LANÇO-ME à tentativa de relatar uma extraordinária aventura da qual participei como membro da Confraria, uma viagem fantástica cujo encanto luziu com a rapidez de um meteoro, caindo depois no esquecimento e até mesmo na descrença. Tal aventura jamais fora tentada desde os tempos de Hugo e do louco Roland até nossos dias, ou seja, o período tão agitado e confuso, embora frutífero, que se seguiu à Grande Guerra.
Não me permiti ilusões quanto às dificuldades que esta tentativa acarretaria. Não apenas pelo aspecto subjetivo, embora este já fosse suficiente para fazer-me desanimar. Ocorre que não mais me acompanham as lembranças, documentos e diários relativos à jornada, ao mesmo tempo que, nos difíceis anos de doença, infortúnios e profunda aflição compreendidos nesse intervalo, desvaneceram-se inúmeras recordações. Minha memória e a confiança em lembranças antes tão nítidas debilitaram-se como resultado dos golpes do destino e de um contínuo desalento. Conrudo, mesmo esquecendo os aspectos estritamente pessoais, existe um obstáculo: o juramento que prestei como membro da Confraria. Embora não me seja proibido narrar minhas experiências pessoais, a Confraria não admite revelações sobre si própria. E apesar de não existirem provas concretas de sua existência, e eu jamais ter voltado a avistar-me com qualquer de seus membros, nenhuma ameaça ou armadilha far-me-iam quebrar o juramento. Se um dia defrontar-me com uma corte marcial e me for dado o direito de optar pela morte ou revelação do segredo da Confraria, selaria sem vacilar meu juramento com a morte.
Desde o diário de viagem do Conde Keyserling, surgiram diversos livros cujos autores, em parte inconsciente, porém um tanto deliberadamente, deram a impressão de fazerem parte da Confraria e haverem participado da Viagem ao Oriente. Até mesmo as narrativas da aventura de Ossendowski caem sob minhas justificadas suspeitas. Contudo, têm tanta relação com a Confraria e nossa Viagem quanto os ministros de uma insignificante seita fanática o têm com o Salvador, os Apóstolos e o Espírito Santo, a quem se referem por especial deferência e participação. Mesmo que o Conde Keyserling houvesse realmente dado a volta ao mundo sem dificuldades, e que Ossendowski tivesse de fato percorrido os países que descreveu, suas jornadas não teriam sido fantásticas nem teriam descoberto novos territórios, ao passo que, em determinadas etapas de nossa Viagem ao Oriente, apesar de não lançarmos mão dos corriqueiros recursos à disposição do viajante, como estradas de ferro, navios a vapor, telégrafo, automóveis, aviões, etc, penetramos no terreno da grandiosidade e da magia.
Logo após a Grande Guerra, as nações conquistadas encontravam-se num singular estado de irrealidade. Observava-se uma tendência a acreditar no fantástico, embora muito poucas barreiras houvessem sido ultrapassadas, e fossem poucos os progressos alcançados no domínio da psiquiatria. Nossa viagem, nessa mesma época, através do Oceano da
Lua em direção a Famagusta, sob a orientação de Alberto, o Grande, ou melhor, a descoberta da Ilha da Borboleta, doze léguas além de Zipangu, ou ainda a edificante cerimônia da Confraria junto ao túmulo de Rudiger — todos estes fatos constituíram-se em feitos e experiências permitidos uma única vez a quem viveu em nosso tempo e região.
Sinto aproximar-me cada vez mais de um dos maiores obstáculos que encerra minha narrativa. O ponto atingido pêlos nossos feitos, o plano espiritual da experiência a que se relacionam, deveriam tornar-se gradativamente mais claros ao leitor, se fosse possível esclarecer a essência do segredo da Confraria. No entanto, tudo ou quase rudo lhe parecerá inacreditável ou incompreensível. É preciso aceitar o próprio paradoxo de que devemos sempre tentar o aparentemente impossível. Concordo com Sidarta, nosso sábio amigo do Oriente, quando certa vez disse: «As palavras não conseguem expressar os pensamentos com precisão; de imediato as coisas se tornam diferentes, distorcidas, tolas. E mesmo assim agradam-me, e julgo que seja certo, que aquilo que para um homem parece válido e sábio, para outro caracteriza o absurdo». Os membros e historiadores de nossa Confraria, séculos atrás, reconheceram e enfrentaram com bravura essa dificuldade. Um dos mais ilustres expressou-a em uma estrofe imortal:
«Quem empreender longínquas jornadas verá muitas coisas
Distantes daquilo que considera a Verdade.
E ao relatá-las, chegando a casa,
Será muitas vezes desacreditado.
Pois os empedernidos não acreditarão
Naquilo que não vêem ou sentem distintamente.
A inexperiência, creio,
Pouco crédito dará a meus versos.»
Esta «inexperiência» fez com que nossa jornada, que em sua época levou milhares de pessoas a um estado de êxtase, fosse não só esquecida pelo público como também estabeleceu um verdadeiro tabu quanto à sua lembrança. A história é rica em exemplos semelhantes. Toda a história universal parece-me resumir-se em um livro de ilustrações que retrata o desejo mais ardente e absurdo da humanidade — o desejo de esquecer. Não vemos que cada geração, através, de repressões, disfarces e ridículos, destrói tudo aquilo que a anterior julgava mais importante? Nós mesmos não vimos uma longa, terrível e monstruosa guerra ser esquecida, desfigurada e repudiada por todas as nações? E agora, após um breve intervalo, não vemos as mesmas nações tentando rememorar, por meio de emocionantes romances sobre o tema, o que elas próprias provocaram e toleraram alguns anos atrás? Assim, do mesmo modo chegará o dia da redescoberta dos feitos e tribulações de nossa Confraria, que ainda permanecem esquecidos ou constituem motivo de troça em todo o mundo e, então, minhas palavras representarão uma pequena ajuda nesse sentido.
Nossa jornada ao Oriente caracterizou-se pelo fato de que, embora a Confraria tivesse objetivos definidos e elevados durante sua realização (não me é possível revelá-los, pois constituem assunto secreto), cada membro podia ter seus próprios objetivos pessoais. Aliás, quem não os tivesse seria excluído do grupo. Embora cada um de nós aparentasse partilhar os mesmos ideais e objetivos comuns, conservava no fundo do coração seu mais precioso sonho de infância, como fonte de coragem e consolo. O meu propósito ao empreender a jornada, sobre o qual interrogou-me o Presidente antes de minha admissão, era bastante simples, mas diversos membros da Confraria estabeleceram desígnios que, embora eu os respeitasse, não podia compreender totalmente. Um deles, por exemplo, buscava um tesouro, e seu único pensamento resumia-se em apossar-se do enorme tesouro por ele denominado «Tao». Um outro desejava capturar uma serpente chamada Kundalini, à qual atribuía poderes mágicos. Quanto a mim, sempre desejara avistar-me com a bela Princesa Fátima e, se possível, conquistar seu amor.
Ao incorporar-me à Confraria — ou seja, imediatamente após a Grande Guerra — nosso país achava-se coalhado de salvadores, profetas e discípulos; de pressentimentos sobre o fim do mundo, ou de esperanças na ascensão de um Terceiro Império. Abalado pela guerra, desesperado com as privações e a fome, desiludido com a evidente inutilidade de todos os sacrifícios de vidas humanas e propriedades, nosso povo se expunha a toda sorte de fantasias, mas houve, ao lado disso, um grande avanço espiritual. Criavam-se sociedades orgíacas dançantes e grupos anabatistas, as coisas ocorriam como se visassem um ponto fantástico e guiado pelo ocultismo. Verificou-se também, naquela época, uma tendência geral rumo aos mistérios e religiões da índia, da antiga Pérsia e de outros países orientais, o que fez com que muitos julgassem que nossa Confraria fosse mais um dentre tantos cultos recém-fundados, e que após alguns anos estaria quase esquecido, desprezado e desacreditado. O mais fiel de seus discípulos não o pode negar.
Ainda guardo uma nítida lembrança do dia em que me apresentei, após expirar-se meu ano de noviciado, perante o Alto Trono. Foi-me então revelado o objetivo da jornada ao Oriente, e após ter-me devotado de corpo e alma a esse projeto, foi-me indagado, de maneira afáveL o que eu intimamente esperava dessa viagem ao reino da mística. Levemente ruborizado, com toda franqueza e decisão confessei aos membros reunidos que abrigava em meu coração o desejo de ver a Princesa Fátima. O Presidente compreendeu minha alusão e gentilmente colocou sua mão sobre minha cabeça, recitando as palavras que confirmavam minha admissão como membro da Confraria. —Anima pia— disse ele, exortando-me para que persistisse na fé, na coragem frente ao perigo, e que amasse meus semelhantes. Preparado após meu período de noviciado, prestei juramento, renunciei ao mundo e suas superstições, e recebi em meu dedo o anel da Confraria, ao mesmo tempo em que eram pronunciadas as palavras sobre um dos mais belos capítulos da história de nossa Confraria:
«Na terra ou no firmamento, na água ou no fogo,
Os espíritos o adoram,
Seu olhar atemoriza e amansa as feras mais selvagens,
E até os anticristãos devem dele se aproximar com temor...»
Para minha alegria, logo após a admissão, os noviços, entre eles, eu, passaram a conhecer nossas perspectivas. Por exemplo, ao seguirmos a orientação dos superiores a fim de nos unirmos a um dos grupos de dez pessoas que viajavam pelo país para alcançar a expedição, fiquei conhecendo claramente um dos segredos da Confraria. Dei-me conta de que fazia parte de uma peregrinação ao Oriente, aparentemente uma peregrinação definida e particular — mas, na realidade, em seu sentido mais amplo, não era apenas minha nem do momento presente; aquela procissão de crentes e discípulos sempre rumara para o Oriente, incessantemente, na direção da Casa da Luz. Processara-se através dos séculos, em busca da luz e do milagre, e cada membro, cada grupo, em suma toda nossa hoste e sua grande peregrinação, era apenas uma onda na eterna maré de seres humanos, das eternas batalhas do espírito do homem em direção ao Oriente, em direção a Casa, Essa percepção atravessou minha mente como um raio de luz, recordando-me de imediato uma frase que aprendera no ano de noviciado, a qual sempre me causara imenso prazer sem que percebesse todo o seu conteúdo. Era do poeta Novalis, e dizia: «Para onde caminhamos sempre? Para casa!»
Nesse ínterim, nosso grupo partira em viagem; não se passara muito tempo quando encontramos outros grupos, e sentíamo-nos felizes, ligados pelo sentimento de unidade e objetivo comum. Obedientes às instruções recebidas, vivíamos como peregrinos e não fazíamos uso dos expedientes que surgem em um mundo iludido pelo dinheiro, tempo e cifras, que tiram todo o sentido da vida; artifícios mecânicos como estradas de ferro, relógios e coisas semelhantes, que são os principais dessa categoria. Outra regra por todos observada levou-nos a visitar e prestar homenagem a todos os lugares e associações relacionadas à antiga história de nossa Confraria e sua crença. Visitamos e prestamos culto a todos os locais sagrados e monumentos, igrejas e túmulos consagrados que encontrávamos no caminho; adornamos capelas e altares com flores; as ruínas eram cultuadas com canções ou contemplações silenciosas; os mortos eram lembrados com música e orações. Não era raro sermos alvo de zombaria ou vermo-nos abordados por descrentes, porém, muitas vezes ocorreu que os padres nos abençoassem e convidassem para sermos seus hóspedes, que muitas vezes as crianças a nós se juntassem com enrusiasmo, aprendendo nossas canções, e se despedissem com lágrimas nos olhos; que visitássemos monumentos esquecidos, guiados por um ancião, e que o mesmo nos contasse uma lenda sobre sua terra natal; que jovens nos acompanhassem durante parte do caminho e expressassem o desejo de unir-se à Confraria. A estes dávamos conselhos e ensinávamos os ritos e práticas iniciais do noviciado.
Percebemos os primeiros indícios de milagres, em parte assistindo-os com os próprios olhos, em parte graças a lendas e narrativas imprevistas. Certo dia, quando ainda era um membro relativamente novo, alguém mencionou que o gigante Agramant era hóspede da tenda de nossos guias, e tentava convencê-los a partir para a África a fim de libertar alguns membros da Confraria do cativeiro dos mouros. Numa outra ocasião, avistamos o Goblin, o consolador fabricante de vasos, e julgamos nosso dever rumar em direção ao Pote Azul. No entanto, o primeiro fenômeno espantoso que vi foi quando nos detivemos para orar e repousar numa capela antiga, quase em ruínas, na região deSpaichendorfisobre a única parede intacta da capela, fora pintada uma enorme imagem de São Cristóvão, tendo sobre os ombros franzinos e meio encurvados pela idade, o Menino Jesus. Os guias, como era de seu costume, não se limitaram a propor a direção que tomaríamos, convidando-nos a dar nossa opinião, pois a capela localizava-se ao lado de um poste indicador com três rumos diferentes. Somente alguns opinaram ou expressaram um desejo, porém um de nós apontou para a esquerda e sugeriu com insistência que tomássemos essa direção. Permanecemos em silêncio, aguardando a decisão dos superiores, quando São Cristóvão ergueu os braços, segurando o espesso e alongado mastro, apontando para a esquerda, direção que nosso irmão desejara tomar. Nenhum de nós se manifestou, e os guias, em silêncio, voltaram-se para o caminho indicado, que seguimos com um prazer infinito.
Não fazia muito que estávamos na Suábia quando manifestou-se uma força que não havíamos ainda percebido. Sentíramos sua forte influência durante algum tempo, sem conseguirmos distinguir se era favorável ou hostil. Era a força dos guardas da coroa que, desde os tempos mais remotos, preservavam a lembrança e a herança dos Hohenstaufen naquele país. Não sei se nossos líderes sabiam alguma coisa mais sobre isso, ou se receberam instruções a esse respeito. Só sei dizer que recebemos muitas exortações e conselhos, como na ocasião em que estávamos na montanha a caminho de Bopfingen, onde encontramos um velho guerreiro encanecido: meneou sua cabeça grisalha, com os olhos cerrados, e desapareceu sem deixar vestígios. O aviso impressionou nossos líderes a tal ponto que retornamos, ao invés de seguir para Bopfingen. Por outro lado, nas vizinhanças de Urach, um emissário dos guardas da coroa surgiu na tenda dos guias como se tivesse brotado do solo, com promessas e ameaças destinadas a colocar nossa expedição a serviço dos Staufen, e também para fazer os preparativos para a conquista da Sicília. Com a recusa a esses pedidos, ele prometeu lançar uma terrível maldição sobre a Confraria e sua expedição. É preciso frisar que estou relatando o que transpirou entre nós; os guias não mencionaram uma palavra sequer sobre o assunto. E ainda assim me parece possível que tenha sido nosso convívio problemático com os guardas da coroa que, durante muito tempo, emprestou à Confraria a imerecida reputação de uma sociedade secreta, visando a restauração da monarquia.
Em determinada ocasião, vi também um de meus companheiros enfrentar suas dúvidas; quebrou o juramento e voltou à antiga descrença. Tratava-se de um jovem a quem dedicava grande afeição. O motivo pessoal que o fez unir-se à expedição ao Oriente fora o desejo de encontrar o esquife do profeta Maomé, pois, ao que se dizia, este eleva-se ao ar por pura magia. Em uma cidadezinha da Suábia ou Alemanha, onde nos detivemos por alguns dias, já que uma oposição de Sarurno com a Lua interrompeu nosso avanço, aquele infeliz homem, que se mostrara triste e inquieto durante algum tempo, encontrou um antigo professor a quem se mantivera ligado desde os tempos de escola. O professor fez com que o jovem voltasse a compreender nossa causa à maneira dos descrentes. Após uma de suas visitas ao mestre, o pobre rapaz retornou ao acampamento num terrível estado de excitação, com as feições transtornadas. Provocou um distúrbio à porta da tenda dos guias, e, ao sair o Chefe do grupo para ver do que se tratava, gritou em altos brados que já estava farto daquela ridícula expedição que jamais nos levaria ao Oriente; que não suportava mais nossas interrupções durante dias, devido a tolas considerações astrológicas; já se cansara da inutilidade, das peregrinações pueris, das cerimônias florais, da importância que dávamos à magia, da combinação de vida e poesia; atirou o anel aos pés dos guias, dizendo que retornaria a sua casa pelo seguro caminho da estrada de ferro, e voltaria ao seu trabalho útil. Foi uma cena lamentável e chocante. Sentimos vergonha e ao mesmo tempo pena daquele homem desencaminhado. O Chefe escutou-o com complacência, inclinou-se para recolher o anel, dizendo com voz tranqíiila e cordial, que deve ter feito o protestante parecer ridículo: — Você despediu-se de nós e deseja retornar à estrada de ferro, à sensatez e ao trabalho útil. Desligou-se da Confraria, da expedição ao Oriente, da magia, dos jogos florais, da poesia. Você está dispensado de seu juramento.
— Do voto de silêncio também? — bradou o desertor.
— Sim, também do voto de silêncio — respondeu o Chefe. -Lembre-se que você jurou nada revelar sobre o segredo da Confraria aos descrentes. Como demonstrou tê-lo esquecido, não poderá revelá-lo a ninguém.
— Esquecer? Não me esqueci de nada! — retrucou o jovem, demonstrando uma certa insegurança; e quando o Chefe voltou-lhe as costas, retirando-se em direção à tenda, ele fugiu às carreiras.
O fato nos entristeceu, mas tínhamos dias tão cheios que logo o esqueci. Algum tempo depois, contudo, quando nenhum de nós pensava mais no caso, ouvimos os habitantes de diversas aldeias e cidades pelas quais passamos mencionar o mesmo jovem. Diziam que por lá passara um rapaz (descreveram-no minuciosamente e deram seu nome), que nos procurara por toda parte. A princípio, dizia-se pertencente ao nosso grupo, e se perdera ao ficar para trás durante a viagem. Rompera então a chorar, confessando que nos havia traído e fugira, mas sentia não poder viver afastado da Confraria; desejava, ou melhor, precisava encontrar- nos, para se ajoelhar perante os guias e implorar seu perdão. Ouvimos a mesma história em toda parte; onde quer que estivéssemos, o jovem desgarrado por lá passara. Indagamos a opinião do Chefe a respeito do fato, e quais seriam as conseqíiências. — Não creio que ele nos encontre — disse laconicamente. E foi o que realmente aconteceu. Jamais voltamos a vê-lo.
Certa vez, numa conversa confidencial que travei com um dos guias, criei coragem e perguntei pelo irmão renegado. AfinaL pedira clemência e procurava por nós, argumentei; creio que deveríamos ajudá-lo a redimir-se de sua falta. Sem dúvida, tornar-se-ia o mais fiel membro da Confraria no futuro. O guia respondeu-me:
— Nós nos sentiríamos felizes se ele conseguisse nos encontrar, mas não nos cabe ajudá-lo. Ele próprio tornou difícil a recuperação de sua fé. Receio que nem mesmo nos veria ou reconheceria, se passássemos a seu lado; ele está cego. O arrependimento não basta por si só. A graça não pode ser alcançada por esse meio; ela não pode ser comprada. Isto já ocorreu com muitos outros. Homens ilustres e famosos tiveram o mesmo destino desse jovem. Em um momento de sua juventude, foram iluminados. Seguiram o sinal, mas surgiu então a zombaria alheia e a razão, dando lugar à fraqueza de espírito e ao fracasso aparente. Sentiram-se desiludidos e deprimidos, e voltaram a perder o rumo, a visão. Alguns passaram o resto da vida a nos procurar, porém sem êxito. Propalaram então pelo mundo que nossa Confraria não passa de uma bela lenda, e que ninguém deveria deixar-se enganar por ela. Outros transformaram-se em nossos inimigos implacáveis, prejudicando e injuriando a Confraria tanto quanto podiam.
Organizávamos festas maravilhosas sempre que encontrávamos outros grupos da Confraria pelo caminho; costumávamos, então, muitas vezes, formar um acampamento de centenas e até milhares de pessoas. A expedição não obedecia a um esquema estabelecido, rumavam todos na mesma direção em colunas mais ou menos cerradas. Por outro lado, havia numerosos grupos que seguiam seus próprios guias e astros, sempre prontos a incorporar-se a uma unidade mais compacta e acompanhá-la durante algum tempo, embora preparados para prosseguir seu caminho novamente separados. Alguns viajavam totalmente sós. Eu o fiz, também, em diversas ocasiões, sempre que recebia algum sinal ou chamada que me apontassem meu próprio caminho.
Lembro-me de um pequeno grupo selecionado com o qual viajamos e acampamos por alguns dias; seu objetivo era libertar alguns irmãos da Confraria, que estavam presos, juntamente com a Princesa Isabela, sob o jugo dos mouros. Diziam-se de posse da cornucópia de Hugo, e entre eles encontravam-se meus amigos o poeta Lauscher, e os artistas Klingsor e Paul Klee. Não se falava de outra coisa a não ser da África e da captura da Princesa. Sua Bíblia era o livro que narrava as aventuras de Don Quixote, a quem dedicavam sua jornada rumo à Espanha.
Era extremamente agradável encontrarmos esses grupos, assistir a suas celebrações e práticas religiosas, e também convidá-los para as nossas, escutar a narrativa de seus feitos e planos futuros, abençoá-los e, ao partir, tê-los como amigos; depois, cada um seguia seu próprio caminho. Eles alimentavam seus sonhos, ideais, um desejo secreto, e ainda assim uniam-se naquele enorme fluxo, cada um dando tudo de si, partilhando o mesmo culto e a mesma fé, prestando o mesmo juramento. Numa dessas ocasiões conheci Jup, o mágico, cuja esperança era encontrar a felicidade suprema em Caxemira; conheci também Colofino, o bruxo, que cosrumava citar seu trecho favorito das Aventuras de Simplicissimus. Encontrei ainda Luís, o Terrível, que acalentava o sonho de plantar um bosque de oliveiras na Terra Santa, cercado de escravos. Este era companheiro inseparável de Anselmo, que buscava a íris violeta de sua infância. Encontrei e amei Ninon, conhecida como «a estrangeira». Seus olhos negros luziam sob os cabelos escuros. Tinha ciúmes de Fátima, a princesa de meus sonhos, e quem sabe não era ela a própria Fátima, sem que eu o soubesse. Entregávamo-nos a essa jornada como o haviam feito anteriormente os peregrinos, imperadores e cruzados, para descerrar o sepulcro do Salvador ou estudar a magia árabe; os cavaleiros da Espanha haviam trilhado aquele mesmo caminho, bem como os eruditos alemães, monges irlandeses e poetas franceses.
Era eu, cuja única vocação consistia em tocar violino e escrever, o responsável pelas sessões de música de nosso grupo, e percebi então como é edificante e fortificadora a dedicação prolongada aos pequenos detalhes. Não só tocava violino e regia nosso coral, como também selecionava antigas canções e cantos corais. Compunha motetes e madrigais para seis e oito vozes, e os executava. Mas não entrarei em detalhes quanto a isso.
Dedicava grande estima a meus companheiros e guias; contudo, nenhum deles me ficou na lembrança como Leo, apesar de, àquela época, ninguém quase o haver notado. Leo era um de nossos empregados (naturalmente, voluntário como nós). Ajudava a carregar as bagagens e muitas vezes ficava a serviço pessoal do Chefe de Grupo. Este homem simples tinha algo de tão agradável e discretamente atraente, que atraíra a estima geral. Cumpria suas obrigações com alegria contagiante, quase sempre cantando ou assobiando, e jamais era visto, exceto quando dele precisávamos — em suma, o servidor ideal. Além do mais, exercia enorme atração sobre os animais. Quase sempre fazíamo-nos acompanhar de um cão, que a nós se incorporava por causa de Leo. Era capaz de domesticar pássaros e atrair borboletas sobre seu corpo. Seu objetivo era encontrar a chave de Salomão, com a qual seria capaz de compreender a linguagem dos pássaros e que o conduzira ao Oriente. Em contraste com determinados aspectos de nossa Confraria, que — sem desmerecer-lhe o valor e a sinceridade — eram um tanto exagerados, bizarros, pomposos e fantásticos, Leo parecia tão simples e natural, tão saudável, enfim, um amigo inteiramente desinteressado.
A gritante disparidade de minhas lembranças pessoais torna minha narrativa extremamente difícil. Como já mencionei, às vezes caminhávamos em pequenos grupos; outras, formávamos uma tropa e até um exército, mas em certas ocasiões eu permanecia em determinadas localidades em companhia de uns poucos amigos, e até mesmo sozinho, sem tenda, sem guias, sem o Chefe do Grupo. Minha narrativa torna-se cada vez mais penosa, porque não vagávamos somente através do espaço, mas também do tempo. Nosso destino era o Oriente, mas também viajávamos para a Idade Média e para a Idade do Ouro; percorríamos a Itália ou a Suíça, mas muitas vezes passávamos a noite no século X, em companhia dos patriarcas ou duendes. Nas ocasiões em que permaneci só, revi lugares e personagens de meu próprio passado. Vagava com minha antiga noiva pelas margens da floresta do Reno Superior, farreava com meus companheiros de juvenrude em Tubingen, em Basle ou Florença, ou então saía a caçar borboletas, a observar as lontras em companhia dos colegas de escola, ou vagava com meus personagens preferidos dos livros que lera: Almansor e Parsifal, Witiko e Goldmund caminhavam a meu lado, ou então era Sancho Pança, ou éramos convidados das Barmekides. Quando retomava o caminho que me conduziria ao nosso agrupamento, em um vale qualquer, e ouvia as canções da Confraria, acampando próximo à tenda dos guias, percebia com clareza que a incursão em minha infância e os passeios com Sancho pertenciam inteiramente à jornada. Pois nosso objetivo não era unicamente o Oriente, ou melhor, o Oriente não era apenas um país ou um fato geográfico, era também o lar e a juvenrude da alma, estava em toda parte e em parte nenhuma, era o conjunto de todas as eras. Contudo, sentia-me assim por breves instantes, daí o motivo de minha enorme felicidade então. Mas tarde, quando a perdi, compreendi claramente tais ligações, sem delas tirar o menor proveito ou satisfação. Quando perdemos algo precioso e irrecuperável, temos a sensação de haver despertado de um sonho. E isto se deu, em meu caso, de maneira estranhamente precisa, pois, na verdade, minha felicidade nasceu do mesmo segredo da felicidade dos sonhos; nasceu da liberdade de experimentar simultaneamente tudo que imaginava, viver no mundo interior e exterior, manipular Tempo e Espaço como os cenários de uma peça teatral. À medida que nós, membros da Confraria, percorríamos o mundo sem automóveis e navios, conquistando os países arrasados pela guerra com a nossa fé, transformando-os em paraíso, transportávamos o passado, o futuro e o irreal para o momento presente.
Encontrávamos com freqiiência, na Suábia, em Bodensee, na Suíça, por toda parte, pessoas que nos compreendiam ou que, de certo modo, sentiam-se gratas pela existência da Confraria, de nós e de nossa Viagem ao Oriente. Por entre as linhas férreas e ladeiras de Zurique encontramos a Arca de Noé, guardada por velhos cães que atendiam todos pelo mesmo nome, e que foram conduzidos sobre as águas rasas de um calmo período por Hans C. até o descendente de Noé, o amigo das artes. Seguimos para Winterthur, penetrando no Armário Mágico de Stocklin; fomos hóspedes do Templo Chinês, com seus vasos de incenso reluzindo sob a Ma j a de bronze, onde o rei negro tocava docemente sua flauta, no tom vibrante do gongo do templo. Encontramos, no sopé das Montanhas do DoL Suon Mali, uma colônia do Rei do Sião, onde, por entre os Budas de pedra e bronze, oferecemos libações e incenso em agradecimento à hospedagem.
Uma das mais belas experiências ocorreu durante as celebrações da Confraria em Bremgarten; o círculo de magia cercou-nos então de maneira envolvente. Recebidos por Max e Tilli, os senhores do castelo, ouvimos Othmar executando Mozart no grandioso piano do imenso salão. Os jardins estavam povoados de papagaios e outros pássaros falantes. A fada Armida cantava à beira da fonte. Com os fartos cabelos anelados, a cabeça do astrólogo Longos inclinava-se ao lado da amada figura de Henry de Ofterdingen. Os pavões faziam-se ouvir no jardim, e Luís conversava em espanhol com o Gato de Botas. Hans Resom, agitado após espreitar no jogo de cabra-cega da vida, jurava fazer uma peregrinação ao túmulo de Carlos, o Grande. Este foi um dos períodos de ouro de nossa viagem; acompanhava-nos um fluxo de magia que tudo purificava. Os habitantes ajoelhavam-se para adorar a beleza, o senhor do castelo recitou um poema que narrava nossos feitos do dia precedente. Os animais da floresta rondavam o muro do castelo, e peixes cintilavam nas águas do rio, em cardumes agitados, alimentando-se de bolos e vinho.
O ponto culminante dessas experiências, que merece realmente ser narrado, revestiu-se de uma característica que revela seu espírito. Talvez minha descrição pareça pobre e até tola, mas todos os que festejaram os dias passados em Bremgarten confirmariam os menores detalhes e acrescentariam os seus, ainda mais belos. Jamais esquecerei o brilho mortiço da cauda dos pavões sob o luar, surgindo entre as árvores altaneiras, nem as sereias que emergiam cintilantes, com o corpo prateado, nas margens sombrias, por entre as rochas. Don Quixote, de pé sob a castanheira ao lado da fonte, em sua primeira vigília noturna, enquanto as derradeiras velas romanas do espetáculo pirotécnico caíam suavemente sob as torres do castelo, e meu companheiro Pablo, ornado de rosas, tocava o órgão persa para as donzelas. Mas — ah! — quem poderia imaginar que o círculo de magia seria rompido tão cedo! Que todos nós — e também eu, até eu — nos perderíamos nos insondáveis desertos da realidade planejada, exatamente como os funcionários e ajudantes de lojas que, após uma festa ou um passeio dominical, voltam à rotina de mais um dia de trabalho.
Nenhum de nós abrigava tais pensamentos àquela época. O aroma dos lilazes nas torres do castelo de Bremgarten penetrava em meu quarto. Podia ouvir o rio correndo por sob as árvores. Saltei a janela e penetrei na noite, embriagado de felicidade e ternura. Passei furtivamente pelo cavaleiro de guarda e os convivas do banquete, alcançando a borda do rio com suas mansas águas, e as alvas e reluzentes sereias. Fui por elas transportado à sua fria, enluarada e cristalina morada, onde brincavam languidamente com coroas e correntes douradas de seu tesouro. Tive a sensação de haver passado meses sob aquelas profundezas cintilantes; conrudo, ao subir à tona e nadar para a margem, inteiramente revigorado, ainda podia ouvir Pablo tocando o órgão no jardim, e a lua ainda brilhava alta no céu. Vi Leo que brincava com doispoodlesbrancos, o rosto infantil irradiando felicidade. Encontrei Longos sentado no bosque. Escrevia caracteres gregos e hebraicos em um livro que colocara sobre os joelhos; das letras pareciam saltar dragões e serpentes coloridas. Ele não me fitou; continuou pintando, absorto na escrita serpeante. Permaneci longo tempo observando o livro por sobre seus ombros curvados. Vi as serpentes e os dragões que nasciam de suas mãos turbilhonar e desaparecer em silêncio, na direção do escuro bosque. — Longos, meu prezado amigo! -murmurei. Mas ele não me ouviu, tão distante estava seu mundo do meu. Um pouco além, sob as árvores iluminadas pelo luar, Anselmo passeava com uma íris nas mãos; fitava, sorrindo, absorto em seus pensamentos, o purpúreo cálice da flor.
Voltei a impressionar-me de maneira um tanto dolorosa com um fato que observara diversas vezes durante a viagem, sem que pudesse refletir profundamente a respeito, nos dias que passamos em Bremgarten. Havia entre nós muitos artistas, pintores, músicos e poetas. O ardente Klingsor, o irrequieto Hugo Wolf, o taciturno Lauscher e o alegre Brentano lá estavam — mas, apesar de pessoas agradáveis e entusiasmadas, notei que, sem exceção, seus personagens imaginários eram mais vivazes, belos, felizes e por certo mais perfeitos e reais do que os poetas e seus próprios criadores. Pablo irradiava inocência e contentamento com sua flauta, mas seu poeta desvaneceu-se como uma sombra na direção do rio, quase transparente sob o luar, buscando a solidão.
Hoffman, cambaleante em virtude da bebida, corria por entre os convidados, falando muito, com sua figura pequena e travessa, também me parecendo, como os demais, um tanto irreal, quase ausente, como se não fosse palpável e verdadeiro. O arquivista Lindhorst, simulando uma luta com os dragões, lançava fogo pelas narinas, como um máquina a vapor. Indaguei a Leo, o criado, por que os artistas geralmente pareciam semi-existir, ao passo que suas obras permaneciam tão incontestavelmente vivas. Leo fitou-me com surpresa. Deixou então escapar-lhe das mãos o cãozinho com que brincava e respondeu: — Acontece o mesmo com as mães. Ao gerarem os filhos, amamentá-los e torná-los belos e fortes, elas próprias passam à insignificância, e ninguém mais por elas se inquieta.
— Mas isto é muito triste — disse eu, sem refletir profundamente sobre o fato.
— Não creio que seja mais triste que tudo o mais — retrucou Leo. — Talvez seja triste e ao mesmo tempo belo. A lei assim o determina.
— A lei? — indaguei, curioso. — De que lei está falando, Leo?
— A lei de servir. Quem desejar viver muito deve servir, mas aquele que desejar governar não viverá por longo tempo.
— Então por que tantas pessoas lutam para governar?
— É que elas não compreendem. São poucos os que nascem para governar: estes vivem sempre felizes e saudáveis. Todos os demais que se tornam senhores através do esforço morrem sem nada.
— Como nada, Leo?
— Em um hospital, por exemplo.
Não consegui compreendê-lo muito bem, mas suas palavras ficaram-me na lembrança e me fizeram julgar que Leo sabia todas as coisas, talvez mais do que nós, ostensivamente seus senhores.