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TUDO me parece ainda diferente, e ainda não pude definir se foi possível resolver meu problema. Mas ocorreu um fato que jamais esperara — ou talvez o esperasse, antegozasse, desejando-o e temendo-o ao mesmo tempo. E, no entanto, ainda me parece estranho e improvável.

Fui muitas vezes a Seilergraben, talvez mais de vinte, durante o período que julguei ser-me favorável, e geralmente passava pelo 69A, dizendo para mim mesmo: — Tentarei mais uma vez, se nada acontecer, não volto mais. — Mas lá estava eu de novo, e, dois dias atrás, consegui satisfazer meus anseios. E como os satisfiz!

Ao aproximar-me da casa, com cujas rachaduras e fissuras do reboco cinza-esverdeado já estava familiarizado, ouvi o assobio de uma canção popular, vindo da janela de cima. De nada sabia ainda, mas permaneci na escuta. A música despertou lembranças adormecidas em minha mente. Era uma música banal, mas lindamente executada, com notas leves e agradáveis, estranhamente puras, tão alegre e natural como as canções dos pássaros. Detive-me para escutá-la, como que encantado, e ao mesmo tempo comovido, sem que nenhum pensamento me desviasse dela. E se algum houve, devo ter julgado que se tratava de um homem muito feliz e afável que assobiava daquela maneira. Durante alguns minutos senti-me pregado ao solo. Um velho com o rosto doentio e encovado passou por mim. Viu-me parado e deteve-se também para ouvir por um breve momento, e sorriu com compreensão ao afastar-se. Seu comovente olhar envelhecido pareceu dizer-me:

— Não se mova, não é sempre que se pode ouvir algo assim.

Seu olhar animou-me. Senti-me triste quando partiu. Naquele mesmo momento, contudo, percebi que o assobio era a concretização de todos os meus anseios, que seu autor devia ser Leo.

Já começava a escurecer, mas não havia luz nas janelas. A música de simples variações cessara. Fez-se silêncio. — Agora, ele acenderá as luzes — pensei, mas tudo permaneceu na escuridão. Escutei então uma porta abrir-se no andar de cima e, em seguida, o ruído de passos na escada. A porta da casa foi aberta e dela surgiu alguém que caminhava no mesmo ritmo do assobio, com leveza e alegria, embora o andar fosse firme, saudável e jovial. Vislumbrei um homem esguio, sem chapéu, não muito alto, e minhas suspeitas transformaram-se ern certeza. Era Leo; não só o Leo do catálogo, mas o próprio Leo, nosso querido companheiro de viagem e servidor, cujo desaparecimento, cerca de dez anos atrás, nos trouxera tantos dissabores e desordem. Senti um impulso de dirigir-me a ele naquele instante de júbilo e surpresa. Lembrei-me então de que o ouvira assobiar muitas vezes durante a Viagem ao Oriente. Eram os mesmos acordes de outrora, porém, como me pareceram estranhamente diferentes! Invadiu-me uma enorme tristeza, como se me apunhalassem o coração: como tudo tinha mudado a partir de então, o céu, o ar, as estações, os sonhos, o sono, o dia e a noite! Como as coisas se haviam transformado para mim quando, graças a uma simples lembrança do passado, um assobio e o ritmo familiar de passos me afetaram tão profundamente, causando-me ao mesmo tempo tanto prazer e tanta dor!

O homem passou rente a mim, a cabeça descoberta e elástica envolta em uma aura de serenidade, quando a vi por trás, surgindo sobre a camisa azul de colarinho aberto. Sua figura movia-se com agilidade e leveza através da escura alameda, quase inaudível em sandálias finas ou sapatos tênis. Eu o segui sem nenhum propósito determinado. Como poderia deixar de fazê-lo! Ele prosseguia caminhando, e embora o passo fosse leve e fáciL assemelhava-se também à noite; tinha as mesmas características do crepúsculo, era companheiro da hora, continha os sons reprimidos do centro da cidade, a luz bruxuleante das primeiras lâmpadas que começavam a se acender.

Dirigiu-se ao pequeno parque do Portão de São Paulo, desaparecendo em meio aos altos e roliços arbustos, e eu apressei o passo para não perdê-lo de vista. Lá estava ele novamente; passeava lentamente ao longo dos canteiros de lilazes e acácias. O caminho bifurcou-se no pequeno bosque. Havia alguns bancos ao longo do gramado. Ali, sob as árvores, já escurecera. Leo passou pelo primeiro banco; nele estava sentado um jovem casal. O banco seguinte estava vazio. Ele sentou-se, inclinando a cabeça para trás, e durante alguns minutos contemplou as folhas e as nuvens. Em seguida tirou do bolso do casaco uma caixinha branca de metaL colocou-a a seu lado no assento do banco, destampou-a e lentamente pôs-se a tirar da caixa algo que colocou na boca e comeu com prazer. Enquanto isso, eu caminhava de um lado para outro na entrada do bosque; dirigi-me então ao banco onde se encontrava e sentei-me na extremidade oposta. Ele ergueu o olhar e fitou-me com seus olhos cinza-claros, sem interromper a refeição. Comia frutas secas, ameixas e damascos. Tirava-as uma a uma por entre dois dedos, apertava-as e apalpava, levava-as à boca e as mastigava demoradamente, com deleite. Passou-se muito tempo até que comesse a última fruta. Fechou então a caixa e a colocou de lado, inclinou-se para trás e estendeu as pernas. Agora podia ver que seus sapatos de lona tinham a sola de corda trançada.

— Vai chover hoje — disse ele subitamente, não sei se para mim ou para si próprio.

— É, parece que sim — respondi, um tanto embaraçado, pois se não reconhecera minhas feições e meu andar, era possível, eu tinha quase certeza, de que se recordaria de minha voz.

Mas ele não me reconheceu absolutamente, nem mesmo pela voz, e embora fosse esse o meu primeiro desejo, causou-me enorme decepção.

Não fora reconhecido. Ele permanecia o mesmo após dez anos, não envelhecera; comigo ocorrera de maneira diferente, melancolicamente diferente.

— Você assobia muito bem — disse eu.

— Estive a escutá-lo há pouco em Seilergraben. Causou-me enorme prazer. Eu já fui músico.

— De verdade? — exclamou amavelmente.

— É uma bela profissão. Com que então o senhor desistiu?

— Sim, por enquanto. Cheguei até a vender meu violino.

— Foi mesmo? Que pena! O senhor está em dificuldades... isto é, o senhor está com fome? Ainda tenho alguma coisa de comer em casa. Trago também algum dinheiro no bolso.

— Não, não — repliquei rapidamente — não foi isso que quis dizer. Estou em boa situação. Tenho mais do que o necessário. Mas de qualquer modo, muito obrigado; foi muito gentil em oferecer-me. Não é sempre que se encontram pessoas assim.

— O senhor acha? Talvez tenha razão. As pessoas às vezes são muito estranhas. O senhor também é uma pessoa estranha.

— Sou? Por que diz isso?

— Bem, porque o senhor tem dinheiro e vendeu seu violino. Quer dizer que não mais aprecia a música?

— Sim, aprecio, mas às vezes acontece que um homem não mais encontra prazer em algo de que costumava gostar. Um homem vende seu violino ou o atira de encontro à parede, um pintor um belo dia queima todos os seus quadros. Nunca ouviu falar em casos assim?

— Sim, ouvi. É devido ao desespero. Acontece realmente. Eu mesmo conheço duas pessoas que se suicidaram. Pessoas como essas são tolas e podem ser perigosas. Há certas pessoas a quem não podemos ajudar. Mas o que faz agora, se não tem mais seu violino?

— Ora, muitas coisas. Não tenho realmente muito o que fazer. Já não sou jovem e freqíientemente adoeço. Mas por que insiste em falar sobre o violino? Não é tão importante.

— O violino? É que me faz lembrar o Rei Davi.

— O Rei Davi? O que tem ele a ver com isso?

— Ele também era músico. Quando ainda muito jovem, costumava tocar para o Rei Saul e muitas vezes dissipava seus aborrecimentos através da música. Mais tarde ele próprio tornou-se rei, um grande rei cheio de cuidados, de humor variável e aflições. Usava uma coroa e dirigia guerras, e também perpetrou atos cruéis, tornando-se muito famoso. Mas quando penso em sua vida, a fase mais bela é a do jovem Davi tocando harpa para o pobre SauL e acho lamentável que tenha se tornado rei. Era muito mais feliz e bondoso quando músico.

— É claro que sim! — exclamei arrebatadamente. -Naruralmente, ele era mais jovem àquela época, mais belo e mais feliz. Mas não se fica jovem eternamente; o seu Davi de qualquer maneira perderia a juventude e a beleza, tornando-se um homem cheio de cuidados, mesmo que continuasse músico. Então transformou-se no grande Davi, realizou grandes feitos e compôs salmos. A vida não é sempre diversão!

Leo ergueu-se e fez uma mesura. — Está ficando escuro — disse — e logo começará a chover. Não conheço com detalhes os feitos de Davi, não sei se foram realmente notáveis. Para ser franco, tampouco conheço bem os seus salmos, mas não gostaria de dizer nada contra eles. Contudo, nada que Davi tenha dito me provará que a vida não passa de um jogo. É exatamente isso a vida, quando é bela e feliz... um jogo! É claro que se podem fazer muitas outras coisas, transformá-la em dever, em campo de batalha, em prisão, mas isso não a torna mais bela. Até logo, foi um prazer conhecê-lo!

O homem estranho e amável afastou-se com seu andar leve e firme, e estava prestes a desaparecer quando senti romperem-se meus poderes de autocontrole e comedimento. Corri atrás dele com desespero e gritei suplicante: — Leo, Leo! Você é Leo, não é? Você não me conhece mais? Fomos companheiros da Confraria, ainda somos. Participamos juntos da Viagem para o Oriente. Esqueceu-se de mim, Leo? Não se lembra dos Guardas da Coroa, de Klingsor e Goldmund, do Festival em Bremgarten, do despenhadeiro do Morbio Inferior? Leo, tenha piedade de mim! Ele não fugiu como eu temia, embora não se voltasse; caminhou com passo firme, como se nada tivesse escutado, mas deu-me tempo para que o alcançasse, e pareceu não fazer objeção a que seguisse a seu lado.

— O senhor está tão agitado, tão apressado — disse gentilmente — isto não é bom. Desfigura nossas feições e prejudica a saúde, Caminhemos devagar, acalma os nervos. São maravilhosas estas gotas esparsas de chuva, não acha? Caem do céu como água-de-colônia.

— Leo — disse em tom suplicante — tenha piedade! Diga-me apenas uma coisa: você ainda me conhece?

— Ah! — retrucou suavemente, como se falasse a um bêbedo ou um louco, — agora o senhor se sentirá melhor; estava apenas agitado. O senhor me pergunta se o conheço. Ora, quem conhece outras pessoas, ou mesmo a si próprio? Quanto a mim, não consigo compreender as pessoas. Não me interesso por elas. No entanto, compreendo os cães, os pássaros e os gatos... mas não o conheço, realmente, senhor.

— Mas você não pertence à Confraria? Não fez parte da expedição conosco?

— Eu ainda realizo a jornada, senhor, e ainda pertenço à Confraria. São tantos que surgem e partem; a gente conhece as pessoas e ao mesmo tempo não as conhece. Com os cães é muito mais simples. Espere, fique aqui um instante!

Ergueu o dedo em sinal de advertência. Detivemo-nos no jardim às escuras, que se deixava envolver por uma crescente névoa fina. Leo contraiu os lábios e deixou escapar um longo, suave e vibrante assobio, aguardou por um momento e voltou a assobiar. Dei um passo para trás quando, do outro lado da cerca telada onde nos encontrávamos, saltou um enorme cão policiaL surgindo por entre os arbustos, e, ganindo de prazer, encostou o corpo de encontro à cerca, para que pudesse ser acariciado pêlos dedos de Leo, através dos arames. Os olhos do animal faiscavam, com reflexos verdes, e sempre que seu olhar pousava sobre mim, soltava um profundo gemido. Era como um trovão distante, quase inaudível.

— Este é um cão policial, seu nome é Necker — disse Leo, apresentando-me. — Somos grandes amigos. Necker, este é um ex-violinista. Você não deve fazer nada contra ele, nem mesmo latir.

Leo acariciou suavemente o espesso pêlo do animal através das grades. Era realmente uma bela cena; agradava-me ver como se entendia tão bem com o cão, e o prazer que aquele encontro noturno lhe causava. Ao mesmo tempo, magoava-me, era quase insuportável, o fato de que Leo fosse tão afetuoso com o cão, provavelmente com todos os cães da redondeza, ao passo que nos separava uma enorme distância. A amizade e intimidade que eu provocava com humildade e quase súplica parecia pertencer àquele animal Necker, e também a todos os demais, a cada gota de chuva, a cada palmo de chão que Leo pisava. Era como se ele dedicasse todo o seu ser, numa constante atenção às coisas que o cercam, conhecendo-as todas, e sendo conhecido e amado por elas. E justamente comigo, que o amava e dele necessitava tanto, não havia essa intimidade, era o único de quem ele fugia; fitava-me de maneira fria e pouco amistosa, mantinha-me à distância e afastara-me de sua memória.

Prosseguimos na caminhada lado a lado. Da outra extremidade da cerca o cão o seguia, emitindo sons abafados e satisfeitos de afeição e prazer, sem, contudo, esquecer minha presença indesejável pois muitas vezes reprimiu seus grunhidos de defesa e hostilidade, por amor a Leo.

— Perdoe-me — tornei a falar — estou tomando seu tempo. Naturalmente, deseja ir para casa e recolher-se.

— Absolutamente — respondeu sorrindo. — Não me incomoda passear pela noite. Não me faltam tempo e vontade, não sei se o mesmo ocorre com o senhor.

Disse essas palavras com delicadeza e, naturalmente, com sinceridade. Porém, mal respondera, senti subitamente um cansaço enorme, na mente e em cada músculo do corpo, e como me eram fatigantes aquelas andanças inúteis e embaraçosas no meio da noite.

— Estou realmente muito cansado — disse desanimado — agora começo a senti-lo. Além do mais, não vejo motivo para ficar passeando sob a chuva, aborrecendo os outros.

— Como desejar — disse ele com cortesia.

— Ah, Sr. Leo, o senhor não falava comigo desta maneira durante a viagem da Confraria ao Oriente. Esqueceu-se realmente de tudo? Bem, não adianta. Não o importunarei mais. Boa-noite.

Desapareceu rapidamente na noite escura. Ali fiquei sozinho, como um tolo, a cabeça reclinada. Perdera a partida. Ele não me conhecia; não desejava conhecer-me; rira-se de mim.

Voltei pela alameda; Necker, o cão policiaL latia furioso por trás da cerca de arame. Estremeci de cansaço, desânimo e solidão, sob a tépida umidade daquela noite de verão.

Passara por momentos semelhantes no passado. No decurso desses períodos de desespero, era como se eu, um peregrino perdido, houvesse chegado à outra extremidade da terra, e nada mais me restasse a não ser a satisfação do último desejo: despencar-me de seu limite máximo para o vazio — para a morte. Este sentimento de desespero voltou a afligir-me muitas vezes; o impulso suicida, no entanto, afastara-se e quase desvanecera. A morte não era mais o vazio, a negação. Para mim, transformara-se em muitas outras coisas. Aceitava agora as horas de desalento como se recebe uma dor física; nós a suportamos, com desânimo ou coragem; sentimos que progride, e às vezes nos invade uma curiosidade enfurecida ou zombeteira quanto à sua capacidade de crescer, para ver até que ponto a dor pode ainda aumentar. Toda a tristeza de minha vida de desilusões que, desde o retorno da mal sucedida viagem ao Oriente, tornara-se cada vez mais inútil e sem sentido, toda a descrença em mim mesmo e em minha capacidade, as saudades que sentia, pesaroso e frustrado, dos belos tempos que vivera outrora, cresciam dentro de mim como essas dores, elevavam-se como árvores e montanhas, importunavam-me, e adivinham exclusivamente da tarefa a que me propusera anteriormente, à narrativa da Viagem ao Oriente e sobre a Confraria. Sentia agora que realizá-la não me traria satisfação ou proveito. Somente uma esperança parecia-me compensadora — purificar-me e redimir-me através de meu trabalho, do serviço que prestaria à lembrança daqueles magníficos dias, colocando-me novamente em contato com a Confraria e suas experiências.

Ao chegar a casa acendi a luz, sentei-me à mesa de trabalho com as roupas molhadas, o chapéu sobre a cabeça, e escrevi uma carta. Preenchi dez, doze, vinte páginas de ressentimentos, remorso e súplicas endereçadas a Leo. Descrevi-lhe a necessidade que dele sentia, evoquei imagens de nossas experiências mútuas, de nossos então amigos comuns. Lamentei as extremas e infinitas dificuldades que obstaram minha bem intencionada iniciativa. Desvanecera-se o aborrecimento do momento; agitado, sentara-me e escrevera. Apesar das dificuldades, escrevi, suportaria tudo mas não divulgaria um único segredo da Confraria. A despeito de tudo, não deixaria de completar meu trabalho em memória da Viagem ao Oriente, para glorificação da Confraria. Com enrusiasmo febril, cobria páginas e páginas de palavras rapidamente escritas. As lamentações, queixas e auto-acusações jorravam como água de uma torneira quebrada, sem reflexão, sem fé, sem esperança de resposta, apenas com o desejo de desabafar-me. Enquanto era ainda noite, levei a longa e confusa carta à mais próxima caixa postal. Finalmente veio a madrugada. Desliguei as luzes, dirigi-me ao pequeno dormitório do sótão, que fica ao lado de minha sala de estar, e deitei-me. Adormeci imediatamente, caindo num sono profundo e reparador.

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