Depois daquilo, as coisas seguiram à maneira de McMurphy durante um longo período. A enfermeira estava esperando a vez dela, até que lhe ocorresse uma outra idéia que a poria novamente no topo. Ela sabia que havia perdido uma grande rodada e que estava perdendo outra, mas não estava com pressa. Para começar, não pretendia recomendar a liberação; a briga podia continuar enquanto ela quisesse, até que ele cometesse um erro ou até que simplesmente amolecesse, ou até que ela pudesse inventar alguma tática nova que a poria de volta no topo, diante dos olhos de todo mundo.
Muita coisa aconteceu antes que ela aparecesse com a nova tática. Depois que McMurphy foi tirado do que se pode chamar de breve período de licença, e anunciou que voltara à briga ao quebrar a janela particular dela, ele tornou as coisas na enfermaria bastante interessantes. Participava de todas as sessões, todas as discussões – falando arrastado, piscando, brincando com a graça de que era capaz para arrancar uma risada, por fraca que fosse, de algum Agudo que tinha medo de rir desde os 12 anos. Reuniu um grupo suficientemente grande para formar um time de basquete, e de alguma forma convenceu o médico a deixá-lo trazer uma bola do ginásio para que o time se habituasse a manejá-la. A enfermeira foi contra, disse que dali a pouco eles estariam jogando futebol na enfermaria e jogos de pólo para cima e para baixo no corredor, mas o médico, pela primeira vez, manteve-se firme e disse que os deixassem em paz.
– Um número considerável dos jogadores, Srta. Ratched, vem mostrando um nítido progresso desde que o time de basquete foi organizado; acho que isso já está comprovando o valor terapêutico.
Ela olhou para ele durante algum tempo com perplexidade. Então, ele também estava fazendo um pouquinho de ginástica… Ela prestou atenção ao tom da voz dele, para mais tarde, quando a hora dela viesse de novo, e apenas assentiu, indo sentar-se na Sala das Enfermeiras, junto aos controles do seu equipamento. Os serventes haviam posto um papelão na esquadria acima da mesa até que pudessem colocar uma outra vidraça. Ela ficava sentada, atrás do papelão, todo o dia, como se aquilo nem estivesse ali, como se ainda pudesse ver perfeitamente a enfermaria. Atrás daquele quadrado de papelão ela parecia um quadro virado para a parede.
Ela esperou, sem comentários, enquanto McMurphy continuava a correr de manhã pelos corredores, com seus calções de baleias brancas, ou atirava moedas nos dormitórios, ou corria para cima e para baixo no corredor tocando um apito niquelado, ensinando aos Agudos a partida rápida da porta da enfermaria até a Sala de Isolamento, na outra extremidade, a bola martelando no corredor como tiros de canhão e McMurphy berrando como um sargento: "Raça, seus mariquinhas, raça!"
Quando um dos dois falava com o outro, era sempre com a maior polidez possível. Ele pediu a ela com toda a educação se podia usar a caneta dela para escrever um pedido de Saída Desacompanhada do hospital. Escreveu bem ali na frente dela, na mesa dela, e lhe entregou o pedido e a caneta ao mesmo tempo, com um gentil "obrigado". Ela olhou para ele e disse, com toda a polidez quanto podia, "vou discutir o assunto com o pessoal", o que levou, talvez, uns três minutos, e voltou para dizer a ele que realmente sentia muito, mas uma saída não era considerada terapêutica naquela ocasião. Ele tornou a agradecer e, saindo da Sala das Enfermeiras, soprava o apito suficientemente alto para quebrar janelas a milhas de distância. "Treinem, seus mariquinhas, apanhem aquela bola e vamos tratar de suar a camisa."
Ele já se encontrava no hospital há um mês, tempo suficiente para assinar o quadro de avisos do corredor, requisitando uma audiência na Sessão de Grupo sobre uma Licença de Saída com Acompanhante. Foi até o quadro de avisos com a caneta da enfermeira e escreveu sob PARA SER ACOMPANHADO POR: "Uma garota de Portland que eu conheço, chamada Candy Starr." – e estragou a pena da caneta ao colocar o ponto. O pedido de saída foi apresentado na Sessão de Grupo, alguns dias depois, no mesmo dia, de fato, em que os operários puseram um vidro novo na janela defronte à mesa da Chefona… Depois que o seu pedido foi recusado com base no fato de que aquela Srta. Starr não parecia ser uma pessoa das mais responsáveis para que um paciente pudesse sair com ela, ele encolheu os ombros e disse que achava que era por causa do jeito como ela rebolava. Levantou-se e foi andando até a Sala das Enfermeiras, para a janela que ainda tinha o rótulo da vidraçaria, embaixo num canto, e novamente enfiou o punho através dela. Explicou à enfermeira, enquanto o sangue lhe escorria dos dedos, que tinha pensado que haviam tirado o papelão e que a esquadria estava vazia.
– Quando foi que eles enfiaram esse maldito vidro aí? Porra, essa coisa é um perigo!
A enfermeira fez um curativo na mão dele enquanto Scanlon e Harding buscavam o papelão no meio do lixo e tornavam a prendê-lo na esquadria, usando fita adesiva do mesmo rolo com que a enfermeira fazia o curativo no pulso e nos dedos de McMurphy. McMurphy estava sentado num banco, fazia caretas horríveis enquanto seus cortes eram tratados, piscando ao mesmo tempo para Scanlon e Harding por sobre a cabeça da enfermeira. A expressão do rosto dela era calma e vazia, mas a tensão começava a aparecer em outras atitudes. Na maneira como apertava o adesivo o mais que podia, mostrando que a sua paciência já não era mais o que costumava ser.
Começamos a ir ao ginásio e assistir ao nosso time de basquete – Harding, Billy Bibbit, Scanlon, Fredrickson, Martini e McMurphy sempre que sua mão parava de sangrar por tempo suficiente para que ele entrasse no jogo – jogar contra o time dos ajudantes. Os nossos dois crioulos maiores jogavam pelos ajudantes. Eram os melhores jogadores no campo, correndo juntos para cima e para baixo como um par de sombras de calções vermelhos, fazendo uma cesta atrás da outra, com uma precisão automática. O nosso time era muito baixo, lento demais, e Martini ficava fazendo passes para homens que ninguém via a não ser ele. Os ajudantes nos venceram por 20 pontos. Mas aconteceu uma coisa que fez com que a maioria de nós saísse com a sensação de que, de alguma forma, tinha havido uma espécie de vitória: numa disputa pela bola o nosso crioulo grande, Washington, levou uma porrada com o cotovelo de alguém, e o seu time teve de segurá-lo enquanto ele se esforçava para partir para cima de McMurphy que, sentado na bola, não prestava a menor das atenções ao crioulo enfurecido, o sangue a escorrer-lhe vermelho do narigão pelo peito abaixo, como tinta derramada num quadro-negro, e berrando para os que os seguravam: "Ele tá pedindo! O filho da puta tá pedindo porrada!"
McMurphy escreveu mais bilhetes para serem encontrados pela enfermeira na latrina. Escreveu histórias incríveis a respeito de si mesmo no livro diário e as assinou como Anon. Às vezes ele dormia até as oito horas. Ela o repreendia sem o menor vigor, e ele ficava ali e ouvia até que ela acabasse; então, destruía todo o efeito perguntando algo como qual o tipo de soutien que ela usava.
Os outros Agudos estavam começando a seguir-lhe o exemplo. Harding começou a flertar com todas as estudantes de enfermagem, e Billy Bibbit desistiu por completo de escrever o que costumava chamar de suas "observações" no livro diário. Quando a vidraça da janela tornou a ser recolocada, com um grande X riscado com cal, para garantir que McMurphy não tivesse desculpa para não saber que estava lá, Scanlon acabou com ela, acidentalmente, atirando nossa bola de basquete através do vidro, antes mesmo que a cal tivesse secado. A bola estourou e Martini a apanhou do chão como se fosse um passarinho morto, levando-a até a enfermeira, na sala, onde ela olhava para o novo monte de cacos de vidro espalhados sobre a mesa. Pediu se ela não podia, por favor, consertá-la com fita adesiva, fazê-la ficar boa de novo. Sem dizer uma palavra, ela a arrancou das mãos dele e a atirou no lixo.
Assim, com a temporada de basquete obviamente terminada, Murphy decidiu que pescar é que era uma boa. Requisitou um outro passe de saída, depois de dizer ao médico que tinha uns amigos na baía Siuslaw, em Florence, que gostariam de levar oito ou nove pacientes para uma pescaria em alto-mar, se o pessoal do hospital estivesse de acordo. Ele escreveu na lista de pedidos no corredor que, dessa vez, seria acompanhado por "duas doces tias velhinhas que vinham de um lugarzinho nos arredores da Cidade de Oregon". Na sessão, sua licença de saída foi concedida para o fim de semana seguinte. Quando a enfermeira acabou de anotar oficialmente a licença dele no livro, meteu a mão no cesto de vime junto a seus pés e tirou um recorte que ela havia tirado do jornal daquela manhã, e leu em voz alta que, embora as pescarias ao largo da costa do Oregon, estivessem tendo um ano excelente, os salmões vinham aparecendo bem tarde na temporada e o mar estava forte e perigoso. Ela sugeriu que os homens pensassem um pouco naquilo.
– Boa idéia – disse McMurphy. Fechou os olhos e respirou fundo através dos dentes. – Sim senhor! O cheiro salgado do mar ondulante, a batida da proa contra as ondas… o desafio aos elementos, quando os homens são homens e os barcos são barcos. Srta. Ratched, a senhora me convenceu. Vou telefonar e alugar o barco hoje à noite mesmo. A senhora também quer ir?
Em vez de responder, ela foi até o quadro de avisos e prendeu ali o recorte de jornal.
No dia seguinte, ele começou a fazer a inscrição dos que queriam ir e que tinham 10 dólares para o aluguel do barco. A enfermeira começou a trazer, repetidamente, recortes de jornais que falavam a respeito de barcos afundados e de tempestades repentinas na costa. McMurphy pôs-se a zombar dela e de seus recortes de jornais, dizendo que as suas duas tias haviam passado a maior parte da vida saltando por sobre as ondas de um porto para outro, com este ou aquele marinheiro, e ambas garantiam que a viagem era tão tranqüila como uma torta, segura como um pudim, sem nada com que se preocupar. Mas a enfermeira conhecia bem seus pacientes. Os recortes os assustaram mais do que McMurphy imaginara. Ele calculara que haveria uma corrida para a inscrição, mas teve de conversar e persuadir com adulações para conseguir uns poucos. Na véspera da viagem, ele ainda precisava de mais dois sujeitos, para cobrir o aluguel do barco.
Eu não tinha o dinheiro, mas fiquei com aquela idéia na cabeça de que queria assinar a lista. E quanto mais ele falava sobre pescaria de salmão chinook, mais eu queria ir. Sabia que era uma coisa idiota querer aquilo; se eu assinasse seria a mesma coisa que sair e dizer a todo mundo que eu não era surdo. Se eu ouvira toda aquela conversa sobre barcos e pescaria, isso mostrava que estivera ouvindo tudo mais que fora dito em confiança na minha presença durante os últimos 10 anos. E se a Chefona descobrisse que eu havia ouvido todas as tramas e traições que haviam planejado quando ela achava que não havia ninguém ouvindo, ela me caçaria com uma serra elétrica, e trataria de mim até ter certeza de que eu estivesse realmente surdo e mudo. Por mais que quisesse ir, pensar naquilo ainda me fazia sorrir um pouco: eu tinha de continuar fingindo que era surdo, se quisesse ouvir mesmo.
Fiquei deitado na cama na noite da véspera da viagem de pescaria e pensei sobre aquilo, sobre a minha surdez, sobre os anos em que não deixei que percebessem que eu ouvia o que era dito, e me perguntei se jamais eu seria capaz de agir de alguma outra maneira de novo. Mas me lembrei de uma coisa: não fui eu que comecei a fingir que era surdo; foram as pessoas que primeiro começaram a agir como se eu fosse estúpido demais para ouvir, ver ou dizer qualquer coisa.
E aquilo não havia começado apenas desde que eu viera para o hospital; as pessoas começaram a agir como se eu não pudesse falar ou ouvir muito tempo antes. No Exército, qualquer um com mais galões agia assim comigo. Era desse jeito que eles imaginavam que a gente devia agir com uma pessoa com a minha aparência. E mesmo bem antes, no colégio, posso lembrar-me de gente que dizia que não achava que eu estivesse ouvindo e, assim, eles pararam também de ouvir as coisas que eu dizia. Deitado ali na cama, tentei lembrar-me de quando percebi isso pela primeira vez. Acho que foi certa vez, quando ainda morávamos na aldeia, na Columbia. Era verão…
… e tenho cerca de 10 anos e estou do lado de fora, na frente da barraca, espalhando sal no salmão, quando vejo um carro fazer a curva na rodovia e vir sacolejando pelos sulcos, através dos pés das salvas, levantando uma nuvem de poeira vermelha tão sólida como uma fileira de vagões fechados.
Observo o carro vir subindo o morro e parar um pouco abaixo do nosso quintal. A poeira continua vindo, batendo na traseira do carro e espalhando-se em todas as direções, para finalmente assentar-se nas folhas secas e nas ervas, cobrindo-as e fazendo-as parecer pedaços de destroços vermelhos, esfumaçados. O carro fica parado ali enquanto a poeira se assenta. Eu sei que não são turistas com máquinas fotográficas porque eles nunca vêm de carro até tão perto da aldeia. Se querem comprar peixe, compram lá na estrada; eles não vêm até a aldeia porque provavelmente pensam que ainda escalpelamos as pessoas e as queimamos num poste. Não sabem que alguns do nosso povo são advogados em Portland, provavelmente não acreditariam se eu lhes dissesse. Na realidade, um dos meus tios tornou-se um advogado de verdade e Papai diz que ele o fez exclusivamente para provar que podia fazê-lo, uma vez que ele preferia pescar salmões na cachoeira a qualquer outra coisa. Papai diz que, se a gente não tomar cuidado com as pessoas, elas forçam a gente de uma maneira ou de outra a fazer o que elas querem, ou a ser teimoso como uma mula e a fazer o contrário, só de pura raiva.
As portas do carro se abrem de repente e três pessoas saem da frente e uma de trás. Vêm subindo o declive em direção à nossa aldeia e vejo que os dois primeiros são homens de terno azul, e que a pessoa que saiu do banco traseiro do carro é uma mulher velha, de cabelos brancos, com uma roupa tão engomada e pesada que parece uma armadura. Estão arquejando e suando quando saem do meio das salvas e entram no nosso quintal descampado.
O primeiro homem pára e examina a aldeia. Ele é baixo, gordo e usa um chapéu de cowboy branco. Sacode a cabeça para o nosso esquálido amontoado de cavaletes de peixes, carros de segunda mão, galinheiros, motocicletas e cachorros.
– Alguma vez na sua vida viu coisa parecida? Já viu? Santo Deus, alguma vez já viu?
Ele tira o chapéu e bate de leve com um lenço na cabeça, que parece uma bola de borracha vermelha, com cuidado, como se tivesse medo de desarrumar um dos dois – o lenço ou o chumaço úmido de cabelo pegajoso.
– Pode imaginar gente querendo viver desta maneira? Diga-me, John, pode imaginar? – Ele fala alto por não estar habituado com o rugido da cachoeira.
John está do lado dele, tem um bigode espesso, grisalho, levantado sob o nariz para manter longe o cheiro do salmão com que estou trabalhando. Está todo suado no pescoço e no rosto, e as costas do terno azul estão também manchadas de suor. Toma apontamentos num livro, e fica movimentando-se em círculos, olhando para a nossa cabana, nosso jardinzinho, para os vestidos vermelho, verde e amarelo que mamãe usa nos sábados à noite, que estão secando lá atrás, pendurados num cordão – continua virando até que se volta na minha direção e me olha como quem me vê pela primeira vez, e eu não estou nem a dois metros de distância dele. Inclina-se na minha direção, olha e torna a levantar o bigode até o nariz, como se eu é que estivesse fedendo, e não o peixe.
– Onde é que você acha que os pais dele estão? – pergunta John. – Dentro da casa? Ou lá na cachoeira? Nós bem que poderíamos discutir o assunto com o homem enquanto estamos aqui.
– Eu não vou entrar naquele barraco – diz o gordo.
– Aquele barraco – diz John através do bigode – é onde o chefe mora, Brickenridge, o homem com quem viemos aqui para conversar, o nobre líder deste povo.
– Conversar? Eu não, não é o meu trabalho. Eles me pagam para avaliar, não para confraternizar.
Isso arranca uma risada de John.
– Sim, isso é verdade. Mas alguém devia informá-los dos planos do Governo.
– Se eles já não sabem, logo acabarão sabendo.
– Seria muito simples entrar e falar com ele.
– Dentro daquele barraco miserável? Ora, eu aposto quanto você quiser como o lugar está cheio de aranhas. Dizem que essas cabanas de taipa sempre abrigam uma população considerável delas nas paredes de barro entre os buracos. E é quente, Deus misericordioso, que eu vou te contar. Aposto como aí dentro é um forno dos bons. Olhe, veja como o pequeno Hiawatha está tostadinho. Ah! Tostado? Quase torrado, melhor dizendo.
Ele ri e coça a cabeça, mas quando a mulher olha para ele, pára de rir. Pigarreia e cospe na poeira. Em seguida, vai andando e se senta no balanço que papai fez para mim, no zimbro. Fica sentado ali balançando-se um pouco e se abanando.
O que ele disse faz com que eu fique cada vez mais zangado à medida que vou pensando no assunto. Ele e John continuam falando sobre nossa casa, a aldeia e a propriedade e quanto valem. Tenho a impressão de que estão falando a respeito dessas coisas na minha frente porque não sabem que falo inglês. Provavelmente são de algum lugar no leste, onde as pessoas nada sabem a respeito dos índios, exceto o que vêem no cinema. Penso em como vão ficar envergonhados quando descobrirem que sei o que estão dizendo.
Eu os deixo dizer mais uma coisa ou duas sobre o calor e a casa; então, levanto-me e digo ao homem gordo, no meu melhor inglês, saído dos livros escolares de gramática, que a nossa casa de taipa provavelmente estará muito mais fresca do que qualquer das casas da cidade, muito mais fresca! – Eu sei com toda certeza que é mais fresca que a escola que eu freqüento e até mais fresca que aquele cinema em The Dalles que faz propaganda naqueles cartazes com letras desenhadas como pingentes de gelo que é "fresco aqui dentro"!
E estou pronto para lhes dizer como, se eles quiserem entrar, irei chamar papai nos andaimes da cachoeira, quando vejo que não parece de maneira alguma que me ouviram. Não estão nem olhando para mim. O gordo continua balançando-se para trás e para frente, olhando para além da ponta de lava, para onde os homens estão sobre os andaimes na cachoeira, apenas vultos de camisas xadrez na neblina, a esta distância. Volta e meia a gente pode ver alguém lançar um braço e dar um passo para frente como um espadachim, depois erguer a sua lança com a ponta em forma de forquilha, para que alguém no andaime de cima tire o salmão que se contorce. O homem gordo observa os homens de pé em seus lugares através do véu de água, pisca os olhos e resmunga cada vez que um deles golpeia um salmão.
Os outros dois, John e a mulher, estão apenas de pé ali. Nenhum dos três age como se tivesse ouvido algo do que eu disse; de fato, todos olham para longe de mim como se preferissem que eu não estivesse ali.
E tudo pára e fica assim por um minuto.
Tenho a mais estranha das sensações, como se o sol tivesse ficado mais forte que antes em cima dos três. Todo o resto continua com o aspecto habitual – as galinhas ciscam no capim, os gafanhotos saltam de arbusto em arbusto, as moscas são afastadas em nuvens negras em volta dos cavaletes de peixe pelas crianças pequenas, tudo igualzinho a qualquer outro dia de verão. Exceto o sol, sobre aqueles três estranhos, que de repente está muitíssimo mais forte e brilhante do que normalmente, e posso ver as… costuras onde eles são encaixados. E, quase, ver o aparato dentro deles pegar as palavras que acabei de dizer e tentar encaixar as palavras aqui e ali, nesse lugar e naquele, e quando eles vêem que as palavras não têm nenhum lugar pronto para se encaixar, a maquinaria se livra das palavras como se elas nem ao menos tivessem sido ditas.
Os três estão absolutamente imóveis enquanto isso acontece. Até o balanço parou, pregado numa determinada inclinação pelo sol, com o homem gordo petrificado como uma boneca de borracha. Então a galinha-de-angola de papai acorda nos galhos do zimbro e vê que temos estranhos nas proximidades. Dá o alarma, como se fosse um cachorro, e o encanto se quebra.
O homem gordo grita, pula do balanço, e se afasta em meio à poeira, segurando o chapéu no alto, na frente do sol, de forma que possa ver o que é que está ali em cima do zimbro, fazendo tamanha algazarra. Quando vê que é apenas uma galinha pintada, cospe no chão e põe o chapéu.
– Eu, sinceramente, sinto - diz ele – que qualquer oferta que façamos a esta… metrópole será mais do que o suficiente.
– Pode ser. Ainda acho que devíamos fazer algum esforço para falar com o chefe…
A velha o interrompe dando um passo adiante de maneira decidida.
– Não. – É a primeira coisa que ela disse até agora. – Não – - repete, de uma maneira que me lembra a Chefona. Ela levanta as sobrancelhas e examina o lugar todo. Seus olhos saltam como números numa caixa registradora; olha para os vestidos de mamãe, pendurados cuidadosamente na corda, e balança a cabeça.
– Não. Não falamos com o chefe hoje – diz ela. – Ainda não. Eu acho… que pela primeira vez concordo com Brickenridge. Só que por uma razão diferente. Lembram-se do dossiê que temos, que mostra que a esposa não é uma índia, mas uma mulher branca? Branca. Uma mulher da cidade. O nome dela é Bromden. Ele passou a usar o nome dela, e não ela o dele. Ah, sim, acho que, se apenas formos embora agora, e voltarmos para a cidade, e, é claro, espalharmos a história entre o pessoal da cidade sobre os planos do Governo, de forma que compreendam as vantagens de ter uma represa hidrelétrica e um lago. em vez de um amontoado de cabanas ao lado de uma cachoeira, e então datilografarmos uma proposta… e a enviarmos para a mulher, por engano, percebem?, creio que o nosso trabalho será muito mais fácil. – Ela olha para longe, para os homens sobre andaimes antigos, frágeis, ziguezagueantes, que vêm crescendo e se ramificando entre as rochas das cachoeiras há centenas de anos. – Enquanto que, se nos encontrarmos agora com o marido, e fizermos alguma oferta inesperada, podemos nos defrontar com uma quantidade desconhecida de teimosia navaho e amor pelo… creio que temos de chamar isso de lar.
Começo a lhes dizer que ele não é um navaho, mas, penso, de que adianta se não me ouvem? Não importa a eles qual seja a tribo.
A mulher sorri, balança a cabeça para cada um e seus olhos os unem. E ela começa a andar num passo duro para o carro, falando numa voz despreocupada e jovem:
– Como o meu professor de Sociologia costumava enfatizar, "há, geralmente, em toda situação, uma pessoa cujo poder nunca deve ser subestimado".
E eles voltam para o carro e vão embora, e eu fico ali me perguntando se em algum momento eles me viram.
Eu fiquei, assim, meio espantado por ter-me lembrado daquilo. Era a primeira vez, no que me pareciam séculos, que eu conseguia lembrar-me de tanta coisa da minha infância. Descobrir que eu ainda podia fazê-lo me fascinou. Fiquei deitado na cama acordado, lembrando-me de outros acontecimentos, e mais ou menos naquele momento, enquanto eu estava assim numa espécie de sonho, ouvi um ruído debaixo da minha cama como de um rato. Debrucei-me sobre a beira da cama e vi o brilho de metal a arrancar os pedaços de chicletes que eu conhecia de cor. O crioulo chamado Geever tinha descoberto onde eu vinha escondendo meus chicletes; estava arrancando os pedaços e pondo num saco com o auxílio de uma tesoura comprida e lisa, aberta como mandíbulas.
Saltei para trás, de volta para as cobertas antes que ele me visse olhando. Meu coração estava latejando, nos meus ouvidos, de medo de que ele me tivesse visto. Eu queria dizer a ele que fosse embora, que tratasse da sua vida e que deixasse meus chicletes em paz, mas não podia nem deixar que percebesse que eu o tinha ouvido. Fiquei imóvel, para ver se ele me tinha visto debruçado para espiá-lo debaixo da cama, mas ele não deu nenhum sinal – tudo que eu ouvi foi o zzzzt – zzzzt da tesoura e os pedaços caindo no saco. Lembrou-me o granizo, e da maneira como costumava matraquear no nosso teto de papelão alcatroado. Ele estalou a língua e riu para consigo mesmo.
– Um – ummm. Eu só queria saber quantas vezes esse mudo mastigou esse negócio? Duro desse jeito.
McMurphy ouviu o crioulo a resmungar para consigo mesmo, acordou e se virou, erguendo-se num cotovelo para olhar o que era que ele estava tramando àquela hora, de joelhos debaixo da minha cama. Ele observou o crioulo por um minuto, esfregando os olhos para se assegurar do que estava vendo, do mesmo jeito que a gente vê criança pequena esfregar os olhos. Em seguida se sentou.
– Quero ser o filho de uma cadela se ele não está aqui às onze e meia da noite peidando por aí no escuro, com uma tesoura e um saco de papel. – O crioulo deu um salto e virou a lanterna para os olhos de McMurphy. – Agora diga-me, Sam, que diabo é que você está catando aí escondido no escuro?
– Vá dormir de novo McMurphy. Não é da conta de ninguém.
McMurphy deixou seus lábios se abrirem num sorriso lento, mas não desviou o olhar da luz. O crioulo ficou inquieto depois de meio minuto mantendo aquele foco de luz sobre McMurphy, ali sentado, sobre a cicatriz lustrosa, aqueles dentes e aquela pantera tatuada no ombro dele, e desviou a luz. Tornou a se inclinar para continuar o que estava fazendo, grunhindo e arquejando como se fosse um incrível esforço arrancar chiclete seco.
– Uma das obrigações de um ajudante noturno – explicou ele entre grunhidos, tentando ser simpático – é manter limpo o recinto das camas.
– No meio da noite?
– McMurphy, nós temos uma coisa fixada no quadro chamada Descrição de Trabalho, que diz que a limpeza é um trabalho de vinte-e-quatro horas!
– Você poderia ter feito a tarefa das suas 24 horas antes que viéssemos para a cama, não acha?, em vez de ficar sentado, vendo televisão até as dez e meia. A velha dama Ratched sabe que vocês assistem à TV durante a maior parte do turno? Que é que você acha que ela faria se descobrisse isso?
O crioulo levantou-se e se sentou na beirada da minha cama. Bateu a lanterna nos dentes, rindo sem parar. A luz clareou seu rosto como se fosse um porrete iluminado.
– Bem, deixe que eu lhe conte sobre este chiclete – disse ele e se inclinou mais para perto de McMurphy como um velho camarada. – Sabe, há anos que eu me pergunto onde o chefe Bromden arranja o chiclete dele, sabe, não tendo nenhum dinheiro pra gastar na cantina, nunca tendo ninguém que lhe desse um tostão, que eu visse, nunca pedindo à mulher da Cruz Vermelha… assim, eu fiquei vigiando e esperei. E olhe aqui. – Ele tornou a ficar de joelhos, levantou a ponta do meu lençol e colocou a luz debaixo da cama. – Que é que você acha disso? Aposto que esses pedaços de chicletes aqui debaixo já foram usados mais de mil vezes!
Aquilo divertiu McMurphy. Ele começou a rir. O crioulo levantou o saco e sacudiu. Eles riram mais um pouco. O crioulo deu boa noite a McMurphy e, dobrando a boca do saco como se fosse o seu almoço, saiu para algum lugar, para escondê-lo para mais tarde.
– Chefe? – murmurou McMurphy. – Quero que me diga uma coisa. – E começou a cantar uma musiquinha. uma canção caipira, que havia sido popular há muito tempo: – "Ah, o chiclete de menta perde o gosto se passar a noite na cabeceira da cama?"
No começo, eu fui ficando realmente furioso. Pensei que ele se estivesse divertindo à minha custa, como as outras pessoas faziam.
– "Quando você mastiga de manhã" – cantarolou num sussurro – "está muito duro de morder?"
Mas quanto mais eu pensava naquilo, mais engraçado me parecia. Tentei parar, mas podia sentir que estava a ponto de rir – Não da cantoria de McMurphy, mas de mim mesmo.
– "Esta dúvida vive me aporrinhando, será que ninguém me pode dizer a resposta, o chiclete de menta perde o gosto se passar a noite na cabeceira da caaa-maa?"
Ele sustentou aquela última nota e a fez descer em cima de mim como uma pena, provocando cócegas. Não pude deixar de começar a rir, abafado, e isso me fez ficar com medo de cair na risada e de não conseguir parar. Mas bem nesse instante McMurphy pulou da cama e começou a remexer na mesinha de cabeceira, e eu me calei. Cerrei os dentes, perguntando-me o que fazer agora. Já fazia muito tempo que eu não tinha permitido alguém ouvir de mim algo mais que um grunhido ou um urro. Eu o ouvi fechar a mesinha de cabeceira, e aquilo ecoou como uma porta de caldeira. Eu o ouvi dizer:
– Tome – e alguma coisa caiu em cima da minha cama. Pequena. Do tamanho de um lagarto ou uma cobra…
– Sabor de frutas é o melhor que posso arranjar para você no momento, chefe. Ganhei a caixa do Scanlon acertando moedinhas – disse, e voltou para a cama.
E, antes que eu percebesse o que estava fazendo, ouvi-me a dizer-lhe "obrigado".
Ele nada comentou. Estava apoiado no cotovelo, observando-me como observara o crioulo, esperando que eu dissesse mais alguma coisa. Apanhei a caixa de chicletes, fiquei com ela na mão e repeti "obrigado".
Não soou assim com muita clareza porque a minha garganta estava enferrujada e a minha língua rangia. Ele me disse que eu parecia meio fora de forma, e riu daquilo. Tentei rir com ele, mas saiu um som parecido com um grasnado, como um frango tentando cantar. Parecia mais choro que riso.
Ele me disse que não me apressasse, que ele tinha até as seis e meia da manhã para me ouvir se eu quisesse praticar. Disse que um homem, que havia ficado calado tanto tempo como eu, provavelmente teria muita coisa de que falar, e tornou a deitar-se no travesseiro. Pensei por um minuto em algo para lhe dizer, mas a única coisa que me veio à mente era o tipo da coisa que um homem não pode dizer para outro, porque soa mal posta em palavras. Quando ele viu que eu nada conseguia falar, cruzou as mãos atrás da cabeça e começou, ele mesmo:
– Sabe, chefe, eu estava acabando de me lembrar de uma ocasião lá no vale Willamette… Eu estava colhendo ervilhas nos arredores de Eugene, considerando-me um cara de sorte por ter conseguido o emprego. Foi no princípio da década de 30 e não era muito fácil um garoto conseguir emprego. Ganhei o meu provando ao chefe do negócio das ervilhas que podia colher tão rápido e direito como qualquer um dos adultos. De qualquer forma, eu era o único garoto. Ninguém perto de mim a não ser gente grande. E depois que tentei falar com eles uma ou duas vezes vi que não estavam dispostos a me ouvir, um gurizinho ruivo e magricela. Assim fiquei calado. Fiquei tão irritado com o fato de não quererem me escutar que agüentei calado as quatro semanas inteiras que passei naquele campo, trabalhando bem ali do lado deles, ouvindo-os a tagarelar sobre este tio ou aquele primo. Ou, se alguém não aparecia para trabalhar, faziam fofoca sobre aquela pessoa. Quatro semanas e não dei um pio. Até que pensei, por Deus, eles esqueceram que eu podia falar, os miseráveis dos caipiras. Esperei a minha vez. Então, no último dia, soltei o verbo e fui dizendo a eles que bando de peidos mesquinhos que eles eram. Contei a cada um como o seu companheiro o havia retalhado quando ele estivera ausente. Puxa vida, eles ouviram mesmo! Afinal, acabaram começando a discutir uns com os outros e criaram tamanha cagada que eu perdi a minha gratificação de quatro por cento em cada quilo, que ia receber por nunca ter faltado, porque eu já tinha má reputação pela cidade e o chefe disse que a confusão provavelmente era por minha culpa, mesmo que ele não pudesse provar. Então eu o xinguei também. Ter ficado calado durante aquele tempo provavelmente me custou uns 20 dólares ou coisa assim. Mas valeu a pena.
Ele riu um pouco para consigo mesmo, lembrando. Em seguida virou a cabeça no travesseiro e olhou para mim.
– O que eu estava querendo saber, chefe, é se está esperando a sua oportunidade até o dia em que decidir ir à forra com eles?
– Não – respondi. – Eu não poderia.
– Não poderia dizer uns desaforos a eles? É mais fácil do que você pensa.
– Você é… muito maior, mais duro do que eu – murmurei.
– Como é que é? Não entendi, chefe. Engoli alguma saliva.
– Você é maior e mais duro do que eu. Você pode fazer isso.
– Eu? Está brincando? Puxa vida, olhe só pra você: você é uma cabeça mais alto do que qualquer homem daqui. Não há nenhum homem aqui com quem você não possa fazer de gato e sapato, verdade!
– Não. Eu sou pequeno demais. Eu costumava ser grande, mas não, não sou mais. Você tem duas vezes o meu tamanho.
– Puxa, cara, você é louco, não é? A primeira coisa que eu vi quando entrei neste lugar foi você sentado naquela cadeira, grande como uma maldita montanha. Vou dizer-lhe uma coisa, já morei por todo lado, Klamath, Texas, Oklahoma, e em tudo quanto foi canto lá em Gallup, e juro, você é o maior índio que eu já vi na minha vida.
– Eu sou Columbia Gorge – disse, e esperou que eu continuasse. – Meu pai era chefe de verdade, e o nome dele era Tee Ah Millatoona, que significa O – Pinheiro – Mais – Alto – Na – Montanha, e nós não morávamos numa montanha. Ele era grande de verdade quando eu era garoto. Minha mãe ficou duas vezes maior do que ele.
– Você deve ter tido uma velha grande mesmo. Qual era a altura dela?
– Oh… grande, grande.
– Quero dizer em metro e centímetros?
– Metro e centímetros? Um cara na feira a olhou e disse que ela media perto de um metro e oitenta e pesava setenta quilos, mas isso foi só porque ele apenas a viu. Ela foi ficando cada vez maior.
– Ah, é? Quanto mais?
– Maior do que papai e eu juntos.
– Um dia simplesmente começou a crescer, hum? Bem essa pra mim é nova: nunca ouvi falar de uma índia que fizesse uma coisa dessas.
– Ela não era índia. Era uma mulher da cidade de The Dalles.
– E o nome dela qual era? Bromden? Sim, entendi, espere um minuto. – Ele pensa durante algum tempo e diz: – E quando uma mulher da cidade se casa com um índio, isso equivale a casar-se com alguém inferior a ela, não é? Sim, acho que entendo.
– Não. Não foi só ela que o fez ficar pequeno. Todo mundo dava em cima dele porque ele era grande, e não cedia, e fazia o que lhe agradava. Todo mundo ficou em cima dele, do mesmo jeito que eles estão em cima de você.
– Eles quem, chefe? – perguntou numa voz suave, séria de repente.
– A Liga. Ficou em cima dele durante anos. Ele era bastante grande para lutar contra ela durante algum tempo. Queria que vivêssemos em casas vigiadas. Queria tomar a cachoeira. Penetrou até na tribo, e começaram a trabalhar em cima dele. Na cidade eles o surravam nos becos e uma vez cortaram o cabelo dele bem curto. Oh, a Liga é grande… grande. Ele lutou contra ela durante muito tempo, até que minha mãe o fez ficar pequeno demais para continuar e ele desistiu.
McMurphy nada disse durante muito tempo. Então, levantou-se no cotovelo e, olhando para mim de novo, perguntou por que o surravam nos becos, e expliquei-lhe que queriam fazê-lo entender o que tinham reservado para ele, dali para pior, se não assinasse os papéis dando tudo ao Governo.
– Que é que eles queriam que ele desse ao Governo?
– Tudo. A tribo, a aldeia, a cachoeira…
– Agora, eu me lembro; você está falando da cachoeira onde os índios costumavam apanhar salmões com lança… há muito tempo. Sim. Mas pelo que me lembro, a tribo recebeu uma enorme quantia em pagamento.
– Isso é o que disseram a ele. Ele disse: "Que é que se pode pagar pela maneira de viver de um homem? Que é que vocês podem pagar pelo que um homem é?" Eles não compreenderam. Nem mesmo a tribo. Ficaram do lado de fora da nossa porta, todos segurando aqueles cheques e queriam que ele lhes dissesse o que fazer então. Ficaram pedindo a ele que investisse para eles, ou que lhes dissesse para onde ir, ou comprasse uma fazenda. Mas ele já estava pequeno demais. Bêbado demais, também. A liga o havia derrotado. Derrota todo mundo. Vai derrotar você também. Eles não admitem alguém, grande como papai, andando por aí, a menos que seja um deles. Você compreende?
– É, acho que sim.
– É por isso que não devia ter quebrado aquela janela. Agora, eles vêem que você é grande. Por isso eles têm de dobrar você.
– Como dobrar um potro selvagem, hem?
– Não. Não, ouça, eles não dobram você desse jeito; eles ficam em cima de você de maneiras contra as quais você não pode lutar! Eles põem coisas dentro! Instalam coisas. Eles começam assim que vêem que você vai ser grande e se põem a trabalhar, vão instalando a maquinaria imunda deles quando você é pequeno, e continuam e continuam até que você fique consertado!
– Calma, companheiro…
– E, se você lutar, eles o trancam em algum lugar e fazem você parar…
– Calma, calma chefe. Fique calado um pouco. Eles ouviram você.
Ele se deitou e ficou quieto. Minha cama estava quente, eu notei. Eu podia ouvir o guinchado das solas de borracha enquanto o crioulo entrava com a lanterna para ver qual era o barulho. Ficamos quietos até ele ir embora.
– No final ele aperias bebia – murmurei. Eu não parecia ser capaz de parar de falar, não até que acabasse o que eu pensava ser aquilo tudo. – E da última vez em que o vi, ele estava cego de beber no meio dos cedros e toda vez que eu o via pôr a garrafa na boca, ele não bebia da garrafa, a garrafa é que bebia dele, até que ele ficou todo encolhido, tão enrugado e amarelo que nem os cachorros o conheciam, e tivemos de carregá-lo para fora dos cedros, numa camioneta, para um lugar em Portland, para morrer. Não estou dizendo que eles matam. Eles não o mataram. Eles fizeram outra coisa.
Eu estava com um sono terrível. Não queria falar mais. Tentei lembrar-me do que eu estivera dizendo, e não me pareceu que fosse o que eu tinha querido dizer.
– Estive falando loucuras, não é?
– É, chefe. – Ele se virou na cama. – Esteve falando loucuras.
– Não foi o que eu queria dizer. Não consigo dizer tudo. Não faz sentido.
– Eu não disse que não fazia sentido, chefe. Apenas que eram loucuras.
Ele então ficou em silêncio por tanto tempo que pensei que tivesse dormido. Desejei que lhe tivesse dito boa noite. Olhei para ele, estava virado de costas para mim. O braço dele não estava debaixo das cobertas, e eu podia apenas distinguir os ases e os oito tatuados ali. É grande, pensei, grande como os meus braços costumavam ser quando eu jogava futebol. Eu queria estender a mão e tocar o local das tatuagens, para ter certeza de que ele ainda estava vivo. Ele estava deitado terrivelmente quieto, disse a mim mesmo, eu devia tocar nele para certificar-me de que ainda vivia…
Mentira. Eu sei que ele ainda está vivo. Esta não é a razão por que quero tocar nele.
Quero tocar nele porque ele é um homem.
Isto também é mentira. Há outros homens por aqui. Eu poderia tocar neles.
Eu quero tocar nele porque sou uma dessas bichas!
Mas isso também é mentira. É um medo a esconder-se atrás de outro. Se eu fosse uma bicha, eu quereria fazer outras coisas com ele. Eu só quero tocar nele porque ele é quem ele é.
Mas, quando eu estava a ponto de estender a mão até aquele braço, ele disse:
– Ei, chefe! – Virou-se na cama, com um balanço brusco das cobertas, ficando de frente para mim: – Ei, chefe, por que não vem conosco nessa pescaria, amanhã?
Não respondi. Ele insistiu:
– Vamos, que é que diz? Estou esperando que seja uma ocasião daquelas. Sabe, essas duas tias minhas que vêm me buscar? Ora, não são tias, cara, não; as duas garotas são dançarinas de rebolado que conheço lá de Portland. Que tal?
Finalmente, respondi-lhe que era um dos Indigentes.
– Você é o quê?
– Estou duro.
– Ah – disse ele. – Sim, eu não tinha pensado nisso. Tornou a ficar quieto durante tempo, esfregando a cicatriz no nariz com o dedo. O dedo parou. Ele se levantou apoiado no cotovelo e olhou para mim.
– Chefe – disse devagar, olhando para mim de cima a baixo. – Quando você tinha todo o seu tamanho, quando você media, digamos, mais de dois metros e pesava uns 120 quilos, ou coisa assim… você era forte o bastante para, digamos, levantar uma coisa do tamanho daquele painel de controles na Sala da Banheira?
Pensei a respeito daquele painel. Provavelmente não pesava muito mais do que os tambores de gasolina que eu havia carregado no Exército. Disse a ele que provavelmente teria podido, naquele tempo.
– Se você voltasse a ficar grande assim, ainda poderia levantá-lo?
Disse a ele que achava que sim.
– Para o diabo com o que você acha; eu quero saber se você pode prometer levantar aquilo se eu fizer você ficar grande como era antes. Prometa-me isso e você não somente vai receber o meu curso de desenvolvimento físico gratuito como também vai ganhar uma viagem de pescaria de 10 dólares, grátis! - Ele passou a língua nos lábios e tornou a deitar-se. – Vai dar-me boas perspectivas, também, aposto.
Ficou deitado ali, rindo consigo mesmo, de algum pensamento seu. Quando perguntei-lhe como me faria ficar grande de novo, ele me fez calar levando o dedo aos lábios.
– Cara, não podemos deixar que um segredo desses se espalhe. Èu não disse que lhe diria como, disse? Puxa, cara, fazer um homem voltar a ter todo o seu tamanho é um segredo que não se pode partilhar com todo mundo, seria perigoso nas mãos de um inimigo. Você mesmo não saberá o que está acontecendo a maior parte do tempo. Mas lhe dou a minha palavra de honra, você segue o meu programa de treinamento e verá só o que vai acontecer.
Pôs as pernas para fora da cama e sentou-se na beira, com as mãos nos joelhos. A luz fraca da Sala das Enfermeiras que vinha por sobre o seu ombro apanhou o brilho de seus dentes e um olho cintilante Voltado para mim. A voz galhofeira do vendedor espalhou-se suavemente pelo dormitório.
– Lá estará você. É o Grande Chefe Bromden que vem descendo a avenida. Homens, mulheres e crianças se viram nos calcanhares para olhar para ele: "Ora, ora, ora que gigante é este aqui, com uma passada de três metros e abaixando a cabeça para não bater nos fios telefônicos?" Entra gingando pela cidade, apenas o tempo suficiente para apanhar as virgens, o resto de vocês, gostosas, é melhor nem entrar na fila a menos que tenham peitos grandes como melões, pernas brancas, bonitas e fortes, suficientemente compridas para se enlaçarem em torno das enormes costas dele, e uma pequena taça macia, quente, gostosa e doce como manteiga com mel…
Ali no escuro ele continuou, inventando a sua história de como ia ser, com todos os homens morrendo de medo, e todas as garotas bonitas caídas por mim. Então disse que ia sair naquele exato minuto, e inscrever meu nome como um dos participantes da sua equipe de pescaria. Ele se levantou, apanhou a toalha na cabeceira da cama e a enrolou nos quadris, pôs o gorro e chegou para junto da minha cama.
– Puxa vida, cara, vou lhe contar, no duro, você vai ter mulheres lhe dando rasteira e o derrubando no chão.
De repente sua mão deu um arranco e, com um giro do braço, desamarrou meu lençol, arrancou as cobertas da minha cama e me deixou deitado ali nu.
– Olha aí, chefe. Uau. Que foi que eu lhe disse? Você já cresceu 15 centímetros.
Rindo, ele foi andando pela fileira de camas abaixo, para o corredor.
Duas prostitutas a caminho, vindas de Portland para nos levar para uma pescaria em alto-mar num barco! Aquilo tornava difícil ficar na cama até que as luzes do dormitório se acendessem, às seis e meia.
Fui o primeiro a me levantar, sair do dormitório e olhar a lista pregada no quadro junto da Sala das Enfermeiras, para verificar se meu nome estava realmente escrito ali. INSCRIÇÕES PARA A PESCARIA EM ALTO-MAR, estava escrito em letras grandes no alto da lista. McMurphy havia assinado primeiro, e Billy Bibbit logo em seguida. O número três era Harding, o número quatro, Predrickson, e dali para baixo os números iam até o nove onde ninguém havia assinado ainda. O meu nome era o último escrito, ao lado do número nove. Eu realmente ia sair do hospital com as duas prostitutas, num barco de pesca; eu tinha de ficar repetindo aquilo sem parar, para mim mesmo, para poder acreditar.
Os três crioulos postaram-se na minha frente e leram a lista com os dedos cinzentos, acharam meu nome ali e se viraram para rir de mim.
– Ora, quem você acha que inscreveu o chefe Bromden para essa idiotice? Índios não sabem escrever.
– Que é que lhe dá a idéia de que índios são capazes de ler?
A goma ainda estava fresca e dura o bastante, àquela hora da manhã, de forma que os seus braços farfalhavam nos uniformes brancos, quando eles se moviam, como asas de papel. Fingi que era surdo e que não ouvia que riam de mim, como se eu nem soubesse, mas quando tiraram uma vassoura e me entregaram para que eu fizesse o trabalho deles ali no corredor, dei as costas e voltei para o dormitório, dizendo para mim mesmo "pro inferno com isso". Um cara que vai pescar com duas prostitutas de Portland não tem de engolir aquela porcaria.
Aquilo me assustou um pouco, sair andando e deixá-los daquele jeito, porque antes eu nunca tinha ido contra o que os crioulos me ordenavam. Olhei para trás e os vi atrás de mim com a vassoura. Provavelmente teriam entrado direto no dormitório e me apanhado, se não fosse por McMurphy; ele estava lá fazendo tamanha confusão, andando no maior estardalhaço de um lado para o outro entre as camas, batendo com uma toalha nos caras inscritos para irem naquela manhã, que os crioulos chegaram à conclusão de que o dormitório talvez não fosse um território muito seguro para se aventurarem numa incursão apenas para apanharem alguém para varrer um pedacinho de corredor.
McMurphy estava com o seu gorro de motociclista puxado para a frente sobre o cabelo ruivo, para ficar parecido com um comandante de barco, e as tatuagens que apareciam sob a manga da camiseta haviam sido feitas em Cingapura. Andava oscilando pelo chão como se fosse o convés de um navio, assoviando nos dedos como um contramestre de barco.
– Para o convés, marujos, para o convés ou eu faço vocês todos passarem por baixo da quilha de popa à proa!
Bateu na mesinha de cabeceira junto da cama de Harding com as juntas dos dedos.
– Seis batidas de sino e tudo está bem. O barco vai indo firme. Para o convés. "Baixem os seus perus e levantem as meias."
Ele me viu, de pé ali na porta, e veio depressa para bater nas minhas costas como se fossem um tambor.
– Olhem aqui o Grande Chefe; aqui está um exemplo de um bom marinheiro e de um bom pescador: de pé antes de o dia clarear e catando minhocas vermelhas para isca. O resto de vocês, bando miserável de marinheiros-de-água-doce, fariam melhor se seguissem o exemplo dele. Para o convés. Hoje é o dia! Pra fora da cama e pra dentro do mar!
Os Agudos resmungavam e tentavam agarrá-lo e fazê-lo parar com a toalha, e os Crônicos acordaram para olhar em volta com a cabeça azul pela falta de circulação de sangue, cortada pelos lençóis amarrados, apertados demais no peito, olhando em volta no dormitório até que finalmente se concentraram sobre mim com olhares velhos, fracos e lacrimosos, os rostos curiosos e tristonhos. Ficaram deitados ali, observando-me a vestir roupas quentes para a viagem, fazendo-me sentir pouco à vontade e mesmo culpado. Podiam perceber que eu fora destacado como o único Crônico a fazer a viagem. Eles me observaram – homens velhos, soldados em cadeiras de rodas há anos, com sondas descendo-lhes pelas pernas, como vinhas que os enraizassem para o resto de suas vidas exatamente no lugar em que estavam, eles me observavam e sabiam instintivamente que eu iria. E ainda podiam sentir um pouco de ciúmes de que não fossem eles. Podiam perceber, embora uma parte tão grande do homem que havia neles tivesse sido extirpada, que os velhos instintos animais haviam assumido o controle (os Crônicos acordam de repente, em algumas noites, antes que qualquer outra pessoa saiba que um cara morreu no dormitório, e atiram a cabeça para trás e uivam) e podiam ter inveja porque restava neles o suficiente de homem para ainda poderem lembrar.
McMurphy saiu para olhar a lista, voltou e tentou convencer mais um Agudo a assiná-la, de um lado para o outro, chutando as camas em que os caras ainda estavam deitados com os lençóis puxados sobre a cabeça, dizendo-lhes que coisa maravilhosa era estar lá fora com a cara no vento, com um mar agitado, uma âncora levantada bem na hora e uma garrafa de rum.
– Vam'bora, seus vadios, só preciso de mais um marinheiro para completar a tripulação, preciso de um porra de um voluntário…
Mas ele não conseguiu convencer ninguém a aceitar. A Chefona havia assustado o resto deles com suas histórias de como o mar estava agitado ultimamente e de quantos barcos haviam afundado, e não parecia que conseguiríamos aquele último membro da tripulação senão meia hora depois, quando George Sorensen se aproximou de McMurphy na fila do café da manhã, quando esperávamos que o refeitório fosse aberto.
O velho sueco desdentado e nodoso, que os crioulos chamavam de George Dum-Dum, por causa daquela sua mania de higiene, veio arrastando os pés pelo corredor, bem inclinado para trás, de forma que seus pés ficassem bem diante de sua cabeça (ele oscila para trás assim, para manter "o rosto tão afastado quanto possível do homem com quem está falando), parou diante de McMurphy, e resmungou alguma coisa sob a mão. George era muito tímido. Não se podia ver os olhos dele porque ficavam bem fundos sob as sobrancelhas, e ele dobrava a grande palma da mão sobre a maior parte do resto do rosto. A cabeça dele oscilava como um ninho de corvo no topo da sua coluna, que parecia um mastro. Ele resmungou sob a mão até que McMurphy finalmente estendeu o braço e afastou a mão dele, para que as palavras pudessem sair.
– Ora, George, que era que você estava dizendo?
– Minhocas vermelhas – disse ele. – Eu acho que elas não vão servir pra nada… para pescar o chiii-noook.
– Ah, é? – disse McMurphy. – Minhocas vermelhas? Eu talvez concorde com você, George, se me disser o que é que há com essas minhocas vermelhas de que está falando.
– Eu acho que ainda há pouquinho ouvi você dizer que o Sr. Bromden 'tava lá fora catando minhocas vermelhas pra isca.
– É isso mesmo, papai, eu me lembro.
– Assim, só tô- dizendo que você não vai ter nenhuma sorte com essas minhocas: Este mês de agora é o que tem os cardumes de chinooks grandes. O que você precisa é de arenque. Com certeza. Pesque uns arenques com anzol e use eles pra isca, então você vai dar sorte.
A voz dele subia no final de cada frase – sor -te - como se ele estivesse fazendo uma pergunta. O queixo grande, tão esfregado naquela manhã que já estava esfolado, balançava para cima e para baixo, para McMurphy, uma ou duas vezes, então o fez dar meia volta e o levou até o final do corredor em direção ao fim da fila. McMurphy o chamou de volta.
– Ei, espere aqui um minuto, George; você fala como quem conhece alguma coisa sobre esse negócio de pescaria.
George voltou, arrastando os pés, para onde estava McMurphy, inclinando-se tanto para trás que parecia que seus pés haviam saído direto de debaixo dele.
– É claro, cla – ro. Vinte e cinco anos eu trabalhei nas carretilhas de chinooks, desde lá de cima de Half Moon Bay até Puget Sound. Vinte e cinco anos eu pesquei… antes de ficar tão sujo. – Ele estendeu as mãos para que víssemos a sujeira nelas. Todo mundo por perto se inclinou e olhou. Eu não vi a sujeira, mas vi mesmo nas palmas brancas as cicatrizes profundas de puxar milhares de milhas de linha de pesca para fora do mar. Ele nos deixou olhar um minuto, então fechou as mãos, escondeu-as na blusa do pijama, como se pudéssemos sujá-las por olhá-las, e ficou ali sorrindo para McMurphy com as gengivas como carne de porco desbotada na salmoura.
– Eu tinha um bom barco para pesca de anzol, 40 pés apenas, mas fazia 12 nós marítimos e era de teca e carvalho maciço. – Ele se balançou para trás e para frente, de uma maneira que fazia com que a gente duvidasse de que o chão estivesse parado. – Era um bom barco, puxa vida!
Começou a se virar, mas McMurphy tornou a detê-lo.
– Porra, George, por que não disse logo que era pescador? Estive promovendo essa viagem como se eu fosse o Velho Lobo do Mar, mas, cá entre nós, o único barco em que eu já estive foi o navio de guerra Missouri e a única coisa que sei a respeito de peixe é que gosto mais de comê-los que de limpá-los.
– Limpar é fácil, alguém ensina você.
– Por Deus, você vai ser o nosso comandante; nós vamos ser a sua tripulação.
George inclinou-se para trás e sacudiu a cabeça.
– Esses barcos estão muito sujos agora… tudo está muito sujo.
– Pro inferno com isso. Temos um barco que foi especialmente esterilizado de popa a proa, esfregado e limpo como os dentes de um cão de caça. Você não vai se sujar, George, porque você vai ser o comandante. Você não vai ter nem que pôr isca num anzol; só ser o nosso comandante e dar as ordens para nós, os estúpidos marinheiros-de-água-doce… que tal isso lhe parece?
Eu podia ver que George estava tentado pelo jeito como contorcia as mãos sob a blusa, mas ainda assim disse que não podia arriscar-se a ficar sujo. McMurphy fez o melhor que pôde para convencê-lo, mas George ainda sacudia a cabeça quando a chave da Chefona girou na fechadura do refeitório e ela veio pela porta com sua cesta de vime de surpresas, passou em revista a fila com o seu automático sorriso e… bom dia para cada homem por quem passava. McMurphy percebeu a maneira como George se inclinou para trás, afastando-se dela e carregou o sobrolho. Depois que ela passou, McMurphy inclinou a cabeça e piscou o olho brilhante para George.
– George, e aquela papagaiada que a enfermeira tem andado dizendo sobre o mar bravo, e sobre como esta viagem poderia ser terrivelmente perigosa… que é que você diz?
– Aquele oceano pode ficar ruim mesmo, claro, bravo mesmo.
McMurphy olhou para a enfermeira que ia entrando na Sala das Enfermeiras e então tornou a olhar para George. George começou a torcer as mãos sob a camisa mais do que nunca, olhando em volta para os rostos silenciosos que o observavam.
– Por Deus! – disse de repente. – Você acha que eu deixei que ela me metesse medo daquele oceano? Você pensa isso?
– Ah, acho que não, George. Entretanto, eu estava pensando que, se você não vier conosco, e se houver alguma terrível tempestade, é muito provável que todos nós fiquemos perdidos no mar, sabe disso? Eu disse que não sabia de nada a respeito de barcos, e vou dizer-lhe uma outra coisa: e essas duas mulheres que vêm conosco? Eu disse ao médico que eram minhas duas tias, duas viúvas de pescador? Bem a única navegação que elas já fizeram foi em cimento sólido. Não vão ser mais capazes de ajudar numa dificuldade do que eu. Nós precisamos de você, George. – Ele deu uma tragada no cigarro e perguntou: – Você tem 10 dólares, já que estamos falando nisso? George sacudiu a cabeça.
– Não, eu não imaginava mesmo que tivesse. Bem, que diabo, eu desisti da idéia de tirar vantagem dessa história há dias. Tome. – Ele tirou um lápis do bolso da jaqueta verde e o limpou nas fraldas da camisa, estendeu o lápis para George. – Você nos chefia que nós deixamos você vir junto por cinco.
George tornou a olhar em volta para nós, franzindo o cenho para a proposta. Finalmente exibiu as gengivas num sorriso desbotado e pegou o lápis.
– Por Deus! – disse ele e saiu com o lápis para assinar no último lugar na lista.
Depois do café, andando pelo corredor, McMurphy parou e escreveu COMANDANTE antes do nome de George.
As duas prostitutas estavam atrasadas. Todo mundo já pensava que hão viriam mesmo, quando McMurphy deu um grito da janela e todos nós fomos correndo olhar. Ele disse que eram elas, mas nós só vimos um carro, em vez dos dois com que contávamos, e apenas uma mulher. McMurphy a chamou através da tela quando ela parou no estacionamento e ela veio correndo direto pela grama em nossa direção.
Era mais jovem e mais bonita do que qualquer um de nós havia imaginado. Todo mundo já havia descoberto que as garotas eram prostitutas em vez de tias, e estava esperando todo tipo de coisa. Alguns dos mais religiosos não estavam muito contentes com aquilo. Mas ao vê-la vir correndo com leveza, pela grama, com os olhos verdes erguidos para a janela, e o cabelo, preso numa longa trança na nuca, voando para cima e para baixo a cada passo seu, como fios de cobre ao sol, tudo que qualquer um de nós pôde pensar foi que ela era uma garota, uma mulher que não estava vestida de branco da cabeça aos pés, como se tivesse sido mergulhada em geada, e a maneira como ganhava o seu dinheiro não fazia qualquer diferença.
Ela correu direto para a tela atrás da qual se encontrava McMurphy e enfiou os dedos pelo arame e se encostou nela. Estava arquej ando por causa da corrida, e a cada inspiração parecia que ela se inflaria e entraria pela tela. Chorava um pouco.
– McMurphy, oh, seu maldito McMurphy…
– Deixa isso pra lá. Onde está a Sandra?
– Ela ficou presa, cara, não conseguiu vir. Mas, você, que droga, você está bem?
– Ela ficou presa?
– Para dizer a verdade – a garota limpou o nariz e riu – a Sandy se casou. Você se lembra do Artie Gilfillian de Beaverton? Costumava sempre aparecer nas festas com alguma coisa estranha, uma cobrinha coral, ou um ratinho branco, ou um bichinho esquisito qualquer, no bolso. Um verdadeiro maníaco…
– Ai, meu Jesus! – gemeu McMurphy. – Como é que eu vou conseguir enfiar 10 caras num Ford fedorento, Candy, queridinha? Como é que a Sandra e o seu cobra coral de Beaverton imaginam que eu possa dar um jeito nisso?
A garota parecia que estava tratando de imaginar uma resposta quando o alto-falante no teto chiou e a Chefona disse a McMurphy que, se ele queria conversar com a sua amiga, seria melhor que ela se registrasse convenientemente na porta principal, em vez de perturbar o hospital inteiro. A garota afastou-se da tela em direção à entrada principal. McMurphy saiu de junto da tela e se afundou numa cadeira no canto, a cabeça inclinada.
– Que diabo - gemeu ele.
O crioulo menor recebeu a moça deixando-a entrar na ala e esqueceu-se de trancar a porta em seguida (mais tarde passou o diabo por causa disso, aposto). A garota veio andando, no seu balanço gracioso, pelo corredor, passou pela Sala das Enfermeiras onde todas as enfermeiras estavam tentando congelar o seu balanço com um olhar gelado coletivo, e entrou na enfermaria, apenas alguns passos adiante do médico. Ele ia em direção à Sala das Enfermeiras com alguns papéis, olhou para ela, para os papéis, novamente para ela e começou a revirar os bolsos com as duas mãos à procura dos óculos.
Ela parou quando chegou no meio da enfermaria e viu que estava rodeada por 40 homens vestidos de verde que a olhavam fixamente. Fez-se tamanho silêncio que se podia ouvir barrigas roncando e, por toda a extensão da fileira dos Crônicos, os pingos das sondas.
Teve de ficar de pé ali um minuto enquanto olhava em volta, procurando McMurphy, dando tempo assim para que a olhasse bem. Havia uma fumaça azul pairando perto do teto acima da sua cabeça; acho que o aparato inteiro se fundiu por toda a ala, tentando ajustar-se à sua entrada, repentina como foi – fez leituras eletrônicas sobre ela e concluiu que não fora construído para lidar com algo como aquilo ali e, simplesmente, fundiu, como máquinas cometendo suicídio.
Ela vestia uma camiseta branca, igual à de McMurphy, só que muito menor, usava tênis brancos e calças Levis cortadas acima dos joelhos para maior liberdade de movimentos, e não parecia que aquilo fosse material suficiente, considerando-se o que havia para ser coberto. Ela já devia ter sido vista com muito menos por muito maior número de homens, mas, naquelas circunstâncias, começou a se remexer meio sem graça, como uma colegial num palco. Ninguém falou enquanto olhava. Martini realmente murmurou que se podia ler a data das moedas nos bolsos das calças dela, de tão justas que estavam, mas ele estava mais porto e podia ver melhor do que qualquer um de nós.
Billy Bibbit foi o primeiro a dizer alguma coisa em voz alta, não uma palavra, realmente, só um assovio baixo e doloroso que descrevia como ela tinha melhor aparência do que qualquer outra pessoa. Ela riu e lhe disse muito obrigado, e ele corou e ficou tão vermelho que ela também corou junto com ele e tornou a rir. Aquilo descontraiu o ambiente e pôs as coisas em movimento. Todos os Agudos estavam vindo até o meio da enfermaria, tentando conversar com ela, todos ao mesmo tempo. O médico puxava o paletó de Harding, perguntando quem era aquela. McMurphy levantou-se da cadeira e foi andando pelo meio do alojamento, até onde ela estava, e, quando ela o viu, atirou os braços em torno de seu pescoço e disse:
– Você, seu maldito McMurphy – e então ficou envergonhada e corou de novo.
Quando ela corava não parecia ter mais de 16 ou 17 anos, juro que não.
McMurphy a apresentou a todo mundo e ela apertou a mão de todos. Quando chegou a Billy, agradeceu-lhe novamente pelo assovio. A Chefona veio andando depressa, saindo da sua sala, toda sorridente, e perguntou a McMurphy como ele pretendia enfiar os 10 de nós em um carro, e ele perguntou se não poderia talvez levar emprestado um carro do pessoal e ir dirigindo ele mesmo. A enfermeira citou uma regra proibindo isso, exatamente como todo mundo sabia que ela faria. Disse que a menos que houvesse um outro motorista para assinar um Termo de Responsabilidade, a metade da tripulação teria de ficar. McMurphy disse-lhe que aquilo lhe custaria 50 dólares para cobrir a diferença; que ele teria de reembolsar os que não fossem.
– Então pode ser – disse a enfermeira – que a viagem tenha de ser cancelada… e todo o dinheiro devolvido.
– Eu já aluguei o barco; agora o cara está com 70 pratas do meu dinheiro no bolso!
– Setenta dólares? É? Pensei que tivesse dito aos pacientes que precisava juntar 100 dólares mais 10 seus para financiar a viagem, Sr. McMurphy.
– Eu estava contando com a gasolina nos carros, ida e volta.
– Entretanto, isso não chegaria a 30 dólares, chegaria?
Ela lhe dirigiu um sorriso agradável, esperando. Ele lançou as mãos para o ar e olhou para o teto.
– Puxa vida, a senhora não perde uma oportunidade, não é, Srta. Promotora. Claro, eu estava ficando com o troco. Não acho que nenhum dos caras veja algum problema nisso. Imaginei levar algum pelo trabalho que tive…
– Mas os seus planos não funcionaram – disse ela. Ainda estava sorrindo para ele, tão cheia de simpatia. – As suas pequenas especulações financeiras não podem todas ser sucessos, Randle, e, na realidade, quando penso sobre isso agora, você já teve mais do que lhe cabia em termos de vitórias. – Ela ponderou a respeito daquilo, pensando em alguma coisa que eu sabia que tornaríamos a ouvir mais tarde. – Sim. Todos os Agudos já lhe deram uma promissória por algum "negócio" seu, em uma ocasião ou outra. Assim, não acha que pode suportar esta pequena derrota?
Então ela parou. Viu que McMurphy já não a ouvia mais. Ele estava observando o médico. E o médico olhava para a camiseta da loura como se nada mais existisse. O sorriso malandro de McMurphy se abriu em seu rosto enquanto observava o transe do médico, e ele empurrou o gorro para trás na cabeça e foi andando até ficar do lado do médico, assustando-o ao pôr-lhe a mão sobre o ombro.
– Por Deus, Dr. Spivey, o senhor alguma vez já viu um salmão chinook morder a isca? É uma das cenas mais selvagens dos sete mares. Ei, Candy, favo de mel, por que você não fala ao doutor aqui a respeito de pesca em alto-mar e coisas assim…
Trabalhando juntos, McMurphy e a garota não levaram mais de dois minutos e o médico estava lá trancando o consultório e voltando pelo corredor, enfiando papéis numa maleta.
– Há um bocado de trabalho com a papelada aqui que eu posso fazer no barco – explicou à enfermeira e seguiu adiante, tão depressa que ela não teve nem oportunidade de responder, e o resto da tripulação o seguiu, mais lentamente, sorrindo para ela de pé ali na porta daquela Sala das Enfermeiras.
Os Agudos que não iam reuniram-se na porta da enfermaria. Recomendaram-nos que não trouxéssemos a presa deles antes que estivesse limpa, e Ellis arrancou as mãos dos pregos na parede, apertou a mão de Billy Bibbit e lhe disse para ser um pescador de homens.
E Billy, observando as tachas de metal naquela Levis de mulher piscarem o olho para ele enquanto ela ia saindo da enfermaria, respondeu a Ellis "para o diabo esse negócio de pescador de homens". Ele se juntou a nós junto à porta que o crioulo menor abriu para que saíssemos e depois a trancou, atrás de nós. Estávamos fora, do lado de fora.
O sol, acima das nuvens, iluminava a fachada de tijolos do hospital com uma luz rosa-avermelhada. Uma brisa fraca trabalhava arrancando as poucas folhas que restavam nos carvalhos, empilhando-as de encontro ao arame da cerca anticiclone. Pequenos passarinhos castanhos pousavam na cerca; quando um monte de folhas batia nela, os passarinhos voavam com o vento. De início parecia que as folhas que iam de encontro à cerca transformavam-se em passarinhos e voavam.
Era um belo e enevoado dia de outono, cheio do som de crianças a chutar bolas e de motores de pequenos aviões. Todo mundo deveria estar feliz apenas por estar ao ar livre, num dia assim. Mas todos nós formamos um grupo silencioso, com as mãos nos bolsos, enquanto o médico ia buscar o seu carro particular. Um grupo silencioso observando a gente da cidade que passava nos carros, a caminho do trabalho, e que diminuía a marcha para olhar estupidamente para todos aqueles loucos de uniforme verde. McMurphy viu como estávamos pouco à vontade e tentou colocar-nos num estado de espírito melhor, brincando e implicando com a garota, mas de alguma forma isso fez com que nos sentíssemos pior. Todo mundo estava pensando em como seria fácil voltar para a enfermaria, voltar e dizer que a enfermeira tinha razão; com um vento como aquele, o mar estaria realmente perigoso demais.
O médico chegou, entramos no carro e partimos, eu, George, Harding e Billy Bibbit no carro com McMurphy e a garota, Candy; e Fredrickson, Sefelt, Scanlon, Martini, Tadem e Gregory seguiram no carro do médico. Todo mundo estava terrivelmente quieto. Paramos num posto de gasolina, distante um quilômetro do hospital; o médico nos seguiu. Ele saltou primeiro e o empregado do posto saiu rapidamente, sorrindo e limpando as mãos num trapo. Então ele parou de sorrir e passou pelo médico para ver apenas o que era que estava dentro daqueles carros. Recuou, limpando as mãos no trapo engordurado, franzindo o cenho. O médico agarrou o homem pela manga de maneira nervosa, tirou uma nota de 10 dólares e a enfiou na mão do homem, como se estivesse plantando uma muda de tomate.
– Por favor, quer encher os dois tanques com a comum? – pediu o médico. Ele se sentia tão pouco à vontade fora do hospital como todos nós. – Ah, por favor, sim?
– Esses uniformes – disse o empregado – são daquele hospital lá atrás na estrada, não são? – Ele olhava em volta para ver se não havia uma chave inglesa ou coisa semelhante à mão. Finalmente ele se sentiu mais seguro perto de uma saca de garrafas vazias.
– Vocês aí são daquele asilo?
O médico procurou os óculos desajeitadamente e também olhou para nós, como se tivesse acabado de perceber os uniformes.
– Sim. Isto é, não. Nós, eles são do asilo, mas são uma equipe de trabalho, não doentes internados, é claro que não. Uma equipe de trabalho.
O homem olhou com desconfiança para o médico e para nós e saiu para cochichar com o companheiro, que estava lá atrás no meio das máquinas. Confabularam um minuto, e o segundo sujeito, gritando, perguntou ao médico quem éramos nós. O médico repetiu que éramos uma equipe de trabalho. Os dois caras riram. Eu podia ver, pelo riso deles, que haviam decidido nos vender a gasolina – provavelmente seria fraca, suja e aguada, e custaria o dobro do preço normal – mas aquilo não fez com que me sentisse melhor. Podia ver que todo mundo se estava sentindo muito mal. O fato de o médico ter mentido fez com que nos sentíssemos pior que nunca – não por causa da mentira, nem tanto, mas por causa da verdade.
O segundo cara se aproximou do médico, sorrindo.
– Disse que queria a súú-per, senhor? É claro. E que tal verificarmos o óleo e os limpadores de pára-brisa? – Ele era maior que o amigo. Inclinou-se para o médico como se estivesse contando um segredo. – Acredita que 80% dos carros mostram, por estatísticas feitas na estrada hoje, que precisam de novos filtros de óleo e limpadores de pára-brisa?
O sorriso dele estava coberto de carvão, de anos de tirar velas de ignição com os dentes. Ele continuava inclinado para o médico, fazendo-o contorcer-se sob aquele sorriso, à espera de que ele admitisse que estava numa sinuca.
– Ah, e como é que a sua equipe de trabalho está aparelhada em termos de óculos escuros? Temos uns bons Polaróides. – O médico sabia que fora apanhado. Mas bem no instante em que abriu a boca para entregar os pontos e dizer sim, qualquer coisa, ouve um zumbido e a capota do nosso carro começou a subir. McMurphy xingava a capota sanfonada, tentando empurrá-la para trás mais depressa do que o mecanismo suportava. Todo mundo podia ver que ele estava furioso pelo jeito como socava e batia naquela capota que se levantava lentamente; quando conseguiu que ficasse no lugar, depois de xingar e martelá-la com os punhos, passou por cima da garota, saltou por sobre a porta do carro e foi andando até ficar entre o médico e o empregado do posto e olhou para a boca negra com um olho só.
– Agora, tudo O.K., amigo, nós queremos a comum, como o doutor mandou. Dois tanques da comum. Mais nada. Pro diabo com essa outra porcariada toda. E vamos pagar com um desconto de três cents porque somos uma expedição patrocinada pelo Governo.
O empregado não se mexeu.
– Ah, é? Pensei que o professor aqui tivesse dito que vocês não eram pacientes.
– Ora, amigo, você não está vendo que isso é apenas uma precaução gentil para impedir que caras como vocês se assustem com a verdade? O doutor não mentiria assim a respeito de quaisquer pacientes; mas nós não somos birutas comuns; somos todos caras acabados de sair da ala de maníacos criminosos, a caminho de San Quentin, onde eles têm melhores condições para lidar conosco. Está vendo aquele garoto sardento ali? Bem, ele pode parecer que acabou de sair da capa do Saturday Evening Post, mas é um maníaco que maneja com arte uma faca e que já matou três homens. O cara ao lado dele é o conhecido como o Grande Ganso Louco, imprevisível como um porco selvagem. Está vendo aquele grandalhão ali? É um índio e surrou seis homens brancos até a morte com um cabo de picareta quando eles tentaram passá-lo para trás na compra de peles de ratos almiscarados. Levante-se para que eles possam ver você, chefe.
Harding me cutucou com o polegar, e eu me levantei dentro do carro. O cara cobriu os olhos com a mão, olhou para cima para mim e nada disse.
– Bem, eu admito que é um grupo da pesada - disse McMurphy – mas está tudo planejado, autorizado, uma excursão legalmente patrocinada pelo Governo, e temos direito ao desconto legal exatamente como se fôssemos do FBI.
O outro tornou a olhar para McMurphy, que enfiou os polegares nos bolsos, balançou-se para trás e olhou para ele por sobre a cicatriz do nariz. O sujeito virou-se para verificar se o companheiro ainda estava parado junto das garrafas vazias. Então sorriu para McMurphy.
– Turminha braba, é isso que está dizendo, ruivo? Que é melhor entrarmos na linha e fazermos o que nos mandam, não é isso? Bem, então me conta, ruivo, por que é que você foi apanhado? Por tentar assassinar o Presidente?
– Ninguém conseguiu provar isso, amigo. Eles me pegaram por um crimezinho vagabundo. Matei um cara num ringue, sabe como é, e então me encanaram.
– Um desses assassinos com luvas de boxe, é isso, ruivo?
– Ora, eu não disse isso, disse? Nunca consegui me acostumar com esses travesseiros que se usam nos punhos.
Não, não foi nenhum grande acontecimento televisionado do Cow Palace; sou mais o que você chamaria de um lutador de boxe de terrenos baldios.
O cara enfiou os polegares nos bolsos para zombar de McMurphy.
– Você é mais o que eu chamaria de um lutador de boxe de merda, um contador de vantagens.
– Ora, mas eu não disse que contar vantagens não era, também, uma das minhas especialidades, disse? Mas eu quero que você olhe aqui. – Ele levantou as mãos na cara do sujeito, bem perto mesmo, virando-as devagar, as palmas e as juntas. – Alguma vez já viu um homem ficar com suas mãos estropiadas desse jeito só de contar vantagem? Já viu, amigo?
Ele ficou com as mãos bem na cara do sujeito durante muito tempo, esperando para ver se ele ainda tinha mais alguma coisa a dizer. O sujeito olhou para as mãos, para mim, e para as mãos de novo. Quando ficou bem evidente que ele nada mais tinha de realmente importante para dizer, McMurphy afastou-se dele e foi até o outro, o que estava encostado no refrigerador, e arrancou-lhe da mão a nota de 10 dólares do médico, dirigindo-se em seguida para a mercearia vizinha ao posto.
– Vocês aí, calculem quanto sai a gasolina e mandem a conta para o hospital – gritou. – Pretendo usar o dinheiro vivo para comprar uns refrigerantes para os rapazes. Creio que vamos comprar isso em vez de limpadores de pára-brisa e filtros de óleo.
Quando ele voltou, todos se sentiam arrogantes, como galos de briga, dando ordens aos sujeitos do posto de gasolina para calibrar o estepe e limpar os vidros e tirar aquele cocô de passarinho do capô, se me faz favor, simplesmente como se a casa fosse nossa. Quando o grandalhão não limpou o pára-brisa ao gosto de Billy, este o chamou de volta.
– Você não tirou essa m-mancha aqui, onde o mosquito b-bateu.
– Isso não foi um mosquito – disse o cara de má vontade, raspando com a unha. – Foi um passarinho.
Martini berrou lá do outro carro que não poderia ter sido um passarinho.
– Se fosse, teria de ter penas e ossos.
Um homem parou com a sua bicicleta para perguntar qual era a razão de todos aqueles uniformes verdes; algum clube? Harding levantou-se direto e respondeu.
– Não, meu amigo. Somos lunáticos saídos daquele hospital, ali adiante na estrada, cerâmica psíquica, as cucas fundidas da humanidade. Gostaria que eu interpretasse um Rorschach para você? Não? Está com pressa? Ah, ele foi embora. Que pena. – Virou-se para McMurphy. – Eu nunca havia percebido que a doença mental pode incluir o aspecto de poder, poder. Pense nisso: talvez quanto mais louco um homem seja, mais poderoso se pode tornar. Hitler é um exemplo. Se a gente se sente bem, alguma coisa faz o velho cérebro funcionar de novo, não é? Temos aí um bom tema para reflexão.
Billy abriu uma lata de cerveja para a garota, e ela o estimulou tanto com o seu sorriso alegre e o seu "obrigado, Billy", que ele começou a abrir latas para todo mundo.
Fiquei sentado ali, sentindo-me bem e à vontade, bebericando a cerveja; eu podia ouvir o líquido escorregando por dentro de mim – zzzt zzzt. Eu havia esquecido que existiam sons e gostos bons assim, como o som e o gosto da cerveja descendo. Tomei mais um gole e comecei a olhar em volta para ver o que mais eu havia esquecido em 20 anos.
– Cara! - disse McMurphy enquanto tirava a moça de trás do volante e a empurrava para junto de Billy. – Olhem só para o Grande Chefe derrubando essa pinga! – e meteu o carro a toda no meio do tráfego, com o médico guinchando pneus atrás para acompanhá-lo.
Ele nos mostrara o que se podia conseguir com um pouco de desafio e de coragem, e pensamos que nos havia ensinado como usá-los. Por todo caminho até a costa nos divertimos fingindo que éramos corajosos. Quando as pessoas ficavam olhando para nós e nossos uniformes verdes num sinal fechado, fazíamos igualzinho a ele, sentávamo-nos bem eretos, fortes e com aparência de gente durona, abríamos um grande sorriso e as encarávamos de volta até que os motores delas morriam, as janelas refletiam o sol, e elas ficavam sentadas ali, quando o sinal abria, muito perturbadas por causa daquele bando de macacos selvagens que ainda há pouco estava a menos de um metro de distância deles, com nenhum socorro à vista.
Enquanto isso, McMurphy nos conduzia, os 12, em direção ao oceano.
Eu acho que McMurphy sabia melhor do que nós que nossa aparência de durões era só encenação, porque ainda não conseguira obter uma risada verdadeira de ninguém Talvez não pudesse compreender por que ainda não éramos capazes de rir, mas sabia que ninguém é realmente forte se não sabe ver um lado engraçado nas coisas. De fato, ele se esforçava tanto para mostrar esse lado que eu me perguntava às vezes se talvez, ele não estava cego em relação ao outro, se ele não era, talvez, incapaz de ver o que era que ressecava o riso lá dentro, no fundo da gente. Talvez os outros também não fossem capazes de ver isso, apenas pudessem sentir as pressões das várias ondas e freqüências vindas de todas as direções, empurrando-o e dobrando-o para um lado ou para o outro, sentir a Liga funcionando – mas eu era capaz de ver isso.
A mesma maneira como a gente nota a mudança numa pessoa de quem se esteve afastado durante muito tempo, enquanto que os que a vêem diariamente, entra dia sai dia, não perceberiam, porque a mudança é gradual. Por todo o caminho em direção à costa eu podia ver sinais do que a Liga havia conseguido fazer desde que eu estivera por ali pela última vez, coisas como, por exemplo, um trem parando numa estação e despejando uma fileira de homens de ternos de um mesmo feitio e chapéus feitos em série; despejando-os como uma ninhada de insetos idênticos, coisas meio vivas saindo do último carro fazendo ft-ft-ft, então piando o seu assovio elétrico e seguindo pela terra estragada para despejar uma outra ninhada.
Ou coisas como 5 mil casas picotadas identicamente por uma máquina e espalhadas pelas colinas nos arredores da cidade, tão recentemente saídas da fábrica que ainda estão presas umas às outras como salsichas, com um cartaz dizendo: ANINHE-SE NAS CASAS DO OESTE – SEM ENTRADA PARA VETERANOS DE GUERRA, um playground no sopé da colina onde ficam as casas, atrás de uma cerca de arame xadrezado e um outro cartaz: ESCOLA SÃO LUCAS PARA OS MENINOS, onde 5 mil meninos de calças de veludo cotelê verde e camisas brancas sob suéteres verdes estão brincando de chicotinho num acre de terra coberta de cascalho. A fila saltava, torcia-se e contorcia-se como uma cobra, e cada estalo do chicote punha para fora do final da fila um garotinho, que ia rolando até bater contra a cerca como um galho seco levado pelo vento. E era sempre o mesmo garotinho, uma vez atrás da outra.
Todos aqueles 5 mil garotos moravam naquelas 5 mil casas, de propriedade daqueles que haviam saltado do trem. As casas eram tão parecidas que volta e meia os garotos se enganavam e iam para casas diferentes e para famílias diferentes. Ninguém nunca percebia. Eles comiam e iam para a cama. O único que eles percebiam era o garotinho do fim da fila. Ele sempre estava tão esfolado, tão machucado que pareceria deslocado aonde quer que fosse. Não era capaz de se descontrair e rir, tampouco. Rir é uma coisa difícil de fazer se se pode sentir a pressão daquelas ondas que vêm de cada carro novo que passa, ou de cada casa nova pela qual se passa.
– Podemos até ter um grupo de pressão em Washington – dizia Harding. – Uma organização: ANAPI. ( *) Grupos de pressão. Grandes cartazes à beira da estrada, mostrando um esquizofrênico tatibitate dirigindo uma máquina de demolição, com letras coloridas, em tamanho grande: EMPREGUE OS INSANOS. Temos um futuro cor-de-rosa, cavalheiros.
Atravessamos uma ponte sobre o Siuslaw. Havia apenas neblina bastante no ar para que eu pudesse esticar a língua no vento e sentir o gosto do mar antes que pudéssemos vê-lo. Todo mundo sabia que já estávamos perto e não disseram uma palavra durante todo o caminho até o porto.
O comandante que deveria nos levar tinha uma cabeça careca que parecia de metal cinzento apoiada sobre uma gola roulée preta como uma torre de tiro de um submarino; o charuto apagado enfiado na boca nos passou em revista. Ele ficou ao lado de McMurphy no ancoradouro e olhou para o mar enquanto falava. Atrás dele e alguns degraus acima, seis ou oito homens metidos em casacos de couro se encontravam sentados num banco, diante da fachada da loja de iscas. O comandante falava alto, meio para os vadios de um lado, e meio para McMurphy, do outro lado, disparando voz metálica para algum lugar no meio.
– Não me importo. Disse-lhe especificamente na carta. Se você não tem um documento de liberação assinado, isentando-me com as autoridades competentes, eu não saio. – A cabeça redonda girou na torre do seu suéter, baixando o charuto em direção ao nosso grupo. – Olhe aí. Um bando desses no mar, poderia querer saltar sobre a amurada como ratazanas. Os parentes me processariam e me tomariam tudo que tenho. Não posso arriscar.
McMurphy explicou como a outra moça deveria ter apanhado todos aqueles papéis em Portland. Um dos caras encostados na loja de iscas gritou:
– Que garota? A lourinha aí não é capaz de dar conta de vocês todos? – McMurphy não lhe deu a mínima atenção e continuou discutindo com o comandante, mas podia-se ver como aquilo incomodava a garota. Os sujeitos junto da loja continuavam lançando olhares de soslaio para ela, inclinando-se e chegando mais perto uns dos outros para cochichar. Toda a nossa tripulação, inclusive o médico, notou isso e começou a se sentir envergonhada de não fazer alguma coisa. Não éramos aquele grupo atrevido que há pouco estivera lá no posto de gasolina.
McMurphy parou de discutir, quando viu que nada conseguia com o capitão, e virou-se umas duas vezes passando a mão pelo cabelo.
– Qual foi o barco que alugamos?
– É aquele ali. A Cotovia. Homem nenhum põe o pé dentro dele antes que eu tenha um documento assinado me isentando de responsabilidades. Homem nenhum.
– Eu não pretendo alugar um barco para que nós possamos nos sentar o dia inteiro e ficar vendo-o a balançar para cima e para baixo no ancoradouro – disse McMurphy. – Não tem um telefone ali na sua barraca de iscas? Vamos esclarecer esse negócio.
Subiram pesadamente os degraus que levavam à loja de iscas e entraram, deixando-nos agrupados ali sozinhos, com aquele bando de vadios lá em cima a nos observar, fazendo comentários, dando risadinhas e cutucando um ao outro nas costelas. O vento soprava sobre os barcos em suas amarras, fazendo-os bater contra os pneus de borracha molhados, presos ao longo do ancoradouro, de forma que faziam um ruído como se estivessem rindo de nós. A água gargalhava sob os barcos, e a placa pendurada sobre a porta da loja de iscas, que dizia: EQUIPAMENTOS MARÍTIMOS – PROPRIETÁRIO: CAPITÃO BLOCK, estava guinchando e rangendo ao vento que sacudia seus ganchos enferrujados. Os mexilhões agarrados nas estacas, elevando-se um metro acima da água, marcando a linha da maré, assoviavam e estalavam sob o sol. O vento se tornara frio e cortante, Billy Bibbit tirou o casaco verde e o deu à garota. Ela o vestiu sobre a camiseta fina. Um dos vadios continuava gritando:
– Ei, você, lourinha, gosta de garotos bobocas como esses? – Os lábios do homem estavam arroxeados e seu rosto era vermelho sob os olhos, onde o vento havia triturado as veias da superfície. – Ei, você, lourinha – ele continuava gritando repetidamente, numa voz alta e cansada: – ei, você, lourinha… ei, você, lourinha… ei, você, lourinha…
Nós nos agrupamos mais, por causa do vento.
– Diga-me, lourinha, por que é que você foi internada?
– Ahr, ela não foi internada, Perce, ela é parte do tratamento!
– É isso mesmo, lourinha? Você foi contratada como parte do tratamento? Ei, você, lourinha.
Ela levantou a cabeça e nos lançou um olhar que perguntava onde estava aquele grupo esquentado que ela vira, e por que não diziam alguma coisa para defendê-la? Ninguém respondeu ao olhar. Toda a nossa força desafiante havia subido aqueles degraus, com o braço passado em volta do ombro daquele capitão careca.
Ela levantou a gola da jaqueta, apertando-a em volta do pescoço, abraçou os cotovelos e saiu andando pelo ancoradouro para tão longe de nós quanto pôde. Ninguém foi atrás dela. Billy Bibbit tremeu de frio e mordeu o lábio. Os caras da loja de iscas cochicharam alguma outra coisa e se agitaram, dando risadas.
– Pergunte a ela, Perce… ande.
– Ei, lourinha, você conseguiu que assinasse um papel isentando você de responsabilidade junto às autoridades competentes? Estão me dizendo que os parentes poderiam processar, se um dos garotos caísse e se afogasse enquanto estivesse a bordo. Já pensou nisso? Talvez seja melhor você ficar aqui conosco, lourinha.
– É, lourinha, os meus parentes não processariam. Prometo. Fique aqui conosco, lourinha.
Tive a impressão de que podia sentir que meus pés ficavam molhados à medida que o ancoradouro afundava de vergonha na baía. Não estávamos em condições de estar ali fora com gente. Desejei que McMurphy voltasse, xingasse bastante aqueles sujeitos e então nos levasse de volta para o lugar onde devíamos estar.
O homem de lábios arroxeados fechou a faca, levantou-se e limpou os farelos do colo. Começou a andar em direção aos degraus.
– Ora, vamos, lourinha, pra que é que você quer se meter com esses babacas?
Ela se virou e olhou para ele lá da extremidade do ancoradouro, em seguida olhou para nós, e podia-se ver que ela estava pensando na proposta dele quando a porta da loja de iscas se abriu e McMurphy saiu apressadamente. Passando por eles, desceu os degraus.
– Tripulação, embarcar, está tudo resolvido! Combustível e tudo pronto e a bordo há iscas e cerveja.
Ele deu uma palmada no traseiro de Billy, deu uns passos de dança e começou a soltar as cordas de suas amarras.
– O velho Capitão Block ainda está no telefone, mas vamos dar o fora assim que ele sair. George, vamos ver se você consegue esquentar esse motor. Scanlon, você e Harding desamarrem aquela corda ali. Candy! Que diabo você está fazendo aí? Vamos embora, querida, estamos de partida.
Entramos no barco às carreiras, satisfeitos com qualquer coisa que nos levasse para longe daqueles caras enfileirados na loja de iscas. Billy tomou a mão da garota e a ajudou a subir para bordo. George cantarolava sobre o quadro de instrumentos na ponte de comando, mostrando os botões para que McMurphy girasse ou apertasse.
– É esses engulhadores, barquinhos de engulhos, é como os chamamos – disse ele para McMurphy. – São tão fáceis, fáceis como dirigir um carro.
O médico hesitou antes de subir a bordo e olhou em direção à loja onde todos os vagabundos se estavam movendo em círculos em direção aos degraus.
– Não acha, Randle, que seria melhor que esperássemos… até que o capitão…
McMurphy, segurando-o pelas lapelas, levantou-o do ancoradouro, pondo-o dentro do barco como se ele fosse um garotinho.
– Sim, doutor, esperar até que o capitão o quê? - Começou a rir como se estivesse bêbado, falando de maneira agitada e nervosa. – Esperar até que o capitão saia e nos diga que o número de telefone que eu lhe dei é de um bordel em Portland? É claro! Ei, George, anda logo; assuma o comando dessa coisa e nos tire daqui! Sefelt! Solte aquela corda e suba. George, vam'bora!
O motor espocou e morreu, espocou outra vez como se estivesse pigarreando, então rugiu, pegando à toda.
– Ooobaa! Aí vai ele. Dê carvão pra ele, George, e todos os braços a postos para repelir abordagem.
Uma massa branca de fumaça e água ergueu-se da traseira do barco quando a porta da loja de iscas se abriu com estrondo e a cabeça do capitão saiu como uma bala e desceu as escadas como se estivesse arrastando não somente o seu corpo, mas também os dos outros oito vagabundos. Eles vieram correndo pelo ancoradouro e pararam bem no fervilhar de espuma que subia, cobrindo-lhes os pés à medida que George ia virando o grande barco para fora e para longe do ancoradouro, e tínhamos o mar para nós.
Uma guinada repentina no barco atirara Candy de joelhos no chão. Billy a ajudou a levantar-se e tentava ao mesmo tempo desculpar-se pela maneira como havia agido no ancoradouro. McMurphy desceu da ponte de comando e perguntou se eles dois gostariam de ficar a sós de forma que pudessem falar sobre os velhos tempos. Candy olhou para Billy e tudo que ele conseguiu fazer foi sacudir a cabeça e gaguejar. McMurphy disse que nesse caso era melhor que ele e Candy descessem e verificassem se havia vazamentos, e que o resto de nós podia ficar onde estava por enquanto. Ele ficou na porta da cabina, bateu uma continência, piscou, e nomeou George comandante e Harding imediato.
– Continuem, marujos – disse e seguiu a garota para o interior da cabina.
O vento amainou e o sol ficou mais alto, cromando de prateado o lado leste das vagas verde-escuras. George dirigiu o barco direto para o mar, a toda velocidade, fazendo com que o ancoradouro e a loja de iscas ficassem cada vez mais para trás. Quando passamos pelo último ponto do quebra-mar e pela última rocha negra, pude sentir que uma enorme calma descia sobre mim, uma calma que foi aumentando quanto mais nos afastávamos da terra.
Haviam discutido animadamente durante alguns minutos sobre nosso ato de pirataria quanto à posse do barco, mas agora todos estavam quietos. A porta da cabina se abriu uma vez, por tempo suficiente para que uma mão empurrasse para fora um caixote de cerveja. Billy abriu uma cerveja para cada um com um abridor que encontrou na caixa de equipamentos, e foi passando adiante. Bebemos e observamos a terra ir afundando na nossa esteira.
A uma milha da costa, mais ou menos, George diminuiu a marcha para o que ele chamou de giro preguiçoso, pôs quatro homens nas quatro varas na traseira do barco, e o resto de nós se esparramou sob o sol no teto da cabina ou lá em cima na proa. Tiramos a camisa e ficamos observando os quatro tentarem mastrear as varas. Harding disse que, pelo regulamento, cada homem ficaria com uma vara até que acertasse um, então tinha de trocar com outro que ainda não tivesse tido uma oportunidade. George ficou no leme, olhando para fora, pela vidraça manchada de sal, e berrava instruções sobre como ajustar as carretilhas e linhas e como prender um arenque no anzol, e a que distância e profundidade pescar.
– E pegue aquela vara número quatro e acrescente 350 gramas nela com um cabo que tenha uma carretilha de correr, – mostro pra vocês daqui a um minuto – e vamos sair atrás desse grandalhão até lá no fundo com essa vara, puxa vida!
Martini correu até a beira e inclinou-se sobre a amurada, olhando fixo para a água, na direção da sua linha.
– Oh! Oh, meu Deus – disse ele, mas o que quer que tenha visto estava muito lá no fundo para qualquer de nós.
Havia outros barcos de pesca subindo e descendo pela costa, mas George não fez nenhuma tentativa de se juntar a eles; continuou seguindo firme em frente, ultrapassando-os, em direção ao mar aberto.
– Podem apostar – disse ele. – A gente sai com os barcos comerciais, para onde há peixe de verdade.
As vagas deslizavam, esmeralda-escuro de um lado, prateado do outro. O único ruído era o pipocar e o zumbido ocasional do motor, quando as ondas cobriam e descobriam o escape, e o grito estranho e perdido dos pequenos pássaros pretos, mergulhando em volta, pedindo informações uns aos outros. Tudo mais estava em silêncio. Alguns dos rapazes dormiam, e outros observavam a água. Estávamos navegando a cerca de uma hora quando a ponta da vara de Sefelt se arqueou e mergulhou na água.
– George! Jesus, George, venha nos dar uma mão! George não queria nada com a vara, sorriu e disse a
Sefelt para afrouxar a rosca do travão, manter a ponta para cima, para cima, e pintar o diabo com aquele cara até ele cansar!
– Mas e se eu tiver um ataque?
– Ora, nós simplesmente poremos um anzol e uma linha em você e o usaremos como isca – disse Harding. – Agora mande brasa em cima desse cara como o capitão ordenou e pare de se preocupar com ataques.
Trinta metros atrás do barco o peixe surgiu ao sol num chuveiro de escamas prateadas, os olhos de Sefelt se arregalaram, e ele ficou tão entusiasmado a observar o peixe que deixou a extremidade da vara virar para baixo, e a linha voltou com um estalo contra o barco, como um elástico.
– Para cima, eu lhe disse! Você deixou que ele pudesse puxar direto, não vê? Mantenha essa ponta para cima… para cima! Você tinha apanhado um grande prateado, puxa vida!
O maxilar de Sefelt estava pálido e trêmulo quando ele finalmente entregou a vara a Fredrickson.
– O.K… mas se você apanhar algum com um anzol na boca, é o meu bendito peixe!
Eu estava tão entusiasmado quanto os outros. Não havia planejado pescar, mas depois de ver aquela força de aço que um salmão tem na ponta de uma linha, saí do topo da cabina e vesti a camisa para esperar minha vez.
Scanlon estabeleceu um prêmio para o maior peixe e um outro para o primeiro que fosse apanhado: quatro pratas de cada um que quisesse participar. Mal tinha acabado de pegar o dinheiro no bolso, Billy puxou para dentro uma coisa horrorosa, que parecia um sapo de cinco quilos com espinhas por todo lado.
– Isso não é peixe – disse Scanlon. – Você não pode ganhar com isso.
– Não é nenhum p-p-passarinho.
– Isso aí é uma espécie de bacalhau – disse George. – Ele é um peixe ótimo de comer se a gente tirar todos os espinhos dele.
– Está vendo. Ele também é peixe. P-p-pague. Billy me cedeu a sua vara, recebeu o dinheiro e foi sentar-se junto da cabina onde se encontravam McMurphy e a garota. Ficou olhando para a porta fechada com tristeza.
– Eu go-go-go-gostaria que houvesse varas para todos – disse ele encostando-se na parede da cabina.
Eu me sentei e segurei a vara, observei a linha correr na esteira. Cheirei o ar e senti que as quatro latas de cerveja que havia bebido libertavam dúzias de mecanismos de controle bem lá dentro de mim: por toda parte, os lados cromados das ondas cintilavam e brilhavam ao sol.
George gritou para nós que olhássemos mais para a frente, que dali vinha exatamente o que estávamos procurando. Eu me inclinei e me virei para olhar, mas tudo que vi foi uma grande tora de madeira flutuando, e aquelas gaivotas pretas voando em círculos e mergulhando em volta da tora, como folhas negras apanhadas num redemoinho. George aumentou um pouco a velocidade, dirigindo-se para o lugar onde os pássaros voavam em círculos, e a velocidade do barco puxou tanto a minha linha que eu concluí que a gente não seria capaz de dizer se tinha apanhado alguma coisa ou não.
– Essas gaivotas aí, elas vão sempre atrás de cardumes de peixes-vela – disse-nos George enquanto manobrava. – São peixinhos brancos bem pequenos, do tamanho de um dedo. Depois de secos, queimam igualzinho a uma vela. Eles são comida de peixe, peixinhos camaradas. E pode apostar que onde há um cardume de peixes-vela a gente acha os salmões prateados à procura de alimento.
Ele se meteu no meio dos pássaros, desviando-se da tora flutuante. De repente, por toda a parte em volta de mim, os declives lisos de cromo fervilhavam de peixinhos, e as costas lisas como um torpedo azul-prateado dos salmões rompiam através daquilo tudo. Vi uma daquelas costas mudar de direção e dirigir-se para um ponto a 30 metros atrás da minha vara, onde deveria estar o meu arenque. Segurei com firmeza, meu coração saltando, e então senti um arranco nos braços como se alguém tivesse batido na vara com um bastão de beisebol e a minha linha saiu queimando, deslizando na carretilha sob o meu polegar, vermelha como sangue.
– Use a rosca do travão! – berrou George para mim, mas o que eu sabia sobre roscas de travões era absolutamente nada, assim apenas apertei mais forte com o polegar até que a linha ficou amarela de novo, foi girando cada vez mais devagar e parou. Olhei em volta, e lá estavam todas as outras três varas puxando como a minha. Todos os que estavam sentados saltaram de cima da cabina, diante de toda aquela animação.
– Para cima! Para cima! Mantenham a ponta virada para cima! – berrava George.
– McMurphy! Chegue aqui e venha ver isso.
– Deus te abençoe, Fred, você apanhou o bendito do meu peixe!
– McMurphy, precisamos de ajuda!
Ouvi McMurphy rindo, e o vi pelo canto do olho, de pé ali na porta da cabina, não ensaiando um movimento sequer para fazer alguma coisa, e eu estava ocupado demais, girando a manivela para puxar o meu peixe, para lhe pedir ajuda. Todo mundo gritava para que ele fizesse algo, mas ele não se mexia. Até o médico, que tinha a vara de profundidade, pedia ajuda a McMurphy. E McMurphy apenas ria. Finalmente Harding viu que McMurphy nada ia fazer; assim, ele pegou o arpão e puxou o meu peixe para dentro do barco com um gesto rápido e preciso, como se tivesse estado trazendo peixes para barcos durante a sua vida inteira. Ele é grande como a minha perna, pensei, grande como uma estaca de cerca! Ele é maior do que qualquer peixe que eu já peguei na cachoeira. Está saltando no fundo do barco como um arco-íris enlouquecido! Sangra e solta escamas como moedas de prata. Tenho medo de que salte sobre a amurada. McMurphy não fez um gesto para ajudar. Scanlon agarra o peixe e o vence, impedindo assim que salte a amurada. A garota vem correndo de lá de baixo, grita que é a vez dela, xinga, agarra e puxa a vara e o anzol se enfia em mim umas três vezes, enquanto estou tentando prender um arenque para ela.
– Chefe, quero ser mico se alguma vez na minha vida vi alguma coisa demorar tanto! Oh, seu polegar está sangrando. Aquele monstro mordeu você? Alguém venha rápido fazer um curativo no polegar do chefe… rápido!
– Aqui vamos nós para o meio deles novamente – berra George, e eu solto a linha na popa do barco e vejo o brilho do arenque desaparecer sob o ataque azul-acinzentado de um salmão. A linha desce chiando para dentro dágua. A garota agarra a vara com as duas mãos e cerra os dentes.
– Ah, não, você não vai, danado! Ah, não…
Ela está de pé, com a ponta da vara firme entre as pernas, as mãos apertadas abaixo da carretilha, e a manivela da carretilha fica batendo nela enquanto a linha sei vai desenrolando.
– Ah, não, você não vai!
Ela ainda está com o paletó de Billy, mas a carretilha o abriu de repente, e todo mundo a bordo vê que a camiseta que ela vestia sumiu – todo mundo olhando estupidamente, tentando apanhar o seu peixe, esquivando-se do meu, que se debatia no fundo do barco, com a manivela daquela carretilha agitando o busto dela a tamanha velocidade que o bico é apenas uma mancha vermelha!
Billy salta para ajudar. Tudo que ele pode fazer é estender os braços por trás dela e ajudá-la a apertar mais a vara entre os seios até que afinal a carretilha pára, por nenhuma outra razão a não ser a pressão da sua carne… A esta altura ela está tão tesa e seus seios parecem tão firmes que penso que ela e Billy poderiam ambos soltar as mãos e os braços que ela ainda ficaria segurando aquela vara.
Essa confusão de atividade dura algum tempo – os homens lastimando-se, xingando e tentando cuidar de suas varas enquanto observam a garota; a batalha sangrenta e violenta entre Scanlon e o meu peixe no meio dos pés de todo mundo; as linhas todas emaranhadas, em todas as direções, com os óculos do médico num cordão emaranhado também, e balançando numa das linhas a três metros de distância da popa do barco, os peixes saltando, tentando abocanhar o reflexo luminoso das lentes, e a garota xingando furiosamente e agora olhando para os seios nus, um branco e o outro bem vermelho – e apenas por um segundo George pára de olhar para onde está indo, bate com o barco naquela tora de madeira e desliga o motor.
Enquanto isso McMurphy ri. Balança-se cada vez mais para trás contra o topo da cabina e lança a sua risada para longe através da água – rindo da garota, dos caras, de George, de mim, por estar chupando o meu dedo que sangra, do capitão lá atrás no ancoradouro, do ciclista e dos caras do posto de gasolina e das 5 mil casas e da Chefona e de tudo aquilo. Porque ele sabe que a gente tem de rir das coisas que nos ferem só para nos mantermos equilibrados, só para impedir que o mundo nos enlouqueça de todo. Ele sabe que há um lado doloroso; ele sabe que o meu dedo lateja e que a sua namorada está com um seio machucado, e que o médico está perdendo os óculos, da mesma forma que não deixará que essa graça esconda a dor.
Vejo que Harding, caído ao lado de McMurphy, também está rindo. E Scanlon, no fundo do barco. Rindo deles mesmos tanto quanto de nós. E a garota, com os olhos ainda contraídos de dor, enquanto olha do seio branco para o seio vermelho, começa a rir. E Sefelt e o médico. Todo mundo ri.
Começou devagar e foi aumentando até ficar cheio, fazendo os homens incharem e cada vez maiores. Eu observei, sendo parte deles, rindo com eles, e de alguma forma não estando com eles. Eu estava fora do barco, erguido acima da água e deslizando no ar com aqueles pássaros negros, alto, acima de mim mesmo, e podia olhar para baixo e ver a mim mesmo e aos outros, ver o barco balançando-se ali no meio daqueles pássaros que mergulhavam, ver McMurphy rodeado pelos seus 12 homens, e observá-los, a nós, lançando um riso que ecoava na água, em círculos cada vez maiores, mais distantes e maiores, até estourar nas praias por toda a costa, nas praias de todas as costas, em onda após onda após onda.
O médico apanhara alguma coisa no fundo do mar com a vara de profundidade, e todo mundo no barco, exceto George, havia pescado um peixe e trazido para o barco. Quando o médico conseguiu levantá-la até onde podíamos distingui-las, apenas um vulto esbranquiçado que surgia, para depois mergulhar em direção ao fundo, a despeito de tudo que ele tentava fazer para segurá-lo. Tão logo conseguia trazê-lo novamente para a superfície, levantando e girando a manivela da carretilha, com pequenos grunhidos tensos e teimosos, e recusando qualquer ajuda que os outros pudessem oferecer, o animal via a luz e descia.
George não se deu ao trabalho de dar partida no barco outra vez, mas desceu para nos ensinar como limpar o peixe sobre a amurada e abrir as guelras, de forma que a carne ficasse mais gostosa. McMurphy amarrou um pedaço de carne em cada extremidade de uma corda de um metro, atirou-a no ar e fez dois pássaros barulhentos saírem espiralando, "até que a morte os separe".
Toda a popa do barco e a maioria das pessoas que se encontravam nele estavam salpicadas de vermelho e de prata. Alguns de nós tiramos as camisas e mergulhando-as na água por sobre a amurada, tentamos limpá-las. Fomos passando o dia assim, pescando um pouco, bebendo a outra caixa de cerveja e dando de comer aos pássaros até a tarde, enquanto o barco balançava preguiçosamente nas ondas e o médico lutava com o seu monstro das profundidades. Um vento começou a soprar e agitou o mar em pedaços verdes e prateados, como um campo de vidro e de cromo, e o barco começou a balançar e a jogar mais, com mais força. George disse ao médico que ele teria de puxar logo o seu peixe, ou soltá-lo, porque se aproximava um mau tempo. O médico não respondeu. Apenas ergueu mais a vara, inclinou-se para a frente e puxou a linha, e ergueu de novo.
Billy e a garota haviam subido para a proa e conversavam, olhando para a água. Billy gritou que vira alguma coisa e todos nós corremos para a amurada daquele lado, e uma forma grande e branca estava começando a se tornar sólida a uns três ou quatro metros abaixo. Era estranho observá-la, de início apenas uma coisa levemente colorida, depois uma forma branca sob a água, tornando-se sólida, viva…
– Meu Jesus – exclamou Scanlon – isto é o peixe do doutor!
Estava do lado oposto ao do médico, mas podíamos ver pela direção da linha que ela ia para a forma debaixo dágua.
– Nós nunca conseguiremos trazê-lo para dentro do barco – disse Sefelt. – E o vento está ficando mais forte.
– É um grande linguado – disse George. __ As vezes eles pesam 100 ou mesmo 200 quilos. Vocês têm de puxá-lo para dentro com o guincho.
– Vamos ter de cortar a linha, doutor – disse Sefelt e pôs o braço em volta dos ombros do médico. O médico nada disse; a camisa estava ensopada de suor, e seus olhos brilhantes e vermelhos por estar há tanto tempo sem óculos. Continuou puxando e girando a manivela até que o peixe apareceu do seu lado do barco. Nós o observamos vir aproximando-se da superfície por mais alguns minutos, então começamos a aprontar o cabo e o guincho.
Mesmo com o arpão enfiado nele, ainda levou uma hora para trazermos o peixe para a popa do barco. Tivemos que enganchá-lo com as outras três varas, e McMurphy se inclinou, meteu a mão nas guelras e, com um puxão, o trouxe para dentro, branco, transparente e achatado. Ele caiu no fundo do tombadilho junto com o médico.
– Isto foi uma façanha e tanto – arquejou o médico esparramado no chão, sem força bastante para tirar o peixe de cima dele. – Isto foi… realmente uma façanha e tanto.
O barco jogou e estalou durante todo o caminho de volta para terra, enquanto McMurphy contava histórias terríveis sobre naufrágios e tubarões. As ondas foram ficando maiores à medida que nos aproximávamos da costa, e das cristas das ondas, nuvens brancas de espuma voavam no vento para se juntarem às gaivotas. As vagas na boca do quebra-mar se estavam elevando mais alto que o barco. George nos fez vestir os coletes salva-vidas. Reparei que todos os outros barcos já estavam no porto.
Havia três coletes salva-vidas a menos e houve confusão para se decidir quem seriam os três que desafiariam a entrada da barra sem coletes. Finalmente ficou decidido que seriam Billy Bibbit, Harding e George, que se recusava a usar um por causa da sujeira. Todo mundo ficou um pouco surpreendido por Billy se ter apresentado como voluntário. Tirou o seu colete imediatamente quando descobrimos que não os havia em número suficiente e ajudou a moça a vesti-lo, mas todo mundo ficou mais surpreendido ainda por McMurphy não ter insistido em ser um dos heróis; durante toda a confusão, ele ficou de pé encostado na cabina, equilibrando-se contra o balanço do barco, e observando os outros sem dizer uma palavra. Apenas sorrindo e olhando.
Chegamos à entrada da barra e caímos num desfiladeiro de água, a proa do barco virada para cima para a crista sibilante da onda que ia diante de nós, e a popa baixa, na depressão, à sombra da onda que surgia atrás de nós, e todo mundo na popa, agarrado na amurada, olhando da montanha que nos perseguia para as rochas negras do quebra-mar, uns 12 metros à esquerda, para George no timão. Ele continuava ali, firme como um mastro. Manteve-se assim, virando a cabeça para frente e para trás, aumentando a aceleração, diminuindo, acelerando de novo, conservando o barco firme, controlando a escalada daquela onda na frente. Ele nos disse, antes que começássemos, que, se ultrapassássemos aquela crista da frente, deslizaríamos no seu impulso sem nenhum controle, tão logo o propulsor e o leme fizessem água, e que, se reduzíssemos a ponto que a onda de trás nos apanhasse, ela quebraria sobre a popa e despejaria 10 toneladas de água dentro do barco. Ninguém brincou nem fez qualquer comentário engraçado sobre o jeito como ele ficava, virando a cabeça para a frente e para trás, como se estivesse montado ali num pino giratório.
Dentro do quebra-mar a água se acalmou, novamente, numa superfície ondulada, e no nosso ancoradouro, junto da loja de iscas, podíamos ver o capitão na companhia de dois policiais. Todos os desocupados se achavam agrupados atrás deles. George dirigiu-se na direção deles a toda velocidade, até que o capitão começou a acenar e gritar e os policiais correram degraus acima junto com os vadios. Pouco antes que a proa do barco arrebentasse com o ancoradouro inteiro, George virou o leme, inverteu a marcha e, com um rugido violento, raspou o barco contra os pneus de borracha como se o estivesse colocando suavemente numa cama. Já estávamos do lado de fora, amarrando o barco, quando a nossa marola bateu; fez jogar todos os barcos em volta, subiu pelo ancoradouro e estourou, cobrindo tudo de espuma, como se tivéssemos trazido o mar para casa junto conosco.
O capitão, os policiais e os vadios desceram os degraus com estardalhaço em nossa direção. O médico tomou o comando da briga contra eles, dizendo logo, para começar, que eles não tinham nenhuma jurisdição sobre nós, já que éramos uma expedição legal, patrocinada pelo Governo, e, se fosse preciso alguém para examinar o caso, teria de ser uma agência federal. Além disso, poderia haver uma investigação, relativamente ao número de coletes salva-vidas que o barco carregava, se o capitão realmente planejasse criar problemas. Não deveria haver um colete salva-vidas para cada homem a bordo, de acordo com a lei? Quando o capitão não disse nada a respeito, os policiais anotaram alguns nomes e foram embora, resmungando confusos. Tão logo eles saíram do ancoradouro, McMurphy e o capitão começaram a discutir e a trocar empurrões. McMurphy, que estava um bocado bêbado e ainda tentava restabelecer-se do balanço do mar, escorregou na madeira molhada e caiu no mar duas vezes antes de recuperar seu equilíbrio, o suficiente para acertar um golpe na cabeça careca do capitão e resolver assim a confusão. Todo mundo se sentiu melhor quando, tudo resolvido, o capitão e McMurphy entraram na loja de iscas para mais umas cervejas, enquanto nós trabalhávamos tirando nossos peixes do porão. Os vadios ficaram lá de cima, observando-nos e fumando cachimbos que eles mesmos haviam entalhado. Estávamos à espera de que tornassem a dizer alguma piada sobre a garota, na verdade queríamos mesmo que dissessem, mas, quando um deles finalmente arriscou um comentário, não foi sobre a garota, mas sim que o nosso linguado era o maior que já tinham visto ser pescado na costa do Oregon. Todos os outros concordaram com o companheiro e se aproximaram para observá-lo. Perguntaram a George onde ele havia aprendido a atracar um barco daquele jeito, e descobrimos que George não apenas navegara em barcos de pesca, mas que fora também comandante de uma lancha torpedeira no Pacífico, tendo recebido a Cruz Naval.
– Devia ter ido para o serviço público – disse um dos malandros.
– Sujo demais – respondeu-lhe George.
Podiam sentir a mudança que a maioria de nós apenas desconfiava que tivesse ocorrido; este não era o mesmo bando de mariquinhas saídos de um hospício que eles viram engolir os seus insultos naquela manhã. Eles não pediram desculpas à garota, não exatamente pelas coisas que tinham dito, mas, quando pediram para ver o peixe que ela havia fisgado, foram gentis o máximo. Quando McMurphy e o capitão voltaram da loja de iscas, todos nós tomamos uma cerveja juntos, antes de voltarmos.
Era tarde quando chegamos ao hospital.
A garota dormia encostada ao peito de Billy. Quando ela acordou, o braço dele estava dormente de segurá-la durante aquele tempo todo, numa posição não muito confortável, e ela lhe fez umas massagens. Ele lhe prometeu que, se tivesse qualquer um dos seus fins de semana livres, a convidaria para sair, tendo ela comentado em resposta que podia vir visitá-lo dentro de duas semanas, se ele lhe dissesse a que horas. Billy olhou para McMurphy pedindo uma resposta. McMurphy, passando os braços em volta dos ombros deles, disse:
– Combinado para as duas em ponto.
– Sábado de tarde? – perguntou ela.
Ele piscou para Billy e apertou a cabeça da garota em seu braço. – Não. Duas horas de sábado à noite. Entre escondido e bata na mesma janela da manhã de hoje. Eu passo uma cantada no ajudante da noite e ele deixa você entrar.
Ela riu e concordou.
– Você, seu maldito McMurphy – disse ela. Alguns dos Agudos da enfermaria ainda estavam acordados, de pé no banheiro, para ver se nos tínhamos afogado ou não. Eles nos observaram quando entramos pelo corredor, sujos de sangue, queimados de sol, cheirando a cerveja e a peixe, carregando os nossos salmões como se fôssemos heróis conquistadores. O médico perguntou se gostariam de ir lá fora e ver o seu linguado na mala do carro, e todos nos viramos para voltar, exceto McMurphy, que alegou estar muito cansado e que ia dormir. Quando ele se foi, um dos Agudos, dos que não tinham feito a viagem, perguntou como era possível que McMurphy estivesse com uma aparência tão abatida e cansado, enquanto o resto de nós estava corado e ainda cheio de animação. Harding explicou a coisa como sendo apenas a perda do seu bronzeado.
– Vocês se lembram de que McMurphy veio para cá com a corda toda, saído de uma vida ativa ao ar livre numa colônia penal, o rosto corado, um modelo de saúde física. Nós simplesmente presenciamos o desbotar do seu magnífico bronzeado psicopático. Isso é tudo. Hoje, de fato, ele passou algumas horas cansativas… para ser mais preciso, na obscuridade da cabina do barco… enquanto estávamos lá fora, expostos aos elementos, nos encharcando de vitamina D. É claro que isto pode tê-lo esgotado ate certo ponto, aqueles rigores lá embaixo, pensem bem. Quanto a mim, creio que poderia ter dispensado um pouco de vitamina D e aproveitado um pouco mais desse tipo de exaustão dele. Especialmente com a pequena Candy como chefe de serviço. Estou errado?
Eu nada disse, mas perguntava a mim mesmo se talvez ele não estaria enganado. Eu tinha percebido o cansaço de McMurphy antes, na viagem de volta, depois que ele insistiu em dirigir até um lugar onde havia morado numa outra época. Tínhamos acabado de partilhar a nossa última cerveja e atirado a lata vazia pela janela num sinal fechado, e estávamos apenas descansando para curtir o momento, boiando naquela espécie de moleza gostosa que toma conta da gente depois de passar um dia dando duro com alguma coisa que a gente gosta de fazer – meio tostados de sol e meio bêbados e acordados só porque queríamos saborear aquele gosto, o maior tempo possível. Percebi vagamente que eu estava ficando de um jeito que conseguia ver algo de bom na vida a minha volta. McMurphy me estava ensinando. Eu me estava sentindo melhor do que me lembrava de ter-me sentido desde que eu era menino, quando tudo era bom e a terra ainda cantava a poesia das crianças para mim.
Dirigimo-nos para o interior em vez de direto à costa, para passar pela tal cidade onde McMurphy havia morado mais tempo do que em outro lugar qualquer. Descemos a encosta da colina Cascade, pensando que estávamos perdidos, até… que chegamos a uma cidade que cobria uma extensão duas vezes o tamanho do terreno do hospital. Um vento frio cobrira o sol de nuvens quando atingimos a rua onde ele parou. Ele estacionou em cima de uns matos e apontou para o outro lado.
– Ali. É aquela ali. Parece que está recostada nas ervas… a morada humilde da minha juventude dissipada.
Ao longo da rua obscura, às seis horas da tarde, vi árvores sem folhas se erguendo, batendo na calçada como raios de madeira, o concreto se partindo em fendas onde elas batiam, todas dentro de uma cerca de arame. Uma fileira de estacas de ferro saía do chão ao longo da entrada de um pátio coberto de mato, e atrás havia uma casa de madeira com uma varanda, com um telhado resistente, inclinado contra o vento, para que a casa não fosse levada de roldão por dois quarteirões como uma caixa de papelão vazia. O vento soprava algumas gotas de chuva, e vi que a casa estava com os olhos bem fechados e os cadeados da porta balançavam numa corrente.
E na varanda, pendurada, havia uma dessas coisas que os japoneses fazem com vidro e prendem com cordões – coisas que tocam e bimbalham ao menor sopro – onde só restavam pendentes quatro pedaços de vidro. Esses quatro sacudiam, batiam e arrancavam pequenas lascas do chão de madeira.
McMurphy tornou a pôr o carro em movimento.
– Uma vez, estive aqui… no maldito ano, já faz tanto tempo, em que todos nós estávamos voltando daquela confusão da Coréia. Para uma visita. Meu pai e minha mãe ainda estavam vivos. Era uma boa casa.
Ele soltou o freio e começou a dirigir, então parou de repente.
– Meu Deus! – disse ele. – Olhem ali, estão vendo um vestido? – Apontou para trás. – No galho daquela árvore? Um trapo, amarelo e preto?
Eu consegui ver uma coisa como uma bandeira, ondulando alto nos galhos, sobre um barracão.
– A primeira garota que me levou para a cama usava aquele mesmo vestido. Eu tinha uns 10 anos, e ela provavelmente tinha menos, e naquela ocasião uma trepada parecia um negócio tão importante que perguntei a ela se não pensava, não sentia, que devíamos anunciá-lo de alguma maneira. Assim, como, digamos, dizer aos nossos pais "Mamãe, Judy e eu ficamos noivos hoje". E eu falava sério quando dizia aquilo, eu era idiota a esse ponto; pensava que se você fizesse aquilo, cara, estava legalmente casado, bem ali no ato, quer fosse alguém que você quisesse quer não, e que não havia como quebrar a regra. Mas aquela putinha – de no máximo oito ou nove anos – se abaixou, pegou o vestido do chão e disse que ele era meu: "Você pode pendurar isso em algum lugar, eu vou para casa assim mesmo, só de calcinhas e vou anunciar a coisa desse jeito… eles vão compreender". Jesus, com nove anos! – disse ele estendendo a mão e beliscando o nariz de Candy – e sabia muito mais do que muita profissional.
Ela mordeu a mão dele, rindo, e ele examinou a marca.
– Depois que ela foi pra casa de calcinhas, esperei até de noite, para jogar fora aquele maldito vestido… mas estão vendo esse vento? Apanhou o vestido como se fosse uma pipa e o carregou no ar, em volta da casa, até eu perdê-lo de vista, e na manhã seguinte, por Deus, estava pendurado naquela árvore para que a cidade inteira, isso foi o que eu pensei na ocasião, viesse e o visse.
Ele chupou a mão, tão acabrunhado que Candy riu e deu-lhe um beijo.
– Assim, minha bandeira foi desfraldada, e daquele dia até hoje achei que eu poderia muito bem viver à altura do meu nome… amante dedicado… e esta é a verdade, por Deus: aquela garotinha de nove anos, do meu tempo de infância, é que é a culpada.
Passamos por uma casa. Ele bocejou e piscou.
– Me ensinou a amar, bendito seja o seu doce rabo. Então – enquanto ele falava – um par de lanternas traseiras iluminou o rosto de McMurphy, e o pára-brisa refletiu uma expressão que ele só permitiu que aparecesse porque imaginava que estava escuro demais, no carro, para que alguém visse, terrivelmente cansada e tensa e frenética, como se não houvesse tempo suficiente para algo que ele tinha de fazer…
Enquanto a sua voz descontraída e bem-humorada distribuía em quinhões a vida dele para que nós a vivêssemos – um passado travesso, cheio de divertimentos infantis e companheiros de porres, mulheres apaixonadas e brigas de bar por pequenas besteiras – para que todos nós a penetrássemos num sonho.