Eu estava deitado no quarto escuro. Sonolento, olhava fixamente — havia quanto tempo? — o mostrador luminoso do meu relógio de pulso. Podia ouvir minha respiração e sentia um vago espanto. Na realidade, estava pouco me incomodando com aquele círculo de números fosforescentes e mesmo com meu espanto. Atribuía tudo aquilo à fadiga: o torpor, o espanto, a indiferença. Virei-me de lado. A cama me pareceu estranhamente larga. Prendi a respiração. Nenhum ruído perturbava o silêncio. Rheya! Por que eu não estava ouvindo a respiração dela? Estendi o braço por toda a superfície da cama. Eu estava só.
Ia gritar por Rheya quando ouvi passos. Um homem grande e pesado se aproximava…
— Gibarian? — perguntei tranqüilamente.
— Sim, sou eu. Não acenda a luz!
— Por quê?
— Não é preciso. É melhor ficarmos no escuro.
— Mas você está morto?
— Não se preocupe com isso! Você reconheceu minha voz, não é?
— Reconheci. Por que você se matou?
— Não tinha outra solução. Você chegou com um atraso de quatro dias. Se tivesse chegado mais cedo, talvez eu não tivesse sido obrigado a me matar. Mas, não se aflija. Não me arrependo.
— Você está mesmo aí? Não estou sonhando?
— Ah, você pensa estar sonhando comigo, como julgou sonhar com Rheya?
— Onde está ela?
— Por que devo saber onde ela está?
— Tenho a impressão de que você sabe.
— Fique com as suas impressões. Digamos que eu a estou substituindo.
— Queria que ela também estivesse aqui! — E impossível.
— Por quê? Você sabe muito bem que, na realidade, não está aqui, que sou eu que…
— Não. Sou eu mesmo. Sou eu outra vez. Mas não vamos perder tempo com conversas inúteis!
— Você vai embora?
— Vou.
— E então ela voltará?
— Você insiste? Ela é o quê, para você?
— Ela me pertence.
— Você tem medo dela.
— Não.
— Ela lhe inspira repulsa…
— Que é que você sabe de mim?
— Você tem o direito de se lamentar da sorte, mas não da dela. Ela terá sempre vinte anos. Você sabe muito bem!
De súbito, sem motivo preciso, fiquei calmo. Ouvia-o tranqüilamente. Pareceu-me que ele havia se aproximado e estava agora junto à cama. Eu não o estava vendo. A escuridão continuava impenetrável.
— Que é que você quer? — murmurei.
— Ele demorou um instante a responder.
— Sartorius convenceu Snow de que você o enganou. Agora são eles que estão querendo enganar você. Sob o pretexto de montar um aparelho emissor de raios-x, estão construindo um aniquilador de campo magnético.
— Onde está Rheya?
— Não está me ouvindo? Vim avisá-lo!
— Onde está ela?
— Não sei. Tome cuidado! Você vai precisar de uma arma. Não poderá confiar em ninguém.:
— Tenho confiança em Rheya.
Ouvi um som abafado. Gibarian estava rindo.
— Evidentemente, você pode contar com ela até um certo ponto. E, afinal de contas, sempre pode recorrer ao mesmo expediente que eu.
— Você não é Gibarian.
— Ah, não? Quem sou eu? Um personagem de sonho?
— Não. Apenas um fantoche. Mas não tem consciência disso.
— E como você sabe quem é você?
Quis me levantar, mas não pude me mexer. Gibarian continuava a falar. Eu não entendia o que ele dizia. Ouvia apenas o som de sua voz. Lutei desesperadamente, tentando vencer a inércia do meu corpo. Uma sacudidela e… eu acordaria. Sorvi o ar com avidez. Era noite. Eu havia sonhado, tivera um pesadelo. E então ouvi uma voz longínqua, monótona:
— …um dilema do qual somos incapazes de sair. Nós nos perseguimos. Os polípteros servem-se unicamente de uma espécie de ampliador seletivo dos nossos pensamentos. Assim que tentamos encontrar a motivação desses fenômenos, caímos no antropomorfismo. Onde não há homens, não pode haver motivos acessíveis ao homem. Para poderem continuar as pesquisas, é preciso destruir os próprios pensamentos, ou seja, sua forma materializada. Não temos o poder de destruir nossos pensamentos. Quanto a destruir sua forma materializada, isso seria uma espécie de assassinato.
Reconheci imediatamente a voz de Gibarian. Apalpei o lençol ao meu lado. Estava sozinho na cama. Voltara a dormir e estava sonhando…
Interpelei-o.
— Gibarian?
A voz se interrompeu no meio de uma palavra. Ouvi um débil som e senti uma corrente de ar no rosto. Bocejei.
— Poxa, Gibarian, você me persegue de um sonho para outro…
Ouvi um barulho bem junto de mim. Elevei a voz?
— Gibarian?
As molas da cama rangeram. Uma voz murmurou no meu ouvido:
— Kris… sou eu.
— É você, Rheya? E Gibarian?
— Kris… Kris… mas ele… você me disse que ele morreu! Respondi, com voz arrastada:
— Ele pode viver num sonho.
Apesar disso, eu não tinha certeza absoluta de que se tratava de um sonho.
— Ele me falou, esteve aqui…
Eu estava morrendo de sono. «Se eu estou com sono», pensei, «é melhor dormir.» Rocei os lábios no braço macio de Rheya e me aconcheguei no travesseiro. Rheya ainda falou qualquer coisa, mas eu já estava meio adormecido.
À luz vermelha da manhã, lembrei-me dos acontecimentos da noite. Eu havia sonhado que tinha falado com Gibarian. Mas depois… Eu ouvira a voz dele, era capaz de jurar. Não me lembrava direito do que ele dissera. Não fora exatamente uma conversa, parecera mais um monólogo. Um monólogo?…
Rheya estava se aprontando. Havia água correndo no banheiro. Olhei debaixo da cama, onde havia escondido o gravador. Não estava mais lá.
— Rheya! — Ela mostrou o rosto molhado. — Você não viu um gravador debaixo da cama, um pequeno, de bolso?
— Havia muita coisa debaixo da cama. Pus lá!
Ela apontou para uma prateleira ao lado do armarinho da farmácia e sumiu no banheiro. Pulei da cama.
Não tive nenhum sucesso na busca. Quando Rheya saiu do banheiro, disse-lhe:
— Você naturalmente reparou no gravador…
Ela começou a se pentear defronte do espelho e não respondeu. Só então reparei que Rheya estava pálida e seu olhar, quando encarou-me através do espelho, exprimia uma curiosidade desconfiada.
Teimoso, insisti:
— Rheya, o gravador não está na prateleira!
— Você não tem nada mais importante para falar?
— Desculpe — resmunguei. Você tem razão, sou um idiota por criar tanto caso por um gravador. Não, principalmente nada de brigas!
Fomos tomar o café da manhã. Rheya não se comportava como nos outros dias. Mas eu não conseguia definir a diferença.
Ela olhava em volta. Inúmeras vezes, absorta, não ouvia o que eu dizia. E uma vez, quando tornou a erguer a cabeça, vi que seus olhos estavam úmidos.
— Que é que você tem? Por que está chorando? — murmurei. Rheya balbuciou:
— Oh, me deixe em paz! Não são lágrimas de verdade.
Talvez não me contestasse com aquela resposta se não temesse tanto as «conversas francas». Eu estava, aliás, preocupado com outras coisas. Sonhara que Snow e Sartorius conspiravam contra mim e, não obstante estar certo de ter apenas sonhado, fiquei pensando se encontraria alguma arma defensiva na estação. Só me preocupei em arranjar uma arma, sem procurar pensar o que iria fazer com ela. Disse a Rheya que tinha de ir verificar os estoques no almoxarifado. Ela me acompanhou em silêncio.
Revirei as caixas, remexi nas cápsulas e, quando cheguei bem embaixo, não consegui deixar de dar uma olhada na sala de refrigeração. Não quis deixar Rheya entrar. Entreabri a porta e percorri o local com os olhos. A mortalha escura cobria uma forma estendida. Da porta, fui incapaz de ver se a negra continuava a dormir ao lado do cadáver de Gibarian. Pareceu-me que ela não estava mais lá.
Não encontrei nada que me fosse útil. Andei de um depósito para outro e meu humor piorava cada vez mais. Subitamente, verifiquei que Rheya havia desaparecido. Ela, porém, reapareceu logo — havia demorado no corredor. Então, por mais penoso que fosse me perder de vista, mesmo por um instante, ela havia tentado afastar-se de mim! Era surpreendente. Apesar disso, continuei a adotar uma atitude ofendida — mas quem, no entanto, me ofenderia? — e a me portar, de fato, como um cretino.
Eu estava com uma dor de cabeça terrível. Irritado, esvaziei toda a farmácia. Não havia analgésicos! Eu não tinha vontade de ir de novo à sala de operações. Não tinha vontade de nada. Nunca estivera com tanto mau humor. Rheya deslizava pelo armazém como uma sombra. De vez em quando sumia — não sei para onde, nem lhe prestava atenção — e depois voltava.
À tarde, na cozinha (acabávamos de almoçar, mas Rheya não havia comido absolutamente nada. Sofrendo com minha dor de cabeça, eu também, sem apetite, não fiz qualquer esforço para que ela comesse), Rheya levantou-se e veio sentar perto de mim. Puxou a manga da minha blusa.
— O que é? — resmunguei. Eu tinha a intenção de subir, pois os canos ressoavam cheios de crepitaçÕes. Ao que parecia, Sartorius estava fazendo uso de um aparelho de alta voltagem. Mas eu teria de levar Rheya comigo. Sua presença, já difícil de justificar na biblioteca, iria provocar lá, junto das máquinas, algum comentário inoportuno de Sartorius. Desisti de ir.
— Kris — murmurou ela —, que é que há entre nós? Suspirei sem querer. Decididamente, aquele não era meu dia.
— Vai tudo bem, por quê?
— Eu queria lhe falar.
— Bem, fale.
— Não assim.
— Como? Estou com dor de cabeça e você sabe que tenho uma porção de problemas…
— Um pouco de boa vontade, Kris!
Forcei um sorriso. Foi, certamente, um sorriso deplorável.
— Fale, minha querida, estou ouvindo.
— Você me dirá a verdade?
Franzi a testa. Aquele começo não estava me agradando.
— Por que iria mentir?
— Talvez você tenha algum motivo, motivo sério. Mas se você quer que… olhe, não minta para mim!
Eu continuava calado.
— Vou lhe dizer uma coisa e depois você me dirá também. Está bem? Mas prometa responder a verdade, sem desvios!
Evitei seus olhos, que procuravam os meus.
— Já disse a você que não sei como cheguei aqui. Talvez você saiba. Espere! Talvez não saiba. Mas se sabe e não pode dizer agora, você me dirá um dia, mais tarde? Eu estou bem agora, e você, em todo caso, me dará uma chance.
Um sangue gelado corria em minhas veias.
— Que é isso? Que chance? — gaguejei.
— Kris, quem quer que eu seja, não sou criança. Você prometeu responder.
«Quem quer que eu seja!» Minha garganta estava apertada. Fiquei olhando Rheya e sacudindo estupidamente a cabeça, como se estivesse evitando ouvir mais.
— Não estou pedindo explicações. Basta que você me diga que não está autorizado a falar.
— Não estou escondendo nada… — respondi, com voz rouca.
Rheya levantou-se:
— Muito bem.
Eu quis dizer alguma coisa. Não podíamos continuar assim. Mas as palavras não saíam.
— Rheya…
Em pé diante da janela, Rheya estava de costas para mim. O oceano azul-escuro estendia-se sob um céu limpo.
— Rheya, se você acredita que… Rheya, você sabe muito bem que eu a amo…
— Eu?
Cheguei para perto dela. Queria abraçá-la. Ela se esquivou e empurrou minha mão.
— Você é bom demais — disse ela. — Você me ama? Preferia que me batesse!
— Rheya, meu amor!
— Não, não, cale a boca!
Ela voltou para a mesa e empilhou os pratos. Fiquei olhando o oceano. O sol declinava. A sombra da estação se alongava, ondulando com o movimento do oceano. Rheya deixou um prato cair. A água corria na pia. Um arco de ouro fosco cingia o firmamento avermelhado. Se pelo menos eu soubesse o que fazer! Oh, se eu soubesse… De repente, fez-se silêncio. Rheya estava atrás de mim.
— Não, não se vire — disse ela, em voz baixa. — Você não tem culpa de nada, Kris, eu sei. Não se atormente.
Estendi o braço para pegá-la. Ela correu para o fundo da cozinha e levantou uma pilha de pratos.
— Que pena serem inquebráveis! Eu os quebraria, arrebentaria todos!
Pensei, por um momento, que ela ia mesmo atirar os pratos no chão. Mas Rheya olhou-me e sorriu.
— Não tenha medo, não vou fazer cenas.
Com os sentidos alertas, acordei no meio da noite e senteime na cama. O quarto estava escuro, vendo-se apenas através da porta entreaberta uma pálida claridade vinda do átrio. Ouvi um sinistro siflar, acompanhado de pancadas pesadas, amortecidas, como se algum corpo maciço batesse furiosamente contra uma parede. Um meteoro havia se chocado com a carapaça da estação! Não, não era um meteoro e sim um foguete, pois eu estava ouvindo uma terrível respiração ofegante, arrastada…
Sacudi-me. Não havia mais foguete nem meteoro. Alguém ofegava no fim do corredor!
Corri na direção do banheiro. Vi um retângulo luminoso. A porta da pequena oficina estava aberta. Entrei.
Fui envolvido por um vapor gelado. Minha respiração saía em forma de neve. Flocos brancos dançavam sobre um roupão de banho e, dentro do roupão, havia um corpo que se erguia com esforço e batia no chão. A nuvem de geada não me deixava ver claro. Atirei-me sobre Rheya e segurei-a pelo meio do corpo. O roupão me queimava a pele.
Rheya continuava a arquejar. Corri pelo corredor, passei por várias portas e deixei de sentir frio. Sentia apenas uma respiração que queimava minha nuca como uma chama.
Coloquei Rheya na mesa de operações e abri o roupão. Rheya! Um rosto sofredor agitado por tremores. Os lábios estavam cobertos por uma espessa e negra camada de sangue gelado. A língua brilhava, eriçada de cristais de gelo.
Oxigênio líquido… As garrafas cilíndricas, empilhadas na oficina, continham oxigênio. Pedaços de vidro haviam estalado sob meus pés quando me aproximei de Rheya.
Que quantidade ela teria bebido? Pouco importa. A traquéia-artéria, a garganta, os pulmões, estava tudo queimado. O oxigênio líquido rói a carne mais seguramente que os ácidos concentrados. Sua respiração começava a enfraquecer — era apenas um rangido, um barulho seco de papel rasgado. Tinha os olhos fechados. Começava a agonizar.
Examinei os grandes armários envidraçados, cheios de instrumentos e medicamentos. Uma traqueotomia? Uma incubação? Ela não tinha mais pulmões! Remédios? Havia tantos!
Filas de frascos de cor e caixas se alinhavam nas prateleiras. Ela ainda ofegava e um filete de névoa escapava dos seus lábios entreabertos.
Os térmicos…
Comecei a procurá-los e depois mudei de idéia. Corri para um outro armário e remexi nas caixas de injeções. E então uma seringa — onde estavam as seringas? Ali estava uma, mas precisava ser esterilizada. Lutei em vão com a tampa da autoclave. Meus dedos dormentes, insensíveis, não se dobravam.
O som da respiração ofegante de Rheya aumentou. Pulei para junto dela. Rheya havia aberto os olhos.
— Rheya!
Não chegava a ser um murmúrio. Eu estava sem voz. Meu rosto não me pertencia mais, meus lábios não me obedeciam. Meu rosto era uma máscara de gesso. Olhei para Rheya. As costelas arquejavam sob sua pele branca. A neve havia derretido e seus cabelos úmidos estavam espalhados no travesseiro. E Rheya me olhava. — Rheya!
Eu era incapaz de dizer qualquer outra coisa. Estava ali parado, ereto, e minhas mãos caíam ao lado do meu corpo, como elementos estranhos. Comecei a ter uma sensação de queimadura, que começava nos pés e foi subindo, atingindo meus lábios e olhos.!
Uma gota de sangue fundiu-se e escorreu ao longo do rosto de Rheya, deixando um traço oblíquo. A língua tremeu e desapareceu. Rheya continuava a arquejar.
Peguei seu pulso e não percebi nenhuma batida. Colei o ouvido sob seu seio esquerdo, contra seu corpo gelado. Ouvi o barulho de uma tempestade e, ao longe, um galope — as batidas do coração — tão acelerado que eu não podia contá-las. Fiquei assim, inclinado, com os olhos fechados, quando senti que algo me tocava a cabeça. Rheya havia passado os dedos nos meus cabelos. Ergui-me.,
Ela gemeu:
— Kris!
Peguei-lhe a mão e Rheya respondeu meu gesto com uma pressão que me esmagou os ossos. Depois seu rosto se contraiu de maneira atroz e ela desmaiou outra vez. Eu só via o branco de seus olhos. Um ronco estridente rasgou sua garganta e seu corpo inteiro foi sacudido por estertores. Custou-me mantê-la em cima da mesa de operações. Escapou de minhas mãos e sua cabeça foi se chocar com uma bacia de porcelana. Tornei a agarrá-la e tentei dominá-la mas, a cada instante, um violento espasmo a sacudia e ela se libertava do meu abraço. Eu estava empapado de suor e minhas pernas fraquejavam. Quando as convulsões diminuíram, tentei fazê-la deitar-se. Ela arqueou o torso e aspirou profundamente o ar. De repente, os olhos, os olhos de Rheya, iluminaram aquele horrível rosto ensangüentado.
— Kris… desde quando… desde quando, Kris? Sufocou-se e uma espuma rosada subiu-lhe aos lábios. As convulsões recomeçaram. com o resto de minhas forças, agarrei seus ombros. Ela caiu de costas e seus dentes entrechocaram-se. Estava arquejante.
— Não, não, não — suspirou ela e pensei que o fim se aproximava.
As convulsões mais uma vez recomeçaram. E, novamente, apertei-a nos meus braços. De vez em quando ela sorvia o ar com dificuldade e suas costelas desenhavam-se. Depois, suas pálpebras semicerraram-se sobre os olhos cegos. Inteiriçou-se. Agora era o fim. Nem tentei limpar a espuma dos seus lábios. Ouvi uma campainha ao longe. Eu estava esperando seu último suspiro. Então minhas forças me abandonaram completamente e desabei no chão.
Ela continuou a respirar. O arquejar não passava de um leve siflar. O peito, que nenhum tremor agitava mais, recomeçou a se animar ao ritmo rápido das batidas do coração. Suas faces começaram a ficar coradas. Curvado, fiquei olhando para ela, ainda sem compreender. Minhas mãos estavam úmidas e uma matéria macia e leve tapava meus ouvidos. Apesar disso, continuava ouvindo aquela persistente campainha. Rheya ergueu as pálpebras e nossos olhos se encontraram. Eu quis pronunciar o nome dela e nenhum som atravessou meus lábios. Meu rosto estava como morto, ainda sob aquela máscara opressora. Só pude olhar para ela.
Rheya mexeu a cabeça e examinou a sala. Em algum lugar, por trás de mim, num outro mundo, a água caía gota a gota de uma torneira mal fechada. Rheya apoiou-se num cotovelo e depois sentou-se. Recuei, sob seu olhar observador.
— Que foi? — disse ela. — Que é que há? Não deu certo? Por que… por que você me olha assim?
E, subitamente, num grito atroz: — Por que você me olha assim?
Silêncio. Ela ficou olhando para as mãos e mexeu os dedos.
— Sou eu? — perguntou.
Deixei cair, num murmúrio:
— Rheya…
— Rheya? — ela repetiu.
Tropeçou, recuperou o equilíbrio e deu alguns passos. Agia num estado de estupor e me olhava sem parecer me ver.
— Rheya? — tornou a repetir. — Mas… não sou Rheya. Quem… sou eu? Rheya? E você, você?
Seus olhos se arregalaram, brilharam e um sorriso espantado iluminou seu rosto.
— E você, Kris? Talvez você também…
Calei-me. Eu havia recuado até a parede e me apoiava na porta de um armário., O sorriso esrumou-se.
— Não — disse ela. — Não, você está com medo. Não posso mais suportar essa situação. E impossível. Eu não sabia nada. Mesmo agora não estou compreendendo nada. Não, é impossível! Eu…
Cerrou os punhos brancos e bateu no peito.
— Eu não sabia nada a não ser… a não ser que eu era Rheya! Você talvez ache que estou fingindo, mas não estou, juro, não estou!
Gemeu as últimas palavras e caiu no chão, soluçando. Qualquer coisa cedeu dentro de mim. De um pulo, cheguei ao lado dela e a envolvi com os braços. Ela reagiu, me repelindo ao mesmo tempo que soluçava sem lágrimas e gritava:
— Me deixe, me deixe! Eu enojo você, eu sei! Não quero, não quero! Você bem sabe que eu não sou eu, não sou eu, NÃO SOU EU…
Comecei a sacudi-la e a berrar.
— Cale-se!
Ajoelhados um em frente ao outro, estávamos ambos berrando. A cabeça de Rheya caiu sobre meu ombro. Apertei-a contra mim com toda força. Arquejantes, ficamos imóveis.
A água caía, gota a gota, da torneira. -r Ela murmurou, com o rosto escondido no meu ombro:
— Kris… me diga o que devo fazer para sumir! Kris…
Ela ergueu a cabeça e me olhou.
— Como? Você também não sabe? Não se pode fazer nada, nada?
— Rheya… por favor?
— Tentei… Não, não, me deixe, não quero que você me toque! Eu enojo você.
— Não é verdade!
— Você está mentindo…
— Enojo, sim… e eu também sinto nojo de mim…
— Oh! Se eu pudesse… se eu pudesse…
— Você se mataria?
— Mataria.
— Mas eu não admito! Você compreendeu? Não admito que você morra. Quero que você fique aqui, comigo, é só o que quero!
Seus enormes olhos cinzentos fixaram-se em mim.
— Você está mentindo — disse ela, baixinho. Larguei-a e me levantei, deixando-a sentada no chão.
— Diga o que devo fazer para que você acredite em mim! Juro que não estou mentindo. Só você existe, só você tem importância para mim.
— É impossível que você esteja falando a verdade, uma vez que eu não sou Rheya.
— Então, quem é você?
Ela ficou calada muito tempo. Seu queixo tremeu várias vezes. Finalmente, baixou a cabeça e murmurou:
— Rheya… mas… não sei se é verdade. Não fui eu… a quem você amou antigamente. Está entendendo?
Ela sacudiu a cabeça.
— Você é bom. Não pense que não aprecio tudo o que você fez. Agiu como achou que era melhor, fez tudo o que pôde. Mas não há nada a fazer. Na primeira manhã, quando esperei, ao lado da sua cama, que você acordasse, eu não sabia nada. Só se passaram três dias, mas me parece que foi há muito tempo. Me comportei como uma doida.
Estava atordoada. Não me lembrava de nada, não me espantava com coisa alguma, sentia-me como alguém depois de uma narcose ou de uma longa doença. Cheguei mesmo a pensar que talvez tivesse estado muito doente e que você não quisesse me dizer. Depois, certos fatos me fizeram refletir. Você sabe a que estou me referindo. Em seguida, você teve aquela conversa na biblioteca com aquele homem como é o nome dele? — ah, Snow. Você se recusou a me explicar as coisas e então me levantei no meio da noite e fui escutar a fita. Essa foi a única vez em que menti, Kris. Quando você procurou o gravador, eu sabia onde ele estava e o escondi. O homem que fez a gravação… como se chama?
— Gibarian.
— É, Gibarian. Ouvindo a fita, compreendi tudo. Embora, na verdade, continue sem nada compreender. Eu ignorava, apenas, que não posso me… que não sou… que não há fim. Ele nada disse a esse respeito. Talvez tenha dito, mas você acordou e parei o gravador. Eu havia escutado o suficiente para saber que não sou um ser humano, mas um instrumento.
— Que diabo de história é essa?
— E isso mesmo. Para estudar as suas reações, ou qualquer coisa assim. Cada um de vocês tem um… instrumento igual a mim. Nós saímos das recordações ou da imaginação de vocês, não sei direito. Aliás, você sabe melhor que eu. Ele fala de coisas tão terríveis, tão incríveis… Se não combinassem com o resto, eu não teria acreditado!
— O resto?
— Oh, com o fato de eu não ter necessidade de dormir e ter de seguir você para todos os lados. Ainda ontem eu pensava que você me detestava e isso me deixava infeliz.
Que idiota! Mas como eu podia adivinhar a verdade? Ele, Gibarian, absolutamente não odiava aquela mulher que estava ao lado dele, mas fala a seu respeito de uma forma tão… tão espantosa! Só então compreendi que nada dependia de mim, que podia fazer isto ou aquilo, pouco importa, e que isso seria sempre uma tortura para você. Pior que uma tortura, porque os instrumentos da tortura são passivos e inocentes, tão inocentes quanto a telha que cai e mata. Que um instrumento de tortura o ame e deseje seu bem, é coisa acima da minha compreensão. Quis contar-lhe tudo isso, comunicar-lhe o pouco que compreendi. Pensava que isso lhe poderia ser útil. Tentei mesmo tomar algumas notas…
Pigarreei e perguntei, com dificuldade: — Foi por isso que você acendeu a luz?
— Foi. Mas não pude escrever nada. Eu procurava em mim essa… você sabe, essa «influência»… estava meio louca. Me parecia que eu não tinha corpo sob a pele, que havia em mim qualquer coisa de… de diferente, que eu só era aparência, destinada a enganá-lo. Sabe?
— Sei.
— Quando não se dorme de noite e se fica pensando durante horas, a imaginação nos leva muito longe e por caminhos estranhos…
— É, eu sei.
— Mas eu sentia meu coração bater. E lembrei-me de que você analisou meu sangue. Como é meu sangue? Diga a verdade! Agora você pode falar sempre a verdade.
— Seu sangue é igual ao meu.
— Mesmo?
— Juro.
— Isso quer dizer o quê? Eu pensava que esse… essa coisa desconhecida talvez estivesse escondida em algum lugar dentro de mim, talvez ocupasse um lugar muito pequeno.
Mas eu não sabia onde ela se escondia. Agora acho que estava tentando encontrar um subterfúgio, porque não tinha coragem de me decidir. Eu tinha medo, procurava outra saída. Mas, Kris, se tenho o sangue igual ao seu… se, de fato… Não, é impossível. Eu já estaria morta, não é? Isso quer dizer que há, de fato, alguma diferença. E onde está ela? Na cabeça? Suponho, porém, que penso igual a qualquer outro ser humano… e, eu não sei nada! Se essa coisa desconhecida pensasse dentro da minha cabeça, eu saberia tudo. E não amaria você. Fingiria, teria consciência do fingimento… Kris, por favor, me conte tudo o que você sabe.
Talvez consigamos descobrir uma solução!
— Que solução? Ela ficou calada.
— Você queria morrer?
— Acho que sim.
Outra vez o silêncio. Rheya continuava sentada. Olhei a sala, os móveis esmaltados de branco, os instrumentos reluzentes. Meu olhar procurava desesperadamente agarrar-se a algum apoio até então insuspeitado e que tivesse subitamente se revelado.
— Rheya, posso também dizer alguma coisa? Ela aguardou em silêncio.
— De fato, você não é exatamente igual a mim. Mas não há nada de mau nisso. Pelo contrário. Seja qual for a opinião que tenha a esse respeito, é graças a essa… diferença que você não morreu.
Rheya deixou aparecer um ligeiro sorriso, doloroso, um sorriso de criança triste. — Quer dizer que eu sou… imortal?
— Não sei. Em todo caso, você é muito menos vulnerável que eu.
— E terrível… — Rheya murmurou.
— Talvez menos do que você pensa. dessas intenções e eu não contradirei isso. Também eu não posso prever o futuro. Nem mesmo posso garantir que a amarei sempre. Considerando o acontecido, devemos estar preparados para tudo. Quem sabe não serei, amanhã, transformado numa medusa verde? Nada depende de nós. Mas, já que depende de nós tomar hoje uma decisão, decidamos ficar juntos! O que você acha?
— Olhe, quero perguntar ainda… eu… eu pareço muito com ela?
— Você parecia demais. Agora, já não sei.
— Não estou compreendendo…
Rheya levantou e ficou me olhando com seus olhos imensos.
— Agora só há você.
— E tem certeza de que não é ela, mas eu somente, eu que…
— Sim, você. Se você fosse de fato ela, eu talvez não pudesse amá-la…
— Por quê?
— Porque cometi algo horrível. -Você foi… mau com ela?
— Fui, quando nós…
— Não fale!
— Por quê?
— Para que você não esqueça que sou eu que estou aqui e não ela