefa era questionar os funcionários do Guia sobre os seus gastos reembolsáveis. Os gastos reembolsáveis de Ford eram notoriamente complexos e intrincados, e ele chegara à conclusão de que, em geral, os robôs do lobby não estavam suficientemente equipados para compreender os argumentos que ele gostaria de apresentar sobre seus gastos. Preferia, portanto, entrar por um caminho alternativo.
Isso significava disparar praticamente todos os alarmes do prédio, menos o do departamento de contabilidade, e era exatamente isso que Ford queria. Acocorou-se atrás do armário, umedeceu com a língua a ventosa de borracha e depois encaixou a flecha de brinquedo na corda do arco.
Aproximadamente trinta segundos depois, um robô de segurança do tamanho de um melão pequeno veio voando pelo corredor, a cerca de um metro de altura, varrendo o espaço à sua esquerda e à sua direita em busca de algo fora do comum. Com um timing impecável, Ford lançou a flecha na direção contrária à
trajetória da máquina. A flecha atravessou o corredor e grudou, tremelicante, na parede do outro lado. Enquanto voava, o brinquedo chamou a atenção dos sensores do robô, que se fixaram nele instantaneamente, fazendo com que o robô desse uma guinada de noventa graus para segui-lo, descobrir que diabos era e para onde estava indo. Aquilo concedeu um segundo precioso para Ford, durante o qual o robô voador estava olhando na direção contrária. Lançou sobre ele a sua toalha e o capturou. Devido às diversas protuberâncias sensoriais que o robô possuía, ele não podia movimentar-se dentro da toalha. Apenas se contorcia, para frente e para trás, sem conseguir se virar e ver quem o havia capturado.
Ford o puxou rapidamente para si e o escorou no chão. O pobre coitado estava começando a choramingar. Com um gesto rápido e experiente, Ford inseriu a sua ferramenta de extração bitola 3 por baixo da toalha e removeu o pequeno painel de plástico que havia no alto do robô, dando acesso aos seus circuitos lógicos. Bom, a lógica é uma coisa maravilhosa, mas possui, tal como os processos de evolução descobriram, algumas desvantagens.
Qualquer coisa que pense logicamente pode ser enganada por outra coisa que pense no mínimo tão logicamente quanto ela. A maneira mais fácil de enganar um robô
completamente lógico é alimentá-lo com a mesma seqüência de estímulo várias vezes, de forma que fique travado em um loop. Isso foi muito bem demonstrado pelos famosos experimentos do Sanduíche de Arenque, conduzidos milênios atrás pelo IMDLDCSO
(Instituto Maximegalon para Descobrir Lenta e Dolorosamente Coisas Surpreendentemente Óbvias).
Nesses experimentos, um robô era programado para acreditar que gostava de sanduíches de arenque. Na verdade, essa era a parte mais difícil da experiência. Uma vez programado para acreditar que gostava de sanduíches de arenque, um sanduíche de arenque era colocado diante do robô. E então o robô pensava consigo mesmo: Humm!
Sanduíche de arenque! Adoro sanduíches de arenque.
Então ele se inclinava e apanhava o sanduíche com a sua colher para sanduíches de arenque e se endireitava novamente. Infelizmente para o robô, ele era projetado de uma maneira que a ação de se endireitar fazia com que o sanduíche de arenque deslizasse da sua colher e caísse no chão à sua frente. E então o robô pensava consigo mesmo: Humm! Sanduíche de arenque!... etc. e repetia a mesma ação muitas vezes seguidas. A única coisa que impedia que o sanduíche de arenque ficasse de saco cheio daquela palhaçada toda e fosse procurar outras maneiras de passar o seu tempo era que o sanduíche de arenque, por não passar de um pedaço de peixe morto entre duas fatias de pão, estava um pouquinho menos ciente do que estava acontecendo do que o robô.
Os cientistas do Instituto descobriram então que a força motriz por trás de toda mudança, desenvolvimento e inovação na vida era a seguinte: sanduíches de arenque. Publicaram um artigo sobre isso, mas ele foi amplamente criticado por ser muito idiota. Os cientistas verificaram os seus cálculos e perceberam que, na verdade, haviam descoberto o "tédio", ou melhor, a função prática do tédio. Extremamente animados, foram em frente e se depararam com outras emoções, como "irritabilidade",
"depressão", "relutância", "nojo", etc. e tal. A outra grande descoberta foi feita quando os cientistas pararam de usar os sanduíches de arenque e, subitamente, toda uma nova gama de emoções se tornou acessível para os estudos, tais como "alívio", "alegria",
"vivacidade", "apetite", "satisfação" e, a mais importante de todas, o desejo de
"felicidade".
Essa foi a maior das descobertas.
Pilhas e pilhas de complexos códigos de computador responsáveis pelo comportamento dos robôs em todas as contingências possíveis podiam ser substituídas de forma bem simples. Tudo o que os robôs precisavam era da capacidade de se sentirem entediados ou felizes e de algumas condições que necessitavam satisfazer para trazer à tona aqueles estados. Eles próprios descobririam o resto.
O robô que Ford aprisionara debaixo da sua toalha não era, naquele momento, um robô feliz. Era feliz quando podia se movimentar. Era feliz quando podia ver outras coisas. Era especialmente feliz quando podia ver outras coisas se movimentando, fazendo coisas que não podiam fazer, porque ele então podia, com considerável prazer, delatá-las.
Ford ia resolver aquilo em breve.
Ajoelhou—se sobre o robô, prendendo—o entre os joelhos. A toalha continuava cobrindo todos os seus mecanismos sensoriais, mas Ford conseguira expor os circuitos lógicos. O robô estava emitindo uns zumbidos pavorosos e rabugentos, mas não conseguia se mover, apenas expressar a sua inquietude. Usando a ferramenta de extração, Ford retirou um pequeno chip do seu encaixe. Assim que se soltou, o robô
ficou quieto e estacou, como em estado de coma.
O chip que Ford havia removido era justamente o que continha as instruções para que as condições de felicidade necessárias ao robô fossem satisfeitas. Ele deveria se sentir feliz quando uma leve carga elétrica de um ponto no lado esquerdo do chip alcançasse outro ponto no lado direito. O chip determinava se a carga atingira o seu objetivo ou não.
Ford puxou um pequeno pedaço de arame que estava grudado na toalha. Enfiou uma das pontas na cavidade superior esquerda do encaixe do chip e a outra na cavidade direita inferior.
Aquilo era o bastante. Agora o robô ficaria sempre feliz, independentemente das circunstâncias.
Ford levantou—se depressa e puxou a toalha. O robô elevou—se extasiado no ar, avançando sinuosamente.
Virou-se e viu Ford.
—
Sr. Prefect! Estou tão feliz em vê-lo!
—
Eu também, amiguinho — respondeu Ford.
O robô prontamente comunicou à central de controle que estava tudo bem e que aquele era o melhor dos mundos; os alarmes se calaram e a vida voltou ao normal. Pelo menos, quase ao normal.
Havia algo de estranho com aquele lugar.
O robozinho estava gorgolejando de contentamento elétrico. Ford correu pelo corredor, deixando que a criatura o seguisse, dizendo como tudo era maravilhoso e como ele estava feliz em poder dizer aquilo.
Ford, contudo, não estava feliz.
Passou por rostos desconhecidos. Não pareciam os seus colegas. Eram arrumadinhos demais. Os seus olhos estavam muito mortos. Cada vez que ele achava que tinha reconhecido alguém de longe e corria para dizer oi, descobria que era uma outra pessoa, com um penteado muito mais decente e uma aparência muito mais confiante e decidida do que... bem, do que qualquer pessoa que Ford conhecia. Uma escada havia mudado de lugar, alguns centímetros para a esquerda. O teto era ligeiramente mais baixo. O lobby fora remodelado. Todas essas coisas não eram preocupantes por si sós, eram somente um pouco desconcertantes. O realmente preocupante era a decoração. Antes era chamativa e pomposa. Sofisticada — graças às excelentes vendas do Guia em toda a Galáxia civilizada e pós-civilizada —, mas um sofisticado divertido. Máquinas de videogames alucinados estavam espalhadas pelos corredores, pianos de cauda com pinturas malucas pendiam do teto, criaturas marítimas sinistras do planeta Viv emergiam de piscinas em átrios decorados com árvores, robôs
—garçons em camisas absurdas percorriam o ambiente procurando mãos nas quais poderiam depositar drinques borbulhantes. As pessoas costumavam ter gigantescos dragões de estimação em coleiras e pterospondes em gaiolas em seus escritórios. Todos sabiam como se divertir e, caso não soubessem, havia cursos nos quais podiam se inscrever para corrigir essa deficiência.
Não havia mais nada daquilo agora.
Alguém andara por lá fazendo um lamentável trabalho de decoração de bom gosto.
Ford virou-se abruptamente para uma pequena alcova, juntou as mãos em concha e puxou o robô. Abaixou-se e olhou fixamente para o cibernauta tagarela.
—
O que andou acontecendo por aqui? — perguntou ele.
—
Oh, só coisas maravilhosas, senhor, só as coisas mais maravilhosas possíveis. Posso me sentar no seu colo, por favor?
—
Não — respondeu Ford, empurrando-o. O robô ficou esfuziante em ser rechaçado daquela maneira e começou a se balançar, tagarelar, enlouquecer. Ford apanhou-o novamente e segurou-o firme em pleno ar, a alguns centímetros do seu rosto. O robô tentou permanecer onde fora colocado, mas não pôde deixar de tremelicar um pouco.
—
Mudaram algumas coisas, não é? — sussurrou Ford.
—
Ah, sim — guinchou o robozinho —, da melhor e mais fantástica maneira possível. Estou muito satisfeito.
—
Como é que era antes, então?
—
Um barato.
—
Mas você gostou das mudanças? — perguntou Ford.
—
Eu gosto de tudo — gemeu o robô. — Especialmente quando você grita assim comigo. Faz de novo, vai, por favor.
—
Me conta logo o que aconteceu!
—
Ai, obrigado, obrigado.
Ford suspirou.
—
Está bem, está bem — ofegou o robô. — O Guia está sob nova direção. É
tudo tão incrível que eu acho que vou derreter de alegria. A gerência anterior também era fabulosa, é claro, embora não saiba ao certo se eu achava isso na época.
—
Isso foi antes de você estar com um pedaço de arame enfiado na cabeça.
—
É verdade. É a mais pura verdade. É a mais maravilhosa, estupenda, frívola e arrebatadora verdade. Que observação mais correta, mais verdadeiramente indutora de êxtase!
—
O que aconteceu? — insistiu Ford. — Que nova gerência é essa? Quando é que eles assumiram? Eu... ah, deixa pra lá — acrescentou, quando o robô começou a se comportar vergonhosamente com uma alegria incontrolável e a se esfregar no seu joelho. — Vou descobrir sozinho.
Ford atirou—se contra a porta do escritório do editor-chefe. Agachando—se, enrolou o corpo como uma bola enquanto a porta abria e rolou rapidamente pelo chão até onde costumava ficar o carrinho com as bebidas mais potentes e caras da Galáxia. Agarrou-se nele e, usando-o como proteção, deslizou até a maior área livre do chão do escritório, lá onde ficava a valiosíssima e extremamente grosseira estátua de Leda e o Polvo, e escondeu-se atrás dela. Enquanto isso, o pequeno robô de segurança estava suicidamente satisfeito por receber os tiros no peito no lugar de Ford. Esse, pelo menos, era o plano — e um plano necessário. O editor-chefe, Stagyar-zil-Doggo, era um homem desequilibrado e perigoso, que tinha uma visão homicida a respeito de colaboradores que irrompiam em seu escritório sem apresentar páginas novinhas em folha, já revisadas. Na moldura da porta, ele tinha instalado um conjunto de armas guiadas a laser ligadas a mecanismos especiais de rastreamento para deter qualquer pessoa que estivesse apenas trazendo bons motivos para explicar por que não havia escrito nada. Desse modo, mantinha um alto nível de produtividade. Infelizmente, o carrinho de bebidas não estava no lugar.
Ford lançou-se em um movimento desesperado e brusco para o lado, depois deu um salto mortal para cima da estátua de Leda e o Polvo, que também não estava lá. Ele rolou e arremessou-se pelo escritório em um pânico cego, tropeçou, se contorceu, bateu na janela que, felizmente, fora projetada para suportar ataques de foguetes, ricocheteou e caiu em um salto doloroso e esbaforido atrás de um sofisticado sofá de couro cinza que não estava ali antes.
Alguns segundos depois, esgueirou-se devagarzinho detrás do sofá. Assim como não havia carrinho de bebidas, nem Leda e o Polvo, notou uma surpreendente ausência de tiros. Franziu a testa. Aquilo definitivamente estava errado.
—
Sr. Prefect, imagino — disse uma voz.
A voz veio de um sujeito com cara de bebê sentado atrás de uma mesa revestida com cerâmica e teca. Stagyar-zil-Doggo podia até ser uma grande pessoa, mas ninguém, por várias razões, diria que ele tinha cara de bebê. Aquele não era Stagyar-zilDoggo.
—
Suponho, a julgar pela maneira como entrou, que você não tem nenhum material novo para, ahn, o Guia, no momento — disse o sujeito com cara de bebê. Estava sentado, apoiando os cotovelos sobre a mesa e tocando as pontas dos dedos de um modo que, inexplicavelmente, não era considerado passível de pena de morte.
—
Estive ocupado — justificou Ford, sem muita convicção. Ficou de pé, meio atordoado, limpando a roupa. Então pensou: Por que, diabos, estava dizendo coisas sem muita convicção? Tinha que assumir o comando da situação. Tinha que descobrir quem era aquele sujeito e, de repente, pensou numa forma de fazer isso.
—
Quem é você? — perguntou ele.
—
Sou seu novo editor-chefe. Isto é, se decidirmos manter os seus serviços. O meu nome é Vann Harl. — Ele não estendeu a mão. Apenas completou: — O que você fez com esse robô da segurança?
O robozinho estava girando muito, muito devagar pelo teto e gemendo baixinho.
—
Fiz com que ele ficasse muito feliz — retrucou Ford. — É uma espécie de missão que eu tenho. Onde está Stagyar? Ou, mais importante ainda, onde está o carrinho de bebidas dele?
—
O Sr. Zil-Doggo não trabalha mais nesta organização. O carrinho de bebidas dele, imagino eu, deve estar ajudando-o a se consolar por isso.
—
Organização? — berrou Ford. — Organização? Mas que palavra idiota para um negócio como esse!
—
É exatamente essa a nossa impressão. Subestruturado, superorçado, subadministrado, superinebriado. E isso — disse Harl — era só o editor.
—
Ei, eu faço as piadas aqui — rosnou Ford.
—
Não — respondeu Harl. — Você faz a coluna dos restaurantes. Ele jogou um pedaço de plástico sobre a mesa. Ford não se mexeu.
—
Você o quê? — perguntou ele.
—
Não. Mim Harl. Você Prefect. Você faz coluna restaurantes. Eu editor. Eu sentar e mandar você fazer coluna dos restaurantes. Você entender?
—
Coluna dos restaurantes? — perguntou Ford, embasbacado demais para estar realmente raivoso.
—
Sente aí, Prefect — disse Harl. Ele rodopiou na sua cadeira de rodinhas, levantou-se e ficou parado, contemplando pela janela do vigésimo terceiro andar os pequenos pontinhos que aproveitavam o carnaval lá embaixo.
—
Está na hora de alavancar esta empresa, Prefect — disse ele. — Nós, da Corporação InfiniDim, estamos...
—
Vocês da quê?
—
Da Corporação InfiniDim. Nós compramos o Guia.
—
InfiniDim?
—
Gastamos milhões nesse nome, Prefect. Ou você começa a gostar ou pode ir arrumando as malas.
Ford deu de ombros. Não tinha nada para arrumar.
—
A Galáxia está mudando — disse Harl. — Precisamos acompanhar essa mudança. Seguir o mercado. O mercado está crescendo. Novas aspirações. Nova tecnologia. O futuro é...
—
Não venha me falar sobre o futuro — interrompeu Ford. — Conheço o futuro de trás pra frente. Passei metade da minha vida lá. É igual a qualquer outro lugar. Qualquer outra época. Enfim. A mesma droga de sempre, só que com carros mais velozes e um ar mais fedorento.
—
Esse é um futuro — retrucou Harl. — O seu futuro, se quiser aceitá-lo. Você precisa aprender a pensar multidimensionalmente. Existem futuros ilimitados estendendo-se em todas as direções a partir de agora — e de agora e de agora. Bilhões deles, bifurcando-se a cada instante! Cada posição possível de cada elétron possível expande-se em bilhões de probabilidades! Bilhões e bilhões de futuros brilhantes, incandescentes! Você sabe o que isso significa??
—
Você está babando no queixo.
—
Bilhões e bilhões de mercados!
—
Entendi — disse Ford. — Para que você possa vender bilhões e bilhões de Guias.
—
Não — respondeu Harl, procurando seu lenço, inutilmente.
—
Desculpe — disse ele —, mas isso me deixa muito empolgado. — Ford ofereceu a sua toalha para ele.
—
O motivo pelo qual não vendemos bilhões e bilhões de Guias —
continuou Harl, após limpar a boca — é o custo. O que fazemos é vender um único Guia bilhões e bilhões de vezes. Exploramos a natureza multidimensional do Universo para cortar os nossos custos industriais. E não vendemos para mochileiros duros. Que idéia mais idiota era essa! Encontrar um setor do mercado que, mais ou menos por definição, não tem um centavo no bolso e tentar vender justo para ele. Não. A InfiniDim vende para os viajantes de negócios endinheirados e para as suas esposas durante as férias em um bilhão de bilhões de futuros diferentes. Esse é o empreendimento comercial mais radical, dinâmico e ousado já visto em toda a infinitude multidimensional do espaço-tempo-probabilidade.
—
E você quer que eu seja crítico de restaurantes — concluiu Ford.
—
A sua contribuição seria valiosa.
—
Atacar! — gritou Ford. Gritou para a sua toalha. A toalha pulou das mãos de Harl.
Não porque a toalha tivesse algum tipo de vontade própria, e sim porque Harl estava morrendo de medo de que ela tivesse. A outra coisa que o deixou apavorado foi ver Ford Prefect partindo para cima dele por sobre a mesa com as mãos fechadas em punho. Na verdade, Ford estava apenas tentando apanhar o cartão de crédito, mas ninguém ocupa um cargo como o que Harl ocupava no tipo de organização da qual Harl fazia parte sem desenvolver uma saudável visão paranóica da vida. O editor-chefe adotou a sensata precaução de jogar-se para trás, batendo a cabeça com força contra o vidro à prova de foguetes e depois caiu em um estado de inconsciência recheado de sonhos preocupantes e altamente pessoais.
Ford ficou parado na mesa, surpreso em ver como tirara aquilo de letra. Olhou de relance para o pedaço de plástico que estava segurando — era um cartão de crédito Jant-O-Card com o seu nome já gravado nele, válido durante os próximos dois anos e provavelmente a coisa mais empolgante que ele já vira em sua vida. Depois, subiu na mesa para dar uma olhada em Harl.
Estava respirando com razoável facilidade. Ford percebeu que ele poderia respirar com ainda mais facilidade sem o peso da carteira sobre o peito, então removeua do bolso do paletó de Harl e deu uma conferida no conteúdo. Uma boa quantia de dinheiro. Alguns vales. Cartão de sócio do clube de ultragolfe. Cartões de sócio de outros clubes. Fotos da família de alguém — presumivelmente a de Harl, mas era difícil ter certeza naqueles dias. Executivos ocupados raramente tinham tempo para esposa e família em tempo integral e preferiam alugá-los só para os finais de semana. Ahá!
Mal podia acreditar no que tinha acabado de encontrar.
Tirou devagarzinho da carteira um simples e insanamente empolgante pedacinho de plástico que estava escondido no meio de um bando de recibos. Não era insanamente empolgante de se ver. Para falar a verdade, era até meio sem graça. Era menor e um pouco mais grosso do que um cartão de crédito e semitransparente. Se você o colocasse contra a luz, podia ver várias informações e imagens holograficamente criptografadas enterradas alguns pseudomilímetros de profundidade sob a superfície.
Era um Ident-I-Fácil, uma coisa muito tola e inadequada para Harl carregar na carteira, ainda que fosse perfeitamente compreensível que a carregasse. Existiam tantas situações nas quais solicitavam que a pessoa fornecesse uma prova absoluta de sua identidade que a vida poderia facilmente se tornar bastante cansativa só por causa disso
— sem falar nos problemas existenciais mais profundos de tentar funcionar como uma consciência coerente em um universo físico epistemologicamente ambíguo. Pensem nos caixas—eletrônicos, por exemplo. Filas de pessoas esperando para terem suas digitais analisadas, retinas escaneadas, pedaços da pele removidos para serem submetidos a uma análise genética imediata (ou quase imediata — uns bons seis ou sete segundos, na entediante verdade) e depois ainda ter que responder a perguntas capciosas sobre membros da família dos quais mal se lembram e sobre as cores prediletas de toalha de mesa que haviam cadastrado... tudo isso só para sacar um dinheirinho para o final de semana. Se você estiver tentando um empréstimo para um carro a jato, para assinar um tratado de mísseis ou pagar a conta do restaurante, sua paciência seria testada até os limites.
Por isso o Ident—I—Fácil. Ele continha todas as informações sobre a pessoa, o seu corpo e a sua vida em um único cartão genérico, aceito em qualquer máquina, para ser levado na carteira, e representava, portanto, o maior triunfo tecnológico sobre si mesmo e sobre o bom senso.
Ford o colocou em seu bolso. Uma idéia fantástica acabara de lhe ocorrer. Tentou imaginar durante quanto tempo Harl ficaria inconsciente.
—
Ei! — gritou ele para o pequeno robô do tamanho de um melão, que continuava choramingando de euforia no teto. — Você quer continuar feliz?
O robô respondeu alegremente que sim.
—
Então vem comigo e faça exatamente o que eu mandar.
O robô respondeu que estava felicíssimo no teto, muito obrigado. Jamais havia percebido quanto deleite absoluto podia ser extraído de um bom teto e queria explorar os seus sentimentos sobre tetos mais profundamente.
—
Se você ficar aí — disse Ford —, vai acabar sendo recapturado e eles vão trocar o seu chip condicional. Quer continuar feliz? Melhor vir agora. O robô exalou um longo e sentido suspiro de tristeza apaixonada e desceu do teto, relutante.
—
Escuta — disse Ford —, você consegue manter o resto do sistema de segurança feliz por alguns minutos?
—
Um dos prazeres da verdadeira felicidade — gorjeou o robô — é poder compartilhá-la. Eu transbordo, eu espumo, eu inundo de...
—
Está bem — interrompeu Ford. — Só espalhe um pouquinho de felicidade pela rede de segurança. Não transmita nenhuma informação. Faça apenas com que ela se sinta tão feliz que nem se lembre de perguntar alguma coisa. Ford apanhou sua toalha e correu animado até a porta. A vida andava um pouco chata nos últimos tempos. Mas tudo indicava que ia se tornar bastante animada dali em diante.
CAPÍTULO 7
Arthur Dent já estivera em alguns buracos sinistros em sua vida, mas jamais havia visto um espaçoporto com uma placa dizendo: "Mesmo viajar de má vontade é
melhor do que chegar aqui". No hall de desembarque, para acolher os visitantes, havia uma foto do presidente de EAgora sorrindo. Era a única foto dele que conseguiram encontrar e fora tirada um pouco depois de ele ter se matado com um tiro na cabeça. Embora a tivessem retocado o máximo possível, o sorriso era um tanto quanto pálido. A parte lateral da cabeça havia sido desenhada com lápis-cera. Não era possível substituir a foto porque não era possível substituir o presidente. As pessoas naquele planeta tinham uma única ambição: cair fora.
Arthur hospedou-se em um pequeno motel nos arredores da cidade, sentou-se desanimado na cama, que estava úmida, e deu uma olhada no folheto de informações, que também estava úmido. Estava escrito que o planeta EAgora fora assim batizado devido às primeiras palavras dos seus desbravadores, que lá chegaram após um árduo esforço de atravessar anos-luz de espaço para alcançar os confins inexplorados da Galáxia. A cidade principal foi chamada de AhTá. Não havia outras cidades dignas de menção. O povoamento de EAgora não fora exatamente bem-sucedido e o tipo de gente que realmente queria morar lá não era o tipo de gente com o qual você gostaria de conviver.
O folheto mencionava atividades comerciais. A maior atividade comercial realizada era a de peles dos porcos do pântano eagorianos, mas não era muito lucrativa porque ninguém em sã consciência ia querer comprar uma pele de porco do pântano eagoriano. O comércio só se sustentava aos trancos e barrancos porque sempre há um número significativo de pessoas na Galáxia que não estão em sã consciência. Enquanto estava na nave, Arthur sentira—se bastante
desconfortável olhando à sua volta e examinando os outros ocupantes do pequeno compartimento de passageiros.
O folheto contava um pouco da história do planeta. O sujeito que escrevera a coisa obviamente começara tentando melhorar um pouco as aparências, ressaltando que não era frio e úmido o tempo todo, porém, como não encontrou nada mais de positivo para acrescentar, o tom do texto descambou rapidamente para uma ironia feroz. Falava sobre os primeiros anos do povoamento. Dizia que as atividades principais praticadas pelos eagorianos eram caçar, esfolar e comer os porcos do pântano eagorianos, que constituíam a única forma de vida animal existente em EAgora, uma vez que todas as outras já haviam morrido de desespero há muito tempo. Os porcos do pântano eram criaturinhas pequenas e ferozes, e a frágil margem pela qual escapavam de ser completamente incomestíveis era a margem que permitia à vida subsistir no planeta. Então quais eram as recompensas, ainda que mínimas, que faziam com que a vida em EAgora valesse a pena? Bom, não havia nenhuma. Nem umazinha. Até mesmo elaborar roupas protetoras feitas de pele de porco do pântano era um exercício de frustração e futilidade, uma vez que as peles eram incrivelmente finas e permeáveis. Isso causou uma série de conjecturas intrigadas entre os desbravadores do planeta. Qual era então o segredo dos porcos do pântano para se manterem aquecidos? Se alguém tivesse aprendido a língua que os porcos usavam para se comunicar, teria descoberto que não havia nenhum mistério. Os porcos do pântano sentiam frio e ficavam encharcados assim como todo o resto dos habitantes do planeta. Ninguém nunca teve a menor intenção de aprender a língua dos porcos do pântano pelo simples motivo de que estas criaturas se comunicavam mordendo umas às outras na coxa, com força. Sendo a vida em EAgora o que era, o máximo que um porco do pântano poderia ter a dizer sobre ela poderia ser facilmente traduzido dessa forma.
Arthur folheou o informativo até encontrar o que estava procurando. Lá no fim havia alguns mapas do planeta. Eram esboços pouco precisos, porque possivelmente não interessariam a ninguém, mas serviram para que encontrasse o que estava procurando.
Não reconheceu a coisa de cara porque os mapas estavam de cabeça para baixo e, portanto, pareciam absolutamente estranhos. É claro que para cima e para baixo, norte e sul são designações completamente arbitrárias, mas estamos acostumados a ver as coisas da maneira que estamos acostumados a vê-las e Arthur precisou virar os mapas de cabeça para cima para compreendê-los.
Havia uma enorme massa de terra no canto superior esquerdo da página que se afunilava subitamente e tornava a inchar no formato de uma vírgula gigante. No canto superior direito havia um apanhado de formas gigantes familiarmente unidas. Os contornos não eram exatamente os mesmos, e Arthur não sabia se isso era porque o mapa havia sido malfeito, se o nível do mar era mais alto ou se, bem, as coisas eram simplesmente diferentes naquele lugar. Mas a evidência era indiscutível. Aquilo era definitivamente a Terra.
Ou melhor, definitivamente não era.
Apenas parecia bastante com a Terra e ocupava as mesmas coordenadas no espaço-tempo. Quais coordenadas ocupava em probabilidade, ninguém saberia dizer. Ele suspirou.
Aquilo, percebeu ele, era o mais próximo de casa que ele jamais conseguiria chegar. O que significava que estava mais distante de casa do que poderia sonhar. Desanimado, fechou o folheto e se perguntou, aterrado, o que faria a seguir. Permitiu-se uma risada contida diante do que acabara de pensar. Olhou para o seu antigo relógio e o balançou um pouco para fazê-lo funcionar. Levara, segundo a sua própria medida de tempo, um penoso ano de viagem para chegar onde estava. Um ano desde o acidente no hiperespaço no qual Fenchurch sumira completamente. Uma hora ela estava lá, sentada ao lado dele no Slumpjet; na outra, a nave fez um salto hiperespacial totalmente normal e, quando ele olhou para o lado, ela não estava mais lá. O assento sequer estava quente. O nome dela nem constava na lista de passageiros. A companhia espacial havia ficado desconfiada dele quando foi reclamar. Milhares de coisas estranhas aconteciam em viagens espaciais e várias rendiam um bom dinheiro para os advogados. Mas, quando perguntaram a ele de qual Setor Galáctico ele e Fenchurch vinham e ele respondeu ZZ9 Plural Z Alpha, eles relaxaram completamente de uma maneira que Arthur não sabia se gostava. Chegaram até a rir um pouco — de forma solidária, é claro. Apontaram uma cláusula no contrato da passagem que informava que entidades cujas vidas úteis eram oriundas de qualquer uma das Zonas Plurais eram aconselhadas a não viajar no hiperespaço e que, caso o fizessem, seria por sua conta e risco. Todo mundo, afirmaram eles, sabia disso. Sufocaram o riso e balançaram a cabeça.
Ao sair do escritório da companhia, percebeu que estava tremendo um pouco. Não só havia perdido Fenchurch do modo mais completo e absoluto possível como tinha a sensação de que, quanto mais tempo passava na Galáxia, maior era o número de coisas que não tinha condições de compreender.
Enquanto estava perdido nessas memórias adormecidas, alguém bateu na porta do seu quarto e ela se abriu imediatamente. Um sujeito gordo e desgrenhado entrou carregando uma única e pequena mala.
Ele só conseguiu dizer "Onde devo colocar..." antes de uma pancada violenta fazer com que ele caísse abruptamente contra a porta, tentando se esquivar de uma criatura sarnenta que surgira no meio da escuridão, saltara rosnando sobre ele e fincara os seus dentes na sua coxa, ignorando as grossas camadas de couro que cobriam suas pernas. Houve uma rápida e pavorosa confusão, entremeada de palavras confusas e safanões. O homem gritava freneticamente, apontando para alguma coisa. Arthur apanhou um bastão pesado que ficava ao lado da porta, expressamente para aquele propósito, e atacou o porco do pântano com ele.
O porco do pântano soltou o homem rapidamente e recuou, mancando, confuso e desesperado. Voltou—se aflito para o canto do quarto, com o rabo enfiado entre as pernas, e lá ficou, apavorado, encarando Arthur nervosamente e entortando a cabeça de maneira estranha e repetida para um lado. A sua mandíbula parecia estar deslocada. Ele choramingou um pouco e arrastou o rabo molhado pelo chão. Parado na porta, o gordo, com a mala de Arthur na mão, estava sentado, xingando e tentando estancar o sangue da sua coxa. As suas roupas já estavam encharcadas por causa da chuva. Arthur olhou para o porco do pântano sem saber o que fazer. O porco retribuiu com um olhar igualmente questionador. Tentou aproximar-se, pesaroso. Movimentou a mandíbula dolorosamente. Saltou de repente tentando pegar a coxa de Arthur, mas a sua mandíbula deslocada estava fraca demais para abocanhá-la e ele caiu, gemendo tristemente, no chão. O sujeito gordo ficou de pé, apanhou o bastão e bateu na cabeça do porco até seus miolos virarem uma massa grudenta sobre o carpete fininho. Depois, ficou parado, com a respiração arquejante, como se desafiasse o animal a mexer-se uma última vez.
Um dos olhos do bicho estava inteiro, olhando de forma condenatória para Arthur no meio das ruínas esmagadas do seu cérebro.
—
O que acha que ele estava tentando dizer? — perguntou Arthur, em voz baixa.
—
Ah, nada demais — respondeu o homem. — Estava só tentando ser simpático. E essa é a nossa maneira de retribuir a simpatia deles — acrescentou ele, agarrando o bastão.
—
Qual o horário do próximo vôo? — perguntou Arthur.
—
Pensei que você tivesse acabado de chegar — disse o homem.
—
Pois é — respondeu Arthur. — Era só uma visitinha rápida. Só queria ver se era esse o lugar que eu estava procurando ou não. Lamento.
—
Quer dizer que está no planeta errado? — perguntou o homem, lúgubre.
— É impressionante a quantidade de pessoas que diz a mesma coisa. Especialmente as que moram aqui. — Olhou para os restos do porco do pântano com um arrependimento profundo, ancestral.
—
Não, não é isso — corrigiu Arthur —, estou no planeta certo, sim.
—
Ele apanhou o folheto encharcado que estava sobre a cama e enfiou no bolso. — Está tudo certo, obrigado. Eu fico com isso aqui —disse ele, apanhando a sua mala das mãos do sujeito. Dirigiu-se até a porta e contemplou a noite, gelada e úmida. _ O planeta está certo — disse ele novamente. — Planeta certo, universo errado.
Um pássaro bailou solitário no céu enquanto Arthur caminhava de volta para o espaçoporto.
CAPÍTULO 8
Ford tinha o seu próprio código de ética. Não era lá grande coisa, mas era dele e ele o respeitava, ou quase isso. Uma das regras que criara era jamais pagar pelos seus drinques. Não tinha certeza se isso contava como ética, mas é preciso seguir com o que se tem. Também era firme e absolutamente contra toda e qualquer forma de crueldade contra qualquer animal, exceto os gansos. Além disso, jamais roubava seus empregadores.
Bom, não roubar de verdade.
Se o supervisor de contabilidade não tivesse um ataque nem acionasse o alerta de segurança do tipo tranquem-todas-as-saídas quando Ford apresentasse os seus gastos, era porque ele não estava fazendo o seu trabalho direito. Mas roubar para valer era outra coisa. Era morder a mão que te alimenta. Sugá-la com força, ou até mesmo mordiscá-la de maneira afetuosa, tudo bem, mas, mordê-la, jamais. Muito menos quando a mão em questão era o Guia. O Guia era algo sagrado, especial.
Mas aquilo, pensou Ford enquanto se agachava e percorria um caminho sinuoso pelo prédio, estava prestes a mudar. E a culpa era exclusivamente deles. Bastava olhar para aquilo tudo. Fileiras de cubículos de escritórios cinzentos e estações de trabalho para executivos. O lugar inteiro ressoava o zumbido monótono de memorandos e minutas de reuniões atravessando suas redes eletrônicas. Lá fora na rua as pessoas estavam brincando de Caça ao Wocket, por Zarquon, mas ali, em pleno coração dos escritórios do Guia, ninguém estava sequer batendo uma bola irresponsavelmente pelos corredores ou usando trajes de praia inadequadamente coloridos.
"Corporação InfiniDim", resmungou Ford entre dentes para si mesmo enquanto percorria rapidamente um corredor após o outro. Portas se abriam magicamente para ele, sem perguntas. Elevadores o levavam alegremente a lugares que não deviam. Ford estava tentando seguir o caminho mais emaranhado e complicado possível, dirigindo—
se para os andares inferiores do prédio. O seu robô feliz resolvia tudo, espalhando ondas de contentamento aquiescente por todos os circuitos de segurança que encontrava. Ford concluiu que aquele robô precisava de um nome e decidiu chamá-lo de Emily Saunders, em homenagem a uma garota de quem guardava boas lembranças. Depois percebeu que Emily Saunders era um nome absurdo para um robô de segurança e decidiu chamá-lo de Colin, em homenagem ao cachorro de Emily. Estava penetrando cada vez mais fundo nas entranhas do prédio, invadindo áreas em que jamais entrara, áreas de segurança máxima. Estava começando a atrair olhares intrigados dos agentes pelos quais passava. Naquele nível de segurança, os agentes não eram mais considerados pessoas. Provavelmente estavam executando tarefas que somente agentes executavam. Quando voltavam para suas famílias, no final do dia, transformavam-se em pessoas novamente e, quando seus filhos pequenos os contemplavam com os olhinhos doces e brilhantes e diziam "Papai, o que você fez no trabalho hoje?", limitavam-se a responder "Executei minhas tarefas de agente", e a coisa ficava por isso mesmo.
A verdade nua e crua é que armações e esquemas de todos os tipos rolavam por trás da fachada alegrinha e otimista que o Guia gostava de exibir — ou costumava gostar de exibir antes daquela corja da Corporação InfiniDim aparecer e começar a transformar o negócio todo em uma grande armação. Havia de tudo em termos de evasão de impostos, tramóias, subornos e negócios obscuros sustentando aquele edifício esplendoroso e lá embaixo, nos andares de alta segurança de pesquisa e processamento de dados do prédio, era onde tudo acontecia.
De tempos em tempos, o Guia transferia seus negócios — na verdade, seu prédio inteiro — para um mundo novo. Tudo era festa e alegria durante um tempo, enquanto firmava suas raízes na cultura e economia locais, oferecia oportunidades de emprego e gerava uma sensação de glamour e aventura, mas, no final das contas, não exatamente o lucro que a população local esperava.
Quando o Guia se mudava, levando o edifício consigo, partia quase como um ladrão no meio da noite. Para falar a verdade, partia exatamente como um ladrão no meio da noite. Normalmente saía de madrugada e, no dia seguinte, inevitavelmente várias coisas estavam faltando. Culturas e economias inteiras eram arruinadas após a sua passagem, muitas vezes em uma semana, deixando planetas outrora prósperos desolados e em estado de choque, mas ainda assim com a impressão de terem participado de uma grandiosa aventura.
Os agentes que olhavam intrigados para Ford enquanto ele avançava pelas áreas mais sensíveis do prédio sentiam-se um pouco mais tranqüilos com a presença de Colin, que estava voando ao lado de Ford, zumbindo de contentamento e facilitando seu percurso.
Alarmes começaram a disparar em outras partes do prédio. Talvez já tivessem descoberto Vann Harl, o que poderia ser um problema. Ford estava esperando poder colocar o Ident—I—Fácil de volta em seu bolso antes que o homem voltasse a si. Bom, aquilo era um problema a ser resolvido mais tarde e, no momento, Ford não fazia a menor idéia de como iria resolvê-lo. Por hora, não ia se preocupar. Aonde quer que fosse com o pequeno Colin, sentia-se envolto por um casulo de doçura e luz e, o mais importante, encontrava elevadores prestativos e obedientes e portas definitivamente educadas.
Ford começou a assoviar, o que provavelmente foi seu erro. Ninguém gosta de gente que assovia, muito menos a divindade que traça os nossos destinos. A porta seguinte não abria de jeito nenhum.
O que era uma pena, porque era justamente a que Ford estava procurando. Lá
estava ela, cinzenta e resolutamente fechada, com um aviso que dizia:
ENTRADA PROIBIDA
ATÉ MESMO PARA OS FUNCIONÁRIOS AUTORIZADOS.
VOCÊ ESTÁ PERDENDO SEU TEMPO AQUI.
VÁ EMBORA.
Colin comentou que as portas estavam ficando cada vez mais sinistras lá
embaixo, nos confins do prédio.
Estavam uns dez andares abaixo do solo agora. O ar era refrigerado e o revestimento cinza elegante que cobria as paredes dera lugar a paredes de um cinza brutal recobertas por chapas de alumínio. A euforia exuberante de Colin transformou-se em uma espécie de animação enfática. Ele disse que estava começando a ficar cansado. Estava gastando toda a sua energia tentando provocar um mínimo de boa vontade naquelas portas lá de baixo. Ford chutou a porta. Ela se abriu.
— Uma mistura de dor e prazer — murmurou ele. — Sempre funciona. Entrou no recinto, com Colin voando atrás dele. Mesmo com um arame enfiado no seu eletrodo de prazer, a sua felicidade era agora nervosa. Movia-se levemente de um lado para o outro.
O cômodo era pequeno, cinza e zumbia.
Era a central nervosa de todo o Guia.
Os terminais de computador dispostos ao longo das paredes cinzentas monitoravam cada aspecto das operações do Guia. No canto esquerdo do cômodo, os relatórios de pesquisadores de campo em toda a Galáxia eram recolhidos pela Subeta Net e encaminhados diretamente para a rede de escritórios dos editores assistentes, onde todos os trechos interessantes eram cortados pelas secretárias porque os editores assistentes estavam no almoço. O que sobrasse do original era enviado para o outro lado do prédio — a outra perna do H —, onde ficava o departamento jurídico. O jurídico se encarregava de cortar qualquer sobra do original que ainda estivesse remotamente decente e jogava tudo de volta para os escritórios dos editores executivos, que também estavam no almoço. Então as secretárias dos editores liam o material, achavam tudo uma grande baboseira e cortavam a maior parte do que havia sobrado. Quando algum dos editores finalmente voltava cambaleante do almoço, exclamava:
— Que porcaria medíocre é essa que o X (sendo X o nome do pesquisador de campo em questão) mandou lá do outro lado da Galáxia? De que adianta termos alguém passando três períodos orbitais inteiros nas malditas Zonas Cerebrais de Gagrakacka, com tudo o que está acontecendo por lá, se o melhor que ele pode fazer é mandar esse lixo anêmico pra cá? Corte a verba dele!
—
E o que vamos fazer com o texto? — a secretária perguntaria.
—
Ah, joga na rede. Temos que publicar alguma coisa mesmo.
Estou com dor de cabeça. Vou para casa.
Então a cópia editada ia para uma última sessão de cortes no departamento jurídico e depois era devolvida para o quarto onde estava Ford e, dali, transmitida por toda a Subeta Net, pronta para download imediato em qualquer ponto da Galáxia. Tudo isso era realizado por um equipamento monitorado e controlado pelos terminais que ficavam no canto direito do recinto.
Nesse ínterim, a ordem de cortar as despesas do pesquisador era retransmitida para o terminal de computador instalado no canto direito, e era para este terminal que Ford Prefect prontamente se dirigia.
[Se você está lendo isso no planeta Terra, então:
a)
Boa sorte. Existe uma quantidade incrível de coisas que você não conhece mesmo, mas você não está sozinho nessa. Só que, no seu caso, as conseqüências de não conhecer essas coisas são particularmente terríveis, mas, olha, não liga não, é assim que a vaca vai pro brejo e afunda.
b)
Não pense que sabe o que é um terminal de computadores. Um terminal de computador não é uma televisão velha e pesadona com uma máquina de escrever na frente. É uma interface onde mente e corpo podem se conectar com o universo e mover pedaços dele por aí.]
Ford correu até o terminal, sentou-se diante dele e mergulhou rapidamente no universo da máquina.
Não era o universo normal que ele conhecia. Era um universo de mundos densamente encobertos, de topografias selvagens, de altíssimos cumes de montanhas, ravinas de perder o fôlego, de luas se despedaçando em cavalos marinhos, de agravantes fissuras articuladas, oceanos silenciosamente pulsantes e insondáveis fundas arqueantes arremessadas.
Ficou imóvel, tentando se situar. Controlou a respiração, fechou os olhos e olhou novamente.
Então era ali que os contadores passavam o seu tempo. Eles certamente escondiam bem o jogo. Olhou em volta cuidadosamente, tentando evitar que aquilo o engolfasse e o deixasse estupefato.
Não sabia como se virar naquele universo. Sequer conhecia as leis físicas que determinavam suas extensões dimensionais e comportamentais, mas o seu instinto lhe dizia para procurar a coisa mais incrível que pudesse detectar e ir atrás dela. Lá longe, a uma distância indistinguível — seria um quilômetro, um milhão ou um cisco em seu olho? —, estava um cume estonteante que formava um arco no céu, subia, subia e se desdobrava em aigrettes florescentes, aglomerados e arquimandritas. Rolou saltejante em direção à montanha e finalmente a alcançou num inexplicavelmente longo incoisésimo de tempo.
Agarrou-se nela, esticando os braços e segurando com firmeza a superfície retorcida e corroída. Quando teve certeza de que estava seguro, cometeu o terrível erro de olhar para baixo.
Enquanto esteve rolando e saltejando, a vastidão abaixo dele não tinha sido uma grande preocupação, mas, agora que se via agarrado na montanha, sentiu o seu coração se encolher e o seu cérebro dar um nó. Seus dedos estavam esbranquiçados de dor e tensão. Seus dentes rangiam e batiam de maneira incontrolável. Seus olhos voltaram-se para dentro carregados pelas ondas revoltas da náusea. Com uma tremenda força de vontade e fé, ele simplesmente abriu a mão e empurrou.
Sentiu-se flutuando. À deriva. E então, contra-intuitivamente, indo para cima. Cada vez mais para cima.
Relaxou os ombros, deixou cair os braços, olhou para o alto e se deixou levar, sem resistência, cada vez mais alto.
Pouco depois, na medida em que tais termos possuíssem qualquer significado naquele universo virtual, surgiu um parapeito à sua frente no qual poderia se segurar e subir.
Ergueu-se, segurou, escalou.
Ofegava um pouco. Aquilo tudo era bastante estressante.
Agarrou-se firmemente ao parapeito enquanto se sentava. Não sabia ao certo se aquilo era para impedir que ele caísse ou subisse mais ainda, porém, de qualquer forma, precisava se agarrar em algum lugar enquanto inspecionava o mundo para o qual fora transportado.
A altura vertiginosa o deixava tonto e fazia com que seu cérebro revirasse dentro de si mesmo, até que se viu de olhos fechados, choramingando e abraçando a terrível parede de rocha íngreme.
Aos poucos foi conseguindo controlar a respiração. Repetiu para si mesmo diversas vezes que aquilo tudo não passava de uma representação gráfica de um mundo. Um universo virtual. Uma realidade simulada. Podia sair dela a hora que quisesse, num estalar de dedos.
Saiu dela num estalar de dedos.
Estava sentado em uma cadeira de escritório giratória, de couro artificial azul estofado com espuma, diante de um terminal de computador.
Relaxou.
Estava agarrado em um cume impossivelmente alto, empoleirado em um parapeito estreito, arriscando-se a uma queda de uma altura estonteante. E não era só o fato de a paisagem estar tão abaixo dos seus pés —ele ficaria agradecido se ela parasse de ondular e oscilar.
Precisava tomar pé de alguma coisa. Não no muro de pedra, que era uma ilusão. Precisava tomar pé daquela situação, ser capaz de visualizar o mundo físico em que estava e, ao mesmo tempo, escapar dele emocionalmente.
Ele se crispou por dentro e então, assim como abandonara a rocha em si, abandonou a idéia da rocha e se permitiu ficar sentado lá, lúcido e livre. Olhou para o mundo. Estava respirando normalmente. Estava calmo. Estava novamente no controle. Estava dentro de um modelo topológico quadridimensional dos sistemas financeiros do Guia, e alguém, ou algo, iria querer saber o motivo em breve. Já estavam vindo.
Avançando furiosamente pelo espaço virtual na direção de Ford surgiu um bando de criaturas mal—encaradas, com um olhar feroz, cabeças pontudas e bigodinhos bem aparados, com perguntas veementes sobre quem ele era, o que estava fazendo ali, qual a sua autorização, qual a autorização do agente que o autorizara, qual a medida interna da sua coxa e por aí vai. Feixes de laser varriam seu corpo como se ele fosse um pacote de biscoitos passando no caixa em um supermercado. As armas a laser de grosso calibre estavam, por enquanto, recolhidas. O fato de tudo aquilo estar acontecendo em um espaço virtual não fazia a menor diferença. Ser virtualmente morto por um laser virtual no espaço virtual dava no mesmo, porque você está tão morto quanto pensa que está.
Os feixes de leitura a laser estavam ficando bastante agitados enquanto piscavam sobre as impressões digitais, a retina e o padrão folicular do ponto onde o cabelo de Ford começava a escassear. Não estavam gostando nada do que descobriam. Disparavam perguntas altamente pessoais e insolentes com as vozes cada vez mais esganiçadas. Um pequeno raspador cirúrgico de aço estava se aproximando da base de sua nuca quando Ford, prendendo a respiração e rezando ligeiramente, sacou o Ident—I
—Fácil de Vann Harl do bolso e mostrou—o para as criaturas.
Na mesma hora, todos os lasers direcionaram-se para o pequeno cartão e começaram a fazer uma análise completa, de frente para trás, de trás para a frente, examinando e estudando cada molécula.
Então, do mesmo modo abrupto em que começaram, terminaram.
O bando de pequenos inspetores virtuais ficou subitamente atencioso.
—
Prazer em vê-lo, Sr. Harl — disseram em um uníssono adulador.
— Podemos fazer alguma coisa pelo senhor?
Ford abriu um sorriso lento e malicioso.
—
Pensando bem — disse ele —, acho que podem, sim.
Cinco minutos depois estava fora daquele lugar.
Trinta segundos para fazer o serviço e três minutos e meio para apagar seus rastros. Podia ter feito praticamente qualquer coisa que quisesse na estrutura virtual. Podia ter transferido a posse da organização inteira para o seu nome, mas duvidava muito de que algo assim passasse despercebido. De qualquer forma, não estava interessado. Significaria assumir responsabilidades, virar noites trabalhando no escritório, sem contar as inúmeras e cansativas investigações de fraude e um bom período na cadeia. Queria algo que ninguém além do computador pudesse notar: foi isso que lhe tomou os trinta segundos.
A coisa que lhe tomou três minutos e meio foi programar o computador para não notar que havia notado alguma coisa.
O computador precisava querer não saber o que Ford estava tramando; a partir daí, poderia deixar tranqüilamente que ele racionalizasse as suas próprias defesas contra as informações que surgiriam. Era uma técnica de programação que havia sido projetada às avessas a partir dos bloqueios mentais psicóticos invariavelmente desenvolvidos por pessoas perfeitamente normais quando eram eleitas para altos cargos políticos. O minuto restante foi usado descobrindo que o sistema do computador já
possuía um bloqueio mental. E dos grandes.
Jamais teria descoberto aquilo se não estivesse ocupado criando um bloqueio mental por conta própria. Encontrara uma porção de procedimentos de negação refinados e plausíveis, além de sub-rotinas de efeito dispersivo, justamente onde planejara instalar as suas. O computador se negou a tomar conhecimento delas, é claro, e depois se recusou terminantemente a aceitar que pudesse até mesmo haver algo a ser negado e, em geral, estava sendo tão convincente que até mesmo Ford se flagrou pensando que havia cometido um erro.
Estava impressionado.
Estava tão impressionado, na verdade, que nem se deu ao trabalho de instalar as suas próprias rotinas de bloqueio mental: limitou-se a programar chamadas para as rotinas já existentes, que fariam chamadas a si mesmas quando solicitadas e assim por diante.
Executou rapidamente uma pesquisa de erros nos fragmentos de código que ele mesmo instalara e descobriu que não estavam lá. Xingando, procurou por eles em toda parte, mas não havia sequer vestígios deles.
Estava prestes a instalar tudo de novo quando percebeu que o motivo pelo qual não conseguia encontrá-los é que já estavam funcionando.
Abriu um largo sorriso de satisfação.
Tentou descobrir a natureza do outro bloqueio mental do computador, mas, ao que parecia, não atipicamente, um bloqueio mental o impedia. Não conseguia mais encontrar nenhum traço dele, para falar a verdade; era dos bons. Chegou a pensar que havia imaginado tudo. Chegou a pensar se havia imaginado que tinha algo a ver com algo dentro do prédio e algo a ver com o número treze. Fez alguns testes. É, com certeza estava imaginando coisas.
Não tinha tempo para fazer um roteamento mais rebuscado, já que obviamente havia um baita alerta de segurança em andamento. Ford pegou o elevador até o térreo para tomar um dos elevadores expressos. Tinha que encontrar uma forma de colocar o Ident—I—Fácil de volta no bolso de Harl antes que ele desse por falta. Como? Não tinha idéia.
As portas do elevador se abriram e revelaram um pelotão de guardas de segurança e robôs a postos, com armas de aparência obscena nas mãos. Ordenaram que saísse.
Dando de ombros, Ford deu um passo à frente. Passaram por ele aos solavancos e entraram no elevador, que os conduziu para os andares inferiores, onde continuariam a sua busca por ele.
Isso foi hilário, pensou Ford, dando um tapinha camarada nas costas de Colin
— o primeiro robô genuinamente útil que Ford encontrava em sua vida. Sacudia-se diante dele em pleno ar, em um frenesi de êxtase jovial. Ford estava satisfeito por ter lhe dado o nome de um cachorro.
Sentiu-se altamente tentado a ir embora e torcer para tudo dar certo, mas sabia que tudo só daria certo de verdade se Harl não descobrisse que seu Ident—I—Fácil não estava em seu bolso. Precisa devolvê-lo furtivamente.
Seguiram para os elevadores expressos.
—
Olá — disse o elevador no qual entraram.
—
Olá — respondeu Ford.
—
Para onde posso levá-los hoje, rapazes? — perguntou o elevador.
—
Andar vinte e três — disse Ford.
—
Parece um andar bastante popular hoje — comentou o elevador. Humm, pensou Ford, não gostando nem um pouco daquilo. O elevador acendeu o botão vinte e três e subiu em disparada. Alguma coisa no painel chamou a atenção de Ford, mas ele não conseguiu sacar o que era e acabou deixando pra lá. Estava mais preocupado com a história do andar para onde estava indo ser popular. Não tinha definido direito como lidaria com o que quer que estivesse se passando lá em cima porque não fazia a menor idéia do que estava prestes a encontrar. Ia ter de improvisar. Chegaram.
As portas do elevador se abriram.
Silêncio agourento.
Corredor deserto.
Lá estava a porta do escritório de Harl, com uma leve camada de poeira à sua volta. Ford sabia que aquela poeira nada mais era do que bilhões de robôs moleculares minúsculos que haviam saído de dentro do batente, construído uns aos outros, reconstruído a porta, se desmembrado uns aos outros e depois voltado para o batente novamente, onde ficariam aguardando o próximo estrago. Ford se perguntou que tipo de vida era aquela, mas não por muito tempo, pois estava muito mais preocupado em pensar que tipo de vida era a sua no momento.
Respirou fundo e partiu com tudo.
CAPÍTULO 9
Arthur estava se sentindo um pouco perdido. Havia toda uma Galáxia de coisas lá fora à sua disposição e ele se questionava se era mesquinho de sua parte reclamar da falta de apenas duas coisas: o mundo no qual nascera e a mulher que amava. Dane-se e exploda-se, pensou ele, sentindo necessidade de orientação e conselho. Consultou O Guia do Mochileiro das Galáxias. Procurou por "orientação" e leu "Ver CONSELHO". Procurou "conselho" e estava escrito "Ver ORIENTAÇÃO". Aquilo estava acontecendo bastante nos últimos tempos e ele se perguntou se o Guia era tão bom quanto diziam.
Dirigiu-se para a Borda Oriental da Galáxia, onde, segundo diziam, era possível encontrar sabedoria e verdade, mais especificamente no planeta Hawalius, que era um lugar de oráculos, videntes e profetas, e também de pizzarias que entregavam em casa, porque quase todos os místicos eram completamente incapazes de cozinhar para si mesmos.
No entanto, aparentemente algum tipo de calamidade havia assolado o planeta. Enquanto perambulava pelas ruas da cidade onde viviam os profetas mais importantes, não pôde deixar de perceber um certo ar de desânimo. Encontrou com um profeta que estava visivelmente fechando as portas, melancólico, e perguntou o que estava acontecendo.
—
Ninguém mais procura a gente — respondeu ele, mal-humorado, batendo um prego sobre a tábua com que estava fechando a janela de sua cabana.
—
Ah, é? Por quê?
—
Segura essa outra ponta que eu te mostro.
Arthur segurou a ponta solta da placa e o velho profeta entrou depressa no interior do casebre, voltando alguns segundos depois com um pequeno rádio subeta. Ligou o aparelho, mexeu no botão de sintonia para lá e para cá e depois colocou o rádio sobre o pequeno banco de madeira no qual costumava sentar-se e profetizar. Em seguida, voltou para segurar a placa e continuou a martelar na parede. Arthur sentou-se e ficou ouvindo o rádio.
—
... ser confirmado — disse o rádio.
—
Amanhã — prosseguiu —, o vice-presidente de Poffla Vigus, Roopy Ga Stip, irá anunciar que pretende se candidatar à presidência. No discurso que fará amanhã
na...
—
Mude de estação — disse o profeta. Arthur apertou um botão de troca de canais.
—
...recusou-se a comentar — disse o rádio. — O número total de desempregados no setor Zabush na próxima semana será o pior de todos os tempos. Um relatório publicado mês que vem diz...
—
Outra — rosnou o profeta, irritado. Arthur apertou o botão novamente.
—
...negou categoricamente — disse o rádio. — O casamento real do mês que vem entre o Príncipe Gid da dinastia Soofling e a Princesa Hooli de Raui Alpha será a cerimônia mais espetacular já vista nos Territórios Bjanjy. A nossa repórter Trillian Astra está no local, com mais informações.
Arthur piscou.
O som da multidão e a algazarra de uma banda surgiram do rádio. Uma voz bastante familiar disse:
—
Bem, Krart, a cena aqui no meio do mês que vem é absolutamente incrível. A Princesa Hooli está radiante em um...
O profeta deu um safanão no rádio, que caiu do banco no chão empoeirado, gemendo como galinha desafinada.
—
Viu só com o que temos de competir? — resmungou o profeta. — Aqui, segure isto. Não isso, isto aqui. Não, assim não. Essa parte para cima. Do outro lado, seu imbecil.
—
Ei, eu estava escutando — reclamou Arthur, lutando desajeitadamente com o martelo do profeta.
—
Você e todo mundo. É por isso que este lugar parece uma cidade fantasma. — Ele cuspiu na poeira.
—
Não, não é isso, é que parecia a voz de uma pessoa que eu conheci.
—
A Princesa Hooli? Se eu tivesse que ficar parado dizendo oi para todo mundo que conheceu a Princesa Hooli, ia precisar de um novo par de pulmões.
—
Não, a princesa, não — explicou Arthur. — A repórter. O nome dela é
Trillian. Não sei qual é a do Astra. Somos do mesmo planeta. Eu vivia me perguntando que fim a Trillian tinha levado.
—
Ah, ela está em todas atualmente. As estações de tevê tridimensionais não pegam por aqui, é claro, graças ao Megarresfriadon Verde, mas a gente a escuta no rádio, saracoteando pelo espaço-tempo sem parar. Era melhor ela sossegar e encontrar uma era fixa, essa moça. Isso vai acabar em lágrimas. Provavelmente já acabou. — Ele balançou o martelo e acabou atingindo o dedão com toda a força. Começou a praguejar. O vilarejo dos oráculos não estava lá muito melhor.
Haviam lhe dito que, ao procurar por um bom oráculo, o ideal era encontrar o oráculo que os outros oráculos freqüentavam, mas ele estava fechado. Havia um aviso na entrada dizendo "Não sei mais nada. Tente aí do lado — mas isso é só uma sugestão, não um conselho formal de oráculo".
"Aí do lado" era uma caverna a alguns metros, e Arthur caminhou até lá. Fumaça e vapor subiam, respectivamente, de uma pequena fogueira e de uma panela de lata desgastada pendurada acima da fogueira. Saía um cheiro insuportável da panela. Ou, pelo menos, Arthur supôs que o cheiro viesse da panela. As bexigas dilatadas de algumas criaturas locais semelhantes a bodes estavam penduradas em um varal, secando ao sol, e o cheiro podia estar vindo dali. Havia também, preocupantemente próxima, uma pilha dos corpos descartados das criaturas locais semelhantes a bodes, e o cheiro também podia estar vindo de lá.
Mas o cheiro também podia tranqüilamente estar vindo da senhora que estava ocupada espantando as moscas da pilha de corpos. Era uma tarefa inglória, uma vez que cada mosca era do tamanho de uma tampinha de garrafa, com asas, e ela só tinha uma raquete de tênis de mesa. Parecia também ser meio cega. De vez em quando, por acaso, uma das suas pancadas enlouquecidas acertava uma das moscas com um safanão altamente satisfatório e a mosca zunia pelo ar, indo se estraçalhar na parede de rocha próxima à entrada da caverna.
Ela dava a impressão, pelo seu comportamento, de que sua vida girava em torno de momentos como aquele.
Arthur assistiu àquela performance exótica por um tempo, mantendo uma distância educada, e depois finalmente tentou tossir discretamente para chamar a atenção da mulher. A tosse discreta em tom cortês infelizmente obrigou Arthur a inalar mais ar local do que havia feito até então e, por causa disso, ele teve um acesso de expectoração estridente e caiu de encontro à rocha, engasgado e com o rosto coberto de lágrimas. Lutou para respirar, mas, cada vez que inalava, a situação ficava pior. Vomitou, engasgou novamente, rolou sobre o próprio vômito, continuou rolando mais alguns metros e, finalmente, conseguiu ficar de quatro e se arrastou, ofegante, em direção a um ar um pouquinho mais fresco.
—
Com licença — disse ele. Recuperara um pouco de ar. — Sinto muito, muitíssimo mesmo. Estou me sentindo completamente idiota e... — Apontou constrangido para a pequena poça de seu próprio vômito, espalhada na entrada da caverna. — O que posso dizer? — perguntou ele. — O que dizer numa situação como essa?
Aquilo, pelo menos, chamou a atenção da mulher. Ela virou-se para ele, desconfiada, mas, por ser meio cega, teve uma certa dificuldade de distingui-lo na paisagem embaçada e rochosa.
Ele acenou, para ajudar.
—
Olá! — disse ele.
Finalmente ela o localizou, resmungou entre dentes e voltou a dar pancadas nas moscas.
Estava terrivelmente aparente, julgando pela oscilação das correntes de ar conforme ela se mexia, que a principal fonte do fedor era ela. As bexigas no varal, os corpos pestilentos e a sopa insalubre certamente contribuíam violentamente para a atmosfera geral, mas a principal presença olfativa era a mulher em si. Acertou outra pancada em uma das moscas. Ela se despedaçou contra a rocha e esvaiu-se em um filete líquido de uma forma que a mulher obviamente via, se é que enxergava até lá, como bastante satisfatória.
Vacilante, Arthur ficou de pé e se limpou com um punhado de grama seca. Não sabia mais o que fazer para anunciar sua presença. Chegou a pensar em ir embora de fininho, mas não achou de bom tom deixar um montinho de vômito na frente da casa dela. Pensou no que podia fazer a respeito. Começou a colher mais punhados da grama seca aqui e ali. Mas estava com medo de se aproximar do vômito e, em vez de limpar, aumentar mais a poça.
Justo enquanto estava debatendo consigo mesmo sobre qual seria a melhor coisa a fazer percebeu que a mulher estava finalmente falando com ele.
—
Desculpe, o que a senhora disse?
—
Eu perguntei em que poderia ajudar — disse ela, com uma voz fina e áspera que ele mal conseguia ouvir.
—
É... eu vim pedir o seu conselho — respondeu ele, sentindo-se um pouco ridículo.
Ela virou-se para observá-lo, miopemente, depois voltou-se, tentou acertar uma mosca e errou.
—
Sobre o quê? — perguntou a mulher.
—
Como?
—
Eu perguntei sobre o quê — repetiu ela, estridente.
—
Bem — disse Arthur. — Conselhos genéricos, para falar a verdade. Estava escrito no folheto que...
—
Humpt! Folheto! — resmungou a mulher. Ela já parecia estar sacudindo a raquete de maneira quase aleatória.
Arthur pescou o folheto, caindo aos pedaços, do bolso. Não sabia exatamente por quê. Já havia lido aquilo tudo e tinha a impressão de que ela não estava nem um pouco interessada em ler. Desdobrou-o assim mesmo, para ter uma coisa que pudesse olhar enquanto franzia a testa, pensativo, durante alguns minutos. O folheto prodigalizava as ancestrais artes místicas dos videntes e dos sábios de Hawalius, e falava, de forma altamente exacerbada, sobre o nível de acomodação oferecida por lá. Arthur ainda carregava uma cópia do Guia do Mochileiro das Galáxias consigo, mas estava achando, sempre que o consultava, que as entradas estavam ficando cada vez mais confusas e paranóicas, com vários xis e jotas e colchetes. Alguma coisa estava errada em algum lugar. Não sabia dizer se era apenas um problema com o seu exemplar, se algo ou alguém estava fazendo besteiras inomináveis ou tendo alucinações no centro da organização do Guia. Mas, de qualquer jeito, estava ainda menos disposto a confiar nele mais do que o normal, ou seja, não confiava nem um pouco e o usava, na maioria das vezes, como apoio quando queria comer um sanduíche sentado em uma pedra olhando para o além.
A mulher havia se virado e estava caminhando em sua direção. Arthur tentou, discretamente, analisar a direção do vento e movimentou—se um pouco enquanto ela se aproximava.
—
Conselhos — disse ela. — Conselhos, né?
—
É, isso mesmo — respondeu Arthur. — É, isso é...
Franziu a testa novamente para o folheto, como se para se certificar de que não havia lido errado e ido parar no planeta errado ou algo assim. Estava escrito: "Os amigáveis habitantes locais terão imenso prazer em compartilhar com você o conhecimento e a sabedoria dos ancestrais. Mergulhe com eles nos intrincados mistérios do passado e do futuro!" Havia também alguns cupons de desconto, mas Arthur estava constrangido demais para recortá-los e tentar entregá-los para alguém.
—
Conselho, né? — repetiu a mulher. — Genéricos, você diz. Sobre o quê?
O que fazer da sua vida, coisas assim?
—
Exatamente — respondeu Arthur. — Coisas assim. Para ser sincero, tenho tido alguns probleminhas. — Estava esgueirando-se de maneira discreta, tentando desesperadamente aproveitar o vento. Ele se assustou quando ela se afastou bruscamente, dirigindo-se para a caverna.
—
Você vai ter de me ajudar com a máquina de fotocópias então — disse ela.
—
Com o quê? — perguntou Arthur.
—
A máquina de fotocópias — repetiu ela, paciente. — Você precisa me ajudar a arrastá-la para fora. Ela é movida a energia solar. Mas eu tenho que guardá-la dentro da caverna, senão os passarinhos cagam tudo.
—
Entendi — disse Arthur.
—
Eu respiraria fundo, se fosse você — resmungou a senhora, pisando duro e adentrando a escuridão da caverna.
Arthur seguiu o conselho. Na verdade, inalou o máximo de ar que pôde. Quando sentiu que estava pronto, segurou a respiração e seguiu a mulher. A máquina de fotocópias era uma tralha velha e pesada, apoiada em um carrinho bamboleante. Ficava imersa na penumbra da caverna. As rodinhas estavam obstinadamente emperradas em direções diferentes e o chão era irregular e pedregoso.
—
Vai pegar um ar lá fora — disse a mulher. Arthur estava com o rosto vermelho, tentando ajudá-la a mover a máquina.
Ele balançou a cabeça, aliviado. Se ela não estava constrangida com aquilo, então ele estava decidido a não ficar também. Saiu da caverna e respirou fundo algumas vezes, voltando em seguida para continuar o trabalho pesado. Precisou repetir aquela estratégia algumas vezes até conseguir colocar a máquina para fora. A luz do sol a atingiu em cheio. A mulher tornou a desaparecer caverna adentro e voltou carregando uns painéis de metal mosqueados, que ela conectou na máquina para captar a energia solar.
Ela olhou para o céu com os olhos semicerrados. O sol estava bem forte, mas o dia estava nublado.
—
Vai demorar um pouquinho — avisou ela.
Arthur disse que esperava numa boa.
A senhora deu de ombros e marchou até a fogueira. O conteúdo da panelinha estava borbulhando. Ela remexeu com um pedaço de pau.
—
Você não quer almoçar? — perguntou a mulher.
—
Já almocei, obrigado — disse Arthur. — Não mesmo. Já almocei.
—
Sei — disse ela. Continuou mexendo com o pedaço de pau. Alguns minutos depois, pescou um pedaço de alguma coisa, assoprou um pouco para esfriar e enfiou na boca.
Mastigou pensativa por alguns instantes.
Então, caminhou lentamente até a pilha das criaturas mortas semelhantes a bodes. Cuspiu o pedaço em cima da pilha. Voltou para a panela. Tentou removê-la do suporte parecido com um tripé onde estava encaixada.
—
Quer ajuda? — ofereceu Arthur, levantando—se educadamente.
Correu até ela.
Juntos, conseguiram remover a tigela do tripé e a levaram desajeitadamente pela pequena descida até a saída da caverna, em direção a uma fileira de árvores raquíticas e retorcidas que delimitavam a área de uma vala íngreme, mas rasa, de onde emergiu toda uma nova gama de fedores.
—
Preparado? — perguntou a senhora.
—
Sim... — respondeu Arthur, embora não soubesse para quê.
—
Um — disse a velha.
—
Dois — continuou.
—
Três — acrescentou.
Arthur percebeu, em cima da hora, o que ela queria fazer. Juntos, lançaram o conteúdo da panela dentro da vala.
Após uma ou duas horas de silêncio não-comunicativo, a senhora decidiu que os painéis solares já haviam absorvido luz o suficiente para fazer funcionar a máquina de fotocópias e desapareceu caverna adentro para procurar alguma coisa. Finalmente, reapareceu com algumas resmas de papel e as inseriu na máquina. Entregou as cópias para Arthur.
—
Estes são, ah, estes são seus conselhos? — perguntou Arthur, folheando as páginas, indeciso.
— Não — respondeu ela. — Essa é a história da minha vida. Sabe, a qualidade de qualquer conselho que uma pessoa pode dar deve ser avaliada de acordo com a qualidade da vida que essa pessoa levou. Ao examinar esse documento, você vai notar que eu sublinhei todas as principais decisões que precisei tomar, para destacá-las. Estão em ordem alfabética e tem um índice remissivo. Entendeu? Então, sugiro apenas que você tome decisões contrárias às que eu tomei, porque assim você talvez não termine sua vida... — ela fez uma pausa e encheu os pulmões para um bom grito — em uma caverna velha e fedorenta como esta!
Recolheu sua raquete de tênis de mesa, arregaçou as mangas, marchou em direção à pilha de criaturas mortas semelhantes a bodes e começou a espantar as moscas com vitalidade e vigor.
A última cidade que Arthur visitou era composta inteiramente de postes extremamente altos. Eram tão altos que era impossível dizer, do chão, o que havia lá em cima, e Arthur teve de escalar pelo menos três antes de encontrar um que tivesse algo além de uma plataforma coberta de cocô de passarinho.
Não era uma tarefa fácil. Para escalar os postes, era preciso subir em umas pequenas estacas de madeira que haviam sido pregadas em espiral. Qualquer turista menos diligente do que Arthur teria se contentado em tirar algumas fotos e deslizado de volta para a próxima churrascaria, onde também se podia comprar uma ampla variedade de bolinhos de chocolate bem suculentos para comer na frente dos ascetas. Mas, em grande parte por conta disso, a maioria dos ascetas havia deixado a cidade. Para falar a verdade, a maioria tinha montado centros de terapia bastante lucrativos em alguns dos mundos mais afluentes na Ondulação Nordeste da Galáxia, onde a vida era dezessete milhões de vezes mais fácil e o chocolate era maravilhoso. Foi descoberto que a maioria dos ascetas não conhecia o chocolate antes de adotar o ascetismo. Já a maioria dos clientes que procuravam os centros de terapia o conhecia bem demais. No topo do terceiro poste, Arthur parou para respirar. Estava com muito calor e sem fôlego, já que cada poste tinha quinze ou vinte metros de altura. Tinha a impressão de que o mundo estava oscilando vertiginosamente à sua volta, mas não estava preocupado com aquilo. Sabia que, logicamente, não podia morrer até chegar em Stavromula Beta e aprendera a cultivar uma atitude positiva diante de perigos extremos. Sentia-se um pouco tonto empoleirado em cima de um poste a quinze metros do chão, mas decidiu lidar com aquilo comendo um sanduíche. Estava prestes a embarcar na leitura da versão fotocopiada da vida do oráculo quando ficou um tanto quanto surpreso ao escutar alguém tossindo discretamente atrás dele.
Sentia-se abruptamente, deixando cair o sanduíche, que despencou pelo ar e ficou bem pequeno quando sua queda foi interrompida pelo chão. A uns nove metros atrás de Arthur havia um outro poste, o único na floresta esparsa de umas três dúzias de postes que tinha alguém no topo. Estava ocupado por um velho que, por sua vez, parecia estar ocupado com pensamentos profundos que o faziam franzir as sobrancelhas.
—
Com licença — disse Arthur. O homem o ignorou. Talvez não pudesse escutá-lo. Havia uma brisa soprando. Arthur só escutara a tosse discreta por acaso.
—
Olá? — tentou Arthur. — Olá!
O homem finalmente olhou em volta. Pareceu surpreso ao vê-lo. Arthur não sabia ao certo se estava surpreso e contente por avistá-lo ou apenas surpreso.
—
O senhor está aberto? — perguntou Arthur.
O homem franziu a testa, como se não tivesse compreendido. Arthur não sabia dizer se ele não entendera ou não ouvira a pergunta.
—
Vou dar um pulo aí — gritou Arthur. — Não vá embora.
Saiu da pequena plataforma e desceu rapidamente pelos degraus em espiral, sentindo-se bastante tonto quando atingiu o chão.
Começou a se dirigir para o poste onde o velho estava sentado, mas percebeu subitamente que havia perdido o senso de direção ao descer e não sabia mais qual era. Olhou à sua volta, procurando pontos de referência e descobriu para onde deveria ir.
Subiu no poste. Não era aquele.
—
Droga — disse ele. — Desculpe! — gritou para o velho novamente, que agora estava bem na sua frente, a uns dez metros de distância.
— Me perdi. Já estou indo pra aí. — Desceu novamente, ficando realmente com calor e irritado.
Quando chegou ao topo, ofegante e suado, certo de que aquele era o poste correto, percebeu que o velho estava, de alguma maneira, tripudiando dele.
—
O que você quer? — gritou o velho, mal-humorado. Estava sentado no alto do poste que Arthur reconheceu como sendo o mesmo em que ele próprio estivera há pouco, quando estava comendo o sanduíche.
—
Como é que você conseguiu chegar até aí? — perguntou Arthur, impressionado.
—
Você acha que eu vou te contar assim tão fácil o que levei quarenta primaveras, verões e outonos sentado no alto de postes para descobrir?
—
E os invernos?
—
O que têm os invernos?
—
Você não fica sentado aí nos invernos?
—
Só porque passei a maior parte da minha vida sentado em um poste —
disse o homem —, não quer dizer que eu seja um imbecil. Vou para o sul no inverno. Tenho uma casa de praia. Fico sentado na pilha de lenha para a lareira.
—
Você tem algum conselho para um viajante?
—
Sim. Arrume uma casa de praia.
—Tá.
O homem contemplou a paisagem quente, árida e recoberta por pequenos arbustos. Arthur podia ver a senhora ao longe, um pontinho na distância, agitando-se para lá e para cá tentando acertar as moscas.
—
Está vendo aquilo? — perguntou o velho, de repente.
—
Estou — respondeu Arthur. — Eu fui consultá-la.
—
Não sabe de nada, ela. Consegui a casa de praia porque ela recusou. Que conselho ela te deu?
—
Disse para fazer exatamente o oposto do que ela fez.
—
Em outras palavras, arrume uma casa de praia.
—
Deve ser — disse Arthur. — Bom, talvez eu arrume uma.
—
Hummm.
O horizonte nadava em uma onda distorcida de calor fétido.
—
Mais algum conselho? — perguntou Arthur. — Que não tenha a ver com estadas na praia?
—
Praia não é apenas uma estada. É um estado de espírito — respondeu o homem. Virou-se e olhou para Arthur.
Curiosamente, o rosto dele estava agora a poucos metros. Parecia manter um formato perfeitamente normal, mas o corpo estava sentado de pernas cruzadas em um poste a dez metros de distância e o rosto estava ali, a alguns metros. Sem mexer a cabeça e, aparentemente, sem fazer nada de exótico, ele se levantou e pulou para o alto de um outro poste. Ou era um efeito do calor, pensou Arthur, ou o espaço tinha uma formação um pouco diferente para ele.
—
Uma casa de praia — disse — nem mesmo precisa estar na praia. Embora as melhores estejam. Todos nós gostamos de nos congregar — prosseguiu —
em condições limítrofes.
—
É mesmo? — perguntou Arthur.
—
Onde o solo encontra a água. Onde a terra encontra o ar. Onde o corpo encontra a mente. Onde o espaço encontra o tempo. Gostamos de estar de um lado contemplando o outro.
Arthur ficou animadíssimo. Aquilo era exatamente o tipo de coisa que o folheto prometera. Ali estava um sujeito que parecia estar se movendo através de algum espaço de Escher, dizendo coisas altamente profundas sobre vários assuntos. No entanto, era irritante. O sujeito estava agora pulando dos postes para o chão, do chão para os postes, de poste para poste, de poste para o horizonte e voltando: estava bagunçando de vez com o universo espacial de Arthur.
—
Por favor, pare com isso! — pediu Arthur, de repente.
—
Não consegue agüentar, né? — disse o homem. Sem fazer o menor movimento, lá estava ele de volta, sentado de pernas cruzadas no alto de um poste a dez metros de distância de Arthur. — Você veio atrás de um conselho, mas não consegue lidar com nada que não conheça. Humm. Então temos que dizer algo que você já esteja cansado de saber, fazendo com que pareça uma novidade, né? Bem, o de sempre, suponho. — Ele suspirou e varreu o horizonte com um olhar tristonho.
—
De onde você é, rapaz? — perguntou ele.
Arthur resolveu bancar o esperto. Estava cansado de ser confundido com um idiota completo por todos que encontrava.
—
Sabe de uma coisa? — disse ele. — O vidente é você. Por que não me diz?
O velho suspirou novamente.
—
Eu só estava puxando conversa — disse ele, passando a mão em volta da cabeça. Quando trouxe a mão novamente para a frente, uma imagem da Terra girava na ponta de seu dedo indicador. Era inconfundível. O globo desapareceu. Arthur estava atordoado.
—
Como é que você...
—
Não posso dizer.
—
Por que não? Eu viajei muito!
—
Você não pode ver o que eu vejo porque vê o que você vê. Não pode saber o que sei porque sabe o que você sabe. O que vejo e o que sei não podem ser acrescentados ao que você vê e ao que você sabe porque são coisas diferentes. Também não podem substituir o que você vê e o que sabe porque isso seria substituir você
mesmo.
—
Calma aí, posso anotar isso? — perguntou Arthur, procurando freneticamente um lápis em seu bolso.
—
Você pode apanhar uma cópia no espaçoporto — disse o velho. — Eles têm um monte disso por lá.
—
Ah — disse Arthur, decepcionado. — Bom, não tem nada que seja um pouquinho mais específico para mim?
—
Tudo o que você vê, ouve ou vivência de qualquer jeito que seja é
específico para você. Você cria um universo ao percebê-lo, então tudo no universo que percebe é específico para você.
Arthur olhou para ele, desconfiado.
—
Também encontro isso no espaçoporto? — perguntou.
—
Pode conferir — respondeu o velho.
—
Diz aqui no folheto — disse Arthur, sacando o papel do bolso e olhando novamente — que eu tenho direito a uma oração especial, criada especialmente para mim e para as minhas necessidades específicas.
—
Ah, tá — disse o velho. — Vou lhe dar uma oração. Tem um lápis aí?
—
Tenho — disse Arthur.
—
É assim. Vamos lá: "Proteja-me de ficar sabendo daquilo que não preciso saber. Proteja-me até mesmo de ficar sabendo que existem coisas que não sei. Proteja—
me de ficar sabendo que decidi não saber das coisas que decidi não saber. Amém." É
isso. É o mesmo que você fica rezando em silêncio dentro de sua cabeça, então pode falar em voz alta que não muda nada.
—
Humm — disse Arthur. — Bem, obrigado...
—
Tem uma outra oração que acompanha essa e é muito importante —
continuou o velho. — É melhor anotar também.
—
Certo.
—
É assim: "Senhor, Senhor, Senhor..." É melhor acrescentar esta parte, por via das dúvidas. Prevenção nunca é demais: "Senhor, Senhor, Senhor. Proteja-me das conseqüências da oração anterior. Amém." Pronto. A maior parte dos problemas que as pessoas enfrentam na vida vem do fato de elas deixarem essa parte de fora.
—
Você já ouviu falar de um lugar chamado Stavromula Beta? —perguntou Arthur.
—
Não.
—
Bom, obrigado pela ajuda — disse ele.
—
Não tem de quê — disse o homem sobre o poste, e desapareceu.
CAPÍTULO 10
Ford atirou-se contra a porta do escritório do editor-chefe, agachou-se, enrolado como uma bola, enquanto a porta cedia novamente. Rolou rapidamente pelo chão até o sofisticado sofá de couro cinza e fixou a sua base operacional estratégica atrás dele.
Esse, pelo menos, era o plano.
Infelizmente, o sofisticado sofá de couro cinza não estava lá. Por que, perguntou-se Ford, enquanto dava cambalhotas no ar, cambaleava, se agachava e se atirava atrás da mesa de Harl para se proteger, as pessoas tinham aquela obsessão idiota de mudar a arrumação de seus escritórios a cada cinco minutos?
Por que, por exemplo, trocar um sofá de couro cinza perfeitamente aproveitável, ainda que um pouco desbotado, por algo que mais parecia um pequeno tanque de guerra?
E quem era o sujeito grandão com um lançador de foguetes móvel apoiado no ombro? Algum membro da diretoria? Não podia ser. Estava na sala da diretoria. Pelo menos, na diretoria do Guia. De onde aqueles sujeitos da InfmiDim tinham vindo só
Zarquon sabia. A julgar pela cor e textura de suas peles, que lembravam lesmas, não devia ser um lugar muito ensolarado. Estava tudo errado, pensou Ford. Pessoas ligadas ao Guia deviam vir de lugares ensolarados.
Havia uma boa quantidade deles, na verdade, e todos pareciam estar com armamentos e escudos protetores mais pesados do que se esperava normalmente de executivos, mesmo no brutal mundo de negócios daqueles tempos. Claro que quase tudo era apenas suposição. Estava supondo que aqueles sujeitos grandões, de pescoço largo e aparência de lesmas estavam de algum modo ligados à InfmiDim, mas era uma suposição bastante razoável e ele ficava contente com isso, uma vez que eles ostentavam emblemas em suas couraças onde se podia ler
"Corporação InfmiDim". Estava com uma incômoda suspeita, contudo, de que aquilo não era uma reunião de negócios. Também tinha a incômoda sensação de que aquelas criaturas lhe eram, de algum modo, familiares. Familiares de uma maneira nada familiar.
Bom, já estava no escritório há uns bons dois segundos e meio e achou que provavelmente fosse a hora de começar a fazer algo de construtivo. Podia tomar um refém. Era uma boa idéia.
Vann Harl estava em sua cadeira giratória, assustado, pálido e visivelmente abalado. Além da pancada na nuca, devia ter recebido alguma notícia ruim. Ford levantou-se num salto e correu para rendê-lo.
Sob o pretexto de lhe aplicar uma boa e sólida chave de cotovelo, Ford conseguiu recolocar furtivamente o Ident—I—Fácil de volta no bolso interno do paletó
de Harl.
Genial!
Acabara de fazer o que fora fazer. Agora só precisava enrolar as pessoas para conseguir dar o fora.
—
O.k. — começou ele. — Eu... — fez uma pausa.
O sujeito grandão com o lançador de foguetes virou-se na sua direção e apontou para ele, o que Ford não pôde deixar de considerar um gesto vastamente irresponsável.
—
Eu... — recomeçou e, então, em um impulso repentino, decidiu se abaixar.
Um rugido ensurdecedor tomou conta do recinto, enquanto chamas saíam da parte de trás do lançador de foguetes e um foguete saía pela parte da frente. O foguete passou direto por Ford e atingiu a enorme janela de vidro, que explodiu em uma chuva de milhares de cacos com a força da explosão. Grandes ondas de choque de barulho e pressão do ar reverberaram pelo recinto, sugando algumas cadeiras, um arquivo e Colin, o robô de segurança, para fora da janela. Ahá! Então as janelas não eram totalmente à prova de foguetes, afinal, pensou Ford consigo mesmo. Alguém deveria conversar com outra pessoa sobre aquilo. Desembaraçou-se de Harl e tentou descobrir para onde correr. Estava cercado.
O sujeito grandão com o lançador de foguetes estava preparando a arma para um novo lançamento.
Ford não fazia a menor idéia de qual seria o seu próximo passo.
— Vejam bem — disse ele em uma voz severa. Não sabia ao certo aonde o fato de dizer coisas como "vejam bem" em uma voz severa iria levá-lo e não tinha tempo para descobrir. Que diabos, pensou, só se é jovem uma vez, e pulou pela janela. Aquilo manteria, no mínimo, o elemento surpresa a seu favor.
CAPÍTULO 11
A primeira coisa que Arthur Dent precisava fazer — concluiu ele, resignado —
era dar um jeito em sua vida. Para isso, precisava encontrar um planeta onde pudesse viver. De preferência, um planeta no qual pudesse respirar e ficar de pé ou sentado sem experimentar nenhum desconforto gravitacional. Também tinha de ser algum lugar onde os níveis de acidez fossem baixos e as plantas não atacassem as pessoas.
— Detesto soar antrópico — disse ele ao ser estranho que ficava atrás do balcão de atendimento no Centro de Aconselhamento de Realocação em Alpha Pintleton —, mas eu gostaria imensamente de morar em um lugar onde as pessoas se parecessem vagamente comigo também. Você sabe. Meio humanos. O ser estranho atrás do balcão abanou as suas partes mais estranhas e pareceu um pouco surpreso com a declaração. Esvaiu—se e esparramou—se para fora do assento, pingando, arrastou—se pelo chão, ingeriu o velho arquivo de metal e então, com um arroto poderoso, excretou a gaveta desejada. Tentáculos cintilantes surgiram das suas orelhas, removeram algumas pastas da gaveta, sugaram-na novamente e depois a coisa vomitou o arquivo de volta em seu lugar. Arrastou-se pelo chão e agosmentou-se de volta em seu assento, jogando os arquivos sobre a mesa.
— Algum desses te interessa? — perguntou ele.
Arthur examinou ansiosamente uns pedaços de papel grudentos e úmidos. Estava, definitivamente, em um lugar bastante atrasado da Galáxia, pelo menos no que dizia respeito ao universo que ele conhecia e reconhecia. No lugar onde deveria estar sua casa havia aquele grosseiro planeta putrefato, encharcado por chuva e habitado por escória e porcos do pântano. Nem mesmo o Guia do Mochileiro das Galáxias funcionava direito por lá, e por isso era obrigado a falar coisas como aquela em lugares como aquele. Sempre perguntava sobre Stavromula Beta, mas ninguém tinha ouvido falar desse planeta.
Os mundos disponíveis pareciam bastante desanimadores. Tinham pouco a lhe oferecer, uma vez que ele tinha pouco a lhes oferecer também. Sentia-se péssimo ao perceber que, embora viesse originalmente de um mundo com carros, computadores, balé e Armagnac, ele não sabia, por conta própria, como aquelas coisas funcionavam. Não era capaz de fazer nada daquilo. Sozinho, era incapaz de construir uma torradeira. O máximo que conseguia era fazer um sanduíche e olhe lá. Não havia muita demanda para os serviços que poderia prestar.
Arthur ficou arrasado. O que não deixou de surpreendê-lo, porque achava que já estava no fim do poço. Fechou os olhos por um instante. Queria tanto estar em casa. Queria tanto que seu mundinho, a Terra onde crescera, não tivesse sido demolida. Gostaria tanto que nada daquilo tivesse acontecido. Queria tanto abrir os olhos e estar de pé na entrada de sua casa na região oeste da Inglaterra, com o sol brilhando sobre as colinas verdejantes, o carro dos correios subindo a rua, os narcisos florescendo no seu jardim e, ao longe, o pub abrindo para o almoço. Queria tanto poder ir até o pub para ler o jornal bebericando uma cerveja. Fazer uma palavra-cruzada e ficar empacado no quadrinho 17 diagonal.
Abriu os olhos.
O ser estranho estava pulsando irritado sobre ele, batucando uma espécie de pseudópode na mesa.
Arthur balançou a cabeça e olhou para a folha de papel seguinte. Deprimente, pensou ele. Olhou a próxima.
Deprê total. Próxima.
Opa... Aquilo sim parecia bem melhor.
Era um mundo chamado Bartledan. Tinha oxigênio. Colinas verdejantes. Tinha inclusive, ao que parecia, uma renomada cultura literária. Mas o que mais despertou a sua atenção foi a fotografia de um pequeno grupo de bartledanianos, em uma praça, sorrindo alegremente para a câmera.
—
Ah — disse ele, mostrando a fotografia para o ser estranho atrás do balcão.
Os olhos dele se estenderam na ponta de um pedúnculo e melaram o papel, deixando um rastro viscoso sobre ele.
—
Sim — respondeu ele, enojado. — Eles realmente se parecem com você. Arthur se mudou para Bartledan e, usando uma parte do dinheiro que conseguira vendendo pedacinhos de unha do pé e saliva para um banco de DNA, comprou um quarto na cidade que vira na foto. Era um lugar agradável. O ar era perfumado. As pessoas se pareciam com ele e não demonstravam se incomodar com a sua presença. Não o atacaram com nenhum objeto. Comprou algumas roupas e um armário para guardá-las.
Tinha encontrado uma vida. Agora precisava encontrar um propósito para ela. Primeiro tentou sentar e ler. Mas a literatura de Bartledan, apesar de ser famosa naquele setor da Galáxia por sua sutileza e graça, não conseguia prender o seu interesse. O problema é que, no fim das contas, não era sobre seres humanos. Não era sobre o que os seres humanos queriam. As pessoas em Bartledan eram incrivelmente parecidas com os humanos fisicamente, mas, quando você dizia "Boa tarde" para uma delas, ela ficava levemente espantada, cheirava o ar e dizia que provavelmente era uma tarde boazinha, já que Arthur havia mencionado o assunto.
—
Não, eu quis apenas desejar uma boa tarde para você — diria Arthur, ou melhor, costumava dizer. Aprendeu rapidamente a evitar aquelas conversas. — Quis dizer que espero que você tenha uma boa tarde — acrescentava ele. Mais espanto.
—
Desejar? — perguntavam finalmente os bartledanianos, em um desconserto gentil.
—
É... — teria então dito Arthur. — Estou apenas expressando a esperança de que você...
—
Esperança?
—
É.
—
O que é isso?
Boa pergunta, pensava Arthur consigo mesmo e voltava para o seu quarto para pensar sobre coisas.
Por um lado, tinha de reconhecer e respeitar o que aprendera sobre a visão bartledaniana do universo, que consistia na idéia de que o universo era o que o universo era, ame-o ou deixe-o. Por outro lado, não podia deixar de achar que não desejar nada nem esperar nada simplesmente não era natural.
Natural. Essa era uma palavra complicada.
Há muito percebera que várias coisas que julgava naturais, como comprar presentes no Natal, parar no sinal vermelho ou despencar a uma aceleração de 9,75
m/s2, não passavam de hábitos do seu mundo e não funcionavam necessariamente da mesma maneira em outros lugares; mas não desejar nada — aquilo não podia ser natural, podia? Seria como não respirar.
Respirar era outra coisa que os bartledanianos não faziam, apesar de todo o oxigênio disponível na atmosfera. Simplesmente ficavam lá. Às vezes corriam para lá e para cá e jogavam netbol e coisas do gênero (sem jamais desejar ganhar, é claro —
apenas jogavam e quem ganhasse ganhou), mas nunca respiravam de fato. Era, por algum motivo, desnecessário. Arthur aprendeu rapidamente que jogar netbol com eles era algo assustador. Embora eles se parecessem com os humanos e até mesmo se movimentassem como humanos, eles não respiravam e não desejavam coisas. Respirar e desejar coisas, por outro lado, era tudo o que Arthur fazia o dia inteiro. Às vezes, desejava tanto as coisas que a sua respiração chegava a ficar ofegante e ele precisava se deitar e descansar um pouco. Sozinho. No seu pequeno quarto. Tão longe do mundo em que havia nascido que o seu cérebro mal podia processar as grandezas envolvidas sem ficar debilitado.
Preferia não pensar. Preferia ficar sentado, lendo — ou, pelo menos, preferiria se houvesse algo decente para ler. Mas, nas histórias bartiedanianas, ninguém jamais desejava coisa alguma. Nem mesmo um copo d'água. Certamente buscavam um quando estavam com sede, mas, se não tivesse algum disponível, não pensavam mais no assunto. Acabara de ler um livro no qual o personagem principal tinha, no período de uma semana, trabalhado em seu jardim, jogado bastante netbol, ajudado a consertar uma estrada, tido um filho com sua mulher e morrido de sede inesperadamente, um pouco antes do último capítulo. Exasperado, Arthur esquadrinhara o livro do início ao fim e acabou encontrando uma referência a algum problema no encanamento no capítulo dois. Só isso. Então o cara morre. Acontece.
Não era sequer o clímax do livro, porque não havia clímax. O personagem morria a cerca de um terço do final do penúltimo capítulo e o resto do livro falava mais coisas sobre o conserto de estradas. O livro simplesmente acabava, do nada, na centésima milésima palavra, porque aquele era o tamanho limite dos livros em Bartledan.
Arthur atirou o livro na parede, vendeu o quarto e foi embora. Começou a viajar com um descaso rebelde, trocando mais saliva, unhas do pé, unhas da mão, sangue e cabelo — ou qualquer coisa que alguém estivesse interessado em comprar —
por passagens. Acabou descobrindo que, em troca de amostras de sêmen, era possível viajar até de primeira classe. Não parava em lugar nenhum e limitava a sua existência ao mundo hermético e indefinido das cabines de naves hiperespaciais, comendo, bebendo, dormindo, assistindo filmes, parando apenas em portos espaciais para doar mais DNA e pegar a próxima nave de longa distância. Esperava e esperava que algum outro acidente acontecesse.
O problema em tentar fazer com que o acidente certo aconteça é que a coisa não funciona assim. Não é isso o que "acidente" quer dizer. O acidente que acabou acontecendo estava longe do que ele tinha planejado. A nave na qual estava viajando piscou no hiperespaço, oscilou pavorosamente entre noventa e sete pontos diferentes da Galáxia ao mesmo tempo, captou, em um deles, o puxão inesperado de um campo de atração gravitacional de um planeta fora do mapa, foi capturada em sua atmosfera externa e começou a cair, rasgando—se com um ruído estridente dentro dele. Os sistemas da nave afirmaram o tempo todo, enquanto caíam, que tudo estava perfeitamente normal e sob controle, mas quando ela entrou em um último giro violento, cortando furiosamente um quilômetro de árvores antes de finalmente explodir em uma bola ardente de fogo, ficou claro que a coisa não era bem assim. O fogo lambeu a floresta, fervendo a noite inteira, depois tratou de se apagar sozinho, como todos os incêndios não programados acima de uma certa extensão agora têm obrigação legal de fazer. Após isso, durante algum tempo, incêndios menores despertaram aqui e ali, enquanto peças diversas de escombros dispersos explodiam calmamente, cada uma a seu tempo. Depois isso também acabou. Arthur Dent, graças ao total enfado dos infindáveis vôos interestelares, era o único passageiro a bordo que realmente se familiarizara com os procedimentos de segurança da nave em caso de uma aterrissagem forçada e, portanto, foi o único sobrevivente do desastre. Estava zonzo, com alguns ossos quebrados e sangrando, em uma espécie de casulo cor-de-rosa fofinho com as palavras "Tenha um bom dia" estampadas em mais de três mil línguas diferentes.
Silêncios negros e estrondosos nadavam nauseantes em sua mente despedaçada. Sabia, com uma espécie de certeza resignada, que iria sobreviver, porque ainda não havia estado em Stavromula Beta.
Após o que pareceu uma eternidade de dor e escuridão, percebeu sombras discretas movendo-se à sua volta.
CAPÍTULO 12
Ford rolava em pleno ar em meio a uma nuvem de cacos de vidro e pedaços de cadeiras. Mais uma vez, não havia exatamente planejado as coisas e estava apenas improvisando, ganhando tempo. Aprendeu que, em momentos de extrema crise, era bastante útil ver a sua vida passar por seus olhos. Ver as coisas sob uma perspectiva diferente lhe dava a oportunidade de refletir sobre elas e, às vezes, assim surgia uma pista vital sobre o seu próximo passo.
Lá estava o chão, apressando-se para encontrá-lo a uma aceleração de quase 10
m/s2, mas o melhor a fazer, pensou, era lidar com o problema quando chegasse a ele. Uma coisa de cada vez.
Ah, finalmente. A sua infância. Coisas triviais, já vira tudo aquilo antes. Imagens passavam, rápidas. Tempos chatos em Betelgeuse V. Zaphod Beeblebrox ainda criança. Nenhuma novidade. Gostaria de ter alguma espécie de fast forward em seu cérebro. O seu aniversário de sete anos, quando ganhou a sua primeira toalha. Vamos lá, vamos lá.
Estava se contorcendo e virando de cabeça para baixo, o ar externo naquela altura era um choque gelado no pulmão. Tentava não inalar os cacos de vidro. Primeiras viagens para outros planetas. Ah, pelo amor de Zarquon, aquilo mais parecia um documentário imbecil sobre viagens antes da atração principal. Primeiros trabalhos para o Guia.
Ah!
Aqueles foram os bons tempos. Trabalhavam em uma cabana no Atol Bwenelli, em Fanalla, antes que os Riktanarqals e os Donqueds a destruíssem. Um seis caras, algumas toalhas, um punhado de equipamento digital altamente sofisticado e, o mais importante, muitos sonhos. Não. E o mais importante: muito rum fanalliano. Para ser absolutamente preciso, a coisa mais importante de todas era a Aguardente Janx, depois o rum fanalliano e depois algumas praias no Atol, freqüentadas pelas garotas locais, mas os sonhos também eram importantes. Que fim levaram?
Para falar a verdade, não conseguia lembrar direito quais eram os sonhos, mas pareciam enormemente importantes naquela época. Com certeza não envolviam o imenso arranha—céu de escritórios de onde estava despencando naquele momento. Aquilo tudo havia começado quando alguns membros da equipe original decidiram fixar moradia e ficaram gananciosos, enquanto ele e os outros permaneceram fazendo o trabalho de campo, pesquisando, pegando caronas e, gradualmente, ficando cada vez mais isolados do pesadelo corporativista que o Guia inexoravelmente havia se tornado e da monstruosidade arquitetônica em que se alojara. Onde ficavam os sonhos naquele lugar? Pensou em todos os advogados que ocupavam metade do prédio, todos os agentes que ocupavam os andares inferiores e todos os editores assistentes e suas secretárias e os advogados das secretárias e as secretárias dos advogados das secretárias e, o pior de tudo, os contadores e o Departamento de Marketing. Chegou a pensar em continuar caindo. Dois dedos para todos eles. Estava passando pelo décimo sétimo andar naquele momento. Era onde o Departamento de Marketing tagarelava. Um bando de babacas, todos discutindo qual deveria ser a cor do Guia e exercitando as suas habilidades infinitamente infalíveis de contar vantagem. Se eles tivessem olhado para a janela naquele momento, teriam ficado assustados com a visão de Ford Prefect caindo rumo à sua morte certa e fazendo sinais de V para eles.
Décimo sexto andar. Editores Assistentes. Imbecis. E tudo o que ele escrevera que os caras cortaram? Enviara quinze anos de pesquisa sobre um único planeta e eles resumiram tudo em duas palavras. "Praticamente inofensiva." Sinais de V para eles também.
Décimo quinto andar. Administração Logística, seja lá o que fosse. Todos tinham carrões. Seja lá o que fosse, pensou, era o que isso era. Décimo quarto andar. Recursos Humanos. Tinha uma suspeita muito perspicaz de que eles haviam arquitetado o seu exílio de quinze anos, enquanto o Guia se metamorfoseava em um monolito (ou melhor, duolito — não podia esquecer dos advogados) coorporativo.
Décimo terceiro andar. Pesquisa e Desenvolvimento.
Segura aí.
Décimo terceiro andar.
Estava sendo obrigado a pensar bem depressa porque a situação estava ficando um pouco urgente.
Lembrou—se subitamente do painel no elevador. Não tinha um décimo terceiro andar. Não dera muito atenção ao fato porque, depois de ter passado quinze anos no antiquado planeta Terra, onde as pessoas eram supersticiosas com o número treze, tinha se acostumado a estar em prédios onde não havia um décimo terceiro andar. Mas ali não fazia o menor sentido.
Não pôde deixar de notar, enquanto passava em queda livre pelo lado de fora, que as janelas do andar eram escuras.
O que estava se passando lá dentro? Começou a se lembrar de tudo o que Harl havia dito. Aquela história de um novo Guia, único e multidimensional, espalhado por um número infinito de universos. Tudo aquilo lhe soara, da maneira como Harl tinha contado, uma grande viagem inventada pelo Departamento de Marketing, com o apoio dos contadores. Se fosse mais real do que ele imaginara, então era uma idéia muito estranha e perigosa. Seria verdade? O que estava se passando por trás das janelas escuras do inacessível décimo terceiro andar?
Ford sentiu uma curiosidade crescendo dentro dele e, em seguida, uma sensação crescente de pânico. Aquela era, basicamente, a lista completa de sentimentos crescentes que ele tinha. No mais, sua distância em relação ao chão decrescia rapidamente. Precisava mesmo se concentrar em como sair daquela situação com vida. Deu uma olhada para baixo. Uns trinta metros abaixo, as pessoas já estavam se agrupando, algumas olhando para cima com expectativa, abrindo espaço para ele e até
mesmo interrompendo temporariamente a maravilhosa e completamente imbecil caçada aos Wockets.
Detestaria decepcioná-los, mas, a pouco mais de meio metro, sem que ele sequer tivesse percebido antes, estava Colin, obviamente felicíssimo, dançando e esperando que ele decidisse o que queria fazer.
— Colin! — berrou Ford.
Colin não respondeu. Ford gelou. Em seguida percebeu que não havia dito a Colin que o nome dele era Colin.
_ Vem cá! — berrou Ford.
Colin subiu até o seu lado. Estava aproveitando imensamente a queda e esperava que Ford também estivesse.
O mundo de Colin ficou inesperadamente escuro porque a toalha de Ford o envolveu. Sentiu-se imediatamente muito, muito mais pesado. Estava animado e contente com o desafio que Ford acabara de impor. Só não estava certo se conseguiria levá-lo adiante.
A toalha estava esticada sobre Colin. Ford estava pendurado nela, agarrado às suas costuras. Outros mochileiros gostavam de modificar suas toalhas de maneiras exóticas, tecendo nelas todo tipo de ferramentas e utilitários esotéricos e até mesmo equipamento computacional nos tecidos. Ford era um purista. Gostava de coisas simples. Carregava uma toalha normal, comprada em uma loja normal. A toalha dele tinha até mesmo uma espécie de estampa floral, azul e rosa, apesar das constantes tentativas de Ford para descolorir e desbotar o tecido. Tinha uns pedaços de fio enrascados na toalha, um pouco de grafite flexível e alguns nutrientes concentrados em uma das beiradas, para que ele sugasse em caso de emergência, mas, fora isso, era uma toalha comum, dessas que a gente usa para enxugar o rosto.
Deixara-se convencer por um amigo a fazer uma única modificação — reforçar as bainhas.
Ford agarrava-se às bainhas como um tarado.
Continuavam descendo, só que um pouco mais devagar.
—
Para cima, Colin! — gritou ele.
Nada.
—
O seu nome — gritou Ford — é Colin. Então, quando eu gritar "Para cima, Colin!", quero que você, Colin, suba. Entendeu? Para cima, Colin!
Nada. Ou melhor, uma espécie de gemido abafado vindo do robô. Ford estava tenso. Estavam descendo bem devagar, mas o que estava deixando Ford tenso eram as pessoas que estavam se juntando lá embaixo. Amistosas, locais. Os caçadores de Wockets estavam se dispersando e, em seu lugar, criaturas com aparência de lesmas grandonas, pesadas e abrutalhadas, com lançadores de foguete, surgiram do que geralmente chamamos de nada. Nada, como todo viajante galáctico experiente sabe muito bem, é na verdade algo extremamente denso e com complexidades multidimensionais.
—
Para cima — berrou Ford novamente. — Para cima! Colin, sobe!
Colin estava fazendo um esforço descomunal e gemendo. Estavam agora mais ou menos parados no ar. Ford tinha a sensação de que os seus dedos estavam se quebrando.
—
Pa ra cima!
Continuavam parados no mesmo lugar.
—
Sobe, sobe, sobe! — Uma lesma estava se preparando para lançar um foguete contra ele. Ford mal podia acreditar. Estava pendurado no ar por uma toalha, com uma lesma se preparando para lançar foguetes sobre ele. Suas possíveis alternativas estavam se esgotando e começou a ficar seriamente assustado. Em situações como essa é que mais precisava do Guia para lhe dar algum conselho, por mais enervante ou superficial que fosse, mas não era a hora de vasculhar os bolsos. E o Guia não parecia mais ser um amigo e aliado, e sim uma fonte de perigo. Afinal de contas, estava despencando do prédio do próprio Guia, tendo a sua vida ameaçada pelas pessoas que pareciam ter o controle da empresa agora. Que fim levaram todos os sonhos que ele vagamente se lembrava de ter tido no Atol Bwenelli? Deviam ter deixado tudo como estava. Deviam ter ficado por lá. Ficado na praia. Amado mulheres bacanas. Vivido dos peixes. Ele devia ter percebido que estava tudo errado quando começaram a pendurar pianos de cauda sobre a piscina do monstro marinho no hall. Começou a se sentir completamente infeliz e aflito. Os seus dedos queimavam de dor. E o seu tornozelo continuava doendo.
Ah, muito obrigado, tornozelo, pensou ele, amargo. Obrigado por mencionar seus problemas justo agora. Imagino que você esteja a fim de uma boa bacia de água quente para levantar o seu astral, não é mesmo? Ou, no mínimo, você gostaria que eu... Teve uma idéia.
A lesma armada posicionou o lançador de foguetes no ombro. O foguete, presumivelmente, era projetado para atingir qualquer coisa que se movesse no seu caminho.
Ford tentou não suar, porque sentia que a toalha escorregava de suas mãos. Com o dedão do pé que não estava machucado, cutucou e forçou o calcanhar do sapato no pé que doía.
— Para cima, droga! — resmungou Ford inutilmente para Colin, que estava alegremente se matando de tanto esforço, mas não conseguia subir. Ford continuou insistindo no calcanhar do sapato.
Estava tentando calcular o melhor momento, mas não fazia sentido. Tinha que mandar ver e pronto. Uma única chance, era tudo o que tinha. O sapato estava agora solto na parte do calcanhar. O seu tornozelo machucado sentiu-se um pouco melhor. Bom, aquilo era gostoso, não era?
Chutou o sapato, que deslizou pelo seu pé e mergulhou no ar. Meio segundo depois, um foguete surgiu da boca do lançador, encontrou o sapato caindo em sua trajetória, partiu para cima dele com tudo, atingiu—o e explodiu com um enorme senso de satisfação e conquista.
Isso tudo aconteceu a uns 5 metros do chão.
A força principal da explosão foi direcionada para baixo. Onde, um segundo antes, havia um esquadrão de executivos da Corporação Infinidim com lançadores de foguetes na elegante praça, pavimentada com enormes lousas de pedra polida oriunda das antigas pedreiras de alabastro de Zentalquabula, existia agora apenas um pequeno poço com pedaços pútridos dentro.
Uma lufada de ar quente subiu da explosão, lançando Ford e Colin violentamente para cima. Ford tentou desesperada e cegamente agarrar-se a alguma coisa, mas não conseguiu. Foi arremessado para o alto, atingiu o ápice de uma parábola, fez uma breve pausa e começou a cair novamente. Foi caindo, caindo, caindo e, de repente, enroscou-se em Colin, que ainda estava subindo.
Agarrou-se desesperadamente ao pequeno robô esférico. Colin girava sem controle pelo ar em direção à torre dos escritórios do Guia, tentando alegremente se controlar e diminuir o ritmo.
O mundo girou de forma nauseante em torno da cabeça de Ford enquanto eles giravam um em volta do outro e então, de maneira igualmente nauseante, tudo parou. Ford viu-se jogado, ainda tonto, no parapeito de uma janela. A sua toalha passou voando e ele a alcançou, segurando firme. Colin oscilava no ar, bem próximo.
Ford olhou à sua volta — atordoado, machucado, sangrando e sem fôlego. O
parapeito não tinha mais que trinta centímetros e ele estava precariamente empoleirado nele, a treze andares do chão.
Treze.
Sabia que estavam no décimo terceiro andar porque as janelas eram escuras. Estava amargamente chateado. Pagara um preço absurdo por aqueles sapatos em uma loja no Lower East Side de Nova York. Havia, por causa disso, escrito um artigo inteiro sobre as alegrias proporcionadas por calçados de qualidade, e tudo isso tinha sido jogado fora no fiasco do "Praticamente inofensiva". Que merda. E agora perdera um dos sapatos. Jogou a cabeça para trás e contemplou o céu. Não seria uma tragédia tão amarga se o planeta em questão não tivesse sido demolido, o que significava que ele sequer poderia comprar outro par. Sim, devido à infinita extensão lateral da probabilidade, havia, certamente, uma multiplicidade quase infinita de planetas Terra, mas, quando era realmente necessário, um par de sapatos de qualidade não era algo que pudesse ser substituído apenas zanzando pelo espaço-tempo multidimensional.
Suspirou.
Paciência, era melhor tentar ver o lado bom da coisa. Pelo menos o sapato salvara a sua vida. Por enquanto.
Estava empoleirado em um parapeito de menos de trinta centímetros no décimo terceiro andar de um prédio e não tinha certeza se tudo aquilo valia um bom sapato. Aturdido, espreitou através dos vidros escuros.
Estava escuro e silencioso, como um túmulo.
Não. Aquilo era um pensamento ridículo. Já estivera em altas festas em túmulos.
Será que conseguiria detectar algum movimento? Não tinha certeza. Tinha a impressão de estar distinguindo uma estranha sombra de asas batendo. Talvez fosse apenas o sangue pingando sobre os seus cílios. Enxugou os olhos. Cara, adoraria ter uma fazenda em algum lugar, criar ovelhas. Espiou novamente pela janela, tentando distinguir a silhueta, mas tinha a sensação, tão comum no universo naqueles dias, de que estava diante de alguma ilusão de ótica e que os seus olhos estavam lhe pregando peças. Havia algum pássaro lá dentro? Era isso o que eles escondiam lá em cima, em um andar secreto, protegido por vidros escuros à prova de foguetes? O aviário de alguém? Havia, com certeza, alguma coisa batendo asas lá dentro, mas não parecia ser um pássaro, estava mais para um buraco no espaço no formato de um pássaro. Fechou os olhos, coisa que já estava querendo fazer há algum tempo, por sinal. Perguntava-se o que deveria fazer em seguida. Pular? Escalar? Não tinha como quebrar aquele vidro. Tudo bem, o vidro supostamente à prova de foguetes não conseguira suportar um foguete na prática, mas aquele tinha sido um foguete disparado a curtíssima distância vindo de dentro, o que provavelmente não era o que os engenheiros tinham em mente ao projetá-lo. Isso, contudo, não significava que ele fosse conseguir quebrar o vidro enrolando a toalha no punho e socando a janela. Que diabos, tentou assim mesmo e acabou machucando a mão. Ainda bem que não conseguira um bom impulso de onde estava, senão teria se machucado feio. O prédio tinha sido reforçado maciçamente quando foi reconstruído do zero após o ataque de Frogstar e era, possivelmente, a editora com a blindagem mais pesada naquele ramo, mas havia sempre algum ponto fraco em qualquer sistema projetado por um comitê corporativo. Já havia descoberto um deles. Os engenheiros que projetaram as janelas não esperavam que fosse atingida por um foguete a curta distância vindo de dentro, então a janela havia quebrado. Então o que os engenheiros teriam esperado que uma pessoa sentada no parapeito do lado de fora da janela pudesse fazer?