Eeu estava deitado de costas, com a cabeça de Rheya aninhada no meu ombro, sem pensar em nada.
A escuridão começou a ser povoada. Ouvi passos. Alguma coisa se amontoava em cima de mim, cada vez mais alta, até o infinito. A noite, a noite me trespassava, a noite se apoderava de mim, me envolvia e me penetrava, impalpável, inconsistente. Petrificado, eu já nem respirava mais, não havia ar para respirar. Ouvi o bater longínquo do meu coração. Juntei o restante das forças, toda minha atenção e esperei a agonia. Esperei… eu me encolhia e o céu invisível, sem horizonte, o espaço informe, sem nuvens, sem estrelas, recuava, estendia-se e caía à minha volta. Tentei rastejar sobre a cama, mas não havia mais cama. A escuridão não cobria mais nada. Apertei o rosto com as mãos. Eu não tinha mais dedos nem mãos. Quis gritar, urrar…
O quarto flutuava numa penumbra azul, que envolvia os móveis, as prateleiras cheias de livros, que apagava a cor das paredes e de todos os objetos. Um clarão nacarado irisou a janela.
Eu estava alagado de suor. Olhei para o lado. Rheya me observava.
Ela levantou a cabeça.
— Você está com o braço dormente?
A cor dos seus olhos também estava apagada. Eles eram cinzentos, luminosos, apesar de tudo, sob os cílios pretos.
— O quê? — Senti seu murmúrio como uma carícia, antes de compreender o sentido das palavras. — Não. Ah, sim!
Coloquei a mão no ombro dela. Meus dedos formigavam. Rheya perguntou:
— Teve um sonho ruim?
Puxei-a com a outra mão.
— Sonho? Tive. E você, não dormiu?
— Não sei. Acho que não. Não tenho sono. Mas não quero que isso o impeça de dormir… Por que está me olhando assim?
Fechei os olhos. Seu coração batia contra o meu. Seu coração? Um simples acessório! — pensei. Nada mais me espantava, nem minha própria indiferença. Eu franqueara as fronteiras do medo e do desespero. Havia ido muito longe, ninguém ainda havia ido tão longe! Meus lábios pousaram em sua garganta. Fui baixando até a cavidade entre os tendoes, O sangue batia na parede da concha de carne sedosa.
Apoiei-me no cotovelo. Aurora, suavidade de alvorada? Uma tempestade silenciosa incendiava o horizonte sem nuvens. Um clarão, o primeiro raio de sol azul, atravessou o quarto e quebrou-se em reflexos acerados. Houve um fogo cruzado de fagulhas, jorradas do espelho, das maçanetas das portas, dos canos niquelados. A luz se espalhava, atirava-se sobre as superfícies polidas e parecia querer conquistar um espaço mais vasto, fazer explodir o quarto. Olhei para Rheya. As pupilas dos seus olhos cinzentos estavam contraídas.
Ela perguntou com voz abafada:
— A noite já acabou?
— Aqui a noite não dura muito.
— E nós?
— Nós o quê?
— Ficaremos aqui muito tempo?
Vinda da parte dela, aquela pergunta não deixava de ter um sabor cômico. Mas quando respondi, minha voz não revelou qualquer traço de alegria.
— Provavelmente bastante. Você não tem vontade de ficar? Rheya não pestanejou. Olhou-me atentamente. Teria pesta— nejado agora? Eu não tinha certeza. Ela puxou a coberta e vi o pequeno triângulo rosado no seu braço.
— Por que me olha assim?
— Por que você é muito bonita.
Rheya sorriu, sem malícia. Era uma forma discreta de agradecer o elogio.
— É por isso? Pensei que… é como se…
— O quê?
— Como se você desconfiasse de alguma coisa.
— Que idéia!
— Como se você desconfiasse de mim, como se eu estivesse escondendo alguma coisa…
— Que absurdo!
— Por sua maneira de negar, sei que não me engano.
A luz tornou-se cegante. com a mão protegendo os olhos, procurei meus óculos. Estavam sobre a mesa. Ajoelhei-me, estendi o braço e coloquei as lentes escuras.
Quando voltei a me deitar ao lado dela, Rheya sorriu.
— E eu?
Compreendi de súbito.
— Óculos?
Levantei e comecei a procurar. Abri gavetas. Tirei livros e instrumentos do lugar… Achei dois pares de óculos, que dei a ela. Rheya experimentou-os, um par após o outro. Eram grandes demais. Caíam quase até o meio do nariz.
Os protetores da janela deslizavam rangendo. Ficou tudo escuro outra vez. Ajudei Rheya a tirar os óculos e os coloquei sob a cama, junto com os meus.
— Vamos fazer o quê? ela perguntou.
— De noite a gente dorme! — Kris…
— Hem?
— Você quer uma compressa na testa?
— Não, obrigado… minha querida.
Não sei por que acrescentei aquelas duas palavras. No escuro, peguei seus ombros graciosos e os senti fremir. Tive a certeza de que era Rheya que estava em meus braços. Ou melhor, compreendi que ela não tentava me enganar. Eu é que a enganava, pois ela pensava sinceramente ser Rheya.
Cochilei várias vezes e, de cada vez, acordei sobressaltado e angustiado. Arquejante, esgotado, apertei-me contra Rheya. Meu coração voltou lentamente ao normal.
Com cuidado, ela tocou minhas faces e a testa com a ponta dos dedos, para ver se eu tinha febre. Era Rheya. A única, a verdadeira Rheya.
Alguma coisa mudou em mim. Parei de lutar e dormi quase imediatamente.
Fui acordado por uma agradável sensação de frescor. Meu rosto estava coberto por um tecido úmido, que retirei com facilidade. Vi Rheya debruçada sobre mim. Sorriu-me.
Estava espremendo com as duas mãos um pedaço de gaze, que pingava dentro de uma bacia de porcelana. Ao lado desta, havia um vidro de loção cicatrizante.
— Que sono! — disse Rheya, aplicando-me sobre a testa a compressa que acabara de preparar. — Está doendo?
— Não. Franzi a testa. A pele readquiriu a maciez. Rheya estava sentada na beira da cama, com os cabelos espalhados sobre a gola do roupão de banho, um roupão de homem, com listras brancas e alaranjadas, cujas mangas ela enrolara até os cotovelos.
Eu estava morrendo de fome. Haviam decorrido no mínimo vinte horas desde que comera pela última vez. Quando Rheya terminou seu trabalho de enfermeira, levantei-me.
Meu olhar caiu sobre dois vestidos, estendidos no espaldar de uma poltrona. Eram dois vestidos brancos, absolutamente idênticos, ambos ornados com uma fileira de botões vermelhos. Eu havia rasgado um daqueles vestidos, quando ajudara Rheya a despilo. E Rheya havia voltado na noite anterior com o segundo!
Ela acompanhou meu olhar.
— Fui obrigada a abrir a costura com a tesoura — disse Rheya. -Acho que o fecho emperrou:
A visão daqueles dois vestidos idênticos ultrapassava em horror tudo o que eu vivera até ali. Rheya se apressara em arrumar o conteúdo da pequena farmácia. Virei-me e mordi a mão. Sem deixar de olhar para aqueles dois vestidos, ou melhor, para aquele único vestido duplicado, caminhei para a porta. A água caía ruidosamente da torneira. Abri a porta, deslizei para fora do quarto e fechei-a com precaução. Agora ouvia o tênue barulho da água e o tilintar dos frascos. De repente o barulho cessou. com os maxilares contraídos, aguardei. A almofada da porta refletia um dos tubos luminosos que cercavam o teto do átrio. Agarrei a maçaneta, sem grande esperança de poder mantê-la firme. Uma brutal sacudida quase me arrancou a mão. Mas a porta não se abriu. Começou a vibrar e a tremer de alto a baixo.
Espantado, larguei a maçaneta e recuei. A almofada de matéria plástica começou a ficar abaulada, como se alguém invisível a meu lado tentasse afundar a porta para entrar no quarto! A moldura de aço da almofada se deformava cada vez mais e o esmalte começou a estalar. De repente compreendi: em vez de empurrar a porta, que abria para o exterior, Rheya tentava abrila puxando-a para dentro. O reflexo do tubo luminoso começou a se arquear no espelho deformante da almofada branca. Houve um tremendo estalo e a almofada, sob a formidável pressão, arrebentou. Simultaneamente, a maçaneta desapareceu, arrancada do encaixe. Mãos ensangüentadas passaram através da fenda e avançaram, deixando marcas vermelhas na pintura leitosa. A porta partiu-se em dois pedaços, que ficaram pendurados nos gonzos. Um rosto lívido surgiu. Uma criatura apavorada, vestida com um roupão de banho branco e alaranjado, atirou-se nos meus braços, soluçando.
Eu queria fugir, apesar de ser tarde demais, mas fui incapaz de me mexer. Rheya respirava convulsivamente. Sua cabeça martelava meu ombro. Quando procurei acalmá-la, desmaiou.
Evitando me ferir na almofada quebrada, carreguei-a para o quarto e a estendi na cama. Rheya estava com a ponta dos dedos em carne viva e tinha as unhas quebradas.
Quando virou a mão, vi que os ossos da palma estavam à mostra. Olhei seu rosto. Seus olhos, desprovidos de expressão, não me viam.
— Rheya! — Ela respondeu com um resmungo inarticulado.
Aproximei um dedo do olho dela. A pálpebra se fechou.
Dirigi-me à farmácia. A cama rangeu. Virei-me. Rheya estava sentada e olhava apavorada para as mãos ensangüentadas.
— Kris — gemeu — eu… eu… que me aconteceu?
— Você se feriu ao arrebentar a porta — respondi secamente.
Senti uma estranha coceira nos lábios, principalmente no inferior, que eu apertava entre os dentes.
Rheya encarou, por um momento, os destroços das almofadas de plástico, que pendiam das molduras de aço, e depois tornou a me olhar. Tentou dissimular o terror que a invadia, mas vi seu queixo tremer.
Cortei pedaços de gaze, apanhei um vidro de pó anti-séptico e voltei até a cama. O vidro escapou da minha mão e caiu, quebrando-se. Mas eu não precisava mais dele.
Ergui a mão de Rheya. As unhas, ainda orladas de sangue coagulado, haviam crescido. Uma cicatriz rosada assinalava o lugar do corte na palma da mão e aquela cicatriz diminuía, desaparecia a olhos vistos.
Sentei-me, acariciei-lhe o rosto e procurei sorrir, sem gran— de esforço.
— Por que você fez aquilo, Rheya?
— Fui… eu?
— Foi… você não se lembra?
— Não… quer dizer, lembro de que você não estava aqui, tive muito medo e…
— E o quê?
— Procurei você, pensei que estivesse no banheiro…
Só então vi que o armário corrediço, que ocultava a entrada do banheiro, estava afastado
— E então?
— Corri para a porta.
— Esqueci… acho que aconteceu alguma coisa…
— O quê?
— Não sei.
— Você se lembra do que aconteceu depois?
— Eu aqui, sentada na cama. “
— Se lembra de que eu a trouxe para cá?
Com os cantos dos lábios caídos, o rosto preocupado, Rheya hesitava.
— Parece… é possível… não sei.
Pôs as pernas para fora da cama, levantou-se e foi até a porta quebrada.
— Kris!
Aproximei-me por trás dela e peguei-lhe os ombros. Rheya estava tremendo. Voltou-se de repente para mim e murmurou:
— Kris, Kris…
— Fique calma!
— Kris, se fui eu… Kris, serei epilética?
Epilética, meu Deus! Decididamente, Rheya fazia perguntas engraçadas!
— Que idéia, minha querida! As portas, você sabe, as portas aqui são muito gozadas…
Saímos do quarto no momento em que o postigo da janela subia, rangendo. O sol azul estava mergulhando no oceano.
Guiei Rheya até a pequena cozinha, do outro lado do vestíbulo. Juntos, pilhamos os armários e geladeiras. Verifiquei logo que Rheya não era mais dotada que eu para a cozinha ou para abrir latas de conserva. Devorei o conteúdo de duas latas e bebi um número incalculável de xícaras de café. Rheya também comeu, mas como comem às vezes crianças que não têm fome e que não querem aborrecer os pais. Ou melhor, não, pois ela não fazia esforço para comer. Absorvia o alimento automaticamente, com indiferença.
Depois da refeição, fomos para a sala de operações, contígua à do rádio. Eu tinha um plano. Disse a Rheya que queria fazer-lhe um exame médico — um simples controle do seu estado geral — e a instalei numa poltrona mecânica. Tirei uma seringa e agulhas do esterilizador. Sabia onde se encontrava cada objeto. Os instrutores não haviam esquecido nenhum detalhe durante o período de treinamento no interior do modelo da estação. Rheya estendeu os dedos para mim. Retirei uma gota de sangue e coloquei-a sobre uma placa de vidro, que introduzi numa campânula de vácuo e ataquei com uma chuva de íons de prata.
Senti-me mais bem-disposto. A rotina de trabalho familiar tinha um efeito tranqüilizador. Estendida nas almofadas da poltrona mecânica, Rheya examinava os aparelhos da sala de operações.
O ruído do telefone quebrou o silêncio. Levantei o fone.
— Kelvin falando.
Fiquei vigiando Rheya. Ela continuou imóvel. Parecia arrasada pela aventura recente. Ouvi um suspiro de alívio.
— Finalmente!
Era Snow. Fiquei escutando, com o fone colado ao ouvido. -Você está com uma «visita», não é?
— Estou.
— Ocupado?
— Estou.
— Um pequeno exame, não?
— Você se incomoda? Quer jogar xadrez?
— Não fique irritado, Kelvin! Sartorius quer vê-lo. Pediu que nos encontrássemos, os três. Surpreso, respondi:
— Muito amável da parte dele! Mas… Interrompi-me e depois continuei:
— Ele está só?
— Não. Me expressei mal. Ele quer falar conosco. Vamos interligar os três videofones. As lentes de transmissão de imagens serão cobertas.
— Ah! Por que ele não me chamou pessoalmente? Eu o intimido?
— É possível — rosnou Snow. — Então?
— Uma conferência… dentro de uma hora está bem?
— Muito bem.
Eu o via na tela — só o rosto, não maior que um punho fechado. Olhou-me atentamente durante um momento. Eu ouvia a estática da corrente elétrica. Depois Snow falou, com certa hesitação:
— Está indo bem?
— Mais ou menos. E você?
— Menos que você, suponho… eu poderia…
— Quer vir aqui?
Olhei para Rheya por cima do ombro. Estava deitada, com as pernas cruzadas e a cabeça estendida para a frente, com ar sombrio. Brincava maquinalmente com uma bolinha cromada que pendia de uma correntinha presa ao braço da poltrona.
A voz de Snow vibrou.
— Largue isso, ouviu? Já lhe disse para largar!
Vi seu rosto de perfil na tela. Não ouvi mais nada porque ele havia coberto o microfone com a mão, mas seus lábios continuavam a se mexer.
— Não, não posso ir — respondeu ele, rapidamente. -Talvez mais tarde. Tornarei a chamá-lo daqui a uma hora.
A tela escureceu. Coloquei o fone no lugar.
— Quem era? — perguntou Rheya, sem muita curiosidade.
— Snow, o cibernético… Você não o conhece.
— Isto aqui ainda vai demorar?
— Você está se aborrecendo?
Coloquei a primeira placa da série no microscópio neutrínico e, um após outro, torci os interruptores de diversas cores. Os campos magnéticos zumbiram surdamente.
— Não há muitas distrações aqui e se minha modesta companhia não lhe basta…
Falei distraidamente, prolongando as pausas entre as palavras.
Puxei para mim o espesso cone preto que se alargava em torno da lente do microscópio e apoiei a testa no forro macio do visor. Ouvi a voz de Rheya, mas não entendi o que ela estava dizendo. Meu olhar abrangeu, de forma abrupta, um enorme deserto inundado de luz prateada, semeado de placas rochosas arredondadas — glóbulos vermelhos — que fremiam e se agitavam atrás de um véu nevoento. Ajustei o foco e penetrei mais profundamente na paisagem ardente. Sem tirar os olhos do visor, rodei a manivela de orientação. Quando um pedaço de rocha, glóbulo isolado, ficou dentro das linhas pretas cruzadas, aumentei a imagem. A objetiva havia, aparentemente, encontrado urrreritrócito deformado, afundado no centro, cujos bordos acidentados projetavam sombras pretas recortadas nitidamente nas profundezas de uma cratera circular. A cratera, eriçada de partículas de íons de prata, espraiava-se além do campo de visão do microscópio. Os contornos nebulosos de elos de albumina, atrofiados e distorcidos, apareceram no meio de um líquido opalino. Uma serpentina de albumina enroscava-se no cruzamento das linhas pretas da lente. Devagar, progressivamente, movi a alavanca de aumento. Eu devia chegar, de um momento para outro, ao termo daquela exploração de abismos. A sombra de uma molécula ocupou o espaço. Depois a imagem se tornou vaga…
No entanto, nada apareceu. Eu devia ter visto vibrar a nuvem trepidante de átomos e nada via. A tela flamejava, imaculada. Empurrei a alavanca até o fundo. O zumbido irritante ampliouse. Eu continuava sem ver nada. Um sinal de alarme soou repetidas vezes. O circuito estava excessivamente carregado. Contemplei, ainda uma vez, o deserto prateado e cortei a corrente.
Olhei para Rheya. Ela esboçou um bocejo, que transformou imediatamente num sorriso…
— Estou bem de saúde? — Rheya perguntou.
— Ótima. Você vai bem… não pode ir melhor.
Continuei a olhar para ela e senti novamente um inseto percorrer meu lábio inferior. Que teria acontecido? Que seria aquilo? Aquele corpo, magro e de aparência frágil — mas indestrutível na realidade — revelava afinal ser composto de nada? Bati com o dedo no tubo do microscópio. O aparelho estaria defeituoso? Haveria má concentração dos campos magnéticos? Não, eu sabia que o aparelho estava funcionando perfeitamente. Eu passara todas as etapas — as células, os conglomerados de albumina, as moléculas — e tudo era semelhante ao que eu já havia observado em milhares de exames. Mas o último passo em direção ao seio da matéria não me havia levado a lugar nenhum.
Fiz um garrote em Rheya. Retirei sangue de uma veia média e o despejei num recipiente de vidro graduado. Depois, dividi-o por várias provetas e comecei a análise. O trabalho me tomou mais tempo do que eu previra. Faltava-me um pouco de prática. As reações eram normais, todas as reações…
Deixei cair uma gota de ácido gelado sobre uma pérola de coral. Fumaça. O sangue tornou-se cinzento e cobriu-se de uma camada de espuma suja. Desagregação, decomposição e mais ainda! Virei-me para apanhar outra proveta. Quando fixei o olhar na nova experiência, quase deixo o frágil tubo de vidro cair.
Sob a camada de espuma suja, crescia um coral escuro. O sangue, destruído pelo ácido, tornava a se criar. Era absurdo, impossível!
— Kris! — Meu nome soava a uma distância enorme. — Kris, telefone!
— O quê? Ah, obrigado.
O telefone estava tocando havia algum tempo, mas só naquele instante tive consciência disso. Peguei o fone.
— Kelvin falando.
— Snow. Estamos os três na mesma linha.
A voz de falsete de Sartorius vibrou no aparelho.
— Saudações, doutor Kelvin!
Era a voz prudente, falsamente segura, do conferencista que se aventurara em terreno movediço. Respondi:
— Meus respeitos, doutor Sartorius!
Eu tinha vontade de rir. Mas não sabia se podia me permitir ceder a uma alegria cujas causas continuavam confusas.
Afinal de contas, rir de quem? Tinha na mão uma proveta contendo sangue. Sacudi-a. O sangue havia coagulado. Talvez, pouco antes, eu tivesse sido vítima de uma ilusão? Talvez me tivesse enganado?
— Quero expor-lhes, caros colegas, alguns dados concernentes aos… aos fantasmas.
Eu estava ouvindo Sartorius e, no entanto, minha mente se recusava a receber suas palavras. Contemplando o sangue coagulado no fundo da proveta, eu me defendia daquela voz que tentava forçar minha atenção.
— Vamos chamá-los de criações F — disse rapidamente Snow.
— Ah, perfeitamente.
Uma linha vertical, apenas perceptível no meio da tela, indicava que eu estava ligado a dois canais. Eu deveria ver, separadas por aquela linha, duas imagens: as de Sartorius e Snow. Mas a tela, cercada por um halo luminoso, continuava escura. Cada um dos meus interlocutores havia coberto a objetiva do respectivo aparelho.
— Cada um de nós efetuou diversas experiências. Sempre a mesma prudência na voz anasalada. Houve uma pausa.
— Sugiro primeiro uma troca dos conhecimentos adquiridos — continuou Sartorius. — Depois me arriscarei a dar as conclusões a que cheguei pessoalmente. Se quiser ter a gentileza de começar, doutor Kelvin…
— Eu?
Senti subitamente que Rheya estava me olhando. Coloquei a mão na mesa e fiz a proveta rolar para baixo da prateleira cheia de objetos. Depois empoleirei-me num tamborete alto que eu havia puxado com o pé. Estava disposto a recusar quando, para meu próprio espanto, comecei a responder.
— Muito bem. Uma ligeira exposição? Não fiz muita coisa, mas posso dizer algumas palavras. Realizei uma preparação histológica e algumas reações. MicrorreaçÕes. Tenho a impressão de que…
Eu não sabia o que dizer. Bruscamente abriu-se uma comporta e eu continuei:
— Está tudo normal, mas é uma camuflagem. Uma máscara. Num certo sentido, é uma supercópia, uma reprodução superior ao original. Explico-me: enquanto existe, no homem, um limite fundamental, um termo à divisibilidade estrutural, as fronteiras, aqui, são dilatadas. Estamos tratando com uma ossatura infra-atômica!
— Um instante, um instante! Pode dar mais detalhes? — pediu Sartorius.
Snow ficou calado. Seria o eco de sua respiração agitada o que eu estava ouvindo? Rheya olhou-me novamente. Percebi que, excitado como estava, eu havia quase gritado aquelas últimas palavras. Mais calmo, acomodei-me no meu inconfortável poleiro e fechei os olhos. Como detalhar meu pensamento?
— O átomo é o último elemento constitutivo do nosso corpo. Suponho que as criações F são constituídas de unidades ainda menores que os átomos comuns, muito menores.
— Mésons — insinuou Sartorius, que não demonstrou a menor surpresa.
— Não, nada de mésons… Eu os teria percebido. O poder do meu aparelho, cá embaixo, vai de um décimo a um vigésimo de angstròm, não é? Mas não se vê nada, absolutamente nada. Portanto, não se trata de mésons. Talvez neutrinos.
— Essa suposição é fundada em quê? Os conglomerados de neutrinos são estáveis…
— Não sei. Não sou físico. Talvez um campo magnético possa estabilizá-los. Não conheço o assunto. Em todo caso, se minhas observações estão corretas, o edifício é constituído por partículas dez mil vezes menores que o átomo. Esperem, ainda não acabei! Sc as moléculas de albumina e as células forem constituídas diretamente a partir desses «microátomos», deverão ser proporcionalmente menores. Também OS glóbulos, os fermentos, tudo. Ora, as dimensões são as das estruturas de átomos. Por conseqüência, albumina, célula, núcleo de célula, tudo não passa de camuflagem! A estrutura real, que determina o funcionamento do «visitante», continua escondida mais profundamente!
— Kelvin!
Snow acabara de abafar um grito. Interrompi-me, apavorado. Eu havia dito «visitante».
Rheya não me ouvira. Aliás, ela não teria compreendido. com a cabeça apoiada na palma da mão, olhava pela janela e a aurora púrpura aureolava seu perfil delicado.
Meus distantes interlocutores continuavam calados. Eu só ouvia-lhes a respiração.
— Há qualquer coisa a ser levada em conta nisso — resmungou Snow.
— E verdade — frisou Sartorius. — Mas uma constatação nos tolhe: as hipotéticas partículas de Kelvin não constituem a estrutura do oceano. O oceano é uma estrutura de átomos.
— Talvez ele seja capaz de produzir neutrinos… — respondi. Subitamente desinteressei-me de suas palavras. Aquela conversa era inútil e nem sequer divertida.
— A hipótese de Kelvin explicaria essa resistência extraordinária e a velocidade de regeneração — resmungou Snow. — Além disso, eles provavelmente carregam uma fonte de energia. Não precisam comer…
— Peço a palavra — cortou Sartorius.
O horripilante presidente do debate mantinha firme o papel que se atribuíra.
— Quero levantar o problema da motivação da aparição das criações F. Apresentarei o problema da seguinte maneira: O que são as criações F? Não são indivíduos autônomos, nem cópias de determinados indivíduos. São projeções materializadas do conteúdo do nosso cérebro, sobre o tema de um indivíduo dado.
A exatidão dessa definição me atingiu. Sartorius não era simpático, mas também não era burro. Voltei a participar da conversa.
— Creio que você tem razão. Sua definição explicaria por que talvez uma criação apareceu e não outra. A materialização tem por origem as impressões mais duráveis da memória, impressões particularmente diferenciadas. Nenhuma impressão, no entanto, pôde ser completamente isolada. No decorrer da «reprodução», fragmentos de impressões contíguas foram absorvidos. Por conseqüência, a criação chega a revelar, às vezes, conhecimentos mais extensos que os do indivíduo autêntico do qual é a cópia…
— Kelvin! — gritou Snow outra vez.
Só Snow reagia aos meus deslizes vocabulares. Sartorius não parecia se incomodar. Isso quereria dizer que o «visitante» de Sartorius era menos perspicaz que o de Snow? Por um momento, imaginei o sábio doutor Sartorius tendo ao lado um rematado cretino.
— De fato isso corresponde às nossas observações! — disse Sartorius.
— Agora consideremos o motivo das aparições! É bastante natural supor, em primeiro lugar, que somos objeto de uma experiência. Se examino esta tese, a experiência me parece conduzida de forma medíocre. Quando efetuamos uma experiência, tiramos vantagens dos resultados obtidos, e principalmente, registramos com cuidado as falhas do nosso sistema experimental. Por conseqüência, introduzimos a seguir modificações em nossa maneira de proceder. Ora, no caso do qual nos ocupamos, nenhuma modificação interveio. As criações F tomam a surgir idênticas ao que eram, sem a menor correção… tão desarmadas quanto antes, cada vez que tentarmos… nos livrar…
— Bom — atalhei —, um tiro pela culatra sem dispositivo de correção, como diria o doutor Snow. Conclusão?
— Simplesmente que a tese de experiência se acomoda mal dentro desta incrível confusão. O oceano é… preciso. A estrutura de nível duplo das criações F confirma essa precisão. Dentro de limites determinados, as criações F comportam-se da mesma maneira que os verdadeiros… os… Ele não conseguia se exprimir!
— Os originais — sussurrou vivamente Snow.
— Sim, os originais. Mas, quando a situação não corresponde mais às faculdades normais do… hum… cio original, a criação F sofre, de alguma forma, um «desligamento da consciência», seguido imediatamente de manifestações diferentes, não humanas…
— É verdade — disse eu — e podemos nos divertir organizando um manual do comportamento de… dessas criações, o que seria uma ocupação perfeitamente estéril!
— Não tenho tanta certeza — protestou Sartorius. Compreendi de imediato por que ele me irritava tanto. Ele não falava, discorria como se estivesse numa sessão do Instituto. Aparentemente, Sartorius não podia se exprimir de outra maneira.
— Aqui entra em jogo um problema de individualidade continuou — do qual o oceano não tem qualquer noção, tenho certeza. Creio que o aspecto… hum… delicado, o aspecto chocante da nossa condição atual escapa completamente à compreensão dele.
— Você acha que os atos dele não são premeditados?
O ponto de vista de Sartorius me deixara um tanto perturbado. Pensando bem, reconheci que não era conveniente desprezá-lo.
— Não, ao contrário do nosso colega Snow, não creio em nenhuma perfídia, malícia ou qualquer intenção cruel.
Snow ergueu a voz.
— Não atribuo a ele sentimentos humanos. Tento apenas explicar esses retornos contínuos!
Com um secreto desejo de agredir Sartorius, eu disse:
— «Eles» talvez estejam ligados a um dispositivo que funciona em círculo e se repete, como um disco.
— Por favor, caros colegas, não divaguemos! Ainda não terminei. Em circunstâncias normais, eu teria julgado prematuro apresentar um relatório, mesmo provisório, do estado dos meus trabalhos. Mas em consideração a esta situação especial, posso me permitir falar. Tenho a impressão — apenas uma impressão, quero frisar — de que não falta exatidão à hipótese do doutor Kelvin. Estou aludindo à hipótese de uma estrutura de neutrinos… Nossos conhecimentos nesse terreno são puramente teóricos. Ignorávamos que havia uma possibilidade de estabilizar tais estruturas. A partir disso, temos uma abertura bem definida. Os meios de neutralizar o campo magnético que assegura a estabilidade da estrutura…
Havia alguns instantes que eu começara a notar a presença de raios luminosos na tela. Uma grande fenda iluminou, de alto a baixo, a metade escjuerda do receptor e vi um objeto rosado que se deslocava com lentidão. A cobertura da lente havia deslizado completamente.
Sartorius deu um berro lancinante.
— Vai embora! Vai embora!
Vi as mãos e os antebraços de Sartorius, protegidos por amplas luvas de laboratório, se agitarem e lutarem. Um disco dourado brilhou de repente e depois sumiu. Só então percebi que aquele disco amarelo era um chapéu de palha…
Respirei profundamente.
— Snow?
Respondeu-me uma voz cansada.
— O que é, Kelvin?…
Ao ouvi-lo, descobri que gostava muito dele e que preferia não saber quem lhe fazia companhia.
— Por hoje chega, não? — perguntou ele.
— Acho que sim. — Antes que ele desligasse, acrescentei precipitadamente: — Ouça, se puder, venha me ver na sala de operações ou em meus aposentos, sim?
— Está bem, mas não sei quando. Assim terminou a conferência.