O Pequeno apócrifo


Meu rosto e mãos estavam queimados. Lembrei-me de que, procurando um sonífero para Rheya (não tinha ânimo para rir da minha ingenuidade), notei um pote de ungüento contra queimaduras. Voltei, então, para meus aposentos.

Abri a porta. O crepúsculo vermelho iluminava o quarto, Havia alguém sentado na poltrona junto à qual Rheya estivera ajoelhada. Fiquei paralisado pelo terror, um terror pânico que me obrigava a fugir. Isso durou uma fração de segundo. O vulto sentado levantou a cabeça. Era Snow. com as pernas cruzadas (continuava a usar a calça de linho manchada de ácidos), estava examinando algumas folhas de papel. Havia um maço de folhas sobre uma mesinha ao lado dele. Baixou a mão que segurava os papéis, fez os óculos escorregarem para a ponta do nariz e olhoume com ar carrancudo.

Sem dar uma palavra, caminhei para a pia. Apanhei O pOtC de ungüento no armarinho e comecei a passar o medicamento na testa e no rosto. Felizmente eu não estava muito inchado, e os olhos, uma vez que eu tivera a presença de espírito de fechar as pálpebras, não estavam muito inflamados. com a ajuda de uma agulha de injeção esterilizada furei algumas bolhas nas têmporas e faces. O chumaço de algodão recolheu um líquido seroso. Depois disso, coloquei sobre o rosto dois pedaços de gaze úmida. Snow ficou olhando durante todo o tempo em que cuidei de mim. Ignorei seu olhar. Quando finalmente terminei (as queimaduras me doíam cada vez mais), sentei-me na outra poltrona. Tive de tirar antes, de cima dela, o vestido de Rheya, um vestido comum, mas sem colchetes!

Snow, com as mãos agarrando um joelho pontudo, continuava a me olhar com ar crítico.

— Então, vamos conversar um pouco? — disse ele.

Não respondi. Estava ocupado em pôr um pedaço de gaze que teimava em escorregar pelo rosto.

— Você teve uma visita, não teve?

— Tive — respondi secamente.

Ele começara a conversa num tom que não me agradava.

— E você se livrou dela? E isso que se chama ser rápido!

Tocou a testa, onde a pele ainda estava descascando e mostrando tecidos cor-de-rosa de epiderme nova. Eu estava estupefato. Por que, até aquele instante, as «queimaduras de sol» de Snow e Sartorius não tinham orientado o curso das minhas reflexões? Queimaduras de sol… Mas ali ninguém se expunha ao sol!

Sem notar o súbito brilho do meu olhar, Snow continuou:

— Suponho que você não tenha empregado logo os meios decisivos. Você tentou o quê: narcose, veneno, luta livre?

— Você quer discutir seriamente nossos negócios ou bancar o palhaço? Se quer bancar o palhaço, pode ir embora!

Ele franziu os olhos.

— Muitas vezes bancamos o palhaço sem querer… Você experimentou a corda ou o martelo? O tinteiro, como Lutero? Não? bom — fez uma careta —, você é um sujeito direito! A pia está inteira, você não arrebentou a cabeça contra a parede nem destruiu o quarto. Um, dois, meto-a num foguete, dou a partida e pronto!

Viu as horas?

— Dispomos, portando, de duas ou três horas. E, com um sorriso desagradável, acrescentou:

— Sou um sujeito odioso, não?

— Repugnante! — concordei energicamente.

— E? E se eu lhe contar uma história, você me acreditará? Acreditará numa só palavra dela?

Calei-me. Snow continuou, com seu horrendo sorriso:

— Aconteceu a Gibarian primeiro. Fechou-se na cabina e só nos falava através da porta. E nós, você não nos pergunta o que ficamos pensando disso?

Continuei em silêncio.

— Evidentemente, pensamos que ele ficara louco. Através da porta ele deixou entrever alguma coisa, não tudo. Talvez você esteja se perguntando por que ele não nos disse que havia alguém lá. Oh, suum cuiquel Mas ele era um verdadeiro cientista. Pediu-nos que lhe déssemos uma oportunidade.

— Oportunidade de quê?

— Sem dúvida, estava tentando resolver o problema, obter um resultado, classificá-lo. Gibarian trabalhava de noite. Sabe o que ele fazia? Claro que você sabe!

— Aqueles cálculos na gaveta da sala do rádio… foi ele? — Foi.

— Isso durou quanto tempo?

— A visita? Quase uma semana… Pensávamos que ele tinha alucinações, perturbações motoras. Dei-lhe escopolamina.

— Mas… a ele? — Foi. Ele a apanhou, mas não era para ele. Tentou uma experiência em alguém, sabe?

— E VOcês?

— Nós? No terceiro dia decidimos entrar, arrombar a porta se não houvesse outro meio, mesmo atingindo a dignidade dele e curá-lo.

— Ah.

— Pois é.

— E então, naquele armário…

— Foi isso, rapaz, foi isso. Mas nesse meio tempo, também nós recebemos visitantes. Não podíamos mais nos ocupar dele, informá-lo sobre o que estava acontecendo.

Agora isso… isso virou rotina.

Snow falava tão baixo que adivinhei mais que ouvi as últimas palavras.

— Não estou entendendo! Se vocês tivessem escutado à porta dele, deveriam ter ouvido duas vozes… — exclamei.

— Não, só ouvimos a voz dele. Havia ruídos esquisitos… mas pensamos que também eram feitos por ele.

— Só a voz dele! Por que vocês não ouviram… o outro?

— Não sei. Tenho sobre isso uma teoria em embrião… Estou deixando amadurecer, tanto mais que não adianta nada nos fixarmos em detalhes. Mas você, você viu algo ontem pois, do contrário, nos teria tomado por malucos.

— Pensei que eu é que estava ficando louco.

— Ah, e você não viu ninguém?

— Vi alguém.

— Quem?

Olhei-o durante um longo momento — sua careta não fingia mais que era um sorriso — e respondi:

— Aquela… aquela mulher negra.

Snow estava inclinado para a frente. Seu corpo insensivelmente relaxou.

— Você poderia ter me avisado… — prossegui.

— Eu o avisei!

— De que maneira!

— Da única possível. Eu não sabia que você iria ver!

— Ouça, Snow, quero perguntar-lhe… você… você está a par já há algum tempo. Será que ela… a pessoa que veio hoje me visitar…

— Você quer saber se eía voltará? Sacudi a cabeça. Snow respondeu:

— Sim e não.

— O que é que isso quer dizer?

— Ela… essa pessoa voltará, ignorando tudo, da mesma forma como quando apareceu pela primeira vez. Mais exatamente, ela fingirá ignorar o que você fez para se livrar dela. Se você respeitar as condições, ela não será agressiva.

— Que condições?

— Isso dependerá das circunstâncias.

— Snow!

— Hem?

— Vamos parar de fingimentos!

— Fingimentos? Kelvin, tenho a impressão de que você não entendeu ainda… — seus olhos brilharam. — Está bem! Você pode me dizer quem veio visitá-lo? — perguntou brutalmente.

Engoli em seco. Baixei a cabeça. Não queria olhar para ele. Preferia me entender com qualquer outra pessoa, menos com ele. Mas não tinha escolha. O pedaço de gaze descolou e caiu na minha mão. Estremeci.

— Uma mulher que… — parei. — Se matou. Uma injeção…

— Suicídio?

— Foi.

— Só isso? — Ele aguardou. como eu continuasse calado, murmurou:

— Não, não foi só isso…

Levantei rapidamente a cabeça. Snow não estava me olhando.

— Como é que você sabe? — perguntei. Ele não respondeu.

— De fato não foi só isso — declarei. Umedeci os lábios e prossegui: — Brigamos. Não. Fui eu que fiquei furioso e você sabe as coisas que a gente diz quando está fora de si. Apanhei meus troços e caí fora. Ela me dera a entender… não o disse.em palavras, mas quando se vive anos e anos com alguém não é necessário… Eu pensava que ela falava por falar, que não teria coragem, que ficaria com medo e disse isso a ela. Na manhã seguinte, lembrei-me de que havia deixado aquelas… aquelas ampolas na gaveta. Rheya sabia da existência delas. Eu as levara do laboratório, pois precisava delas… Sabia que, em altas doses, tinham uma ação fulminante… Tive medo, quis voltar para apanhar as ampolas, depois pensei que isso podia fazer parecer que eu estava levando suas palavras a sério. No terceiro dia, não agüentei mais e fui procurá-la. Quando cheguei, estava morta.

— Ah, a pobre inocente!

Tive um sobressalto. Mas Snow não estava zombando de mim. Parecia-me que o via pela primeira vez. Seu rosto estava cinzento. As rugas que marcavam seu semblante revelavam um esgotamento espantoso. Tinha a aparência de alguém gravemente doente.

Estranhamente intimidado, perguntei:

— Por que você disse isso?

— Porque sua história é trágica.

Vendo que eu me agitava, acrescentou de forma precipitada:

— Não, não, você continua sem entender. E, de fato, um peso terrível a carregar e você na certa se considera um assassino, mas… há coisas piores.

— Ah, na verdade!

— Sim, na verdade, e fico contente porque você recusa-se a me acreditar. Estas coisas acontecidas são horríveis. Mas o mais horrível é… é o que não aconteceu, o que nunca existiu.

— O quê? — perguntei com voz fraca. Ele sacudiu a cabeça.

— Um homem normal… — respondeu. — O que é um homem normal? Alguém que nunca cometeu um ato abominável? Mas ele nunca teve pensamentos incontroláveis? Talvez nunca tenha tido mesmo… Alguma coisa, um fantasma, surgiu dentro dele, há dez ou trinta anos, algo de que se defendeu e que esqueceu, e que não temia, pois sabia que nunca deixaria aquela coisa se expandir e que nunca ela o arrastaria a nenhuma ação

E, agora, imagina que, de repente, em pleno dia, encontra esse… aquele pensamento, encarnado, soldado nele, indestrutível! Ele se pergunta onde está. Você sabe onde ele está?

— Onde?

— Aqui — sussurrou Snow — na estação Solaris. Hesitei.

— De que se trata? Afinal de contas, vocês não são criminosos, nem você nem Sartorius…

Ele me interrompeu com impaciência.

— E você, Kelvin, você é psicólogo! Quem nunca teve um certo sonho acordado, um certo desvario? Pense num… num maníaco que se apaixona por — sei lá — um pedaço de roupa suja, que à força de implorar, de ameaçar, e sem temer os perigos obtém aquele miserável farrapo adorado! História maluca, não é? Um homem que, simultaneamente, tem vergonha do objeto de sua adoração e o adora cada vez mais, um homem prestes a sacrificar sua vida por aquele amor, pois tem, talvez, sentimentos tão vivos quanto os de Romeu por Julieta… Esses casos existem, não? Portanto, você compreende que devem existir coisas… situações que ninguém ousa materializar e que o pensamento engendrou de maneira acidental, num momento de loucura, de alucinações, chame como quiser. Na etapa seguinte, a idéia se materializa. É isso.

Estupefato, com a garganta seca, repeti:

— E isso? — Minha cabeça estourava. — E a estação? Qual a ligação com a estação?

— Parece que você finge não acreditar — rosnou ele, penetrando-me com o olhar. — Não cessei de falar de Solaris, unicamente de Solaris e nada mais. Se a realidade o decepciona tão brutalmente, não tenho culpa. Aliás, considerando o que já sofreu, você pode me ouvir até o fim! Nós voamos através do cosmo preparados para tudo, isto é, a solidão, a luta, a fadiga e a morte. O pudor nos impede de proclamar isto, mas, em certos instantes, julgamo-nos admiráveis. No entanto, olhado com calma, nosso entusiasmo não passa de blefe. Não queremos conquistar o cosmo, queremos apenas levar a Terra às fronteiras dele. Tal planeta será árido como o Saara, outro tão glacial como nossas regiões polares, outro tão luxuriante como a Amazônia. Somos humanitários e cavalheirescos, não queremos escravizar outras raças, queremos apenas transmitir-lhes nossos valores e, em troca, nos apoderarmos de seu patrimônio. Consideramonos os Cavalheiros do Santo Contato. E outra mentira. Só nos interessa o homem. Não precisamos de outros mundos. Precisamos de espelhos. Não sabemos o que fazer dos outros mundos. Um único mundo, o nosso mundo, nos é suficiente, mas não o aceitamos como ele é. Procuramos uma imagem ideal do nosso próprio mundo. Saímos à procura de um planeta, de uma civilização superior à nossa, mas desenvolvida na base do protótipo do nosso passado primitivo. Por outro lado, existe em nós algo que recusamos, do qual nos defendemos e que, no entanto, persiste, pois não tiramos à Terra o estado de essência de todas as virtudes, não é apenas uma estátua do homem-herdi gue voa! Pousamos aqui tal como somos na realidade e quando a página é virada e nos revela essa realidade, essa parece crer nossa realidade que preferimos deixar em silêncio, não estamos mais de acordo!

Eu o estava ouvindo com toda paciência.

— Mas do que você está falando?

— Do que nós queríamos: o contato com uma outra civilização. Esse contato foi estabelecido! E podemos contemplar no microscópio nossa monstruosa feiúra, nossa loucura, nossa vergonha!

A voz dele tremia de raiva.

— Então você crê que é… o oceano? Que o oceano provoca… isto? Mas por que? Ainda não quero saber como, pergunto por quê! Você acredita seriamente que ele está procurando brincar conosco? Ou castigar-nos, numa demonomania primária! O planeta dominado por um enorme diabo, que satisfaz as exigências do seu humor satânico enviando súcubos para junto dos membros de uma expedição científica… Snow, você de fato acredita em tais absurdos!

Ele resmungou, entredentes:

— Esse diabo não é tão burro…

Olhei-o com espanto. Talvez os acontecimentos — admitindo-se que nós os havíamos vivido com mente sã e lúcida — tivessem, afinal, abalado seus nervos. Psicose de reação?

Snow estava rindo silenciosamente.

— Está tentando um diagnóstico? Não se apresse! Você só passou por uma prova e muito benigna.

— Ah, o diabo teve pena de mim!

A conversa estava começando a me cansar.

— Que é que você quer mesmo? Que eu lhe revele que malandragem esta massa metamórfica está projetando em nossa intenção, estes trilhões de toneladas de plasma metamórfico?

Talvez nenhuma.

— Como nenhuma? Snow sorria.

— Você devia saber que a ciência se ocupa apenas dos fenômenos e não das causas. Os fenômenos? Começaram a se manifestar oito ou nove dias depois da nossa experiência com os raios-x. Talvez o oceano tenha reagido à radiação com alguma outra radiação, talvez tenha sondado nossos cérebros e atingido certos quistos psíquicos.

Meu interesse despertou.

— Quistos?

— Sim, processos psíquicos isolados do resto, fechados, abafados, enquistados; brasa adormecida sob a cinza da memória! Ele os decifrou e utilizou, como nos utilizamos de uma receita ou de uma planta de arquitetura… Você sabe como se parecem as estruturas cristalinas assimétricas do cromossoma e as estruturas cristalinas assimétricas da molécula do ácido desoxirribonucleico que entram na composição dos cerebrosídeos, que constituem o substrato do processo da memória… Essa matéria genética é um plasma «que se lembra». Assim, o oceano leu em nós, gravou os menores detalhes e a seguir… você conhece a seqüência. Mas, por que motivo? Ora! Seja como for, não era para nos destruir. Aparentemente, considerando seus recursos tecnológicos, ele teria podido fazer qualquer coisa, pôr à minha frente um sósia de você ou fazer você enfrentar o meu, por exemplo.

— Ah, foi por isso que você teve medo na primeira noite, quando cheguei! — exclamei.

— Foi. Aliás — acrescentou —, quem diz que ele não o fez? Como sabe você se sou mesmo o Rato-Velho que pousou aqui há dois anos…

Recomeçou a rir silenciosamente, gozando com meu embaraço, e depois rosnou:

— Não, não, assim já é bastante! Somos, nós dois, felizes mortais… poderei matá-lo e você poderá me matar…

— E os outros, não podemos matá-los?

— Não aconselho a tentar, será um espetáculo horrível!

— Não pode matá-los?

— Não sei. Em todo caso, nenhum veneno, nenhuma faca, nenhuma injeção…

— Nem a pistola radioativa?

— Você se arriscaria?

— Uma vez que Sabemos que não são humanos…

— Num certo sentido, de forma subjetiva, são humanos. Ignoram totalmente sua origem. Você constatou isso, sem dúvida.

— Sim. Então… como é que isso acontece?

— Eles… tudo se regenera com uma rapidez inconcebível, com uma velocidade impossível… a nossa vista. E eles recomeçam a se comportar como…

— O quê?

— Como nós os imaginamos, como ficaram gravados nas recordações, baseadas nas quais…

Sem me importar com a pomada que me escorria pelo rosto e pingava em minhas mãos, perguntei bruscamente:

— Gibarian sabia?

— Você quer dizer… sabia tanto quanto nós?

— Sim.

— Muito provavelmente.

— Ele disse alguma coisa a você?

— Não. Achei um livro nos aposentos dele… Levantei-me de um pulo.

— O Pequeno apócrifol — Sim. — Olhou-me com um ar desconfiado e acrescentou:

— Quem lhe falou nele?

Sacudi a cabeça num gesto negativo.

— Não, fique tranqüilo. Você pode ver que estou com a pele queimada e que ela não está se regenerando! Gibarian deixou um carta para mim no quarto dele.

— Uma carta? Dizendo o quê?

— Pouca coisa. Mais um bilhete que uma carta. Referências bibliográficas, alusões ao suplemento do anuário e ao Apócrifo. O que é esse Apócrifo!

— Um documento antigo que parece ter relação com nossa situação… olhe!

Tirou do bolso um livrinho encadernado em couro, que me estendeu. Peguei-o pelos cantos gastos pelo uso.

— E Sartorius?

— Que é que tem Sartorius? Cada um se vira como pode. Sartorius está lutando para continuar normal, isto é, para preservar sua dignidade de enviado em missão oficial.

— Você está brincando!

— Não, não estou. Já estive com ele uma vez (vou passar por cima de minúcias). Em resumo, éramos oito e não tínhamos mais de quinhentos quilos de oxigênio. Um após outro, abandonamos nossas ocupações e acabamos por nos transformar num grupo de barbudos. Só ele fazia a barba e engraxava os sapatos.

Sartorius é assim. Atualmente, é claro, ele só pode fingir, representar ou cometer um crime.

— Um crime?

— Você tem razão. A palavra não se aplica exatamente. «Divórcio por ejeçao.» Soa melhor?

— Muito divertido.

— Se não lhe agrada, proponha outra!

— Ah, deixe-me em paz!

— Não, vamos falar sério! Você agora sabe quase tanto quanto eu. Tem algum plano?

— Nenhum. Não tenho a menor idéia do que farei quando… quando ela voltar. Se não estou enganado, ela deverá voltar.

— E de prever.

— Por onde eles entram? A cobertura da estação é hermética. Talvez a blindagem…

Snow sacudiu a cabeça.

— A blindagem está em perfeito estado. Não sei por onde eles entram. Geralmente, a gente os vê quando acorda e precisamos dormir de vez em quando!

— Podemos fazer barricadas nos nossos aposentos, não?

— As barricadas não agüentam muito tempo. Só há uma escapatória e você já adivinhou qual é.

Levantou-se e eu também.

— Que é isso, Snow!… Você está sugerindo liquidar a estação e está esperando que eu tome a iniciativa?

— Não é tão simples assim. Podemos fugir, é evidente, nem que seja até o satelóide e de lá enviar um SOS. Seremos considerados loucos, sem dúvida, e encerrados num hospício na Terra, a menos que sejamos desmentidos polidamente. Um planeta longínquo, o isolamento, manifestação de loucura coletiva, nosso caso não parecerá excepcional. E depois, mesmo num hospício, estaríamos melhor que aqui. Um jardim, a tranqüilidade, os quartinhos brancos, enfermeiros, passeio acompanhado…

Com as mãos nos bolsos, olhando fixamente para um canto do quarto, Snow falava com a maior seriedade.

O sol vermelho havia desaparecido no horizonte e o oceano era um deserto escuro, matizado de relâmpagos agonizantes, últimos reflexos perdidos dentro da longa cabeleira das ondas. O céu chamejava. Nuvens de franjas violáceas atravessavam aquele mundo vermelho e negro, indizivelmente lúgubre.

— Então, você quer fugir ou não? Ainda não? — perguntei por fim.

Snow sorriu.

— Lutador incansável… se você percebesse totalmente a pergunta que acaba de fazer, não insistiria tanto. Não se trata do que eu quero, trata-se do que é possível.

— Como o quê?

— De fato, não sei.

— Então ficaremos aqui? Você acha que encontraremos um meio…

Magro, enfermiço, com o rosto pelado e coberto de rugas, Snow encarou-me.

— Talvez valha a pena ficar. Nada aprenderemos a respeito dele, sem dúvida, mas sobre nós…

Virou-se, apanhou os papéis e saiu. Abri a boca para chamálo, mas nenhum som escapou dos meus lábios.

Só me restava esperar. Aproximei-me da janela. Meu olhar passeou distraidamente pelas ondas escarlates do oceano escuro. Veio-me a idéia de ir me encerrar num dos foguetes do espaçoporto, idéia estúpida que logo abandonei. Cedo ou tarde teria de sair da nave!

Sentei-me ao lado da janela. Comecei a folhear o livro que Snow me dera. A luz do crepúsculo incendiava o quarto e colona as páginas do livrinho. Era uma coletânea de artigos e ensaios de um valor que, em geral, não podia enganar, apresentados por um tal Othon Ravintzer, doutor em filosofia. Toda ciência engendra alguma pseudociência e inspira digressões às mentes estranhas. A astronomia encontra seus caricaturistas na astrologia, a química, antigamente, na alquimia. Não era, portanto, surpreendente que a solarística, no começo, tenha provocado uma explosão de cogitações marginais. O livro de Ravintzer dava exatamente direito de asilo a essas espécies de especulações intelectuais, precedidas — devo acrescentar com honestidade de uma introdução onde o autor mantinha distância dos textos reproduzidos. Ele considerava, não sem razão, que tal coletânea podia oferecer um precioso documento da época, tanto para o historiador como para o psicólogo da ciência.

O relatório de Berton — dividido em duas partes e completado por um apanhado do livro de bordo — ocupava um lugar importante no livrinho.

Das quatorze às dezesseis horas e quarenta, tempo local estabelecido pela expedição, as inscrições do livro de bordo eram lacônicas e negativas.

Altitude 1.000 — ou 1.200 — ou 800 metros — nada à vista — oceano deserto.

Essas mesmas anotações constavam várias vezes. Depois:

16H40: uma névoa vermelha se ergue. Visibilidade: 700 metros. Oceano deserto.

17 horas: a névoa se torna mais espessa — silêncio — visibilidade: 400 metros com relâmpagos. Desço a 200 metros.

17h20: entro na névoa. Altitude: 200. Visibilidade: 20–40 metros. Subo a 400.

17h45: altitude: 500 metros. Mar de névoa até o horizonte. Na névoa, aberturas em forma de funil, pelas quais vejo a superfície do oceano. Tento entrar num desses funis, onde há qualquer coisa se mexendo.

17h52: vejo uma espécie de redemoinho — ele expele espuma amarela. Estou envolto por uma parede de névoa. Altitude: 100. Desço a 20.

Assim terminava o apanhado do livro de bordo de Berton. Seguia-se a história de sua doença ou, mais exatamente, o depoimento feito por Berton e interrompido por perguntas dos membros da comissão.

BERTON: Quando desci a trinta metros, tornou-se difícil manter a altitude. Sopravam ventos violentos naqueles poços. Tive de me agarrar aos comandos e, durante certo tempo, dez ou quinze minutos, não olhei para fora. Reparei muito tarde que um forte turbilhão me arrastava para a névoa. Esta não era uma névoa comum; era uma matéria espessa, coloidal, que cobriu todas as vidraças. Custei a limpála. Aquela névoa — aquela gosma — era tenaz. Além disso, em virtude da resistência que a névoa opunha à hélice, a velocidade de rotação fora reduzida em cerca de trinta por cento e eu comecei a perder altura. Como eu havia descido muito e temia mergulhar nas ondas, soltei gás em abundância. O aparelho manteve a altitude mas não tornou a subir. Restavam-me ainda quatro cartuchos de aceleradores de foguetes. Não os utilizei, pois achava que a situação todavia não era desesperadora. O aparelho era sacudido por vibrações cada vez mais fortes. Pensei que uma camada daquela gosma havia envolvido a hélice. Mas o marcador de sobrecargas continuava no zero e eu não entendia nada. Depois que entrei na névoa, deixei de ver o sol — via apenas uma claridade vermelha. Continuei a me deslocar, com a esperança de atingir finalmente um daqueles poços e foi exatamente o que aconteceu ao cabo de meia hora. Encontrei-me numa outra fissura, um cilindro quase perfeito, com um diâmetro de algumas centenas de metros. A parede do cilindro era um gigantesco turbilhão de névoa, que subia em espiral. Lutei para ficar no centro do «poço», onde o vento era menos violento. Então notei uma mudança na superfície do oceano. As ondas haviam desaparecido quase inteiramente e a camada superior daquele fluido — que compõe o oceano — tornou-se transparente, com rastos trêmulos aqui e ali, que se dissipavam e em pouco tempo ficou tudo limpo. Eu podia ver claramente até vários metros de profundidade. Vi uma espécie de lodo, de lama amarela, que projetava filamentos verticais. Quando aqueles filamentos atingiam a superfície, adquiriam um brilho vítreo, depois começavam a desprender espuma — ficavam cremosos — e em seguida aquela espuma se solidificava. Ficava parecida com uma calda queimada, muito espessa. Aqueles filamentos viscosos misturavam-se, emaranhavam-se. Protuberâncias inchavam sobre o oceano e pouco a pouco adquiriam formas variadas. Percebi, subitamente, que meu aparelho fora arrastado para a parede de névoa e tive de lutar contra o vento. Quando pude olhar novamente para baixo, vi alguma coisa que lembrava um jardim. Sim, jardim, com árvores, sebes, caminhos, mas não era um verdadeiro jardim. Tudo era feito com a mesma substância, que havia agora endurecido completamente e se assemelhava a gesso amarelo. O oceano brilhava sob o jardim. Desci o mais baixo possível para observá-lo de perto.

PERGUNTA: As árvores e plantas que você viu tinham folhas?

BERTON: Não, eram formas aproximadas, como a maquete de um jardim. Sim, uma maquete! Era exatamente isso. Uma maquete de tamanho natural. Um instante depois ela começou a estalar, a se desfazer, a se fender em rachaduras escuras, de onde saía um espesso líquido seroso, que escorria ou se amontoava no local. As sacudidas aumentaram, houve um borbulhar formidável e foi tudo sepultado pela espuma. Ao mesmo tempo, as paredes da névoa se estreitaram. Aumentei a velocidade de rotação e saí a trezentos metros.

PERGUNTA: Você tem certeza de ter visto alguma coisa parecida com um jardim — jardim, sem margem a qualquer outra interpretação?

BERTON: Tenho. Notei vários detalhes. Lembro-me, por exemplo, de que havia caixas arrumadas num canto. compreendi mais tarde que eram, provavelmente, colmeias.

PERGUNTA: Mais tarde? Mas na hora, quando você as viu?

BERTON: Na hora não, pois tudo era modelado como em gesso. Mas vi outra coisa.

PERGUNTA: O quê?

BERTON: Vi objetos aos quais não posso dar um nome exato porque não tive tempo de observá-los bem. Penso ter distinguido, sob algumas sebes, instrumentos de trabalho, objetos alongados, dentados. Pareciam modelagem em gesso das nossas ferramentas de jardim. Mas não tenho certeza absoluta. Mas tenho a certeza de haver reconhecido a colmeia.

PERGUNTA: Você não pensou que poderia ser uma alucinação?

BERTON: Não. Pensei numa miragem. Não acreditei que fosse alucinação porque me sentia muito bem e antes nunca vira nada semelhante. Quando subi a trezentos metros e olhei a névoa outra vez, ela estava cheia de buracos irregulares — se vocês quiserem, podem imaginar uma fatia de queijo. Alguns daqueles buracos estavam completamente vazios e pude ver as ondas do oceano. Outros não passavam de amplas reentrâncias onde alguma coisa borbulhava. Desci num daqueles poços e — o altímetro estava marcando quarenta — vi uma parede que se apoiava na superfície do oceano — não muito fundo — a parede de um edifício imenso. Vi-o claramente através das ondas. Tinha várias fileiras de orifícios retangulares, como janelas. Pareceu-me que qualquer coisa se mexia por trás de algumas daquelas janelas. Mas não tenho certeza. A parede havia se erguido lentamente de dentro do oceano. Um líquido gosmento, cheio de bolhas compactas, jorrava com abundância e escorria pela parede. Subitamente a parede dividiu-se em duas, mergulhou nas profundezas do oceano e desapareceu.

Tornei a subir e continuei a voar sobre a névoa, que eu quase roçava com o aparelho. Descobri outro poço, muito mais vasto que o precedente.

Notei, de longe, uma forma clara, quase branca, que flutuava. Pensei de imediato que era o escafandro de Fechner, tanto mais que percebi vagamente uma forma humana, e fiz uma volta brusca, temendo me perder e não achar mais o lugar. Aquela forma, aquele corpo, se mexia. Num instante parecia nadar e no outro parecia estar de pé, no meio de uma onda. Apressei-me. Desci tão baixo que meu aparelho ricocheteou de leve. Ele provavelmente tocara a crista da grande onda que eu sobrevoava. Aquele corpo — sim, era um corpo humano, sem escafandro — aquele corpo se mexia.

PERGUNTA: Viu o rosto dele?

BERTON: Vi.

PERGUNTA: Quem era?

BERTON: Era uma criança.

PERGUNTA: Que criança? Você já a havia visto?

BERTON: Não. Nunca. Enfim, não me lembro de a ter visto. Aliás, quando me aproximei, quando cheguei a quarenta metros ou menos, verifiquei que não era uma criança comum.

PERGUNTA: Que é que você quer dizer com isso?

BERTON: vou explicar. Não compreendi a princípio o que me perturbava. Só vim a compreender um momento depois. Aquela criança era extraordinariamente grande. Enorme não exprime a verdade. Estendido na horizontal, seu corpo se elevava quatro metros acima do oceano. Lembrome de que, quando bati na onda, seu rosto estava ligeiramente acima do meu e, no entanto, minha cabina dominava o oceano de uma altura de, pelo menos, três metros.

PERGUNTA: Se era tão grande, por que você acha que se tratava de uma criança?

BERTON: Porque era um bebê.

PERGUNTA: Você não percebe que falta lógica à sua resposta?

BERTON: De jeito nenhum. Vi o rosto dele, era o de uma criancinha. Aliás, suas proporções eram as de um corpo de criança. Era um… lactente. Não, estou exagerando. Tinha talvez dois ou três anos, cabelos pretos e olhos azuis enormes! Estava nu, completamente nu, como um recémnascido. Estava molhado ou, melhor, vitrificado. Sua pele brilhava.

Fiquei tremendamente abalado. Já não acreditava em miragem. Estava vendo aquela criança com nitidez. Ela subia e descia, ao sabor das ondas. Mas, independentemente desse movimento, aquele corpo se mexia. Era horrível!

PERGUNTA: Por quê? Que ele fazia?

BERTON: Parecia um boneco de museu, mas vivo.

Abria e fechava a boca, fazia vários gestos. Gestos horríveis, porque não eram os dele mesmo.

PERGUNTA: Você quer dizer o quê?

BERTON: Olhei-o a vinte metros de distância. Acho que não cheguei mais perto. Mas, como disse, era enorme. Vi-o nitidamente. Seus olhos brilhavam e poderia parecer uma criança viva se não fossem aqueles gestos, semelhantes a alguém ensaiando… Fazia pensar que outra pessoa tentava executar os gestos usando a criança…

PERGUNTA: Procure precisar seu pensamento!

BERTON: E difícil. Estou me referindo a uma impressão, a uma intuição. Eu não raciocinava, mas sabia que aqueles gestos não eram naturais.

PERGUNTA: Você acha, por exemplo, que as mãos não se mexiam como mãos humanas, em virtude da leveza limitada das articulações?

BERTON: De jeito nenhum. Mas… aqueles movimentos eram sem sentido. Cada um dos nossos movimentos significa quase sempre alguma coisa, serve para alguma, coisa…

PERGUNTA: Você acha? Os movimentos de um lactente não têm nenhuma significação.

BERTON: Eu sei. Mas os movimentos de um lactante são desordenados, confusos, embrulhados. Os movimentos que eu estava observando… ah! Sim, eram movimentos metódicos. Eram feitos sucessivamente, agrupados em séries. Como se alguém tivesse querido estudar o que a criança seria capaz de fazer com as mãos, o torso, a boca. O rosto era mais terrível que o resto, pois que o rosto tem uma expressão e aquele lá… não sei me exprimir. Estava vivo, sem dúvida, mas não era humano. Ou melhor, os traços, em conjunto, os olhos, a tez, o eram, mas a expressão e os movimentos do rosto, não!

PERGUNTA: Eram caretas? Você sabe em que se transforma o rosto de um homem durante uma crise de epilepsia? BERTON: Sei. Já assisti a uma. Estou compreendendo. Não.

Era diferente. A epilepsia provoca espasmos, convulsões. Os movimentos de que falo eram fluidos, contínuos, graciosos — melodiosos, se podemos dizer isto de um movimento. Esta definição é mais precisa. Mas aquele rosto… Um rosto não pode se dividir em dois, uma metade alegre, a outra triste, uma metade ameaçadora, a outra amável, uma metade amedrontada, a outra triunfante. Naquela criança era assim. Além disso, todos os movimentos e mudanças de expressão sucediam-se com uma rapidez inconcebível. Fiquei pouco tempo embaixo. Talvez dez segundos, talvez menos.

PERGUNTA: E pretende ter visto tudo isso num tempo tão curto? Aliás, como sabe quanto tempo ficou? Você olhou o cronômetro?

BERTON: Não, não olhei, mas vôo há dezesseis anos. Na minha profissão, mede-se instintivamente a duração do que chamamos um instante, com a aproximação de um segundo. É uma faculdade que adquirimos e que é indispensável para uma navegação correta. Um piloto nunca valerá grande coisa se não souber, independente das circunstâncias, quando um fenômeno dura cinco ou dez segundos. Acontece o mesmo com a observação. Aprendemos, com os anos, a ver tudo no menor lapso de tempo.

PERGUNTA: E isso foi tudo o que viu? BERTON: Não, mas não me lembro do resto tão bem. Acho que já havia visto muita coisa e minha atenção enfraqueceu. A névoa começava a se tornar espessa à minha volta e fui obrigado a subir. Subi e, pela primeira vez na minha vida, quase capotei. Minhas mãos tremiam tanto que mal pude segurar os comandos. Acho que gritei qualquer coisa, que chamei a base e no entanto eu sabia que estávamos em contato através do rádio.

PERGUNTA: Aí você tentou voltar?:— BERTON: Não. Quando cheguei ao alto, pensei que Fechner poderia estar no fundo de um daqueles buracos. Sei que isso pode parecer loucura. Mas foi o que pensei. Pensei que tudo era possível e que seria possível achar Fechner. Decidi descer em todos os buracos que encontrasse no caminho. Renunciei na terceira tentativa. Quando subi, compreendi que era inútil insistir depois do que acabara de ver naquela terceira vez. Não podia mais continuar. Devo acrescentar — e isso não é segredo — que eu estava nauseado e vomitei na cabina. Eu não estava entendendo nada. Nunca havia tido qualquer doença.

COMENTÁRIO: Era uma sintoma de intoxicação, Berton.

BERTON: Talvez. Não sei. Mas o que vi naquela terceira vez era impossível de imaginar. Não era fruto de intoxicação.

PERGUNTA: Como você pode saber?

BERTON: Não era alucinação. Uma alucinação sem. criação do meu próprio cérebro, não é?.

COMENTÁRIO: É.

BERTON: Ora, meu cérebro não quis acreditar no que eu vi. Jamais acreditaria. Meu cérebro teria sido incapaz.

COMENTÁRIO: É melhor você explicar!

BERTON: Antes desejo saber como serão interpretadas as declarações que já fiz.

PERGUNTA: Que importância tem isso?

BERTON: Para mim, uma importância capital. Eu disse que vi coisas que nunca esquecerei. Se a comissão reconhecer, mesmo com reservas, que meu testemunho é verossímil e que convém estudar o oceano — quero dizer, orientando as pesquisas de acordo com minhas declarações —, então direi tudo. Mas se a comissão considerar que se trata de delírio, então não direi mais nada.

PERGUNTA: Por quê?

BERTON: Porque o conteúdo das minhas alucinações me pertence e não tenho que prestar contas dele. Em compensação, devo prestar contas do que observei em Solaris.

PERGUNTA: Você quer dizer que se recusa a responder a outras perguntas até que o órgão competente da expedição tenha se manifestado? Você sabe que a comissão não tem condições de tomar uma decisão imediata?

BERTON: Sei.

Assim terminava o primeiro interrogatório. Seguia-se um fragmento do segundo, redigido onze dias depois.

O PRESIDENTE:… após deliberação, a comissão, composta de três médicos, três biólogos, um físico, um engenheiro mecânico e do substituto do chefe da expedição, chegou à conclusão de que o relatório de Berton apresenta uma síndrome alucinatória de intoxicação provocada pela atmosfera do planeta, síndrome mórbida caracterizada, consecutiva a uma irritação da zona associativa do cérebro e que as declarações de Berton não refletem nenhum aspecto ou, pelo menos, nenhum aspecto apreciável da realidade.

BERTON: Desculpem, mas que significa nenhum aspecto ou, pelo menos, «nenhum aspecto apreciável»? Em que proporções a realidade é apreciável ou não?

PRESIDENTE: Ainda não terminei. Afora essas conclusões, a comissão registrou devidamente um votum sepa.ra.tum do senhor Archibald Messanger, doutor em física, que considera objetivamente possível os fenômenos descritos por Berton e declara-se favorável a uma rigorosa verificação. E tudo.

BERTON: Repito a pergunta.

PRESIDENTE: A resposta é simples. «Nenhum aspecto apreciável» significa que fenômenos de fato observados podem ter servido de suporte às suas alucinações. Durante um passeio noturno, um homem de mente perfeitamente sã pode imaginar haver um ser vivo numa moita agitada pelo vento. com muito mais razão, quais serão as ilusões do explorador perdido num planeta estranho e exposto a respirar uma atmosfera tóxica? Este julgamento em nada o prejudica, Berton. Poderia, agora, fazer-nos o obséquio de nos informar da sua decisão?

BERTON: Queria, primeiro, saber que conseqüências traz esse votum sepamtum do doutor Messenger.

PRESIDENTE: Na realidade, nenhuma. Continuaremos o trabalho, de acordo com a linha estabelecida primitivamente.

BERTON: Nossa entrevista está sendo gravada?

PRESIDENTE: Está.

BERTON: Então direi que a comissão não me prejudica, mas prejudica ao próprio espírito da expedição. Por conseqüência, como já declarei, não responderei a mais perguntas.

PRESIDENTE: Terminou?

BERTON: Terminei. Mas desejo encontrar o doutor Messenger. Ê possível? — PRESIDENTE: Naturalmente!

Assim terminava o segundo interrogatório.

Havia, ao pé da página, uma nota em letras minúsculas:

Na manhã seguinte, o doutor Messenger conversou durante três horas com Berton. Após essa conversa, Messenger pediu novamente ao conselho da expedição para iniciar pésquisas no sentido de verificar as declarações do piloto. Este havia revelado fatos novos, extremamente convincentes, que Messenger não podia divulgar enquanto o conselho não houvesse tomado uma decisão positiva. O conselho Shannahan, Timolis e Trahier— rejeitou a moção e o assunto foi arquivado.

O livro reproduzia ainda a fotocópia da última página de uma carta — do rascunho de uma carta —, página encontrada pelo executor testamentário, depois da morte de Messenger. Ravintzer, não obstante suas pesquisas, ignorava se aquela carta havia sido enviada ou não.

… mentes obtusas, pirâmides de asneiras. [Assim começava o texto.]

Preocupado em preservar sua autoridade, o conselho mais precisamente Shannahan e Timolis (a opinião de Trahier não conta) — rejeitou minhas recomendações. Agora estou me dirigindo diretamente ao Instituto. Mas, como você pode imaginar sem dificuldade, meus protestos não convencerão ninguém. Preso pela palavra dada, não posso infelizmente lhe revelar o que Berton me disse. Se o conselho desprezou o testemunho de Berton foi sobretudo porque este não tem nenhuma formação científica. No entanto, qualquer cientista pode invejar a presença de espírito e os dons de observação desse piloto. Peço-lhe que me envie as seguintes informações:

1) Biografia de Fechner, em especial detalhes de sua infância.

2) Tudo o que você souber da família dele, acontecimentos e datas (ele provavelmente perdeu os pais quando criança).

3) Topografia da localidade onde foi educado.

Quero ainda dizer-lhe o que penso de tudo isso. Como sabe, algum tempo depois da partida de Fechner e Carucci, apareceu uma mancha no centro do sol vermelho. Essa erupção cromosférica projetou uma chuva de partículas energéticas sobretudo — segundo as informações do satelóide — no hemisfério austral, onde estava nossa base, e a ligação pelo rádio foi interrompida. Enquanto as outras equipes exploravam a superfície do planeta num raio relativamente restrito, Fechner e Carucci afastaram-se da base de forma considerável.

Nunca, desde nossa chegada ao planeta e até aquele dia de tristeza, havíamos observado uma névoa tão constante e um tal silêncio.

Suponho que Berton viu algumas fases da «Operação Homem», empreendida por aquele monstro viscoso. Fechner está na origem de todas as formas percebidas por Berton ou melhor, o cérebro de Fechner, submetido a uma inconcebível «dissecação psíquica», como divertimento, como reconstrução experimental, a partir das impressões (certamente entre as mais duráveis) gravadas em sua memória.

Sei que isso parece fantástico, sei que posso me enganar. Ajude-me por favor! Estou no momento a bordo da Alaric, onde aguardo sua resposta.

«Sempre seu, A.

Havia escurecido e eu lia com dificuldade o texto impresso, que se tornava mais fraco no alto da página cinzenta — a última referente à aventura do piloto Berton.

Minha própria experiência me levava a considerar Berton como uma testemunha digna de fé.

Virei-me para a janela. Meu olhar mergulhou no abismo violeta. Algumas nuvens ainda refletiam a vermelhidão que vinha do horizonte. Eu não via mais o oceano, coberto de sombras.

As tiras de papel ondulavam preguiçosamente sob as grades dos ventiladores. O ar morno, imóvel e silencioso tinha um leve gosto de ozônio.

Nossa decisão de continuar na estação nada tinha de heróica. O tempo dos heróis havia passado, o tempo das grandes vitórias interplanetárias, o tempo das expedições temerárias, o tempo dos sacrifícios. Fechner, primeira vítima do oceano, pertencia a um passado longínquo. Eu quase não me preocupava mais em saber quem era o «visitante»

de Snow ou de Sartorius. «Breve», pensava, «deixaremos de ter vergonha, de nos isolar. Se não pudermos nos livrar dos nossos Visitantes', nos habituaremos à companhia deles, viveremos com eles. Se o criador deles modificar as regras do jogo, nos adaptaremos às novas regras. Mesmo se a princípio protestarmos, nos revoltarmos. Mesmo se um de nós ceder ao desânimo e se matar. No fim, o equilíbrio será estabelecido.»

A noite caíra, semelhante a tantas noites da Terra. Eu só distinguia os contornos claros da pia e a superfície lisa do espelho.

Levantei-me. Remexi, meio às cegas, nos objetos existentes na prateleira da pia. Achei o pacote de algodão. Limpei o rosto com um chumaço úmido e me deitei na cama… Uma mariposa batia as asas… não, era a tira do ventilador. O zumbido parou e recomeçou. Eu não via mais a janela, pois tudo se confundia na escuridão. Um traço luminoso, caindo não sei de onde, atravessou o espaço e parou à minha frente. Na parede ou no céu escuro? Lembrei-me de quanto o olhar vazio da noite me havia apavorado na véspera. Sorri do meu medo. Não temia mais aquele olhar. Não temia nada. Levantei o braço e consultei a coroa de números fosforescentes.

Mais uma hora e chegaria a aurora do dia azul.

Respirei profundamente. Saboreei a escuridão. Eu estava vazio, livre dos pensamentos.

Ao me mexer, senti contra a coxa a forma achatada do gravador. Gibarian… sua voz imortalizada na fita magnética. Eu esquecera de o ressuscitar, de o ouvir. Isso era a única coisa que podia fazer por ele naquele momento! Tirei o gravador do bolso, a fim de escondê-lo sob a cama.

Ouvi um ruído e a porta se abriu.

— Kris? — Uma voz preocupada sussurrava meu nome. — Kris, você está aí? Está tão escuro…

— Estou aqui, não tenha medo, venha! — respondi.



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