PARTE IV

A Chefona já tinha sua manobra seguinte preparada no dia imediato à pescaria. A idéia lhe havia ocorrido quando conversava com McMurphy no dia anterior, a respeito de quanto ele estava ganhando na viagem, e outros pequenos empreendimentos desse tipo. Ela desenvolvera a idéia durante aquela noite, examinando-a sob todos os ângulos, até que teve certeza absoluta de que não podia falhar. Durante todo o dia seguinte fez pequenas insinuações para dar início a um boato, que deveria tomar vulto antes que ela realmente dissesse alguma coisa a respeito.

Sabia que as pessoas, sendo como são, mais cedo ou mais tarde começam a desconfiar e se afastam de alguém que parece que está dando um pouco mais de si do que seria normal, bancando Papai Noel, missionário. Assim como desconfiando de homens que doam fundos a causas justas, começam a se perguntar: Que é que eles ganham com isso? Um sorriso na boca quando o jovem advogado traz, digamos, um saco de nozes para as crianças da escola da sua região – pouco antes das eleições para o Senado Estadual – e dizem uns para os outros: Ele não engana ninguém.

Ela sabia que não demoraria muito para que os outros começassem a se perguntar o que era, agora que surgiu o assunto, que fazia McMurphy gastar tanto tempo organizando pescarias na costa e programando festas com bingo e estimulando times de beisebol. O que é que o impulsionava para manter as coisas a todo vapor, quando todo mundo na enfermaria sempre se havia contentado em ir levando, jogando vinocle e lendo as revistas do ano passado? Como aquele cara, aquele irlandês arruaceiro, vindo de uma colônia penal onde cumpria pena por jogo ilícito e agressão, amarrava um lenço na cabeça, brincava como um adolescente, e passava duas horas inteiras fazendo com que todos os Agudos lhe gritassem vivas, enquanto fazia o papel da moça, tentando ensinar Billy Bibbit a dançar? Ou como é que um malandro, experiente como ele – um profissional, um artista de feira, um jogador perito na avaliação das possibilidades – se arriscava a dobrar a sua permanência num hospício tornando sua inimiga mais ferrenha a mulher que tinha a última palavra quanto a quem deveria ou não ser liberado?

A enfermeira fez com que as perguntas começassem, fazendo circular um levantamento da situação financeira dos pacientes nos últimos meses; deve ter-lhe tomado horas de trabalho a coleta daqueles dados nos arquivos. Mostrava uma diminuição constante nos fundos de todos os Agudos, exceto um. Os recursos dele haviam crescido desde o dia em que chegara.

Os Agudos começaram a fazer brincadeiras com McMurphy sobre como parecia que ele os estava depenando, e ele nunca o negou. De maneira alguma. Na realidade, ele se jactou de que se ficasse naquele hospital um ano ou coisa assim, bem que poderia ser liberado com a sua independência financeira garantida para se aposentar na Flórida para o resto da vida. Todos eles riam daquilo quando ele estava por perto, mas quando estava fora da ala, na TV ou na TO ou na TP, ou quando estava na Sala das Enfermeiras levando um sabão por alguma coisa, enfrentando o sorriso plástico e fixo dela com o seu grande sorriso radiante, não era bem rindo que eles estavam.

Começaram a se perguntar uns aos outros por que ultimamente ele estivera tão ativo, conseguindo para os pacientes coisas como modificar o regulamento, de forma que os homens não tivessem de andar em grupos terapêuticos de oito sempre que iam a algum lugar ("Billy tem falado de cortar os pulsos de novo", disse ele numa sessão em que argumentava contra o regulamento do grupo de oito. Assim, há sete de vocês aí que vão acompanhá-lo nessa terapêutica?"); e a maneira como manobrava o médico, que estava muito mais próximo dos pacientes desde a excursão de pescaria, para ordenar assinaturas do Playboy, Nugget e Man e se livrar de todos os McCall's antigos, que o cara inchada do Relações-Públicas vinha trazendo de casa e deixando numa pilha na enfermaria, os artigos que ele achava que nos interessariam especialmente marcados com tinta verde. McMurphy chegou até a pôr no correio uma petição para alguém em Washington, pedindo que examinassem os eletrochoques e lobotomias que ainda eram praticados nos hospitais do Governo. Eu simplesmente gostaria de saber, os Agudos estavam começando a se perguntar, o que é que o Mack vai ganhar com isso?

Depois que a idéia já circulava na ala há uma semana ou coisa assim, a Chefona tentou fazer a sua grande jogada na Sessão de Grupo; na primeira vez em que tentou, McMurphy estava presente à sessão e a derrotou antes que ela tomasse embalo e começasse mesmo (ela começou, dizendo ao grupo que estava chocada e desapontada com o estado em que a ala se havia deixado cair: Olhem em volta, por Deus; pornografia de verdade recortada daqueles livros nojentos e pregada nas paredes – ela planejava, a propósito, providenciar para que o Edifício Central fizesse uma investigação a respeito da imundície que havia sido trazida para dentro daquele hospital. Recostou-se na cadeira, preparando-se para continuar e mostrar quem era o culpado e por que, sentada naqueles dois segundos que se seguiram à sua ameaça, como se estivesse num trono, quando McMurphy quebrou o encanto, dela com acessos de riso, dizendo-lhe que fizesse aquilo mesmo e lembrasse ao pessoal do Edifício Central que trouxesse seus espelhinhos de mão quando viesse fazer a investigação). Assim, na outra vez em que ela tentou a jogada, tratou de garantir que ele não estivesse presente à sessão.

Ele recebeu um chamado telefônico interurbano de Portland e estava lá embaixo na recepção com um dos crioulos, esperando que a pessoa tornasse a chamar. Quando deu uma hora e começamos a arrumar as coisas, preparando a enfermaria, o crioulo menor perguntou-lhe se queria que ele descesse e chamasse McMurphy e Washington para virem para a sessão, mas ela disse que não, que não tinha importância, o deixasse ficar e que, além disso, alguns dos homens ali poderiam gostar de ter uma oportunidade de discutir a respeito do nosso Sr. Randle Patrick McMurphy sem estar diante de sua presença dominadora.

Eles começaram a sessão contando histórias engraçadas a respeito dele e das coisas que havia feito. Falaram durante algum tempo sobre o grande sujeito que ele era, e ela ficou quieta, esperando até que todos eles esgotassem aquele assunto. Então começaram a surgir outras perguntas. Que é que havia com McMurphy? Que era que o fazia continuar daquele jeito e fazer as coisas que fazia? Alguns dos caras sugeriram que talvez a história dele provocar brigas de mentira na colônia penal para ser mandado para cá não fosse mais uma de suas lorotas, e que talvez ele fosse mais louco do que as pessoas pensavam. A Chefona sorriu diante disso e levantou a mão.

– Louco como uma raposa – disse ela. – Creio que isso é o que estão tentando dizer a respeito do Sr. McMurphy.

– Que é que está querendo di-di-dizer? – perguntou Billy. McMurphy era seu amigo preferido e seu herói, e ele não tinha muita certeza de que lhe agradasse a maneira como ela juntara aquele elogio com as coisas que não dissera em voz alta. – Que é que está querendo d-d-dizer "como raposa"?

– É acenas uma observação, Billy – respondeu a enfermeira amavelmente. – Vamos ver se algum dos outros rapazes pode dizer-lhe qual é o significado. Que tal o senhor, Sr. Scanlon?

– Ela quer dizer, Billy, que McMurphy não é nenhum idiota.

– Ninguém disse que ele e-e-e-e-ra! - Billy socou o braço da cadeira com o punho para fazer sair a última palavra. – Mas a Srta. Ratched estava deixando im-implícito…

Não, Billy, eu não estava deixando nada implícito. Estava simplesmente comentando que o Sr. McMurphy não é pessoa de correr riscos sem um motivo. Concordaria com isso, não? Vocês todos não concordariam com isso?

Ninguém respondeu.

– E no entanto – continuou ela – ele parece fazer as coisas sem pensar em si mesmo, como se fosse um mártir ou um santo. Alguém se aventuraria a dizer que o Sr. McMurphy é um santo?

Ela sabia que era seguro sorrir para toda a sala, esperando uma resposta.

– Não, nem um santo nem um mártir. Olhem aqui. Vamos examinar um ponto crucial da filantropia desse homem? – Ela apanhou uma folha de papel amarelo na cesta. – Olhem para alguns desses presentes, como podem chamá-los os fãs devotados dele. Primeiro, houve o presente da Sala de Hidroterapia. Isso era realmente dele, para que pudesse dar? Ele perdeu alguma coisa conquistando-a como seu cassino de jogo? Por outro lado, quanto acham que ele fez no curto período em que foi croupier do seu pequeno Monte Cario aqui? Quanto você perdeu, Bruce? Sr. Sefelt? Sr. Scanlon? Creio que todos vocês têm uma idéia de quanto montam suas perdas pessoais, mas acham que sabem a que total os ganhos dele chegaram, de acordo com os depósitos que ele fez nos Fundos? Quase 100 dólares.

Scanlon assoviou baixinho, mas ninguém disse nada.

– Tenho anotadas aqui várias outras apostas que ele fez, se quiserem ver, inclusive algo relativo a deliberadamente tentar perturbar o pessoal. E toda essa jogatina era e é completamente contrária ao regulamento da enfermaria, e cada um de vocês que jogou com ele sabe.

Ela tornou a olhar para o papel, depois o colocou na cesta.

– E esta recente excursão de pescaria? Quanto imaginam que o Sr. McMurphy lucrou com esse empreendimento? Da maneira como vejo as coisas, ele se utilizou do carro do doutor, até do dinheiro do doutor para gasolina e, disseram-me, teve alguns outros benefícios, sem ter pago um centavo. Uma raposa e tanto, devo dizer.

Ela levantou a mão para impedir que Billy a interrompesse.

– Por favor, Billy, compreenda-me: não estou criticando este tipo de atividade em si; simplesmente pensei que seria melhor se não tivéssemos ilusões sobre os motivos desse homem. Mas, de qualquer maneira, talvez não seja justo fazer essas acusações sem a presença do homem de quem estamos falando. Vamos voltar ao problema que estávamos discutindo ontem… qual era? – ela começou a folhear papéis na cesta. – Qual era, lembra-se, Dr. Spivey?

A cabeça do médico levantou-se num sobressalto.

– Não… espere… eu acho…

Ela tirou uma folha de papel de uma pasta.

– Aqui está, Sr. Scanlon; seus sentimentos com relação a explosivos. Ótimo. Vamos examinar isso agora, e numa outra ocasião, quando o Sr. McMurphy estiver presente, voltaremos a ele. Entretanto acho que vocês realmente poderiam pensar um pouco no que foi dito hoje. Agora, Sr. Scanlon…

Mais tarde, naquele dia, havia oito ou 10 de nós agrupados na porta da cantina, esperando até que o crioulo acabasse de roubar óleo de cabelo, e alguns tornaram a tocar no assunto. Eles disseram que não concordavam com o que a enfermeira havia dito, mas, que diabo, a velha tinha razão em certos pontos. E no entanto, droga, Mack ainda era um bom sujeito… realmente.

Harding finalmente pôs a questão às claras:

– Meus amigos, vocês protestam demasiado para acreditar em seus protestos. Todos vocês acreditam, bem lá no fundo de seus coraçõezinhos, que a nossa Srta. Anjo de Misericórdia Ratched está absolutamente certa em todas as suposições que fez hoje sobre McMurphy. Sabem que ela estava certa, e eu também. Mas por que negar? Vamos ser honestos e dar a esse homem o que lhe é devido em vez de criticar em segredo seu talento capitalista. Que é que há de errado com o fato de ele ter algum lucro? Todos nós, quanto a isso não há dúvidas, recebemos em troca alguma coisa no valor do nosso dinheiro, toda vez que ele nos depenou, não recebemos? Ele é um sujeito esperto, com um olho vivo para um dinheirinho rápido. Não faz quaisquer fingimentos com relação aos seus motivos, faz? Por que haveríamos nós de fazê-lo? Ele tem uma atitude honesta e saudável com relação à sua chicana, e eu sou todo a favor dele, da mesma forma que sou a favor do velho e querido sistema capitalista da livre empresa individual, camaradas, dele e da sua impudência franca e obstinada, da bandeira americana, bendita seja, e do Lincoln Memorial. Lembrem-se do Maine, de P.T. Barnum e do Quatro de Julho. Sinto-me compelido a defender a honra do meu amigo como sendo a de um bom malandro vermelho, branco e azul, cem por cento americano. Bom sujeito, coisa nenhuma. McMurphy ficaria embaraçado até as lágrimas se soubesse de alguns dos motivos altruístas que as pessoas têm estado alegando que estavam por trás de alguns de seus negócios. Ele os encararia como uma afronta direta à sua arte.

Ele remexeu o bolso à procura de cigarros. Não os encontrando, pediu emprestado a Fredrickson, acendeu com um riscar teatral de fósforo, e continuou:

– Admito que de início fiquei confuso com as suas ações. Quebrar aquela janela… Deus, pensei, aqui está um homem que parece que realmente quer ficar neste hospital, não quer abandonar os amigos e todo esse tipo de coisa, até que percebi que McMurphy o fazia porque não queria perder uma coisa boa. Ele está aproveitando ao máximo o seu tempo aqui. Nunca se deixem enganar por suas maneiras caipiras; ele é um malandro muito esperto, muito dotado de bom senso. Observem; tudo que ele fez teve sua razão de ser.

Billy não estava disposto a desistir com tanta facilidade.

– Sim. E o que é que diz de ele me ensinar a d-d-dançar? – Estava cerrando os punhos ao lado do corpo; e nas costas de suas mãos vi que todas as queimaduras de cigarros haviam sarado, e que no lugar delas havia tatuagens que ele tinha desenhado com um lápis indelével, molhado de cuspe. – Que é que diz disso, Harding? Em que é que ele está ganhando di-di-dinheiro me ensinando a dançar?

– Não fique aborrecido, William – disse Harding. – Mas não fique impaciente, também. Vamos apenas sentar com calma e esperar… e ver como ele vai resolver isso.

Parecia que Billy e eu éramos os dois únicos que ainda acreditavam em McMurphy. E naquela mesma noite Billy passou-se para o lado de Harding na maneira de ver as coisas, quando McMurphy, voltando depois de dar um outro telefonema, lhe disse que o encontro com Candy estava confirmado, e acrescentou, quando escrevia um endereço para ele, que poderia ser uma boa idéia enviar-lhe algum tutu para a viagem.

Tutu? Di – dinheiro? Qu – qu – quanto? – Ele olhou para onde estava Harding, sorrindo.

– Ah, você sabe, cara… talvez 10 dólares para ela e 10…

– Vinte dólares! Uma passagem de ônibus até aqui não custa tan-tan-tanto assim.

McMurphy olhou por baixo da aba do chapéu, deu um sorriso lento para Billy, e então esfregou a garganta com a mão, passando a língua nos lábios.

– Puxa, puxa vida, mas eu estou com uma sede daquelas. Imagino que ainda vou estar com mais sede no sábado, daqui a uma semana. Você não se oporia a que ela me trouxesse umas bebidas, não é, Billy?

E lançou um olhar tão inocente para Billy que este teve de rir e sacudir a cabeça que não, e ir para um canto conversar animadamente sobre os planos para o sábado seguinte com o homem que ele provavelmente considerava um proxeneta.

Eu ainda tinha minhas próprias opiniões – de como McMurphy era um gigante caído do céu para nos salvar da Liga, que estava estabelecendo uma rede com fio de cobre e cristal sobre a Terra, como era grande demais para ser incomodado por uma coisa tão mesquinha como dinheiro – mas até eu cheguei a quase pensar com os outros. O que aconteceu foi o seguinte: Ele havia ajudado a carregar as mesas para a Sala da Banheira antes de uma das Sessões de Grupo e estava olhando para mim de pé junto do painel de controle.

– Por Deus, chefe – disse ele – parece-me que você já cresceu 30 centímetros desde aquela pescaria. E, Deus todo-poderoso, olhe só o tamanho desse seu pé; é grande como um vagão-plataforma!

Olhei para baixo e vi como o meu pé era muito maior do que eu me lembrava que tivesse sido, como McMurphy dissera, dobrara o seu tamanho.

– E esse braço! Esse é o braço de um índio ex-jogador de futebol, se é que eu já vi um. Sabe o que eu acho? Que você devia dar uma levantadinha nesse painel aqui só para ver como está progredindo.

Sacudi a cabeça dizendo que não, mas ele disse que havíamos feito um trato e que eu era obrigado a fazer uma tentativa para ver como o seu sistema de crescimento estava funcionando. Eu não vi um jeito de escapar, assim fui até o painel só para lhe mostrar que eu não conseguiria fazê-lo. Inclinei-me e o segurei pelas alavancas.

– É isso mesmo, chefe. Agora endireite a posição do corpo. Ponha essas pernas debaixo do tronco, assim… isso, isso. Agora devagar… apenas endireite o corpo. Puxa vida! Agora ponha-o de volta na base.

Pensei que ele fosse ficar desapontado de verdade, mas quando me afastei para trás ele estava todo sorridente, apontando para o lugar onde o painel havia saído de sua base cerca de 15 centímetros.

– Melhor colocá-lo de volta no lugar, companheiro, para que ninguém saiba. Não devemos deixar que ninguém saiba ainda.

Então, depois da sessão, zanzando em volta das mesas de pinocle, ele levou a conversa para o lado da força física, da coragem e a respeito do painel de controles na Sala da Banheira. Pensei que lhes fosse contar como me havia ajudado a recuperar o meu tamanho; aquilo provaria que ele não fazia tudo por dinheiro.

Mas ele não tocou no meu nome. Falou até que Harding lhe perguntou se estava pronto para fazer uma outra tentativa de levantá-lo e ele disse que não, mas que só porque ele não conseguia levantá-lo não era sinal de que não podia ser feito. Scanlon disse que talvez fosse possível com um guindaste, mas que nenhum homem poderia levantar aquele negócio sozinho, e McMurphy concordou e disse que talvez fosse assim, talvez sim, mas que nunca se pode ter certeza quanto a coisas desse tipo.

Observei a maneira como ele os manobrou, os fez chegar até onde ele queria, que dissessem não, por Deus, nenhum homem vivo seria capaz de levantá-lo. Finalmente até sugeriram a aposta eles mesmos. Observei como ele pareceu relutante em apostar. Deixou as apostas irem subindo, os fez apostar cada vez mais, até que tinha cinco contra um seguros de cada homem, alguns deles apostando até 20 dólares. E nem uma vez sequer nada disse a respeito de já me ter visto levantar o painel.

Durante toda a noite fiquei desejando que ele não levasse aquilo até o fim. E durante a sessão, quando a enfermeira disse que todos os homens que haviam participado da pescaria teriam de se submeter a banhos de chuveiro especiais, porque se suspeitava de que estivessem com vermes, continuei tendo esperanças de que ela resolvesse a situação de alguma maneira, que nos fizesse tomar o banho imediatamente ou coisa assim – qualquer coisa que me livrasse de ter que levantar o peso.

Mas quando a sessão acabou, ele me levou e aos outros para a Sala da Banheira antes que os crioulos pudessem trancá-la, e me fez segurar o painel pelas alavancas e levantá-lo. Eu não queria fazer aquilo, mas não pude impedi-lo. Eu me senti como se o tivesse ajudado a passá-los para trás e a tomar o dinheiro deles. Todos estavam amistosos em relação a ele quando pagaram as apostas, mas eu sabia como se sentiam por dentro, como se alguma coisa lhes tivesse sido arrancada de debaixo dos pés. Assim que tornei a colocar o painel no lugar, saí correndo da Sala da Banheira, sem nem ao menos olhar para McMurphy, e fui para o banheiro. Eu queria ficar sozinho. Vi meu reflexo no espelho. Ele havia feito o que dissera que faria; meus braços estavam grandes de novo, grandes como eram na época da escola secundária, lá na aldeia, e meu peito e os ombros estavam largos e duros. Estava ali de pé olhando quando ele entrou. Estendeu-me uma nota de cinco dólares.

– Tome aqui, chefe, dinheiro para o chiclete. Sacudi a cabeça e comecei a andar para sair do banheiro. Ele me segurou pelo braço.

– Chefe, eu apenas lhe ofereci um presente como prova da minha admiração. Se acha que deve ganhar mais…

– Não! Fique com o seu dinheiro, eu não quero. Ele recuou, enfiou os dedos nos bolsos, levantou a cabeça para mim. Ficou me olhando durante algum tempo.

– O.K. – disse ele. – Agora, que história é essa? Por que é que todo mundo aqui dentro está torcendo o nariz para mim?

Não respondi.

– Eu não fiz o que disse que faria? – perguntou. – Não tornei a fazer você ficar do tamanho de um homem? Que é que há de errado comigo, por aqui, de repente? Vocês estão agindo como se eu fosse um traidor do meu país.

– Você está sempre… ganhando coisas!

– Ganhando coisas! Seu alce maldito, de que é que me está acusando? Tudo que eu faço é defender o meu lado na parada. Agora o que é que há de tão errado…

– Nós pensamos que não fosse para ficar ganhando coisas!

Eu podia sentir meu rosto se contraindo para cima e para baixo, do jeito que costuma fazer antes de eu começar a chorar. Mas não chorei. Fiquei ali diante dele com meu rosto se contraindo. Ele abriu a boca para dizer alguma coisa, e então parou. Tirou os polegares dos bolsos, levantou a mão e segurou o osso do nariz entre o polegar e o indicador, como fazem as pessoas cujos óculos são muito apertados, entre as lentes, e fechou os olhos.

– Meu Deus, ganhar! – disse com os olhos fechados. – Puxa vida, ganhar!


Assim imagino que o que aconteceu no chuveiro, naquela tarde, foi mais por culpa minha do que de qualquer outra pessoa. E é por isso que a única forma pela qual eu podia tentar me desculpar foi fazendo o que eu fiz, sem pensar em ser esperto ou ficar em segurança ou no que me aconteceria – e, por uma vez, não me preocupando com outra coisa além do que precisava ser feito.

Logo depois que saímos da privada, os três crioulos se aproximaram, reunindo nosso grupo para nosso banho de chuveiro especial. O crioulo menor, lutando por toda a extensão do piso, com a mão negra, torta, fria como um pé de cabra, a empurrar, levando de arrastão os homens ali reunidos, disse que era o que a Chefona chamava de uma higiene cautelar. Em vista da companhia que havíamos tido durante a viagem devíamos submeter-nos a uma limpeza antes que espalhássemos alguma doença pelo hospital.

Nós nos enfileiramos nus, encostados no ladrilho, e lá veio um dos crioulos, com um tubo plástico na mão, esguichando uma pomada fedorenta, espessa e grudenta como clara de ovo. Primeiro no cabelo, e depois no rosto todo.

Os caras reclamaram, brincaram e fizeram piadas sobre aquilo, tentando não olhar uns para os outros, nem para aquelas máscaras de pedra que se moviam enfileiradas atrás dos tubos plásticos como rostos de pesadelo em negativo, fazendo mira como canos de espingarda macios, como num pesadelo também. Eles zombaram dos crioulos dizendo coisas como:

– Ei, Washington, que é que vocês fazem para se divertir durante as outras 16 horas?

– Ei, Williams, pode me dizer o que foi que tomei no café?

Todo mundo riu. Os crioulos fecharam a cara e não responderam; as coisas não costumavam ser assim antes que aquele maldito ruivo aparecesse ali.

Quando Fredrickson botou a cara pra frente, houve tamanho barulho que pensei que o crioulo menor fosse sair voando no ar.

– Ouçam! – disse Harding, pondo a mão atrás da orelha. – A voz adorável de um anjo.

Todos riam às gargalhadas, zombando um do outro, até que o crioulo prosseguiu e parou na frente do homem seguinte, e de repente o lugar ficou num silêncio absoluto. O homem seguinte era George. E naquele único segundo, com as gargalhadas, as zombarias e as reclamações caladas, com Fredrickson ali ao lado de George erguendo-se e se virando e um crioulo grande pronto para mandar George abaixar a cabeça para levar uma esguichada daquela pasta fedorenta – bem naquele momento, todos nós tivemos uma idéia de tudo que iria acontecer, e por que tinha de acontecer, e por que todos nós havíamos estado errados com relação a McMurphy.

George nunca usava sabão quando tomava banho. Não deixava nem que alguém lhe entregasse uma toalha para se enxugar. Os crioulos do turno da noite, que supervisionavam os banhos habituais das terças e quintas-feiras à noite, haviam aprendido que era mais fácil não insistir e não o forçavam a fazer nada de diferente. E isso vinha sendo feito há muito tempo. Todos os crioulos sabiam disso. Mas agora todo mundo sabia – até George, inclinado para trás e sacudindo a cabeça, cobrindo-se com as mãos enormes como folhas de carvalho – que aquele crioulo, com o nariz arrebentado e as entranhas azedas, e os dois companheiros, de pé atrás dele esperando para ver o que ele faria, não deixaria passar aquela oportunidade.

– Ahhhh, abaixe a cabeça até aqui, George…

Os outros já estavam olhando para onde McMurphy se encontrava, dois homens mais adiante na fila.

– Ahhhh, vam'bora, George…

Martini e Sefelt estavam de pé no chuveiro, sem se mexer. O ralo sob os pés deles se engasgava engolindo ar e água com sabão. George olhou para o ralo por um segundo, como se estivesse falando com ele. Observou o ralo gorgulhar e se engasgar. Olhou novamente para o tubo na mão negra na sua frente, o muco escorrendo lentamente do buraquinho na ponta do tubo virado sobre as juntas dos dedos que pareciam forjadas em ferro. O crioulo moveu o tubo para a frente mais alguns centímetros, e George se inclinou ainda mais para trás, sacudindo a cabeça.

– Não… nada desse negócio.

– Vai ter de passar, Dum-Dum – disse o crioulo, a voz com um tom falso de pena. – Você vai ter de passar. Não podemos ficar com esse lugar cheio de micróbios, não é? Pelo que sei, você está coberto deles com uma camada de um dedo de espessura!

– Não! – disse George.

– Ahhhh, George, você nem faz idéia. Esses micróbios, eles são muito, muito miudinhos… não são maiores que a ponta de um alfinete. E cara, o que eles fazem é apanhar você pela ponta do cabelinho e ir perfurando, lá dentro de você, George.

– Não tenho micróbio nenhum! – disse George.

– Ahhh, deixe que eu lhe conte, Geo'ge: já vi casos em que esses micróbios horríveis realmente…

– O.K., Washington – disse McMurphy.

A cicatriz onde o nariz do crioulo havia sida quebrado era como um fio torcido de néon. O crioulo sabia quem tinha falado com ele, mas não se virou; só soubemos que havia escutado pelo jeito como parou de falar, levantou um dedo comprido e o passou pela cicatriz que ganhara num jogo de basquete. Esfregou o nariz por um segundo, então lançou a mão para frente, diante do rosto de George, raspando os dedos dobrados como garras.

– Um piolho - chato, Geo'ge, vendo? vendo aqui? Ora, você sabe o que é um chato, não sabe? Com certeza você apanhou chatos naquele barco de pesca. Não podemos deixar que os chatos entrem por dentro de você, né, Geo'ge?

– Não tenho piolho nenhum! – berrou George. – Não! – Ele ficou ereto e suas sobrancelhas se levantaram o bastante para que víssemos seus olhos. O crioulo recuou. Os outros dois riram dele.

– Alguma coisa errada, Washington, meu camaradinha? – perguntou o grandalhão. – Alguma coisa atrapalhando essa parte do procedimeen-to, cara?

Ele tornou a chegar para perto.

– Geo'ge, lhe dizendo: se abaixa! Ou você se abaixa e passa esse negócio… ou eu lhe enfio a mão! - Ele tornou a levantá-la; era grande e negra como um pântano. – Lhe enfio essa mão preta! Fedida! Imunda! Arrebento você todo!

– Não enfia mão nenhuma! – disse George, e levantou o punho acima da cabeça como se fosse esmigalhar o crânio cor de lava em pedaços, espalhar rodas dentadas, porcas e parafusos por todo o chão. Mas o crioulo apenas enfiou a ponta do tubo contra o umbigo de George e o apertou; e George se dobrou em dois com um arquejo. O crioulo esguichou uma boa quantidade no cabelo branco e ralo de George, espalhando o negrume da sua mão por toda a cabeça de George. George envolveu a barriga com os dois braços e gritou.

– Não! Não!

– Agora se vira, Geo'ge…

– Eu disse que chega, companheiro. – Dessa vez a maneira como a voz dele soou fez o crioulo virar e encará-lo. Vi que o crioulo sorria, olhando para a nudez de McMurphy, sem gorro, sem botas e sem bolsos para enfiar os dedos. O crioulo arreganhou os dentes olhando-o de cima a baixo.

– McMurphy – disse ele, sacudindo a cabeça… – Você sabe, eu 'tava começando a achar que a gente nunca ia ter uma chance.

– Seu filho da puta – disse McMurphy, parecendo mais cansado do que zangado. O crioulo nada disse. McMurphy levantou a voz. – Seu negro escroto, filho da puta!

O crioulo sacudiu a cabeça e riu para os dois companheiros.

– Que é que acham que o Sr. McMurphy está querendo com esse tipo de conversa, cara? Acham que ele quer que eu tome a iniciativa? Será que ele não sabe que a gente é treinada pra ouvir insultos horríveis assim desses loucos?

– Seu chupador de pica! Washington, você não passa de um…

Washington tinha-lhe dado as costas, virando-se novamente para George. George ainda estava dobrado em dois, arquejando por causa do golpe do tubo na barriga. O crioulo agarrou-lhe o braço e o virou de frente para a parede.

– É isso aí, Geo'ge, agora espalha no rosto.

– Nã-ã-ã-o!

– Washington – disse McMurphy. Ele respirou fundo e deu um passo metendo-se na frente do crioulo, empurrando-o para longe de George. – Washington, está certo, está certo…

Todo mundo podia ouvir o desespero contido na voz de McMurphy.

– McMurphy, 'tá me forçando a me proteger. Ele num me forçando, caras? - Os outros dois concordaram com a cabeça. Ele colocou o tubo cuidadosamente sobre o banco ao lado de George, tornou a se levantar com o punho girando num único movimento e acertando McMurphy, de surpresa, no rosto. McMurphy quase caiu. Cambaleou para trás, esbarrando na fileira de homens nus, e os caras o seguraram e o empurraram de volta em direção à cara escura sorridente. Ele foi atingido de novo, no pescoço, antes de admitir que a coisa já havia começado, afinal, e que agora não havia mais nada a fazer senão tocar para a frente. Aparou o golpe seguinte esquivando-se como uma cobra, e segurou o crioulo pelo pulso enquanto sacudia a cabeça para clareá-la.

Eles oscilaram assim por um segundo, ofegando junto com o ofegar do ralo; então McMurphy empurrou o crioulo para longe e se encurvou, erguendo os grandes ombros para cima para proteger o queixo, os punhos um de cada lado da cabeça, e foi se movendo em volta do homem a sua frente.

E aquela fila arrumada e silenciosa de homens nus se transformou num círculo que gritava, membros e corpos se unindo numa arena de carne.

Os braços negros golpearam a cabeça ruiva abaixada e o pescoço taurino, tirando sangue do supercílio e do queixo. O crioulo se desviava com saltos rápidos. Mais alto, com os braços mais compridos que os braços grossos e vermelhos de McMurphy, os socos mais rápidos e mais violentos, ele conseguiu golpear os ombros e a cabeça do outro sem se aproximar. McMurphy continuava avançando – com passos difíceis, sem tirar os pés do chão, o rosto abaixado e olhando para cima entre aqueles punhos tatuados que lhe ladeavam a cabeça – até que conseguiu pôr o crioulo contra o círculo de homens nus, e lançou um punho bem no centro do peito branco, engomado. Aquele rosto azul-acinzentado fendeu-se em cor-de-rosa, passou uma língua da cor de sorvete de morango sobre os lábios. Desviou da carga pesada de McMurphy e conseguiu lamber a boca duas vezes antes que aquele punho o acertasse de novo num golpe certeiro. A boca se escancarou dessa vez, uma mancha de uma cor doentia.

McMurphy tinha marcas vermelhas na cabeça e nos ombros, mas não parecia estar ferido. Continuou a arremeter, levando 10 golpes para cada um que acertava. Continuou assim, para trás e para a frente na sala do chuveiro, até que o crioulo estava arquejando, cambaleando e se esforçando principalmente para se manter fora do caminho daqueles braços vermelhos massacrantes. Os caras gritavam para que McMurphy o derrubasse. McMurphy não se apressou.

O crioulo se desviou de um golpe no ombro e olhou depressa para os outros dois que observavam.

– Williams… Warren… que diabo!

O outro grandalhão afastou o grupo e agarrou McMurphy pelos braços, por trás. McMurphy o sacudiu como um touro sacode um macaco, mas ele continuou ali.

Então, eu o arranquei dali e o atirei no chuveiro. Ele estava cheio de tubos; não pesava mais do que cinco ou dez quilos.

O crioulo menor girou a cabeça de um lado para o outro, voltou-se e correu para a porta. Enquanto eu o observava ir, o outro saiu do chuveiro e me imobilizou com um golpe de luta livre – os braços sob os meus, por trás, e as mãos enlaçadas atrás do meu pescoço – e eu tive de correr de costas para dentro do chuveiro e esmagá-lo contra os ladrilhos, e enquanto estava ali deitado na água, tentando ver McMurphy arrebentar mais algumas costelas de Washington, o que estava atrás de mim começou a me morder o pescoço e tive de quebrar o aperto dos seus braços. Então ele ficou quieto, a goma escorrendo do uniforme e descendo pelo ralo gorgulhante.

E quando o crioulo menor voltou correndo, com correias e algemas e mais quatro ajudantes da Enfermaria dos Perturbados, todo mundo estava se vestindo e apertando a minha mão e a mão de McMurphy e dizendo que aquilo tinha de acontecer, mais cedo ou mais tarde, e que briga fantástica havia sido, que vitória tremendamente grande. Continuaram falando daquele jeito, para nos animar e para fazer com que nos sentíssemos melhor, sobre que briga incrível, que vitória – enquanto a Chefona auxiliava os ajudantes dos Perturbados a colocarem aquelas algemas de couro macio de maneira a se ajustarem em nossos braços.


Lá em cima na Enfermaria dos Perturbados há um eterno chocalhar estridente de sala de máquinas, uma fábrica de prisão imprimindo placas para licenças de automóvel. E o tempo é medido pelo di-doc, di-doc de uma mesa de pingue-pongue. Homens caminhando por suas rotas de fuga pessoais vão até uma parede, encostam o ombro; se viram e andam de volta para uma outra parede, batem o ombro e se viram novamente, passos curtos e rápidos, caminhando pelos sulcos cruzados no chão de ladrilhos, com um olhar desvairado. Há um cheiro queimado de homens que o medo levou à fúria e à perda do controle, e nos cantos e debaixo da mesa de pingue-pongue há coisas abaixadas rangendo os dentes, que os médicos e enfermeiras não vêem e que os ajudantes não conseguem matar com desinfetante. Quando a porta da ala se abriu, senti aquele cheiro de queimado e ouvi aquele ranger de dentes.

Um sujeito velho, alto e ossudo, pendurado num arame preso entre os ossos de seus ombros, veio receber-nos, a McMurphy e a mim, na porta, quando os ajudantes nos trouxeram para dentro. Ele nos examinou de alto a baixo com os olhos amarelos, escamados, e sacudiu a cabeça.

– Eu lavo as minhas mãos quanto a todo esse negócio – disse ele a um dos ajudantes negros, e o arame o arrastou para longe pelo corredor.

Nós o seguimos até a enfermaria, e McMurphy parou na porta, separou os pés e inclinou a cabeça para trás para examinar o ambiente; tentou enfiar os polegares nos bolsos, mas as algemas estavam muito apertadas.

– É um quadro e tanto – disse ele pelo canto da boca.

Concordei com a cabeça. Eu já conhecia tudo aquilo antes.

Dois sujeitos que estavam andando pararam para olhar, e o velho ossudo veio, arrastando-se de novo, repetindo que lavava as mãos quanto ao negócio todo. De início; ninguém nos deu muita atenção. Os ajudantes foram para a Sala das Enfermeiras, deixando-nos de pé, ali na porta da enfermaria. O olho de McMurphy estava inchado, de forma que parecia estar permanentemente dando uma piscadela, e eu podia ver que sorrir fazia com que os lábios lhe doessem. Ele levantou as mãos algemadas, ficou olhando em volta e respirou fundo.

– Meu nome é McMurphy, companheiros – disse na sua voz arrastada, típica de ator fazendo papel de vaqueiro. – E a coisa que estou querendo saber é quem é o picareta que controla o jogo de pôquer aqui nesse estabelecimento? – O relógio de pingue-pongue parou num tique-taque rápido no chão. – Eu não jogo vinte-e-um assim muito bem, amarrado desse jeito, mas afirmo que sou fogo no pôquer aberto. – Ele bocejou, deu de ombros, inclinou-se e pigarreou, cuspindo alguma coisa numa lata de lixo a um metro de distância; a coisa matraqueou fazendo ting e ele se endireitou de novo, sorriu e passou a língua no buraco ensangüentado entre os seus dentes. – Tivemos uma briga lá embaixo. Eu e o chefe aqui saímos no tapa com dois macacos!

O barulho de britadeira já havia parado naquela altura, e todo mundo olhava para nós ali na porta. McMurphy atraía os olhares como um apresentador de variedades. Ao lado dele, descobri que era obrigado a ser olhado também e, com as pessoas olhando fixo para mim, senti que tinha de ficar de pé tão ereto e alto quanto pudesse. Aquilo fez com que minhas costas doessem onde eu havia caído no chuveiro com o crioulo agarrado em mim, mas não cedi. Um sujeito de aparência faminta com a cabeça coberta por uma cabeleira negra toda alvoroçada aproximou-se e estendeu a mão como se imaginasse que eu tinha alguma coisa para lhe dar. Tentei ignorá-lo, mas ele ficou andando sempre a minha volta, para onde quer que eu me virasse, como um garotinho, estendendo aquela mão aberta para mim.

McMurphy falou um pouco sobre a briga, e minhas costas começaram a doer cada vez mais; eu me havia encolhido ha minha cadeira no canto durante tanto tempo que era difícil ficar de pé ereto sem sofrer as conseqüências.

Fiquei satisfeito quando uma enfermeirinha japonesa veio para nos levar até a Sala das Enfermeiras e tive uma oportunidade de me sentar e descansar.

Ela perguntou se já estávamos suficientemente calmos para que nos tirasse as algemas e McMurphy assentiu. Ele se afundou na cadeira, com a cabeça caída e os cotovelos entre os joelhos e parecia completamente exausto – não me havia ocorrido que ficar ereto fosse tão difícil para ele quanto para mim.

A enfermeira – mais ou menos tão grande como a menor extremidade de nada apontada numa ponta fina, como McMurphy a descreveu mais tarde – soltou nossas algemas, deu um cigarro a McMurphy e um tablete de chiclete a mim. Disse que se lembrava de que eu mascava chicletes. Não me lembrava absolutamente dela. McMurphy fumou, enquanto ela enfiava a mãozinha cheia de velas de aniversário cor-de-rosa num vidro de ungüento, e cuidava das feridas dele, encolhendo-se quando ele se encolhia e dizendo-lhe que sentia muito. Ela tomou uma de suas mãos nas dela e passou ungüento nas juntas dos dedos.

– Foi Washington ou Warren? McMurphy olhou para ela.

– Washington – disse ele e sorriu. – O chefe aqui tomou conta de Warren.

Ela soltou a mão dele e virou-se para mim. Eu podia ver os ossinhos pequenos de passarinho no rosto dela.

– Está ferido em algum lugar? – Sacudi a cabeça.

– E Warren e Washington?

McMurphy disse que achava que possivelmente estariam exibindo algum gesso da próxima vez que os visse. Ela concordou com a cabeça e olhou para os pés.

– Nem tudo é como a enfermaria dela – disse. – Grande parte é, mas não tudo. Enfermeiras do Exército tentando dirigir um hospital do Exército. Elas mesmas são um pouco doentes. Às vezes acho que todas as enfermeiras solteiras deveriam ser despedidas depois de 35 anos.

– Pelo menos todas as enfermeiras solteiras do Exército - acrescentou McMurphy. Ele perguntou por quanto tempo poderíamos esperar ter o prazer da hospitalidade dela.

– Temo que não por muito tempo.

Teme que não por muito tempo? – perguntou-lhe McMurphy.

– Sim. Às vezes eu gostaria de manter os homens aqui em vez de mandá-los de volta, mas ela é mais antiga. Não, provavelmente vocês não vão ficar muito tempo… quero dizer… não como estão, agora.

As camas na Enfermaria dos Perturbados são todas incômodas, duras demais ou moles demais. Designaram-nos para camas vizinhas. Não me amarraram com um lençol, embora deixassem uma luzinha fraca acesa perto da cama. No meio da noite alguém gritou:

– Estou começando a girar, índio! Olhe para mim, olhe para mim! – Abri os olhos e vi uma dentadura de longos dentes amarelos cintilando bem na frente do meu rosto. Era o cara de aparência faminta. – Estou começando a girar! Por favor, olhe para mim!

Dois ajudantes o apanharam pelas costas, arrastaram-no, rindo e gritando, para fora do dormitório. – Estou começando a girar, índio! – então apenas o riso. Ele continuou dizendo aquilo e rindo por todo o caminho, corredor abaixo, até que o dormitório ficou em silêncio, e pude ouvir aquele outro que dizia: "bem… lavo as minhas mãos quanto a todo esse negócio".

– Por um segundo você arranjou um amigo ali, chefe – cochichou McMurphy e se virou para o outro lado para dormir.

Não consegui dormir muito durante o resto da noite e ficava vendo aqueles dentes amarelos e aquele rosto faminto daquele cara, pedindo: Olhe para mim! Olhe para mim! Ou, finalmente, quando acabei dormindo, apenas pedindo. Aquele rosto, apenas uma necessidade amarela e faminta, vir aparecendo gradualmente, saída da escuridão, diante de mim, querendo coisas… pedindo coisas. Eu me perguntei como McMurphy podia dormir perseguido por uma centena de rostos como aquele, ou duas centenas, ou um milhar deles.

Eles têm um despertador, lá em cima, na Enfermaria dos Perturbados, para acordar os pacientes. Eles não acendem simplesmente as luzes, como lá embaixo. O despertador toca como um apontador gigante a mostrar alguma coisa horrível. McMurphy e eu nos sentamos de um salto só, quando o ouvimos, e estávamos a ponto de nos deitar novamente quando um alto-falante nos chamou, pedindo que nos apresentássemos na Sala das Enfermeiras. Saí da cama e minhas costas se tinham enrijecido a tal ponto durante a noite que eu mal me podia inclinar; eu sabia, pela maneira como McMurphy se movia, que ele estava tão doído quanto eu.

– Qual é o programa deles para nós agora, chefe? – perguntou. – Pontapés? A roda? Espero que nada de muito extenuante, porque, cara, estou realmente quebrado!

Eu lhe disse que não era nada de extenuante, mas não lhe afirmei mais nada, porque não tinha certeza até que chegamos à Sala das Enfermeiras, e a enfermeira, uma outra diferente, disse:

– Sr. McMurphy e Sr. Bromden? – então nos entregou, a cada um, um copinho de papel.

Olhei para o meu, e havia três daqueles comprimidos vermelhos.

Esse zing zumbe na minha cabeça e não consigo parar com ele.

– Espere aí – diz McMurphy. – Essas são aquelas pílulas de fazer a gente apagar, não são?

A enfermeira concorda com um movimento da cabeça, volta-se para verificar o que há atrás dela; são dois sujeitos esperando com apanhadores de gelo inclinados para a frente de braço dado.

McMurphy devolve o copinho e diz:

– Nada disso, dona, dispenso a escuridão. Agora um cigarro caía bem.

Devolvo o meu também e ela diz que tem de telefonar e desliza para trás da porta de vidro e já está ao telefone antes que alguém possa dizer alguma coisa mais.

– Sinto muito- se o meti em maus lençóis, chefe – diz McMurphy, e eu mal posso ouvi-lo com o barulho do telefone tilintando dentro das paredes. Posso sentir o apavorado torvelinho de pensamentos na minha cabeça.

Estamos sentados, aqueles rostos em volta de nós, num círculo, quando a Chefona, em pessoa, entra porta adentro, os dois crioulos, um de cada lado, um passo mais para trás. Tento me afundar na cadeira, me afastar dela, mas é tarde. Há gente demais olhando para mim; olhos grudentos me prendem onde estou sentado.

– Bom dia – diz ela, agora recuperou o seu velho sorriso. McMurphy diz bom dia, e eu continuo calado, embora ela também me diga bom dia, em voz alta. Estou observando os crioulos; um tem esparadrapo no nariz e o braço numa tipóia, a mão cinzenta projetando-se para fora das ataduras como uma aranha, e o outro se mexe como se tivesse alguma espécie de molde em torno das costelas. Ambos estão rindo, os dentes à mostra. Provavelmente poderiam ter ficado em casa, machucados como estão, mas não perderiam isso por nada. Eu lhes retribuo o sorriso, só para lhes mostrar.

A Chefona fala com McMurphy, suave e pacientemente, sobre a coisa irresponsável e infantil que ele fez, ter um acesso de raiva como um menininho, não está envergonhado? Ele diz que não e para ela ir logo em frente.

Ela lhe fala sobre como eles, os pacientes lá embaixo na nossa ala, numa Sessão de Grupo especial, ontem de tarde, haviam concordado com o pessoal, em que poderia ser benéfico que ele tivesse um pouco de terapia de eletrochoque – a menos que admitisse seus erros. Tudo que tem a fazer é admitir que estava errado, indicar, demonstrar contato racional e daquela vez o tratamento seria cancelado.

Aquele círculo de rostos espera e observa. A enfermeira diz que a decisão cabe a ele.

– Ah, é? – diz ele. – Tem um papel que eu possa assinar?

– Bem, não, mas se acha que é nec…

– Então por que não acrescenta algumas outras coisas enquanto trata do assunto… coisas como, bem, eu fazer parte de um complô para derrubar o Governo e como eu acho que a vida na sua enfermaria é a porra da coisa mais doce que existe deste lado do Havaí… sabe como é, esse tipo de merda.

– Não creio que isso seria…

– Então, depois que eu assinar, me traz um cobertor e um pacote de cigarros da Cruz Vermelha. Puxa vida, aqueles comunistas chineses poderiam ter aprendido um bocado de coisas com a senhora, dona.

– Randle, estamos tentando ajudá-lo.

Mas ele está de pé, coçando a barriga, andando, passando por ela e os crioulos recuando, em direção às mesas de jogo.

– O.K., ora, ora, muito bem, onde está a tal mesa de pôquer, companheiros?

A enfermeira fica olhando para ele por um momento, então vai para a Sala das Enfermeiras, para o telefone.

Dois ajudantes negros e um branco, de cabelo louro ondulado, nos levam até o prédio principal. No caminho, McMurphy conversa com o ajudante branco, exatamente como se nada o preocupasse.

Há uma geada espessa sobre a grama, e os dois ajudantes negros na frente soltam nuvens de ar como locomotivas. O sol separa à força algumas nuvens e ilumina o gelo até que o chão fica cheio de fagulhas. Os pardais se arrepiam contra o frio, ciscando entre as fagulhas, à procura de sementes. Atravessamos a grama que estala, passando pelos buracos dos esquilos onde vi o cachorro. Fagulhas frias. Geada dentro dos buracos, até perder de vista.

Sinto aquela geada na minha barriga.

Chegamos àquela porta, e há um ruído atrás dela, como o de abelhas açuladas. Dois homens na nossa frente, cambaleando sob os efeitos dos comprimidos vermelhos, um berrando como um bebê:

– É a minha cruz, obrigado meu Deus, é tudo que tenho, obrigado, Senhor.

O outro está dizendo:

– Coragem pra bola, coragem pra bola. – é o salva-vidas da piscina. E também está chorando um pouquinho.

Eu não vou chorar nem gritar. Não com McMurphy aqui.

O técnico nos pede que tiremos os sapatos, e McMurphy lhe pergunta se também nos vão tirar as calças e raspar a cabeça. O técnico diz que não temos tanta sorte assim.

A porta de metal olha para fora com seus olhos de rebite.

A porta se abre, suga o primeiro homem para dentro. O salva-vidas não se move. Um raio de luz como fumaça de néon sai do grande painel negro da sala, o atinge na cabeça e o arrasta para dentro, como a um cachorro numa coleira. O raio de luz o faz girar três vezes antes que a porta se feche, e o rosto dele está contorcido de medo.

– Cabana 1 – ele resmunga. – Cabana 2! Cabana 3!

Eu os ouço abrir a cabeça dele como uma tampa de bueiro, o estrondo e o rangido de engrenagens emperradas.

A fumaça sopra e abre a porta, e uma cama Gurney sai com o primeiro homem, e ele me envolve com os olhos. Aquele rosto. A cama Gurney volta lá para dentro e traz o salva-vidas para fora. Posso ouvir os chefes de torcida soletrando o nome dele.

O técnico diz:

– Próximo grupo.

O chão está frio, gelado, estalando. Lá em cima a a luz chora, tubos longos, brancos e gelados. Posso sentir o cheiro da pasta de grafita como o cheiro de uma garagem. Posso sentir o cheiro ácido do medo. Há uma janela, lá em cima, pequena, e lá fora vejo aqueles pardais roliços enfileirados num mesmo arame como contas marrons. As cabeças afundadas no pêlo contra o frio. Alguma coisa começa a soprar sobre os meus ossos ocos, cada vez mais alto, reide aéreo! reide aéreo!

– Não grite, chefe… Reide aéreo!

– Calma, chefe. Eu vou primeiro. Meu crânio é duro demais para que eles me machuquem. E se eles não podem me machucar, não podem machucar você.

Sobe na mesa sem nenhuma ajuda e abre os braços voluntariamente. Seus pulsos são afivelados. Uma mão tira-lhe o relógio de pulso, que ganhou de Scanlon, deixa-o cair junto do painel de controles, o relógio se abre, porcas e rodinhas e as longas espirais das molas soltam-se de encontro ao painel grudando ali, depressa.

Ele não parece nem um pouco assustado. Continua sorrindo para mim.

Eles passam a pasta de grafita nas suas têmporas.

– Que é isso? – pergunta.

– Condutor – diz o técnico.

– Untam a minha testa com um condutor. Vou ganhar uma coroa de espinhos?

Eles continuam espalhando. Ele está cantando para eles, faz com que suas mãos tremam.

– "Arranje óleo cremoso de raízes amargas, querida…"

Põem aquelas coisas como fones de ouvido, uma coroa de espinhos de prata sobre a grafita nas têmporas dele. Tentam calar o seu canto com um pedaço de borracha para que ele morda.

– "Esfregue com lanolina para acalmar."

Viram alguns botões e a máquina treme, dois braços de robôs pegam ferros de soldar e os apertam em cima dele. Ele dá uma piscadela de olho para mim e fala comigo, abafado, me diz alguma coisa, fala alguma coisa para mim através daquele tubo de borracha, bem no momento em que aqueles ferros chegam até junto da prata em suas têmporas – arcos de luz se cruzam, o enrijecem, o arqueiam para cima, para fora da mesa até que nada está lá embaixo a não serem os pulsos e os tornozelos, e para fora, em torno daquele tubo de borracha enrugado, um som como puxavííída! sai e ele está completamente coberto de fagulhas.

E do lado de fora da janela os pardais caem do arame soltando fumaça.

Eles o levam para fora numa cama Gurney, ainda se contorcendo, o rosto branco congelado. Corrosão. Ácido de bateria. O técnico vira-se para mim.

– Vigiem esse alce. Eu o conheço. Segurem-no. Não é mais uma questão de força de vontade.

– Segurem-no! Inferno. Não se trata mais desses caras sem Seconal.

As fivelas me mordem os pulsos e os tornozelos.

O creme de grafita tem pó de ferro, arranha as têmporas.

Ele disse alguma coisa quando piscou. Me disse alguma coisa.

O homem se inclina sobre mim, traz dois ferros na direção do anel na minha cabeça.

A máquina se arqueia sobre mim.

REIDE AÉREO.

Atinjo um passo de trote, correndo pela encosta abaixo. Não posso voltar, não posso seguir adiante, olhe para baixo do cano e você está morto, morto, morto.

Subimos saindo dos pastos que acompanham a linha férrea. Encosto a orelha no trilho, e queima o meu rosto.

– Nada em nenhuma das direções – digo. – Cem milhas…

– Ahn – diz papai.

– Não costumávamos descobrir onde estavam os búfalos enfiando uma faca no chão, apertando o punho entre os dentes, e ouvir um bando lá longe?

– Ahn – diz ele de novo, mas está animado. Lá do outro lado do trilho estão enfileirados montículos de restos de trigo do inverno passado. Há ratos debaixo daquele negócio, diz o cachorro.

– Vamos subir ou descer os trilhos, menino?

– Vamos atravessar, é o que o cachorro diz.

– Esse cachorro não é bom.

– Ele serve. Pássaros ali do outro lado, é o que esse velho cachorro diz.

– Tem caça melhor mais acima na margem dos trilhos, é o que diz o seu velho pai.

– Melhor bem ali do outro lado, nos montículos de trigo, é o que o cachorro me diz.

Do outro lado – a coisa seguinte que sei é que há gente por toda a extensão dos trilhos acertando faisões para todo lado. Parece que o nosso cachorro correu muito adiante de nós e assustou todos os pássaros, fazendo-os sair dos montes de trigo para os trilhos.

O cachorro apanhou três camundongos.

… homem, Homem, homem, HOMEM… forte e grande com uma piscadela como uma estrela.

Formigas de novo, oh, Jesus, e eu dessa vez estou mesmo cheio delas, as miseráveis com seus ferrões. Lembra de quando descobrimos que aquelas formigas tinham gosto de pepinos em conservas, hem? Você disse que não eram pepinos em conserva e eu disse que eram, e a sua mãe me arrancou o couro quando ouviu falar no assunto: Ensinar um menino a comer bichos!

Que horror. Um bom menino índio deve saber como sobreviver com qualquer coisa que ele possa comer que não vá comê-lo antes.

Nós não somos índios. Nós somos civilizados e você trate de se lembrar disso.

Você me disse, papai: Quando eu morrer me pendure lá no alto contra o céu.

O nome de mamãe era Bromden. Ainda é Bromden. Papai disse que nasceu só com um nome, nasceu direto dentro dele da mesma maneira que um bezerro cai num cobertor estendido quando a vaca insiste em ficar de pé. Tee Ah Millatoona. O Pinheiro-Que-É-o-Mais-Alto-Na-Montanha, e eu sou, por Deus, o maior índio do Estado do Oregon e provavelmente da Califórnia e de Idaho. Nascido direto ali dentro.

Por Deus, você é o maior dos idiotas se acha que uma mulher cristã vai usar um nome como Tee Ah Millatoona. Você nasceu dentro de um nome, então está bem, eu nasci dentro de um nome. Bromden. Mary Louise Bromden.

E quando nos mudarmos para a cidade, papai diz, esse nome vai tornar muito mais fácil conseguir um cartão da Previdência Social.

Um cara está atrás de alguém com um martelo de rebitador, também vai apanhá-lo, se for em frente. Vejo aqueles relâmpagos de novo, cores resplandecendo.

Tinido. Tilinta, tilinta, treme os dedos dos pés, ela é uma boa pescadora, pega os gansos, bota dentro do cercado… rendado de arame, tranca flexível, três gansos num bando… um voou para leste, um voou para oeste, e um foi voar por cima do ninho do cuco… F – O – R – A se soletra fora… o ganso dá um mergulho e bota você para fora.

Minha avó cantava isso, era uma brincadeira que fazíamos durante horas, sentados junto dos cavaletes de peixes, afastando as moscas. Um jogo chamado Tilinta-Tilinta-Trança-Dedos. Contando cada dedo das minhas duas mãos estendidas, um dedo para cada sílaba que ela recita.

Tilinta, ti-lin-ta, tran-ça dedos (sete dedos) ela é uma boa pescadora, apenas galinhas (dezesseis dedos, batendo num dedo em cada sílaba com a sua mão negra áspera, cada uma das minhas unhas voltadas para cima, para ela, como um rostinho pedindo para ser aquele que o ganso desce e bota para fora).

Eu gosto da brincadeira e gosto de vovó. Não gosto da Sra. Tilinta Trança-Dedos, pegando galinhas. Não gosto dela. Gosto muito daquele ganso voando por cima do ninho do cuco. Gosto dele e gosto de vovó, com poeira nas rugas.

Quando a vi de novo estava fria como pedra, morta, bem no meio de The Dalles, na calçada. Camisas coloridas de pé em volta dela, alguns índios, alguns criadores de gado, alguns fazendeiros de trigo. Eles a levam numa carreta até o cemitério da cidade, empurram barro vermelho sobre os olhos dela.

Eu me lembro de tardes quentes silenciosas com tempestades elétricas no ar, quando os coelhos grandes corriam para baixo das rodas dos caminhões.

Joey-Pesca-no-Barril tem 20 mil dólares e três cadilaques desde o tratado. E não sabe dirigir nenhum deles.

Vejo um dado.

Eu o vejo de dentro, comigo no fundo. Sou o peso, lastreando o dado para lançar para cima aquele número um, escrito em cima de mim. Eles dão uma espiada para lançar os dados, e sou o peso, seis saliências em volta de mim como travesseiros brancos, é o número seis que estará sempre virado para baixo quando ele jogar. Para que número viciaram o outro dado? Aposto que está carregado para lançar o um, também. Um ponto em cada dado. Estão jogando contra ele com dados viciados e eu sou o peso.

Cuidado, vem uma jogada aí. Sim, senhora, a sala de fumantes está vazia e o bebê precisa de um outro par de sapatilhas. Já vou indo.

Perdeu.

Água. Estou deitado numa poça.

Um ponto em cada dado. Pegaram-no de novo. Vejo aquele número um no alto acima de mim: ele não pode destruir dados viciados atrás da mercearia, num beco – em Portland.

O beco é um túnel, é frio porque o sol é o do fim da tarde. Deixe-me… ir ver a vovó. Por favor, mamãe.

Que foi que ele disse quando piscou o olho?

Um voou para leste, um voou para oeste.

Não fique no meu caminho.

Que inferno, enfermeira, não fique no meu caminho. Caminho, CAMINHO!

Minha vez. Ponto. Merda. Viciados de novo. Trapaceiro.

A professora me diz que você tem uma cabecinha boa, menino, seja alguma coisa…

Ser o que, papai? Um trapaceiro como o tio Lobo C. & S.? Um cesteiro? Ou um outro índio bêbado.

Ei, atendente, você é índio, não é?

É, sou sim.

Bem, devo dizer que você fala o inglês bastante bem.

É.

Bem… três dólares da comum. Eles não seriam tão metidos a besta se soubessem o que eu e a lua estamos aprontando. Nenhum maldito indiozinho…

Ele- quem era? – anda fora do passo, ouve um outro tambor.

Um ponto em cada dado de novo. Puxa vida, esses dados estão frios.

Depois do enterro da vovó, eu, papai e o tio Lobo Corredor e Saltador a desenterramos. Mamãe não quis ir conosco; ela nunca tinha ouvido falar numa coisa daquelas. Penduram o cadáver numa árvore! É o bastante para fazer uma pessoa ficar nauseada.

Tio Lobo C. & S. e papai passaram 20 dias no depósito dos bêbados na cadeia de The Dalles, jogando baralho, por Violação de Cadáver.

Mas ela é o diabo da nossa mãe!

Não faz a menor diferença, rapazes. Vocês deviam tê-la deixado enterrada. Não sei quando vocês, seus índios malditos, vão aprender. Agora, onde é que ela está? É melhor dizerem.

Ah, vai se foder, cara-pálida, disse o tio C. & S., enrolando um cigarro. Não vou dizer nunca.

Alto, alto, bem alto nas montanhas, no alto da copa de um pinheiro, ela está seguindo o rasto do vento com aquela mão velha, contando as nuvens, entoando aquela velha cantiga:… três gansos num bando…

Que foi que você disse pra mim quando piscou?

Banda tocando. Olhe – o céu, é o 4 de Julho.

Dados parados.

Eles me apanharam com a máquina de novo… eu me pergunto…

Que foi que ele disse?

… me pergunto como foi que McMurphy me fez ficar grande outra vez.

Ele disse tenha colhões.

Eles estão lá fora. Crioulos de uniformes brancos mijando debaixo da porta em cima de mim, depois vão entrar e me acusar de ter encharcado todos os seis travesseiros em que estou deitado! Número seis. Pensei que o quarto fosse um dado. O número um, o ponto em cada dado lá em cima, o círculo, a luz branca no quartinho quadrado… quer dizer que já é noite. Quantas horas estive apagado? Há um pouco de neblina, mas não vou me deixar escorregar e me esconder dentro dela. Não… nunca mais…

Levantei-me devagar, sentindo uma dormência entre os ombros. Os travesseiros brancos no chão da Sala do Isolamento estavam encharcados por eu ter urinado neles enquanto estava apagado. Ainda não conseguia lembrar-me da coisa toda, mas esfreguei os olhos com as costas das mãos e tentei clarear a cabeça. Esforcei-me ao máximo. Eu nunca me tinha esforçado para sair daquele estado, antes.

Cambaleei em direção à janelinha redonda coberta de tela de arame na porta da salinha e bati com os nós dos dedos. Vi um ajudante aproximar-se pelo corredor, com uma bandeja para mim, e soube que daquela vez eu os havia vencido.


Houve ocasiões em que eu perambulara por ali num torpor por cerca de umas duas semanas, depois do tratamento de choque, vivendo naquela nebulosidade que é muito parecida com a parte final do sono, aquela zona cinzenta entre a luz e a escuridão, ou entre o dormir e o despertar ou entre viver e morrer, em que a gente sabe que não está mais inconsciente mas não sabe ainda que dia é, ou quem é ou que é que adianta voltar.

Se você não tem uma razão para acordar, pode ficar vagando naquela zona cinzenta por um tempo longo e indefinido, mas se você quiser, com força suficiente, descobre que pode sair direto dela lutando. Daquela vez eu sai direto lutando, em menos de um dia, menos tempo do que qualquer outra vez.

E quando finalmente a neblina foi varrida da minha cabeça, parecia que eu tinha acabado de vir à tona depois de um mergulho longo e profundo, aflorando à superfície depois de ter estado debaixo dágua por 100 anos. Foi o último tratamento que me deram.

Deram mais três tratamentos a McMurphy, naquela semana. Tão logo ele começava a sair de um, recuperando o cintilar da sua piscadela, a Srta. Ratched chegava com o médico e eles lhe perguntavam se estava pronto a ser razoável, enfrentar o seu problema e voltar para a enfermaria para um tratamento. E ele assumia seu ar arrogante, consciente de que cada um daqueles rostos na Enfermaria dos Perturbados se havia virado para ele e esperava, e dizia à enfermeira que lamentava, mas que só tinha uma vida para dar pelo seu país e que ela podia beijar o traseiro vermelho-rosado dele, antes que ele abandonasse o porra do navio. É isso aí!

Então se levantava e fazia umas duas reverências para aqueles sujeitos ali, a sorrir para ele, enquanto a enfermeira levava o médico para a Sala das Enfermeiras, para telefonar para o prédio principal e autorizar um outro tratamento.

Uma vez, quando ela se ia virando para sair, ele a agarrou pela parte de trás do uniforme e lhe deu um beliscão, que a fez ficar vermelha como o cabelo dele. Acho que se o médico não estivesse ali, ele mesmo escondendo um sorriso, ela teria esbofeteado o rosto de McMurphy.

Tentei convencê-lo a fazer o jogo dela, de forma a escapar dos tratamentos, mas ele apenas riu e me disse que afinal, que diabo, tudo que eles estavam fazendo era recarregar a bateria dele, e de graça ainda por cima.

– Quando eu sair daqui, a primeira mulher que topar uma trepada com o ruivo McMurphy, o psicopata de 10 mil watts, vai se acender como uma máquina caça-níqueis e pagar em dólares de prata! Não, não tenho medo do carregadorzinho de bateria deles.

Ele insistia em afirmar que aquilo não o estava machucando. Nem ao menos tomava os comprimidos. Mas toda vez que o alto-falante chamava por ele, dizendo-lhe que não tomasse o café e que se preparasse para andar até o Setor Um, os músculos do seu maxilar se enrijeciam e o seu rosto inteiro perdia a cor, parecendo magro e assustado – o rosto que eu havia visto refletido no pára-brisa do automóvel na viagem de volta da costa.

Saí dos Perturbados no fim da semana. Eu tinha uma porção de coisas para dizer a McMurphy antes de ir, mas ele acabara de voltar de um tratamento e estava sentado, acompanhando a bola de pingue-pongue com os olhos como se estivesse preso nela com arames. O ajudante negro e o louro me levaram lá para baixo, me fizeram entrar na nossa ala e trancaram a porta atrás de mim. A ala parecia terrivelmente silenciosa depois dos Perturbados. Fui andando até a nossa enfermaria e por alguma razão parei na porta; todos os rostos estavam virados para mim, olhando-me, com uma expressão diferente, como jamais me haviam olhado antes. Seus rostos se iluminaram como se estivessem olhando para o clarão ofuscante de um palco de teatro de variedades.

– Aqui diante de seus próprios olhos – anuncia Harding – está o homem selvagem que quebrou o braço… do crioulo! Ei, vocês, vejam, vejam – Retribuí o sorriso deles, me dando conta de como McMurphy devia ter-se sentido durante todos esses meses, com aqueles rostos gritando para ele.

Todos se aproximaram e queriam que eu contasse tudo que havia acontecido; como ele estava agindo lá em cima? Que era que ele estava fazendo? Era verdade, o boato que estava correndo no ginásio, de que eles estavam dando choques nele todo dia com TE, e que ele se estava livrando daquilo como se fosse água, fazendo apostas com os técnicos sobre quanto tempo seria capaz de manter os olhos abertos depois que os pólos se tocassem?

Contei a eles tudo que podia, e ninguém pareceu espantar-se com o fato de eu, de repente, estar falando com as pessoas – um cara que havia sido considerado surdo e mudo durante todo o tempo que eles o haviam conhecido, falando, ouvindo, igual a todo mundo. Contei a eles que tudo que tinham ouvido era verdade, e ainda acrescentei algumas histórias minhas. Riram tanto de algumas das coisas que ele dissera à enfermeira, que os dois Vegetais, sob os seus lençóis molhados no lado dos Crônicos, sorriram e grunhiram junto com as gargalhadas, como se compreendessem.

Quando a própria enfermeira apresentou o problema do paciente McMurphy na Sessão de Grupo, no dia seguinte, e disse que por alguma razão anormal ele não parecia estar respondendo ao TE de forma alguma, e que meios drásticos poderiam ser necessários para estabelecer contato com ele, Harding disse:

– Ora, isto é possível, Srta. Ratched, sim… mas pelo que ouvi dizer a respeito de suas negociações com o Sr. McMurphy, lá em cima, ele não tem tido nenhuma dificuldade em estabelecer contato com a senhora.

Ela foi apanhada desprevenida e ficou tão perturbada com o fato de todo mundo ali estar rindo dela, que não tornou a tocar no assunto.

Ela viu que McMurphy estava ficando maior do que nunca, enquanto estava lá em cima onde os caras não podiam ver a mossa que ela lhe estava causando, crescendo a ponto de se tornar quase uma lenda. Se não se vê um homem, não se vê também a sua fraqueza, resolveu ela, e começou a fazer planos para trazê-lo de volta para baixo, para a nossa enfermaria. Concluiu que os rapazes poderiam constatar, com os próprios olhos, que ele podia ser tão vulnerável quanto qualquer homem. Não poderia manter o seu papel de herói se estivesse sentado ali na enfermaria, o tempo todo no estado de estupor do choque.

Os caras pressentiram isso e o fato de que, enquanto ele estivesse ali na ala para que eles o vissem, ela lhe estaria dando choques toda vez que ele saísse. Assim, Harding, Scanlon, Fredrickson e eu discutimos sobre como poderíamos convencê-lo de que a melhor coisa para todo mundo envolvido seria sua fuga da ala. E nó sábado, quando foi trazido de volta – saltitando pela enfermaria como um lutador de boxe entrando num ringue, as mãos unidas sobre a cabeça e anunciando que o campeão estava de volta – tínhamos o nosso plano todo preparado. Esperaríamos até que escurecesse, poríamos fogo num colchão, e quando os bombeiros viessem, o empurraríamos pela porta afora. Parecia um plano tão bom que não víamos maneira de ele recusar.

Mas não pensamos no fato de que seria no dia que ele havia marcado para introduzir a garota, Candy, dentro da enfermaria, para se encontrar com Billy.

Eles o trouxeram de volta para a enfermaria cerca das 10 da manhã.

– Cheio de mijo e de vinagre, companheiros; eles verificaram os meus contatos e limparam as minhas ponteiras, e estou brilhando como uma vela Modelo T. Alguma vez já usaram um indutor desses no Dia das Bruxas? Zam! Ótimo, não falha. – E saiu rabanando pela enfermaria, mais atrevido do que nunca, derramou um balde de água de limpeza debaixo da porta da Sala das Enfermeiras, deixou cair um pedaço de manteiga bem em cima dos sapatos de lona brancos do crioulo menor sem que ele percebesse, e espalhou risadas durante todo o almoço, enquanto a manteiga ia derretendo, ficando de uma cor que Harding definiu como sendo um "amarelo dos mais sugestivos" e, cada vez que passava por perto de uma estudante de enfermagem, ela dava um gritinho, revirava os olhos e saía batendo os pés pelo corredor, esfregando o quadril.

Falamos sobre o nosso plano de fuga, e ele disse que não havia pressa, lembrando-nos do compromisso de Billy.

– Não podemos desapontar o Billy, podemos, companheiros? Não quando ele está prestes a dar a sua primeira trepada. E deverá ser uma festinha agradável a de hoje à noite, se conseguirmos levá-la a cabo; digamos que talvez seja a minha festa de despedida.

Era o fim de semana em que a Chefona estava de serviço – não quis perder a volta dele – e ela resolveu que seria melhor que tivéssemos uma sessão para decidir uma coisa. Na sessão, tentou mais uma vez apresentar a sua sugestão de uma medida mais drástica, insistindo com o médico para que considerasse aquela atitude "antes que seja tarde demais para ajudarmos o paciente". Mas McMurphy deu tantas piscadelas, bocejos e arrotos enquanto ela falava, que finalmente se calou e, quando o fez, ele espantou o médico e os outros pacientes, ao concordar com tudo que ela dissera.

Sabe, pode ser que ela esteja certa, doutor; olhe só o bem que aqueles míseros Volts me fizeram. Talvez se dobrássemos a carga eu poderia apanhar o canal oito, como o Martini; estou cansado de ficar na cama só tendo alucinações quanto ao canal quatro, com notícias e a previsão do tempo.

A enfermeira pigarreou tentando recuperar o controle da sessão.

– Eu não estava sugerindo que consideremos mais choques, Sr. McMurphy.

– Senhora?

– Eu estava sugerindo que considerássemos uma operação. Realmente muito mais simples. E temos históricos de sucessos anteriores, de eliminação de tendências agressivas em certos casos hostis…

– Hostil? Dona, eu sou manso como um filhotinho de cachorro. Não dei pontapés em nenhum ajudante durante quase duas semanas. Não houve nenhum motivo para querer me mandar entrar na faca, houve?

Ela conservou o sorriso, suplicando-lhe que visse como era simpática.

– Randle, não há nenhuma faca nem corte envolv…

– Além disso – continuou ele – não adiantaria nada mandar cortá-los; tenho um outro par na minha mesinha de cabeceira.

– Um outro… par?

– Um tão grande como uma bola de beisebol, doutor.

– Sr. McMurphy! – O sorriso dela se partiu como vidro, quando ela percebeu que estava sendo ridicularizada.

– Mas o outro é de tamanho suficiente para ser considerado normal.

Ele continuou assim até a hora em que estávamos prontos para ir para a cama. Naquela altura, havia um ar festivo de quermesse na enfermaria, à medida que os homens cochichavam sobre a possibilidade de termos uma festa se a garota trouxesse bebidas. Todos procuravam o olhar de Billy e sorriam e piscavam para ele cada vez que o encontravam. E quando nos enfileiramos para receber os remédios, McMurphy se aproximou e perguntou à enfermeirinha com o crucifixo e a marca de nascença, se ela poderia conseguir uns comprimidos de vitaminas. Ela olhou para ele surpreendida e disse que não via nenhuma razão em contrário, e lhe deu uns comprimidos do tamanho de ovos de passarinho. Ele os enfiou no bolso.

– Não vai tomá-los? – perguntou ela.

– Eu? Por Deus, não, eu não preciso de vitaminas. Só estava pegando aqui para o Billy. Ele está com uma aparência extenuada ultimamente… deve ser sangue cansado.

– Então… por que não dá a Billy?

– Vou dar, querida, vou dar, mas pensei em esperar até a meia-noite, mais ou menos, quando ele vai ter mais necessidade delas – e saiu andando para o dormitório com o braço dobrado em volta do pescoço enrubescido de Billy, dando uma piscadela para Harding, e uma cutucada nas minhas costelas, com o polegar, quando passou por nós, e deixou a enfermeira atrás dele, na Sala das Enfermeiras, de olhos arregalados, derramando água sobre os pés.

É preciso que se diga algo mais a respeito de Billy: embora tivesse rugas no rosto e alguns fios cinzentos no cabelo, ainda parecia um garoto – um garoto de orelhas de abano, o rosto sardento, dentuço, descalço e assoviando, como num daqueles calendários, arrastando uma fieira cheia de peixes, na poeira, atrás dele – e no entanto, ele não era nada disso. A gente sempre se surpreendia ao descobrir, olhando para ele mais de perto, quando ele estava de pé junto de um dos outros homens, que era tão alto quanto todo mundo, e que não tinha orelhas de abano, nem sardas, nem era dentuço, e tinha, na realidade, trinta e tantos anos.

Eu só o ouvi dizer a idade uma vez, para falar a verdade, estava escutando às escondidas, quando ele falava com a mãe lá embaixo na recepção. Ela era recepcionista lá, uma senhora robusta, bem-apessoada, com o cabelo passando de louro para azul, depois para preto e de volta ao louro, a cada mês, uma vizinha da Chefona, e pelo que eu ouvira dizer, grande amiga pessoal dela. Toda vez que saíamos para alguma coisa, Billy era sempre obrigado a parar e inclinar uma bochecha enrubescida sobre a mesa, para que ela lhe desse um beijo. Aquilo embaraçava tanto a nós quanto a ele, e por essa razão ninguém nunca zombou dele por causa daquilo, nem mesmo McMurphy.

Uma tarde, não me lembro há quanto tempo, paramos a caminho de alguma atividade e nos sentamos por ali nos grandes sofás forrados de plástico na recepção ou lá fora, sob o sol das duas horas, enquanto um dos ajudantes usava o telefone para falar com o seu bookmaker de apostas, e a mãe de Billy aproveitou a oportunidade para largar o trabalho, sair de trás da mesa, pegar a mão do seu menino e levá-lo lá para fora, para sentar-se na grama perto de onde eu estava. Ela se sentou toda tesa ali na grama, numa posição forçada, com as pernas curtas e gordas, cobertas pelas meias, estendidas à sua frente, fazendo-me lembrar a cor da pele de salsicha; Billy deitou-se a seu lado e pôs a cabeça no colo dela e deixou que ela lhe coçasse a orelha com uma flor de dente-de-leão. Billy falava sobre um dia casar-se e ir para a universidade. A mãe dele lhe fez cócegas com a flor e riu daquelas idiotices.

– Querido, você ainda tem muito tempo para essas coisas. Tem a vida inteira pela frente.

– Mãe, estou com tr-tr-trinta e um anos!

Ela riu e acariciou a orelha dele com a planta.

Querido, eu pareço ser a mãe de um homem de meia-idade?

Ela franziu o nariz, abriu os lábios para ele e fez um barulho de uma espécie de beijo molhado com a língua no ar, e tive de admitir que não parecia mesmo mãe dele. Eu mesmo não acreditei que ele pudesse ter 31 anos, até mais tarde, quando pude me aproximar o suficiente para dar uma olhada na data de nascimento na tira do pulso dele.

À meia-noite, quando George, o outro ajudante e a enfermeira deixaram o serviço, e o velho negro, Sr. Turkle, entrou para o seu turno, McMurphy e Billy já estavam de pé, tomando vitaminas, imaginei. Saí da cama, vesti um robe e fui até a enfermaria, onde eles conversavam com o Sr. Turkle. Harding, Scanlon, Sefelt e alguns outros também saíram. McMurphy dizia ao Sr. Turkle o que fazer se a garota realmente viesse – na realidade, lembrando-lhe apenas, porque parecia que já haviam combinado tudo com antecedência há umas duas semanas. McMurphy disse que a coisa a fazer era deixar a garota entrar pela janela, em vez de correr o risco de fazê-la passar pela recepção, onde poderia encontrar a supervisora da noite. E então destrancar a Sala do Isolamento. Sim, essa não é uma boa cabana para amantes em lua-de-mel? Um bocado reservado. (- Ahhh, McMurphy – Billy continuava tentando dizer.) E manter as luzes apagadas. Assim, a supervisora não poderia ver nada lá dentro. E fechar a porta dos dormitórios e não acordar todos os babacas dos Crônicos. E não fazer barulho, ficar em silêncio; não queremos perturbá-los.

– Ah, vam'bora M-M-Mack – disse Billy.

O Sr. Turkle assentia e balançava a cabeça, parecendo estar meio adormecido. Quando McMurphy disse "acho que isso cobre bem todos os aspectos", o Sr. Turkle respondeu "não… não in-teiramente" e sentou-se ali sorrindo no uniforme branco, com a cabeça calva amarela flutuando na extremidade do pescoço como um balão numa vara.

– Ora, vamos, Turkle. Vai valer a pena. Ela deve vir trazendo umas duas garrafas.

chegando mais perto – disse o Sr. Turkle. A cabeça oscilou e balançou. Ele agia como se mal fosse capaz de se manter acordado. Eu tinha ouvido dizer que ele trabalhava em outro emprego durante o dia, numa pista de corridas. McMurphy virou-se para Billy.

– Turkle está se fazendo de difícil para ver se leva mais algum, Billy. Quanto é que vale pra você, a primeira trepada na sua vida?

Antes que Billy conseguisse parar de gaguejar e responder, o Sr. Turkle sacudiu a cabeça.

– Não é isso. Não é dinheiro. Ela vai trazer mais que uma garrafa, não vai, essa coisinha? Vocês vão dividir mais que uma garrafa, não vão? – Ele sorriu para todos a sua volta.

Billy quase explodiu, tentando gaguejar alguma coisa, Candy não, a sua garota, não! McMurphy o puxou de lado e lhe disse que não se preocupasse com a castidade da sua garota – Turkle provavelmente estaria tão bêbado e sonolento quando Billy tivesse acabado, que o velho urso não seria capaz nem de enfiar uma cenoura numa pia.

A garota estava atrasada de novo. Nós sentamos na enfermaria, vestidos em nossos robes, e ficamos ouvindo McMurphy e o Sr. Turkle contarem histórias do Exército, enquanto eles passavam um dos cigarros do Sr. Turkle de um para o outro, fumando de um jeito esquisito, prendendo a fumaça quando tragavam até os olhos se arregalarem. Uma vez Harding perguntou que espécie de cigarro estavam fumando que tinha um cheiro tão provocante, e o Sr. Turkle disse numa voz aguda, prendendo o fôlego: – Ora, um cigarro comum. É sim. Quem quer uma tragada?

Billy foi ficando cada vez mais nervoso, com medo de que a garota pudesse não aparecer, e com medo de que aparecesse. Ficava perguntando por que não íamos todos para a cama, em vez de ficarmos sentados ali fora no escuro e no frio, como cachorros esperando na cozinha pelos restos da mesa, e nós apenas sorrimos para ele. Nenhum de nós estava com vontade de ir para a cama; não estava fazendo frio nenhum, e era agradável se descontrair ali na semi-obscuridade e ouvir McMurphy e o Sr. Turkle contarem histórias. Ninguém parecia estar com sono, nem mesmo muito preocupado porque já fosse mais de duas horas e a garota ainda não tivesse aparecido. Turkle disse que talvez ela estivesse atrasada porque a ala estava tão escura que ela possivelmente não conseguia ver qual era aquela para onde devia vir, e McMurphy disse que aquilo era óbvio, assim os dois saíram correndo para cima e para baixo pelos corredores, acendendo todas as luzes do lugar. Estavam até a ponto de acender as luzes grandes, de acordar todos no dormitório, quando Harding disse que aquilo simplesmente tiraria todos os outros homens da cama para partilhar as coisas. Eles concordaram, e então se decidiram por todas as luzes do consultório do médico.

Tão logo iluminaram a ala como se fosse dia claro, ouviu-se uma batida na janela. Murphy correu para lá e encostou o rosto no vidro cobrindo os lados com as mãos para poder enxergar. Virou-se e sorriu para nós.

– Ela anda que é uma beleza, à noite – disse ele. Segurou Billy pelo pulso e o arrastou até a janela.

– Deixe-a entrar, Turkle. Vamos soltar esse garanhão maluco em cima dela.

– Olhe, McM-M-M-Murphy, espere – Billy empaca como uma mula.

– Não comece a me mamama-murphar, Billy. Agora é tarde demais para recuar. Você vai conseguir. Vou dizer-lhe uma coisa: aposto cinco dólares como você vai derrubar aquela mulher; tá bem? Para a janela, Turkle.

Havia duas garotas na escuridão, Candy e a outra que não havia aparecido para a pescaria.

– Cachorro-quente – disse Turkle, ajudando-as a entrar – bastante para todo mundo.

Todos nós fomos ajudar: elas tiveram de levantar as saias justas até as coxas para passar pela janela. Candy disse:

– McMurphy, seu maldito – e tentou atirar os braços em volta do pescoço dele com tanta violência que quase quebrou as garrafas que segurava nas mãos, pelo gargalo. Estava cambaleando um bocado, e o cabelo soltava-se do penteado que havia feito no alto da cabeça. Achei que ela ficava melhor com ele puxado para trás, como estivera no dia da pescaria. Ela acenou para a outra garota com uma garrafa, depois que entrou.

– A Sandy veio junto. Ela simplesmente saiu e largou aquele louco de Beaverton com quem se casou, não é um barato?

A garota entrou pela janela, beijou McMurphy, e disse:

– Alô, Mack. Sinto muito não ter aparecido. Mas aquilo já acabou. A gente só agüenta gracinhas como ratos brancos na fronha, vermes no creme e sapos no soutien até um certo ponto. – Sacudiu a cabeça e abanou a mão na sua frente como se estivesse afastando para longe a lembrança do marido que gostava de bichos.

– Criiisto, que doido.

As duas estavam de saia e de suéter, meias de nylon e sem sapatos, os rostos corados e risonhos.

– Tivemos de ficar parando para perguntar o caminho – explicou Candy – em todos os bares por onde passávamos.

Sandy se virava olhando em volta com os olhos arregalados.

– Puxa vida, Candy, onde é que estamos agora? Isso aqui é verdade? Estamos num hospício? Homem!

– Era maior que Candy e talvez uns cinco anos mais velha, tinha tentado prender o cabelo castanho-avermelhado num coque elegante na nuca, mas ele insistia em cair sobre as largas maçãs do rosto, e ela parecia uma tratadora de vacas tentando se fazer passar por uma dama da sociedade. Os ombros, os seios e os quadris eram grandes demais, e o sorriso muito largo e franco para que ela fosse considerada uma beleza, mas era bonitinha e saudável, e tinha um longo dedo enfiado na alça de uma garrafa de um galão de vinho tinto, que balançava ao lado do seu corpo como uma bolsa.

– Como, Candy, como é que essas coisas incríveis acontecem conosco? – Olhou em volta mais uma vez e parou, com os pés descalços separados, rindo.

– Essas coisas não acontecem – disse Harding, com ar solene, para a garota. – Essas coisas são fantasia com que a gente fica sonhando acordado, de noite, e depois fica com medo de contar para o analista. Você não está aqui realmente. Esse vinho não é real; nada disto existe. Agora vamos continuar, partindo daqui.

– Oi, Billy – disse Candy.

– Olhe para aquela coisa – disse Turkle.

Candy estendeu uma das garrafas desajeitadamente para Billy.

– Trouxe um presente para você.

– Essas coisas são sonhos acordados – disse Harding.

– Puxa vida! – disse Sandy. – Onde é que nos viemos meter?

– Shhh – disse Scanlon e olhou em volta, zangado.

– Vocês vão acordar esses outros miseráveis, falando alto desse jeito.

– Que é que há, zangadinho? – Sandy riu, começando a se virar de novo. – Está com medo que não chegue pra todos?

– Sandy, eu devia ter imaginado que você ia trazer essa droga desse vinho barato.

– Caramba! – Ela parou o giro que dava para olhar para mim. – Olha só esse aqui, Candy. Um Golias… fii-fii-fiiúú.

– Que barato - comentou o Sr. Turkle e trancou a janela de novo.

Estávamos todos num grupinho meio desajeitado no meio da enfermaria, olhando uns para os outros, dizendo coisas só porque ninguém sabia ainda o que fazer – nunca havíamos enfrentado uma situação como aquela

– e não sei quando aquela confusão excitada e inquieta de conversa e de riso e de ficar rodando pela enfermaria teria parado se aquela porta da ala não tivesse estalado com o girar de uma chave lá no fundo do corredor. O ruído fez todo mundo saltar como se um alarma de ladrões tivesse começado a tocar.

– Oh, Senhor meus Deus! – disse Turkle, batendo com a mão no alto da careca. – É a supervisora, vai me botar pra fora com um pontapé na bunda.

Todos nós corremos para o banheiro, apagamos a luz e ficamos no escuro, ouvindo a respiração uns dos outros. Podíamos ouvir a supervisora andando pela enfermaria, chamando o Sr. Turkle num murmúrio alto, meio assustado. A voz dela estava baixa e preocupada, subindo de tom no final, quando chamava:

– Sr. Turkle? Se – nhor Turkle?

– Diabo, onde é que ele se meteu? – murmurou McMurphy. – Por que não responde?

– Não se preocupe – disse Scanlon. – Ela não vai procurar no banheiro.

– Mas por que não responde? Vai ver que ficou alto demais.

Cara, de quem é que você está falando? Não fico alto demais com uma porcariazinha como aquela. – Era a voz do Sr. Turkle, em algum lugar na escuridão, ali no banheiro, conosco.

– Jesus, Turkle, que é que você está fazendo aqui? – McMurphy tentava falar com severidade e prender o riso ao mesmo tempo. – Saia já daqui e veja o que ela quer. Que é que ela vai pensar se não encontrar você?

– Nosso fim está próximo – disse Harding, sentando. – Que Alá seja misericordioso.

Turkle abriu a porta, esgueirou-se para fora e foi encontrá-la no corredor. Ela viera ver por que todas as luzes estavam acesas. Qual o motivo para acender todas as luzes da ala? Turkle disse que todas as luzes não estavam acesas; que as luzes do dormitório estavam apagadas e as do banheiro também. Ela disse que aquilo não era desculpa com relação às outras luzes; e insistia na razão para todas aquelas luzes. Turkle não conseguiu inventar uma desculpa plausível e, durante a longa pausa, ouvi a garrafa ir passando de um para o outro, perto de mim, no escuro. Lá fora no corredor ela tornou a lhe fazer a mesma pergunta, e Turkle lhe disse que, bom, estava só dando uma limpeza, inspecionando tudo. Ela quis saber, então, por que o banheiro, o lugar que o seu trabalho o obrigava a manter limpo, era o único lugar às escuras? E a garrafa circulou de novo, enquanto esperávamos para saber o que ele responderia. Chegou as minhas mãos e tomei um gole. Sentia que estava precisando. Pude ouvir Turkle engolindo em seco lá fora no corredor, fazendo huuumm e ahh, procurando alguma coisa para dizer.

– Deu o branco nele – cochichou McMurphy. – Alguém vai ter de sair para ajudá-lo.

Ouvi uma descarga de latrina ser dada atrás de mim, e a porta se abriu e Harding foi iluminado pela luz do corredor enquanto ia saindo, levantando as calças do pijama. Ouvi a supervisora arquejar de susto ao vê-lo e ele lhe pediu que o desculpasse, mas que não a tinha visto, uma vez que estava tão escuro.

– Não está escuro.

– Quis dizer, no banheiro. Eu sempre apago as luzes para que meus intestinos funcionem melhor. Esses espelhos, compreende; quando a luz está acesa, os espelhos parecem estar sentados ali me julgando, para aplicar uma punição se tudo não sair direito.

– Mas o ajudante Turkle disse que estava fazendo limpeza aí dentro…

– E estava fazendo mesmo um bom trabalho,… considerando as restrições que lhe são impostas pela escuridão. Gostaria de ver? Venha comigo.

Harding abriu um pouco a porta, e uma faixa de luz correu pelo chão de ladrilhos do banheiro. Vi, de relance a supervisora recuar, dizendo que teria de recusar o oferecimento dele, pois tinha que fazer outras rondas. Ouvi a porta da ala ser destrancada de novo, lá no fim do corredor, e ela sair. Harding gritou-lhe que voltasse para uma outra visita, e todo mundo saiu depressa, apertou a mão dele e deu palmadinhas nas suas costas pela maneira brilhante como tinha resolvido tudo.

Ficamos ali no corredor, e o vinho tornou a circular. Sefelt disse que preferiria tomar aquela vodca se tivesse alguma coisa para misturar com ela. Perguntou ao Sr. Turkle se não havia alguma coisa na enfermaria para misturar na vodca e Turkle disse que nada havia a não ser água. Fredrickson perguntou que tal o xarope para tosse? – Eles me dão um pouco de vez em quando, de um vidro de meio galão do depósito de remédios. O gosto não é ruim. Você tem a chave de lá, Turkle?

Turkle disse que a supervisora era a única pessoa que tinha uma chave de lá durante a noite, mas McMurphy o convenceu a nos deixar tentar arrombar a porta. Turkle sorriu e concordou preguiçosamente. Enquanto ele e McMurphy trabalhavam em cima da fechadura com clips para papel, as garotas e o resto de nós se divertia na Sala das Enfermeiras abrindo os arquivos e lendo os dossiês.

– Olhem aqui – disse Scanlon, sacudindo uma das pastas. – Só pra falar em minúcias. Eles têm até o meu boletim do primário aqui. Aahh, que notas horríveis, simplesmente horríveis.

Billy e a sua namorada examinavam a pasta dele. Ela recuou para examiná-lo.

– Todas essas coisas, Billy? Não sei o quê, frênico e ps… psicopata… Você não parece que tem todas essas coisas.

A outra garota tinha aberto uma das gavetas de equipamento e estava achando suspeito o fato das enfermeiras precisarem de todos aqueles sacos de água quente, um milhão deles, e Harding estava sentado na mesa da Chefona, sacudindo a cabeça com desaprovação para o negócio todo.

McMurphy e Turkle conseguiram abrir a porta do depósito de remédios e trouxeram da geladeira uma garrafa de um líquido espesso cor de cereja. McMurphy virou a garrafa para a luz e leu o rótulo em voz alta.

– "Sabor artificial, cor, ácido cítrico. Setenta por cento de materiais neutros", isso deve ser água, "e vinte por cento de álcool", isto é bom, "dez por cento de codeína (Advertência: Narcótico. Pode Provocar Dependência)." – Ele destampou a garrafa e tomou um gole, fechando os olhos. Passou a língua pelos dentes, tomou um outro gole e leu o rótulo de novo. – Bem – disse ele e bateu com os dentes como se tivessem acabado de ser afiados – se abrandarmos isso aqui com um pouquinho de vodca, acho que vai ficar com. Como é que estamos de gelo, Turkle, meu velho?

Misturado nos copinhos de papel com vodca e o vinho-do-porto, o xarope tinha um gosto parecido com o de uma bebida de garotos, mas batia como o vinho de fruto de cacto que costumávamos tomar em The Dalles, frio e suave na garganta e quente e furioso logo que descia. Apagamos as luzes na enfermaria e nos sentamos em círculos para beber. Viramos os primeiros dois copos como se estivéssemos tomando remédio, sérios e silenciosos, e nos entreolhando para ver se ia matar alguém. McMurphy e Turkle alternavam o tempo todo, passando da bebida para os cigarros de Turkle e rindo enquanto discutiam como seria uma trepada com aquela enfermeirinha, da marca de nascença, que saía à meia-noite.

– Eu ficaria com medo – disse Turkle – que ela viesse pra cima de mim com aquela cruzona pendurada naquela corrente. Não seria uma puta duma brochada?

– Eu ficaria com medo – disse McMurphy – de que bem na hora da minha gozada, ela me enfiasse o termômetro por trás e me tomasse a temperatura!

Aquilo fez com que todo mundo caísse na gargalhada. Harding parou de rir apenas o tempo suficiente para continuar com a brincadeira.

– Ou pior ainda – disse ele. – Só ficasse ali deitada debaixo de você com uma terrível concentração no rosto, e dissesse… essa seria de amargar… e dissesse qual era o seu pulso!

– Ah, não… essa não…

– Ou pior ainda, só ficasse deitada ali tentando calcular o seu pulso e a sua temperatura… sem instrumentos!

– Ah, essa seria demais…

Rimos até rolarmos pelos sofás e pelas cadeiras, sem fôlego e com os olhos cheios de lágrimas. As garotas estavam tão moles de tanto rir que tiveram de tentar duas ou três vezes até conseguirem levantar-se.

– Eu tenho que… ir fazer pipi – disse a grandona, e saiu acenando e rindo em direção ao banheiro, errou a porta, entrou cambaleando no dormitório enquanto todos nós fazíamos "psiu" uns para os outros, com os dedos contra os lábios, esperando, até que ela deu um gritinho e ouvimos o velho Coronel Matterson, rugir "O travesseiro é… um cavalo" e sair correndo do dormitório, bem atrás dela, na sua cadeira de rodas.

Sefelt rodou o Coronel de volta para o dormitório e mostrou a ela, pessoalmente, onde ficava o banheiro; dis-se-lhe que geralmente só era usado por homens, mas que ele ficaria na porta enquanto ela estivesse ali dentro e montaria guarda contra intromissões na privacidade dela, jurando que a defenderia contra todos os assaltantes. Ela lhe agradeceu solenemente, apertou-lhe a mão, e eles trocaram uma saudação. Enquanto ela estava lá dentro, lá veio o Coronel saindo novamente do dormitório na cadeira de rodas, e Sefelt teve um bocado de trabalho para impedi-lo de entrar no banheiro. Quando a garota saiu ele estava tentando aparar os ataques da cadeira de rodas com o pé, enquanto assistíamos à confusão, estimulando com vivas ora um, ora outro. A garota ajudou Sefelt a pôr o Coronel de volta na cama e então os dois saíram valsando pelo corredor ao som de uma música que ninguém ouvia.

Harding bebeu, observou e sacudiu a cabeça.

– Isso não está acontecendo. É tudo uma mistura de Kafka com Mark Twain e Martini.

McMurphy e Turkle começaram a ficar preocupados com o fato de ainda haver luz em demasia. Assim, levantaram-se e saíram pelo corredor apagando tudo que brilhava, até as luzes pequenas, que ficavam acesas durante a noite, na altura do joelho, até que ficou tudo escuro como breu. Turkle tirou as lanternas e brincamos de pegar, correndo pelo corredor, para cima e para baixo, com as cadeiras de rodas do estoque, nos divertimos à grande até que ouvimos um dos gritos de convulsão de Sefelt e fomos encontrá-lo esparramado se contorcendo ao lado daquela garota grande, a Sandy. Ela estava sentada no chão, alisando a saia, olhando para Sefelt.

– Nunca tive uma experiência como esta – disse num tom baixo e respeitoso.

Fredrickson se ajoelhou ao lado do amigo e lhe enfiou uma carteira de notas entre os dentes, para impedir que mordesse a língua, e o ajudou a abotoar as calças. – Você está bem, Seef? Seef?

Sefelt não abriu os olhos, mas levantou uma mão frouxa e tirou a carteira da boca. Sorriu através da baba.

– Estou bem – disse ele. – Me dêem um remédio e me soltem de novo.

– Você realmente precisa de algum remédio, Seef?

– Remédio.

– Remédio – disse Fredrickson por sobre o ombro, ainda ajoelhado.

– Remédio – repetiu Harding e saiu com a lanterna para o depósito de remédios. Sandy o observou ir com os olhos vidrados. Estava sentada ao lado de Sefelt, acariciando-lhe a cabeça, atordoada.

– Talvez seja melhor trazer um pouco para mim também – gritou numa voz bêbada para Harding. – Nunca tive uma experiência que se parecesse de longe com isso.

No fundo do corredor ouvimos um ruído de vidro quebrado e Harding voltou com uma dose dupla de comprimidos; ele os deixou cair sobre Sefelt e a mulher como se estivesse arremessando torrões de terra sobre uma sepultura. Ergueu os olhos para o teto.

– Deus todo-misericordioso, tome esses dois pobres pecadores entre seus braços. E mantenha as portas abertas para a chegada do resto de nós porque está testemunhando o fim, o fim absoluto, irrevogável e fantástico. Eu finalmente me dei conta do que está acontecendo. É a nossa última jogada. Estamos condenados daqui por diante. Temos de levar a nossa coragem ao ponto máximo e enfrentar o nosso destino iminente. Nós seremos, todos nós, fuzilados ao amanhecer. Cem laxantes, por cabeça. A Srta. Ratched vai nos enfileirar contra a parede onde receberemos a terrível carga de armas de fogo que ela carregou com Miltwns! Thorazines! Libriuns! Stelazines! e com um aceno da sua espada, blum!, ela nos tranqüilizará por completo, pondo-nos para fora da existência.

Ele cambaleou contra a parede e escorregou para o chão, os comprimidos saltando de suas mãos em todas as direções como piolhos vermelhos, verdes e laranjas.

– Amém. – Disse e fechou os olhos.

A garota no chão alisou a saia sobre as pernas longas e eficientes, olhou para Sefelt ainda mostrando os dentes e se contorcendo sob as luzes, ao lado dela, e disse:

– Nunca na minha vida tive uma experiência que se aproximasse nem da metade dessa.


O discurso de Harding, se não conseguiu tornar as pessoas sóbrias, pelo menos fez com que tomassem consciência do que estavam fazendo. A noite estava avançando, e era preciso pensar um pouco na chegada do pessoal da manhã. Billy Bibbit e a sua garota comentaram que eram mais de quatro horas, e que se ninguém se importasse eles pediriam ao Sr. Turkle para destrancar a Sala do Isolamento. Saíram sob um arco de focos de luz de lanternas e nós fomos para a enfermaria para ver o que podíamos decidir quanto à limpeza. Turkle estava quase desmaiando quando voltou da Sala do Isolamento e tivemos de empurrá-lo para a Sala de Plantão numa cadeira de rodas.

Enquanto eu ia andando atrás deles, de repente me ocorreu, assim como uma espécie de surpresa, que eu estava bêbado, realmente bêbado, entusiasmado, sorridente e cambaleando de bêbado, pela primeira vez desde o Exército, bêbado junto com meia dúzia de outros caras e duas garotas – bem dentro da ala da Chefona! Bêbado e correndo e rindo e andando com mulheres exatamente no centro da mais poderosa fortaleza da Liga! Pensei no que tínhamos estado fazendo desde o princípio da noite e era quase impossível acreditar. Eu tinha de ficar lembrando a mim mesmo que realmente havia acontecido, que nós tínhamos feito com que acontecesse. Tínhamos simplesmente destrancado uma janela e permitido que aquilo entrasse, como se deixa entrar o ar fresco. Talvez a Liga não fosse toda-poderosa. Que é que nos impedia de fazer aquilo de novo, agora que estávamos vendo que podíamos? Ou que nos impedisse de fazer outras coisas que quiséssemos? Senti-me tão feliz, pensando nisso, que dei um grito e saltei sobre McMurphy e a garota que caminhavam juntos na minha frente, levantei os dois, um em cada braço, e corri por todo o caminho até a enfermaria com eles gritando e esperneando como crianças. Sentia-me bem a esse ponto.

O Coronel Matterson se levantou novamente, com os olhos brilhantes, cheio de lições, e Scanlon o empurrou de volta para a cama. Sefelt, Martini e Fredrickson disseram que era melhor irem dormir também. McMurphy, eu, Harding, a garota e o Sr. Turkle ficamos para acabar com o xarope e decidir o que iríamos fazer quanto à bagunça em que estava a ala. Harding e eu agíamos como se fôssemos os únicos realmente muito preocupados com aquilo; McMurphy e a garota apenas sentaram ali bebericando o xarope e sorrindo um para o outro e alisando-se com as mãos nas sombras; o Sr. Turkle volta e meia adormecia. Harding fez o melhor que pôde tentando fazer com que eles se preocupassem.

– Vocês todos parecem não compreender a complexidade da situação – disse ele.

– Besteira – disse McMurphy.

Harding bateu na mesa. – McMurphy, Turkle, vocês não se dão conta do que aconteceu aqui esta noite. Numa enfermaria de doentes mentais. A ala da Srta. Ratched! As repercussões serão… devastadoras!

McMurphy mordeu o lóbulo da orelha da garota. Turkle concordou com a cabeça, abriu um olho e disse:

– É verdade. Ela vai estar aqui amanhã também.

– Entretanto, eu tenho um plano – disse Harding, levantando-se. Disse que McMurphy obviamente estava bêbado demais para dominar a situação, e que uma outra pessoa teria de assumir o comando. Enquanto falava, ficou mais ereto e também mais sóbrio. Falou numa voz intensa e com uma nota de urgência, e suas mãos davam forma ao que ele dizia. Fiquei satisfeito que ele tivesse assumido o comando.

Seu plano era que devíamos amarrar Turkle e fazer com que parecesse que McMurphy o havia apanhado de surpresa por trás, que o amarrara com, ah, digamos pedaços de um lençol rasgado, e depois de conseguir as chaves, havia entrado no depósito de remédios, espalhando os remédios por todo lado e feito aquela confusão com os arquivos só para aporrinhar a enfermeira – ela acreditaria nessa parte – e então havia destrancado a grade e fugido.

McMurphy disse que parecia enredo de novela de televisão e que era tão ridículo que não podia deixar de funcionar, e cumprimentou Harding pela sua lucidez. Harding disse que o plano tinha seus méritos; manteria os outros fora da confusão com a enfermeira, Turkle continuaria no seu emprego e McMurphy fugiria da ala. Disse que McMurphy podia pedir às garotas que o levassem de carro para o Canadá ou Tijuana, ou até Nevada, se quisesse, e ficaria em perfeita segurança; a polícia nunca se esforçava muito para apanhar os fugitivos do hospital, porque 90% deles sempre apareciam de volta poucos dias depois, sem dinheiro, bêbados e procurando aquela cama e mesa gratuitos. Conversamos sobre aquilo durante algum tempo e acabamos com o xarope. Finalmente falamos até esgotar o assunto e depois ficamos em silêncio. Harding tornou a sentar-se.

McMurphy tirou o braço dos ombros da garota e olhou de mim para Harding, pensando, novamente com aquela expressão estranha, cansada, em seu rosto. E nós, perguntou, por que não nos levantávamos apanhávamos as roupas e íamos com ele?

– Não estou pronto ainda, Mack, – disse-lhe Harding.

– Então por que acha que eu estou?

Harding olhou para ele em silêncio por algum tempo, sorriu, depois disse:

– Não, você não compreende. Estarei pronto dentro de algumas semanas. Mas quero fazê-lo sozinho, por mim mesmo, sair por aquela porta da frente, com todas as formalidades e complicações tradicionais. Quero que a minha mulher esteja aqui com um carro numa hora determinada para me buscar. Quero que eles saibam que fui capas de fazê-lo dessa maneira.

McMurphy assentiu.

– E você, chefe?

– Acho que estou bem. Só que não sei ainda para onde quero ir. E alguém precisa ficar aqui algumas semanas depois que você tiver ido, para garantir que as coisas não voltem para trás.

– E Billy, Sefelt, Fredrickson e os outros?

– Não posso falar por eles – disse Harding. – Ainda têm seus problemas, como todos nós. Ainda são homens doentes, de muitas maneiras. Mas pelo menos agora eles são homens doentes. Não são mais coelhos, Mack. Talvez, algum dia possam ser homens sãos. Não sei dizer.

McMurphy refletiu sobre aquilo, olhando para as costas das mãos. Tornou a olhar para Harding.

– O que é isso, Harding? O que acontece?

– Você quer dizer, tudo isto? McMurphy concordou. Harding sacudiu a cabeça.

– Não creio que eu possa dar-lhe uma resposta. Oh, eu lhe poderia dar razões freudianas em termos empolados e isso seria o máximo que poderia fazer. Mas o que você quer são as razões para as razões, e essas não sou capaz de lhe dar. Não as dos outros, pelo menos. As minhas? Culpa. Vergonha. Medo. Auto-subestimação. Muito cedo, descobri que eu era… vamos ser gentis e dizer diferente? É uma palavra melhor, mais genérica que a outra. Eu cedi à prática de certos atos que a nossa sociedade considera vergonhosos. E fiquei doente. Não foram os atos, não creio que tenham sido, foi o sentir aquele dedo indicador enorme, letal, da sociedade apontando para mim… e aquele enorme coro de milhões de vozes repetindo, "Vergonha. Vergonha. Vergonha." É essa a maneira de a sociedade lidar com alguém diferente.

– Eu sou diferente – disse McMurphy. – Por que nada disso aconteceu comigo? Tive gente me chateando, andando atrás de mim, desde que me entendo, mas… mas isso não me fez enlouquecer.

– Não, você tem razão. Não foi isso que o fez enlouquecer. Eu não estava dizendo que a minha razão é a única. Pensei durante certa época, há alguns anos, quando eu era garoto, que a punição da sociedade era a única força que levava alguém para o caminho da loucura, mas você fez com que eu reexaminasse a minha teoria. Há uma outra coisa que leva gente, gente forte como você, amigo, para esse caminho.

– Sim? Não que eu esteja admitindo que estou nesse caminho, mas o que é essa outra coisa?

– Somos nós. – Ele moveu a mão em volta de si num suave círculo branco e repetiu: – Nós.

McMurphy disse sem convicção:

– Besteira – sorriu e se levantou, pondo a garota de pé. Olhou para o relógio. – São quase cinco horas. Preciso tirar um cochilozinho antes da grande fuga. O turno do dia ainda leva mais duas horas para entrar; vamos deixar o Billy e a Candy por lá mais um pouco. Vou dar o fora por volta das seis. Sandy, querida, talvez uma hora no dormitório nos deixe mais sóbrios. Que é que acha? Temos um bocado de estrada pela frente, seja para o Canadá ou México ou qualquer outro lugar.

Turkle, Harding e eu também nos levantamos. Todo mundo ainda estava bastante tonto, muito bêbados ainda, mas um sentimento brando de tristeza havia penetrado na embriaguez. Turkle disse que tiraria McMurphy e a garota da cama dentro de uma hora.

– Me acorda também – disse Harding. – Quero ficar ali na janela com uma bala de prata na mão e perguntar: "Quem era aquele homem de máscara?" enquanto vocês vão…

– Vá pro inferno, pare com isso. Vocês dois aí, já para a cama, e não quero nunca mais ver nem pele nem cabelo de nenhum de vocês. Entenderam?

Harding sorriu e concordou com a cabeça, mas nada disse. McMurphy estendeu a mão, Harding apertou. McMurphy virou a cabeça para trás como um vaqueiro saindo de um bar e piscou o olho.

– Você pode ser o grande ganso machão dos doidos de novo, companheiro, com o grande Mack fora do seu caminho.

Ele se virou para mim e franziu o cenho.

– Não sei o que você pode ser, chefe. Você ainda tem que olhar por aí. Talvez conseguisse arranjar um emprego como bandido num bangue-bangue de TV.

– De qualquer maneira, vá com calma.

Apertei a mão dele, e fomos para o dormitório. McMurphy disse a Turkle para rasgar alguns lençóis e escolher alguns de seus nós favoritos para ser amarrado. Turkle disse que ia providenciar. Deitei na minha cama, sob a luz acinzentada do dormitório, e ouvi McMurphy e a garota se deitarem na dele. Estava sentindo-me meio mole e bem quentinho. Ouvi o Sr. Turkle abrir a porta da rouparia lá fora no corredor, suspirar bem alto e arrotar enquanto fechava a porta atrás de si. Meus olhos se acostumaram com a escuridão, e pude ver McMurphy e a garota aconchegados nos braços um do outro, se descontraindo, mais como duas crianças cansadas do que como um homem feito e uma mulher feita, juntos na cama para fazer amor.

E foi assim que os ajudantes os encontraram quando entraram para acender as luzes do dormitório, às seis e meia.

Pensei muito a respeito do que aconteceu depois, e acabei por chegar à conclusão de que estava destinado a acontecer e teria acontecido de uma forma ou de outra, dessa ou de uma outra vez, mesmo que o Sr. Turkle tivesse acordado McMurphy e as duas garotas e os tivesse posto para fora da ala como fora planejado. A Chefona teria descoberto de alguma forma o que havia acontecido, talvez só pela expressão no rosto de Billy, e teria feito a mesma coisa que fez, quer McMurphy ainda estivesse ali ou não. E Billy teria feito o que fez e McMurphy teria sabido e teria voltado.

Teria voltado, porque não poderia mais ficar sentado sem fazer nada, fora do hospital, jogando pôquer em Carson City ou em Reno ou em algum outro lugar, e deixar a Chefona dar a última cartada e ter a última jogada, como não poderia tê-la deixado fazer aquilo mesmo debaixo do seu nariz. Foi como se ele tivesse se inscrito para o jogo inteiro e não houvesse nenhum jeito de quebrar o contrato.

Mal começamos a sair da cama e a circular pela ala, a história do que havia acontecido se espalhou como fogo num rastilho de cochichos.

– Eles tinham tido uma o quê? - perguntavam os que não haviam participado da coisa.

– Uma prostituta? No dormitório? Jesus!

– Não apenas uma prostituta, disseram os outros, mas uma bebedeira geral de cair. McMurphy planejava botá-la para fora às escondidas antes que o turno do dia viesse, mas não acordou.

– Ora, que espécie de lorota está querendo nos fazer engolir?

– Não é lorota nenhuma. Cada palavra é a absoluta verdade. Eu participei.

Os que haviam participado da noite começaram a contar com uma espécie de calmo orgulho e de espanto, da maneira como as pessoas contam que viram um grande hotel se incendiar ou uma represa estourar – muito solenes e cheios de respeito, porque os mortos ainda não foram nem contados – mas à medida que iam contando, os caras iam ficando menos solenes. Toda vez que a Chefona e os seus negros incansáveis descobriam uma coisa nova, tal como a garrafa vazia de xarope ou a frota de cadeiras de rodas estacionada no fim do corredor, como cavalos vazios num carrossel de parque de diversões, trazia de volta de repente, com clareza, uma outra parte da noite para ser contada aos que não haviam participado e para ser saboreada pelos que haviam. Todo mundo tinha sido levado para a enfermaria pelos crioulos, Crônicos e Agudos também, movendo-se em círculos numa confusão excitada. Os dois velhos Vegetais estavam afundados em suas espreguiçadeiras, piscando os olhos e mastigando as gengivas. Todo mundo ainda estava de pijama e de chinelos, exceto McMurphy e a garota; ela estava completamente vestida, a não ser pelos sapatos e pelas meias de nylon, que agora estavam penduradas no seu pescoço, e ele estava com os calções pretos com baleias brancas. Estavam sentados juntos num sofá, de mãos dadas. A garota cochilou de novo, e McMurphy estava encostado nela com um sorriso sonolento e satisfeito.

Nossa preocupação solene estava cedendo lugar, a despeito de nós, à alegria e bom humor. Quando a enfermeira encontrou a pilha de comprimidos que Harding havia derramado em cima de Sefelt e da garota, começamos a engasgar para segurar o riso, e na hora em que acharam o Sr. Turkle na rouparia, e o tiraram de lá piscando e gemendo de ressaca, estávamos às gargalhadas. A Chefona enfrentou o nosso bom humor sem exibir nem um traço do seu sorrisinho fixo; cada gargalhada lhe estava sendo enfiada pela garganta abaixo, até que pareceu que ela ia explodir a qualquer minuto, como uma bexiga.

McMurphy pendurou uma perna nua sobre o braço do sofá e puxou o gorro para baixo, para impedir que a luz lhe incomodasse os olhos avermelhados, e ficou espichando para fora a língua que parecia ter sido envernizada por aquele xarope. Aparentava estar enjoado e terrivelmente cansado, e pressionava as mãos fechadas contra as têmporas, bocejando, mas, por pior que se parecesse sentir, ainda mantinha o sorriso, e uma ou duas vezes chegou até a dar gargalhadas diante de algumas das coisas que a enfermeira ia descobrindo.

Quando a enfermeira entrou para telefonar para o edifício central para comunicar a demissão do Sr. Turkle, Turkle e Sandy aproveitaram para destrancar a grade, dar até logo para todo mundo e sair correndo pelo jardim, tropeçando e escorregando na grama molhada, cintilando sob o sol.

– Ele não trancou de novo – disse Harding para McMurphy. – Ande, vá. Vá atrás deles!

McMurphy gemeu e abriu um olho vermelho como um ovo choco. – Está brincando comigo? Não conseguiria nem passar a minha cabeça por aquela janela, quanto mais o meu corpo inteiro.

– Meu amigo, não creio que você compreenda.

– Harding, maldito seja você com esse seu palavrório; tudo que realmente compreendo é que ainda estou meio bêbado. E enjoado. Pra falar a verdade, acho que você também ainda está bêbado. E você, chefe, ainda está bêbado?

Eu disse que o meu nariz e o rosto estavam dormentes, se é que aquilo queria dizer alguma coisa.

McMurphy balançou a cabeça uma vez e tornou a fechar os olhos; enlaçou as mãos sobre o peito e afundou na cadeira, o queixo assentando sobre o pescoço. Estalou os lábios e sorriu como se estivesse cochilando.

Cara - disse ele – todo mundo ainda está bêbado. Harding ainda estava preocupado. Continuou dizendo que a melhor coisa que McMurphy poderia fazer era vestir-se depressa, enquanto o Anjo de Misericórdia estava lá dentro falando de novo com o médico para comunicar as atrocidades que havia descoberto, mas McMurphy afirmou que não havia razão para nervosismos; ele não estava em situação pior que antes, estava?

– Já agüentei o máximo deles. – disse ele. Harding lançou as mãos para o ar e saiu dali, predizendo o juízo final.

Um dos crioulos viu que a grade estava destrancada e a trancou, entrou na Sala das Enfermeiras para pegar o grande livro achatado, voltou passando o dedo pela lista abaixo e murmurando o nome que lia em voz alta quando avistava o homem que correspondia a ele. A lista é em ordem alfabética às avessas, para confundir as pessoas, assim ele só chegou aos bês no fim. Deu uma olhada pela enfermaria sem tirar o dedo do último nome do livro.

– Bibbit. Onde está Billy Bibbit? – Os olhos dele estavam arregalados. Estava pensando que Billy havia fugido debaixo do seu nariz e que ia entrar pelo cano. - Quem viu Billy Bibbit fugir, seus malditos malucos?

Aquilo fez com que as pessoas se lembrassem de onde Billy estava; houve novamente cochichos e risos.

O crioulo voltou para a sala, e percebemos que estava contando à enfermeira. Ela bateu com o fone no gancho e saiu pela porta, furiosa, com o crioulo nos seus calcanhares; uma mecha de cabelo se havia soltado da touca branca e caía-lhe pelo seu rosto. Estava suando entre as sobrancelhas e sob o nariz. Exigiu que lhe disséssemos para onde o fugitivo havia ido. Recebeu como resposta um coro de gargalhadas, e seus olhos percorreram os homens.

– Então? Ele não fugiu, não é? Harding, ele ainda está aqui… na ala, não está? Digam-me. Sefelt, diga-me!

Seus olhos dardejavam a cada palavra, golpeando os rostos dos homens, mas eles estavam imunes ao seu veneno. Os olhos deles enfrentavam os dela; seus sorrisos zombavam do velho sorriso confiante que ela havia perdido.

– Washington! Warren! Venham comigo fazer uma ronda.

Levantamo-nos e os seguimos quando os três saíram, destrancando o laboratório, a Sala da Banheira, o consultório do médico… Scanlon cobriu a boca com a mão nodosa e murmurou:

– Ei, não vai ser uma boa para o velho Billy. – Todos nós concordamos. – E Billy não vai ser o único que vai sofrer com a coisa, agora que pensei bem; lembram que está lá dentro?

A enfermeira chegou à porta da Sala de Isolamento no fim do corredor! Nós nos empurramos para olhar, amontoando-nos e nos apertando para espiar por cima da Chefona e dos crioulos, enquanto ela destrancava e abria a porta. Estava escuro na sala sem janela. Houve um gritinho e uma agitação no escuro e a enfermeira estendeu a mão e acendeu a luz sobre Billy e a garota que piscavam ali naquele chão acolchoado, como duas corujas num ninho. A enfermeira ignorou o rugido de gargalhadas às suas costas.

– William Bibbit! – Ela tentou tanto fazer a voz soar fria e severa. – William… Bibbit!

– Bom dia, Srta. Ratched – disse Billy, sem fazer um único gesto para se levantar e abotoar o pijama. Ele segurou a mão da garota e sorriu. – Esta é a Candy.

A língua da enfermeira estalou na sua garganta ossuda.

– Oh, Billy, Billy Billy… estou tão envergonhada por você.

Billy não estava suficientemente acordado para corresponder muito à vergonha dela, e a garota mexia-se à sua volta, olhando debaixo do colchão, procurando as meias, movendo-se devagar e parecendo à vontade e disposta depois de ter dormido. De vez em quando ela parava o seu tatear sonhador, olhava para cima e sorria para o vulto gelado da enfermaria de pé ali, com os braços cruzados. Verificava então se o suéter estava abotoado e continuava a puxar a meia, presa entre o colchão e o piso de ladrilhos. Os dois se moviam como gatos gordos, saciados de leite morno, preguiçosamente sob o sol; imaginei que ambos também estivessem bem bêbados.

– Oh, Billy – disse a enfermeira, como se estivesse tão desapontada que fosse capaz de cair em prantos. – Uma mulher como essa. Uma reles! Vagabunda! Pintada…

– Cortesã? – sugeriu Harding. – Jezebel? – A enfermeira voltou-se e tentou detê-lo com os olhos, mas ele continuou. – Jezebel, não? Não? – Ele coçou a cabeça e continuou: – Que tal Salomé? Ela é notoriamente má. Talvez "zinha" seja a palavra que quer. Bem, só estou tentando ajudar.

Ela tornou a voltar-se para Billy. Ele se estava concentrando para ficar de pé. Ficou de joelhos, o traseiro no ar como uma vaca se levantando, então tomou impulso com uma das mãos, pôs um pé, depois o outro e se endireitou. Parecia satisfeito com o sucesso obtido, como se não tivesse nem se apercebido de nossas pessoas amontoadas ali na porta, mexendo com ele e o estimulando.

A gritaria e o riso redemoinhavam em torno da enfermeira. Seus olhos passaram de Billy e a garota para o nosso grupo. O rosto esmaltado de plástico se estava desmantelando. Ela fechou ós olhos e se esforçou para deter o seu tremor, concentrando-se. Sabia que aquele era o momento, estava acuada contra a parede. Quando seus olhos se abriram novamente, estavam muito pequenos e calmos.

– O que me preocupa, Billy – pude ouvir a mudança no tom de sua voz – é como a sua pobre mãe vai receber isso.

Ela obteve a reação que procurava. Billy se contraiu e levou a mão ao rosto como se tivesse sido queimado com ácido.

– A Sra. Bibbit sempre teve tanto orgulho da sua discrição. Eu sei que isto vai perturbá-la profundamente. Sabe como ela fica quando está perturbada. Billy, você sabe como a pobre coitada pode ficar doente. Ela é muito sensível. Especialmente no que diz respeito ao seu filho. Ela sempre falou de você com tanto orgulho. Ela sem…

– Nuh! nuh! – A boca de Billy se esforçava. Ele sacudiu a cabeça, suplicando-lhe. – p-p-precisa!

– Billy, Billy, meu pobre Billy – disse ela. – Sua mãe e eu somos velhas amigas.

– Não! – gritou ele. A sua voz arranhou as paredes brancas, nuas da Sala de Isolamento. Levantou o queixo de forma que ficou gritando para a luz de lua no teto. – N – n – não!

Tínhamos parado de rir. Observamos Billy se encolher no chão, a cabeça para trás, os joelhos para frente. Esfregou a mão na perna da calça verde. Tremia de pânico, como uma criança a quem se prometeu uma surra tão logo se consiga uma vara. A enfermeira tocou o ombro dele para consolá-lo. O toque o sacudiu como uma pancada.

– Billy, não quero que ela acredite numa coisa dessas de você… mas que é que eu devo pensar?

– Nah – nah – não c-conte, S-S-S-Senhorita Ratched. Nah-nah-nah…

– Billy, tenho de contar. Detesto ter de acreditar que é capaz de um comportamento destes, mas, francamente, o que mais posso pensar? Encontro você sozinho, num colchão com esse tipo de mulher.

– Não!! Eu n-n-não. Eu estava – a mão dele subiu para o rosto de novo e ficou grudada ali. – Ela fez.

– Billy, essa moça não poderia ter trazido você para cá à força. – Ela sacudiu a cabeça. – Compreenda, eu gostaria de acreditar numa outra coisa… pelo bem da sua pobre mãe.

A mão desceu à força do rosto dele deixando marcas vermelhas.

– Ela f-fez. – Ele olhou em volta. – E McMurphy! Ele fez. E Harding! E o-o-o- resto todo! Eles im-im-implicaram comigo, me chamaram de coisas.

Agora o rosto dele estava preso ao dela. Não olhava nem para um lado, nem para outro, só em frente para o rosto dela, como se ali houvesse uma luz espiralada em vez de feições, uma espiral hipnotizante de branco cremoso, azul e laranja. Ele engoliu em seco e esperou que ela dissesse alguma coisa, mas ela não dizia; a sua habilidade, seu fantástico poder mecânico, voltou-lhe numa torrente, analisando a situação e ordenando-lhe que tudo que ela tinha de fazer era ficar calada.

– Eles me o-o-obrigaram! Por favor, S-Senhorita Ratched eles me obr-obri-obri-OBRI…

Ela controlou sua faixa de onda e o rosto de Billy sintonizou soluçando de alívio. Ela pôs a mão em volta do pescoço dele e lhe puxou o rosto para o colo engomado, acariciando o ombro dele enquanto lançava, lentamente, um olhar de desprezo para nós.

– Está bem, Billy. Está tudo bem. Ninguém mais vai machucar você. Está tudo bem. Vou explicar a sua mãe.

Ela continuou nos fuzilando com o olhar enquanto falava. Era estranho ouvir aquela voz suave e consoladora, aconchegante como um travesseiro, saindo de um rosto de porcelana.

– Está bem, Billy. Venha comigo. Pode esperar aqui no consultório do doutor. Não há nenhuma razão para que você seja obrigado a sentar aqui na enfermaria com esses… seus amigos.

Ela o levou para o consultório, acariciando-lhe a cabeça inclinada e dizendo:

– Pobre menino, pobre menininho – enquanto íamos voltando silenciosamente pelo corredor e nos sentávamos na enfermaria, sem nos olharmos ou nos falarmos. McMurphy foi o último a sentar-se.

Os Crônicos do outro lado haviam parado de se agitar e se estavam acomodando nas suas tocas. Olhei para McMurphy pelo canto do olho, tentando disfarçar. Ele estava na cadeira, no canto, descansando um segundo antes de se levantar para o próximo round - numa longa sucessão de rounds que viriam. A coisa contra a qual ele lutava não se podia abater definitivamente. Tudo que se podia fazer era continuar batendo nela até que não se conseguisse mais lutar e uma outra pessoa tivesse de tomar o seu lugar.

Mais telefonemas estavam sendo dados na Sala das Enfermeiras, e uma quantidade de autoridades aparecendo para ver as provas. Quando, finalmente, o próprio médico chegou, cada uma daquelas pessoas olhou para ele como se a coisa inteira tivesse sido planejada por ele ou pelo menos admitida tacitamente e autorizada. Estava pálido e trêmulo sob aqueles olhares. Percebia-se que ele já sabia da maior parte do que acontecera ali, na sua ala, mas a Chefona relatou-lhe de novo, em detalhes lentos e em voz alta, de forma que também pudéssemos ouvir. Ouvir da maneira correta, dessa vez, sérios, sem cochichos ou risadas enquanto ela falava. O médico balançava a cabeça e remexia os óculos, piscando os olhos tão lacrimejantes que pensei que estava respingando nela. Ela terminou contando-lhe sobre Billy e a trágica experiência pela qual tínhamos feito o pobre menino passar.

– Eu o deixei no seu consultório. A julgar pelo seu presente estado, sugiro que o veja imediatamente. Ele passou por uma terrível tortura. Estremeço só de pensar no mal que deve ter causado ao pobre menino.

Ela esperou até que o médico estremecesse também.

– Acho que deve ir ver se pode conversar com ele. Está precisando de apoio. Seu estado é lamentável.

O médico concordou mais uma vez e saiu em direção ao consultório.

– Mack – disse Scanlon. – Ouça… não pensa que nenhum de nós acreditou nessa baboseira toda, pensa? A coisa está mal, mas nós sabemos onde está a culpa… não estamos culpando você.

– Não – disse eu – nenhum de nós culpa você. – E desejei que me tivessem arrancado a língua quando vi a maneira como me olhou.

Ele fechou os olhos e se descontraiu. Parecia estar esperando. Harding se levantou e dirigiu-se até onde ele estava, e tinha acabado de abrir a boca para dizer alguma coisa quando a voz do médico, gritando lá no fundo do corredor, esfregou um horror comum no rosto de todo mundo.

– Enfermeira! – berrou. – Meus Deus, enfermeira! Ela correu, e os três crioulos a seguiram pelo corredor para onde estava o médico ainda gritando. Mas nenhum paciente se levantou. Nós sabíamos que não havia nada para fazermos agora, senão ficar sentados ali e esperar que ela voltasse para a enfermaria para nos contar o que todos nós sabíamos ser uma coisa destinada a acontecer.

Ela caminhou direto para McMurphy.

– Ele cortou a garganta – disse ela. Esperou, aguardando que ele dissesse alguma coisa. Ele não levantou o olhar. – Abriu a escrivaninha do doutor, encontrou alguns instrumentos e cortou a garganta.

Esperou de novo. Mas ainda assim ele não levantou o olhar.

– Primeiro Charles Cheswick e agora William Bibbit! Espero que finalmente esteja satisfeito. Jogar com vidas humanas… apostar com vidas humanas… como se pensasse que é um Deus!

Ela se virou, entrou na Sala das Enfermeiras e fechou a porta, deixando um som estridente, mortal, soando nas lâmpadas acima de nossas cabeças.

Meu impulso inicial foi tentar detê-lo, convencê-lo a levar o que já havia conseguido e deixá-la ganhar a última rodada, mas um outro pensamento muito maior apagou o primeiro completamente. De repente me dei conta, com certeza absoluta, de que nem eu nem ninguém daquele grupo de segunda categoria conseguiria detê-lo. Que a argumentação de Harding ou eu agarrando-o por trás, ou os ensinamentos do velho Coronel Matterson ou a pressão de Scanlon, ou todos nós juntos não seríamos capazes de nos levantarmos e de detê-lo.

Não podíamos detê-lo porque fôramos nós que o havíamos compelido a fazê-lo. Não era a enfermeira que o forçava, era a nossa necessidade que fazia com que ele se erguesse lentamente da cadeira, as manoplas se afundando nos braços de couro da cadeira, empurrando para cima. fazendo-o levantar-se e ficar de pé como um desses zumbis de filme, obedecendo a ordens que lhe eram transmitidas por 40 senhores. Nós o havíamos feito continuar durante semanas, mantendo-o de pé muito depois de seus pés e suas pernas terem cedido, semanas fazendo-o piscar e sorrir e rir e continuar com o seu número, muito depois de o seu humor ter sido transformado num pergaminho seco entre os. dois eletrodos.

Nós o fizemos levantar-se e puxar os calções para cima como se fossem calções de couro de vaqueiro, e empurrar o boné para trás com um dedo como se fosse uma Stetson de 10 galões, em gestos lentos e mecânicos – e quando ele foi andando podia-se ouvir seus calcanhares nus arrancarem fagulhas dos ladrilhos.

Só no final – depois que ele tinha despedaçado aquela porta de vidro, o rosto dela recuando, com o terror arruinando para sempre qualquer outro olhar que ela pudesse jamais tentar usar, gritando quando ele a agarrou e lhe rasgou toda a frente do uniforme, gritando de novo quando os dois bicos redondos saltaram do seu peito, saindo para fora cada vez maiores, maiores do que qualquer pessoa jamais teria imaginado, cálidos e rosados sob a luz – só no final, depois que os funcionários perceberam que os crioulos nada iam fazer, a não ser ficar ali e olhar, e que eles teriam de derrotá-lo sem ajuda deles, médicos, supervisores e enfermeiras arrancando aqueles dedos vermelhos pesados da garganta dela arrastando-o para trás, arrancando-o de cima dela com um ofegar pesado, só então ele demonstrou algum sinal de que poderia ser algo que não um homem são, decidido, pertinaz executando uma dura tarefa que, finalmente, simplesmente tinha de ser executada, quer gostasse ou não.

Ele deu um grito. No final, caindo para trás, seu rosto aparecendo para nós por um segundo, de cabeça para baixo, antes que fosse esmagado no chão por uma pilha de uniformes brancos, ele se permitiu gritar.

Um som de medo e ódio e derrota e desafio de animal acuado, que se você alguma vez já caçou um urso ou um puma ou um lince, é como o último som que emite o animal encurralado, ferido e caindo, quando os cães o apanham, quando finalmente ele não se importa mais com nada a não ser consigo mesmo e com a sua morte.

Fiquei por lá mais umas duas semanas para ver o que ia acontecer. Tudo estava mudando. Sefelt e Fredrickson deixaram juntos o hospital contrariando conselhos de médicos, e dois dias depois, outros três Agudos saíram, e mais seis foram transferidos para uma outra ala. Houve muita investigação a respeito da festa na enfermaria e da morte de Billy, e o médico foi informado de que a sua demissão seria aceita, e ele lhes informou que teriam de ir até o fim e pô-lo em cana se o quisessem fora dali.

A Chefona ficou hospitalizada por uma semana, assim, por algum tempo tivemos a japonesinha dos Perturbados na direção da ala; isso deu aos Agudos a oportunidade de modificar muita coisa no regulamento da ala. Quando a Chefona voltou, Harding tinha conseguido até que a Sala da Banheira fosse aberta de novo e estava ali, comandando o vinte-e-um ele mesmo, tentando fazer aquela sua voz suave e fina soar como o urro de leiloeiro de McMurphy. Estava dando as cartas quando ouviu a chave dela girar na fechadura.

Todos nós saímos da sala e fomos para o corredor encontrá-la, para perguntar por McMurphy. Ela saltou dois passos para trás quando nos aproximamos, e pensei por um segundo que fosse correr. O rosto dela estava roxo e deformado de um lado, um olho completamente fechado, e ela tinha um grande curativo na garganta. E um uniforme branco, novo. Alguns dos caras riram olhando-a de frente; apesar de ser menor, mais justo e mais engomado que os antigos uniformes, não podia mais esconder o fato de que ela era uma mulher.

Sorrindo, Harding se aproximou e perguntou o que havia acontecido com Mack.

Ela tirou um bloquinho e um lápis do bolso do uniforme e escreveu: "Ele vai voltar", e passou o papel para nós. O papel tremeu em suas mãos.

– Tem certeza? – Harding quis saber, depois que leu. Tínhamos ouvido todo tipo de coisa, que ele tinha derrubado dois ajudantes na Enfermaria dos Perturbados e fugido, que havia sido mandado de volta para a colônia penal – até mesmo a enfermeira, agora no comando até que arranjassem outro médico, lhe estava dando uma terapia especial.

– Tem certeza? – repetiu Harding.

A enfermeira tornou a pegar o bloco. Estava com as juntas endurecidas e sua mão mais branca que nunca escreveu no bloco como uma dessas ciganas que põem cartas por um centavo. "Sim, Sr. Harding" escreveu ela. "Eu não o diria se não tivesse certeza. Ele vai voltar."

Harding leu o papel, então o rasgou e atirou os pedaços em cima dela. Ela recuou e levantou a mão para proteger o lado ferido do rosto.

– Dona, acho que você está cheia de merda – disse-lhe Harding. Ela olhou para ele e a mão se inclinou para o bloco por um segundo, mas depois ela se virou e entrou na Sala das Enfermeiras tornando a enfiar o bloco e o lápis no bolso do uniforme.

– Hum – disse Harding. – Parece que a nossa conversa foi um pouco insatisfatória. Mas também, quando lhe dizem que você está cheio de merda, que tipo de resposta escrita pode-se dar?

Ela tentou fazer como que sua ala voltasse à velha forma, mas era difícil com a presença de McMurphy ainda marchando pelos corredores, rindo alto nas sessões e cantando na privada. Ela não podia mais governar com seu antigo poder, sem precisar escrever coisas em pedaços de papel. Estava perdendo seus pacientes um após outro. Depois que Harding teve alta, tendo sido apanhado pela esposa, e George se transferiu para uma outra ala, só ficaram três de nós, dos que haviam feito parte do grupo da pescaria, eu, Martini e Scanlon.

Eu não queria ir ainda, porque ela me parecia segura demais, parecia estar esperando por mais um round, e eu queria estar lá caso se realizasse. E uma manhã, três semanas após a ausência de McMurphy, ela fez a sua última jogada.

A porta da ala se abriu e os crioulos empurraram para dentro uma cama Gurney com uma plaqueta pendurada que dizia em letras pretas: MCMURPHY, RANDLE P. PÓS-OPERATÓRIO. E abaixo disso estava escrito LOBOTOMIA.

Eles a empurraram para a enfermaria e a deixaram encostada na parede, perto dós Vegetais. Ficamos junto da cama, lendo a plaqueta. Então olhamos para a outra extremidade, para a cabeça afundada no travesseiro, um redemoinho de cabelos ruivos sobre um rosto branco como leite, exceto pelos hematomas vermelhos em volta dos olhos.

Depois de um minuto de silêncio, Scanlon se virou, cuspiu no chão.

– Aaah, que diabo aquela cadela está querendo jogar pra cima da gente, que diabo. Esse não é ele.

– Nada parecido com ele. – disse Martini.

– Ela pensa que somos burros?

– Oh, mas eles fizeram um trabalhinho bastante bem feito – disse Martini aproximando-se da cabeça e apontando enquanto falava. – Está vendo? Conseguiram botar o nariz quebrado e aquela cicatriz maluca, até as costeletas.

– Claro – resmungou Scanlon. – Mas que diabo! Eu abri caminho entre os outros pacientes e postei-me ao lado de Martini.

– Claro, eles podem fazer coisas como cicatrizes e narizes quebrados – disse eu. – Mas eles não podem fazer este olhar. Não há nada neste rosto. É igualzinho a um desses manequins de lojas, não acha, Scanlon?

Scanlon cuspiu de novo.

– Isso mesmo. O treco todo, sabe, é inexpressivo demais. Qualquer pessoa pode ver isso.

– Olhe aqui – disse um dos pacientes, levantando o lençol – tatuagens.

– Claro – respondi – eles podem fazer tatuagens. Mas e os braços, hem? Os braços? Não poderiam fazê-los. Os braços dele eram grandes!

Durante o resto da tarde, Scanlon, Martini e eu ridicularizamos o que Scanlon chamava de falsificação vagabunda de teatro de variedades deitada ali na cama Gurney, mas à medida que as horas iam passando e a inchação em volta dos olhos ia diminuindo, vi caras virem aproximando-se para olhar para ele. Eu os observei virem andando, fingindo que iam até a prateleira de revistas ou até o bebedouro, de forma que pudessem dar mais uma olhada para aquele rosto. Eu só tinha certeza de uma coisa: ele nunca iria deixar uma coisa daquelas ficar deitada ali na enfermaria com o seu nome pregado nela por 20 ou 30 anos, para que a Chefona pudesse utilizá-la como exemplo do que pode acontecer, se você contestar o sistema. Eu tinha certeza disso.

Esperei naquela noite até que todos do dormitório estivessem dormindo, e até que os crioulos tivessem acabado de fazer suas rondas. Então virei minha cabeça no travesseiro de forma a poder ver a cama ao lado da minha. Eu vinha escutando a respiração há horas, desde que eles haviam trazido a Gurney e colocado a maca na cama. ouvindo os pulmões se engasgando e parando, então começando de novo, esperando enquanto ouvia, que eles parassem em definitivo – mas ainda não me havia virado para olhar.

Pela janela, a lua derramava no dormitório uma luz como espuma de leite. Eu me sentei na cama, e a minha sombra caiu sobre o corpo, parecendo cortá-lo ao meio entre os quadris e os ombros. A inchação havia diminuído bastante nos olhos, e eles estavam abertos; olhavam fixo para a lua, abertos e sem sonho, vidrados por estarem há tanto tempo sem piscar, até que se tornaram fusíveis queimados numa caixa de fusíveis. Fiz um movimento para pegar o travesseiro e os olhos se pregaram no movimento e me seguiram quando me levantei e atravessei a pequena distância entre as camas.

O corpo grande e forte tinha um apego violento à vida. Lutou durante muito tempo contra a tomada dela, esperneando e se contorcendo tanto que finalmente tive de me deitar sobre o corpo pelo que me pareceu dias. Até que as contorções pararam. Até que ficou imóvel por algum tempo, estremeceu uma vez, e então ficou imóvel de novo. Então me levantei, tirei o travesseiro e vi sob o luar que a expressão não se havia modificado naquele olhar inexpressivo e morto, nem um pouco, mesmo sob a sufocação. Com os polegares baixei as pálpebras e as segurei até que ficaram na posição. Então tornei a me deitar na cama.

Fiquei deitado por algum tempo, segurando as cobertas sobre a cabeça e pensei que não estava fazendo barulho nenhum, mas a voz de Scanlon, sussurrando lá da sua cama, me disse que estava enganado.

– Calma, chefe – disse ele. – Vá com calma. Está tudo bem.

– Cale a boca – murmurei. – Vá dormir de novo. Ficou tudo em silêncio por algum tempo, então o ouvi sussurrar de novo e perguntar:

– Está acabado? Disse-lhe que sim.

– Cristo – disse ele então. – Ela vai saber. Você sabe disso, não sabe? É claro que ninguém vai poder provar nada, qualquer um poderia bater as botas num pós-operatório como ele estava, acontece toda hora… mas ela, ela vai saber.

Eu nada disse.

– Se eu fosse você, chefe, eu dava o fora daqui. Sim, senhor. Vou dizer-lhe uma coisa. Você dá o fora daqui e eu vou dizer que o vi levantar-se e andar por aí depois de você ter ido, e assim protejo você. É a melhor idéia, não acha?

– Oh, sim, muito simples. É só pedir a eles para destrancarem a porta e me deixarem sair.

– Não. Ele uma vez mostrou a você como. Naquela primeira semana. Lembra?

Eu não respondi e ele não disse mais nada, e ficou tudo em silêncio, de novo, no dormitório. Fiquei deitado ali mais alguns minutos e então me levantei e comecei a me vestir, meti a mão na gaveta da mesinha de cabeceira de McMurphy, peguei o gorro dele e o experimentei. Era pequeno demais, e de repente tive vergonha de ter tentado usá-lo. Atirei-o sobre a cama dè Scanlon quando saí do dormitório. Quando saí, ele disse:

– Calma, companheiro.

A lua brilhando através da tela das janelas da Sala da Banheira mostrava a forma baixa e pesada do painel de controles, cintilando nos metais cromados e nos mostradores de vidro, tão fria que quase podia ouvi-los estalar. Tomei fôlego, inclinei-me e segurei as alças. Equilibrei as pernas e ouvi o ranger do peso sob os meus pés. Puxei para cima de novo e ouvi os arames e conexões sendo arrancados do chão. Eu o ergui sobre os joelhos e consegui passar uma das mãos em volta dele, e a outra embaixo. O cromo estava frio contra o meu pescoço e o lado da minha cabeça. Encostei as costas na tela e deixei que o impulso enfiasse o painel através da tela e da janela com um estrondo e barulho de coisas quebrando. O vidro se espatifou voando para fora sob o luar, como uma água fria brilhante batizando a terra adormecida. Arquejando, pensei por um segundo em voltar lá e buscar Scanlon e alguns dos outros, mas então ouvi o guinchado dos sapatos dos crioulos correndo no corredor, pus a mão no parapeito da janela e saltei atrás do painel para o luar.

Corri pelo jardim na direção em que me lembrava de ter visto o cachorro dirigir-se para a estrada. Lembro-me de que estava dando passos enormes enquanto corria, parecia que tomava impulso e flutuava durante muito tempo antes que o meu outro pé batesse na terra. Eu me sentia como se estivesse voando. Livre. Ninguém se dá ao trabalho de vir atrás de um fugitivo de instituição mental, eu sabia, e Scanlon podia dar um jeito quando perguntassem sobre o homem morto – não precisava estar correndo daquele jeito. Mas não parei. Corri durante quilômetros antes de parar e andar até a beira da estrada.

Peguei uma carona com um cara, um mexicano, que estava indo para o norte com um caminhão cheio de ovelhas, e lhe contei que era um lutador profissional índio, que o sindicato havia tentado trancafiar num hospício. A história foi tão convincente que ele parou muito depressa, me deu um casaco de couro para esconder o meu pijama e me emprestou 10 dólares para a comida enquanto eu fosse de carona para o Canadá. Eu o fiz escrever o seu nome e endereço antes que se fosse e lhe disse que enviaria o dinheiro assim que arranjasse algum.

Talvez eu vá para o Canadá, mas acho que a caminho vou dar uma parada lá por Columbia. Gostaria de dar uma passada por Portland, o rio Hood e The Dalles, para ver se ainda estão lá alguns dos caras que eu conhecia na aldeia, que não se embebedaram até o embotamento. Gostaria de ver o que eles têm feito desde que o Governo tentou comprar-lhes o direito de serem índios. Eu até ouvi dizer que alguns da tribo recomeçaram a construir seus andaimes de corda e madeira ao longo daquela grande represa hidroelétrica de um milhão de dólares, e estão arpoando salmões no vertedouro. Daria um bocado para ver isso. Mas principalmente, o que eu gostaria mesmo era de ver a paisagem nos arredores da garganta, só para lembrar um pouco daquilo com clareza de novo. Estive longe por muito tempo.


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