APÓS abrir os olhos e cochilar novamente por várias vezes, despertei no dia seguinte com uma forte dor de cabeça, porém sentindo-me descansado. Para minha extrema surpresa, prazer e embaraço, encontrei Leo na sala de estar. Estava sentado à beira de uma cadeira e parecia esperar há longo tempo.
— Leo — exclamei — você veio!
— Eles me enviaram em nome da Confraria — explicou. — O senhor endereçou-me uma carta referindo-se a ela. Mostrei-a aos magistrados. O senhor deverá apresentar-se perante o Alto Trono. Podemos ir?
Apressei-me, perturbado, a calçar meus sapatos. Minha mesa, desarrumada a noite anterior, apresentava ainda um aspecto de desordem e confusão. Naquele momento, mal recordava o que havia escrito ali sentado, tão cheio de angústia, algumas horas atrás. Contudo, não parecia ter sido em vão. Alguma coisa acontecera. Leo viera.
Repentinamente, pela primeira vez, percebi a importância de suas palavras. Então ainda existia aConfrana,da qual nada mais soubera, e que existira sem mini e não mais me considerava um de seus membros! Ainda existiam a Confraria e o Alto Trono! Havia os magistrados; e estes me chamavam! Senti um calafrio. Vivera tantos meses naquela cidade, dedicando-me aos apontamentos sobre a Confraria e nossa viagem, sem saber se a mesma ainda existia, onde se encontrava, ou se era eu talvez o seu último membro. Na verdade, para ser franco, em certas ocasiões duvidara até de que a Confraria e minha participação junto à mesma houvessem realmente ocorrido. E agora ali estava Leo, enviado por ela, com a incumbência de levar-me. Eu fora lembrado, intimado, eles desejavam ouvir-me, talvez julgar-me. Deus do céu! Estava pronto. Estava pronto a demonstrar que não os traíra. Estava pronto a obedecer. Quer os magistrados me punissem ou perdoassem, estava preparado de antemão para aceitar o que viesse, para concordar com seu julgamento e obedecê-los.
Partimos. Leo seguia na frente,e,novamente, como costumava fazer muitos anos atrás ao observar seu modo de andar, fui obrigado a admirá-lo como um servidor perfeito. Caminhava pelas ruas à minha frente, ágil e pacientemente, indicando o caminho: era o guia perfeito, o servidor ideal no cumprimento de sua tarefa, o magistrado sem falhas. Impunha um árduo teste para a minha paciência. A Confraria mandara-me chamar, o Alto Trono me aguardava, rudo que possuía estava em jogo: minha vida futura seria decidida, a vida passada iria agora conservar ou perder todo o seu sentido — estremeci de ansiedade, prazer, angústia e temor. O caminho que Leo tomara parecia-me, na minha impaciência, interminável, pois tive de seguir o meu guia por mais de duas horas, através dos mais estranhos e aparentemente caprichosos caminhos. Leo deixou-me por duas vezes a esperá-lo à porta de uma igreja na qual foi orar. Durante longo tempo, que para mim pareceu uma eternidade, permaneceu em meditação, absorto diante da velha Municipalidade, e contou-me da sua fundação, no século XV, por um famoso membro da Confraria. E embora a maneira como tivesse tomado aquele caminho parecesse tão cuidadosa e proposital, confundiam-me as voltas, desvios e ziguezagues através dos quais aproximávamo-nos de nosso destino. A caminhada, que custou-nos toda a manhã, poderia ter sido feita em um quarto de hora.
Finalmente, Leo guiou-me até urna rua sossegada e suburbana, chegando a um enorme prédio silencioso. A julgar pelo aspecto exterior, dir-se-ia que se tratava de uma ampla assembléia, ou um museu. A princípio não se via vivalma em parte alguma. Os corredores e escadas estavam desertos e faziam ecoar nossos passos. Leo começou a procurar entre os vestíbulos, escadas e antecâmaras. Abriu cautelosamente uma enorme porta, que nos revelou um abarrotado estúdio artístico; diante de um cavalete vimos o artista Klingsor em mangas de camisa — ah, quantos anos se haviam passado desde a última vez que vira aquele rosto amado! Contudo, não ousei cumprimentá-lo; não era oporruno, naquele momento. Eu era esperado. Fora convocado. Klingsor não nos prestou muita atenção. Cumprimentou Leo com um aceno de cabeça; não me vira ou não me reconhecera, e fez um gesto, amável embora decidido, para que nos retirássemos, não permitindo qualquer interrupção em seu trabalho.
Finalmente, no topo do imenso edifício, chegamos a uma água-furtada que cheirava a papel e cartolina, em cujos corredores, através de centenas de jardas, havia portas de armários, lombadas de livros e pilhas de documentos; um arquivo gigantesco, uma enorme chancelaria. Ninguém tomava conhecimento de nossa presença; estavam todos silenciosamente ocupados. Tive a impressão de que todo o planeta, até mesmo o firmamento era dali governado ou pelo menos observado e registrado. Esperamos durante longo tempo de pé naquele local; os encarregados dos arquivos e biblioteca moviam-se apressadamente à nossa volta, com sumários e números de catálogos nas mãos. Colocavam escadas e nelas subiam em diversos pontos da sala, os elevadores e pequenos vagonetes eram postos em movimento, cuidadosa e silenciosamente. Leo então pôs-se a cantar. Escutei-o comovido; em certa ocasião aquela música me fora muito conhecida. Era a melodia de uma das canções da nossa Confraria.
Ao som da música, houve um rebuliço geral. Os magistrados retiraram-se, a sala permaneceu em uma sombria solidão. Um grupo de pessoas ocupadas, minúsculas e irreais, trabalhavam próximas ao gigantesco arquivo, no fundo da sala. Sua parte fronteira, contudo, mostrava-se espaçosa e vazia. O recinto ganhara impressionantes dimensões. No centro, dispostos em ordem, estavam numerosos assentos, e, vindos do fundo da sala, e das inúmeras portas, surgiram diversos magistrados que se aproximaram lentamente dos assentos e os ocuparam um a um. Aos poucos foram preenchidas todas as fileiras de cadeiras. A carreira de assentos erguia-se gradativamente até culminar com um trono, que ainda não fora ocupado. O solene Sinédrio achava-se repleto até à alrura do trono. Leo lançou-me um olhar de advertência para que me mantivesse calmo, silencioso e contrito, desaparecendo em meio aos demais; de repente, ele se fora, e não pude mais vê-lo. Mas aqui e ali, por entre os magistrados que se reuniam em redor do Alto Trono, observei fisionomias familiares, quer graves, quer sorridentes. Vi Albertus Magnus, o barqueiro Vasudeva, o artista Klingsor, e muitos outros.
Por fim todos silenciaram e o Presidente da Assembléia deu entrada na sala. Sentia-me pequenino e abandonado perante o Alto Trono, preparado para tudo, num estado de enorme ansiedade, embora de inteiro acordo com tudo o que ali ocorresse e ficasse decidido.
A voz do Presidente da Assembléia ergueu-se clara e serena através do recinto.
— Auto-acusação de um companheiro de Confraria, desertor -ouvi-o anunciar. Meus joelhos tremeram. Tratava-se de meu destino. Mas assim devia ser... as coisas precisavam agora ser esclarecidas. O Presidente prosseguiu:
— Seu nome é H. H.? O senhor participou da marcha através da Suábia Superior, e do Festival de Bremgarten? Abandonou seu grupo logo após a passagem pelo Morbio Inferior? Confessou que desejava escrever a narrativa da Viagem ao Oriente? Considerou-se impedido pelo seu voto de silêncio sobre os segredos da Confraria?
Respondi afirmativamente a cada unia das perguntas, mesmo aquelas que a mini pareciam incompreensíveis e assustadoras. Os magistrados conferenciaram com murmúrios e gestos durante alguns momentos; a seguir, o Presidente da Assembléia deu novamente um passo à frente e proclamou:
— O auto-acusado está de agora em diante autorizado a revelar publicamente todos os estatutos e segredos da Confraria que forem de seu conhecimento. Além disso, estão à sua disposição todos os arquivos da Confraria, para que complete seu trabalho.
Dito isto, afastou-se. Os magistrados dispersaram-se e desapareceram lentamente, alguns para o fundo da sala, outros para as saídas; fez-se silêncio completo na enorme sala. Olhava ansiosamente à minha volta, quando vi, sobre um dos arquivos, documentos que me pareceram familiares. Ao toma-los em minhas mãos, reconheci meu trabalho, minha difícil produção, o manuscrito que tinha iniciado.A Narrativa da Viagem ao Onente,de H. H., dizia o envelope azul. Tomei-o nas mãos e li a pequena e apertada caligrafia, muitas vezes rabiscada e cheia de correções. Assustava-me a idéia de que finalmente, com a aprovação dos superiores, teria permissão para completar minha tarefa. Ao considerar que nenhum juramento me prendia, que tinha acesso aos arquivos, àquelas imensas cavernas do tesouro, minha missão pareceu-me mais grandiosa e compensadora do que nunca.
No entanto, quanto mais páginas do manuscrito lia, menos me agradava o original. Mesmo nos meus primeiros momentos de profundo desânimo, jamais me parecera tão inútil e absurdo como agora. Tudo se mostrava tão tolo e confuso; as mais evidentes conexões estavam derurpadas, as mais óbvias, esquecidas; os fatos triviais e sem importância passavam ao primeiro plano. É preciso escrevê-lo outra vez, desde o princípio. Ao dar prosseguimento à leitura do manuscrito, riscava uma frase após outra e, ao fazê-lo, estas desintegravam-se sobre o papel, e as letras nítidas e inclinadas separavam-se em fragmentos ordenados, em pinceladas e pontos, círculos, flores e estrelas, cobrindo as páginas com desenhos graciosos e abstratos, como a ornamentação de um tapete.
Dentro em pouco, nada mais restava de meu texto; por outro lado, havia grande quantidade de papel em branco para meu trabalho. Recobrei a calma. Tentei ver as coisas claramente. Evidentemente, não conseguira fazer um relato preciso e imparcial, pois tudo se relacionava com os segredos que não me era permitido revelar, devido ao meu compromisso com a Confraria. Tentara evitar uma apresentação objetiva dos fatos, e, ao deixar de lado as relações, objetivos e metas mais importantes, restringira-me às experiências puramente pessoais. E ficou patente o resultado. Agora, não mais existiam restrições e votos de silêncio. Recebera permissão total e, o que é mais importante, os arquivos encontravam-se à minha inteira disposição.
Percebi que, mesmo que meu trabalho anterior não fosse conduzido de maneira fantasiosa, seria necessário começar tudo de novo, utilizando novas bases. Decidi introduzir um breve relato sobre a Confraria, sua fundação e estrutura. Os extensos e grossos catálogos rorulados sobre as mesas, perdidos na distância e escuridão da sala, por certo forneceriam as respostas para todas as minhas dúvidas.
Antes de mais nada, lancei-me ao exame dos arquivos, sem obedecer a qualquer ordem preestabelecida. Precisava aprender a utilizar aquela máquina impressionante. Naturalmente, procurei em primeiro lugar o documento da Confraria.
Documento da Confraria,dizia o catálogo, «veja seção Crisóstomos, grupo V, versículo 39,8». Encontrei a seção, o grupo e o versículo sem maiores dificuldades. Os arquivos estavam organizados em perfeita ordem. Agora tinha o documento em minhas mãos. Era preciso preparar-me para a eventualidade de não conseguir decifrá-lo. Estava escrito em caracteres gregos, parecia-me, e eu compreendia alguma coisa desse idioma, mas por um lado, tratava-se de uma linguagem bastante antiga e estranha, sendo os caracteres, apesar da aparente clareza, em sua maior parte ilegíveis; por outro lado, o texto fora escrito em dialeto ou em uma linguagem simbólica secreta, da qual pude compreender uma ou outra palavra isolada, pelo som ou por analogia. Mas ainda não desanimara. Ainda que o documento fosse indecifrável, seus caracteres trouxeram-me vivas lembranças do passado. Vi com clareza meu amigo Longos desenhando caracteres gregos e hebraicos, que se transformavam em pássaros, dragões e serpentes, àquela noite, no jardim.
Estremeci ao sentir a enorme quantidade de material à minha disposição, ao folhear o catálogo. Encontrei muitas palavras e nomes conhecidos. Com surpresa, vi meu próprio nome, mas não ousei consultar o arquivo a esse respeito — quem poderia suportar o veredicto de uma Corte de Justiça sobre si próprio? Encontrei também o nome do artista Paul Klee, a quem conhecera durante a viagem e que era amigo de Klingsor. Procurei seu número nos arquivos. Encontrei um disco dourado com um trevo gravado ou pintado sobre a superfície. A primeira folha representava um minúsculo barco a vela azul, a segunda, um peixe de escamas coloridas, e a terceira, um texto em forma de telegrama, que dizia:
Azul como a neve,
É Paul como o Trevo[1]
Experimentei um prazer melancólico ao ler a respeito de Klingsor, Longos, Max e Tilli. Não pude controlar o desejo de ler algo mais sobre Leo. Seu rótulo no catálogo dizia:
Cave!
Archiepisc. XIX. Diacon. D. VII.
Corno Ammon. 6
Cave!
Impressionaram-me as duas palavras do advertência,Cave.Não pude penetrar em seu sentido. A cada nova tentativa, conrudo, percebia cada vez melhor a fonte de materiaL conhecimentos, e fórmulas mágicas que os arquivos ofereciam. Era como se ali estivesse catalogado todo o universo.
Após incursões desconcertantes ou satisfatórias àquele vasto manancial de conhecimento, voltei repetidamente à indicação de «Leo», com curiosidade crescente. E cada vez atemorizava-me a repetição da palavra Cave. Foi quando, ao perscrutar um novo arquivo, deparei com a palavraFátimae a anotação:
princ. orient. 2
noct. mill. 983
hor. delic. 07
Encontrei a indicação nos arquivos. Havia um delicado medalhão que logo abri, contendo um retrato em miniatura de uma princesa de rara beleza, que por um instante fez-me lembrar de todas as mil e uma noites, das histórias de minha juventude, dos sonhos e anseios daquele maravilhoso período em que, viajando para o Oriente à procura de Fátima, Tivera meu noviciado e tornara-me membro da Confraria. O medalhão estava envolvido em um lenço de seda cor-de-malva, magnificamente tecido, do qual emanava uma fragrância adocicada e muito antiga, que trazia reminiscências de princesas e do Oriente. Ao sentir aquele odor mágico, antigo e raro, dominou-me a sensação repentina da doce magia que me envolvera ao encetar a peregrinação ao Oriente, e sua dissipação devido a obstáculos traiçoeiros e até desconhecidos, e como a magia desaparecera pouco a pouco, deixando-me profundamente desesperado, tomado pela desolação e desencanto. Não pude suportar por mais tempo a visão do lenço e do retrato, tal a névoa que minhas lágrimas interpuseram em meus olhos. Ah, pensei, o retrato da princesa árabe não era suficiente para lançar seus encantos contra o mundo e o inferno, transformando-me em cavaleiro e cruzado; seriam agora necessários outros encantos. Contudo, como fora belo, inocente e bem-aventura-do aquele sonho que povoara minha juventude, que me transformara em escritor, músico e noviço, e me levara a Morbio!
Ouvi sons que me despertaram de minha meditação. Havia uma animosidade lúgubre em cada canto da imensidão da sala dos arquivos. Fui atingido por um novo pensamento, uma nova dor, que atravessou meu coração como um raio. Desejava, na minha inocência, escrever a história da Confraria, eu, que não era capaz de decifrar ou compreender a milésima parte daqueles mimares de escritos, livros, gravuras e referências contidos nos arquivos! Com um sentimento de humilhação, julgando-me tolo, ridículo, incapaz de compreender a mim mesmo, extremamente insignificante, vi-me ali no meio de todas aquelas coisas as quais tivera permissão para consultar, para que pudesse compreender com exatidão o que éramos eu e a Confraria.
Surgiram magistrados em todas as portas. Alguns pude ainda reconhecer através das lágrimas. Vi Jup, o mágico, Lindhorst, o arquivista, e Mozart vestido como Pablo. A eminente Assembléia ocupou as diversas fileiras de assentos, que se tornavam mais altas e estreitas ao fundo; sobre o trono, que formava o cume, havia um brilhante dossel dourado.
O Presidente da Assembléia deu um passo à frente e anunciou:
— A Confraria está pronta para dar início ao julgamento, através de seus membros, sobre o auto-acusado H., que se sentiu impelido a guardar silêncio a respeito dos segredos da Confraria, e agora percebe como foi estranha e blasfema sua intenção de escrever a história de uma viagem que ele não acompanhou até o final e o relato de uma Confraria em cuja existência não mais acreditava e à qual tornou-se infiel.
Voltou-se em minha direção e disse com sua voz clara e empestada:
— Auto-acusado H., reconhece a Corte de Justiça e concorda em submeter-se aos seus desígnios?
— Sim — respondi.
— Auto-acusado H. — prosseguiu ele — concorda em que esta Corte de Justiça o julgue sem a presença do Presidente, ou deseja que ele próprio dê seu veredicto?
— Concordo — disse eu — em ser julgados pêlos seus membros, com ou sem a presença do Presidente. O Presidente da Assembléia preparava-se para retrucar quando, do fundo da sala, ouviu-se uma voz suave dizer:
— O próprio Presidente está pronto para dar o veredicto.
O som daquela voz macia provocou-me um estremecimento. Das profundezas do recinto, do remoto horizonte dos arquivos, surgiu um homem. Tinha o andar leve e fácil, suas vestes cintilavam com reflexos dourados. Aproximou-se por entre o silêncio da Assembléia, e então reconheci o seu andar, seus movimentos, e finalmente sua face. Era Leo. Subiu as filas de assentos, com suas magníficas e vistosas roupas, e, como um Papa, chegou ao Alto Trono. Subia as escadas, com as vestes reluzindo como uma flor rara e esplendorosa. Todos se ergueram à sua passagem. Conduzia-se com a mesma humildade e zelo com que o fazem o santo Papa ou o patriarca.
Achava-me ansioso e comovido, à espera do julgamento que estava humildemente pronto a aceitar, fosse para punir-me ou favorecer-me. Perturbava-me também o fato de tratar-se de Leo, nosso antigo serviçal, o homem que ocupava o cargo máximo de toda a Confraria, prestes a julgar-me. Porém, a grande descoberta daquele dia deixava-me ainda mais atônito, surpreso e feliz: a Confraria estava mais poderosa e sólida do que nunca, e não fora esta nem Leo que me haviam abandonado e desiludido, e sim eu mesmo, que fora tão fraco e tolo a ponto de desvirtuar o sentido de minhas próprias experiências, de duvidar da Confraria, de considerar a Viagem ao Oriente um fracasso, e considerar-me o sobrevivente e narrador de uma história concluída e esquecida, quando não passava de um fugitivo, um traidor, um desertor. Estes pensamentos causavam-me júbilo e estupefação. Lá estava eu, de pé diante do Alto Trono, pelo qual fora outrora aceito como membro da Confraria, que dirigira a cerimônia de meu noviciado, do qual recebera o anel, sendo imediatamente enviado ao serviçal Leo para os preparativos da jornada. E em meio a tudo isto, descobria um novo pecado, lima falta inexplicável, uma nova vergonha: não mais possuía o anel da Confraria. Perdera-o, não sabia onde ou quando, e não dera pela sua falta até aquele dia!
Nesse ínterim, o Presidente Leo, envolto em suas vestes douradas, começou a falar com sua bela e delicada voz; suas palavras evocavam bondade e conforto, eram cálidas como o sol.
— O auto-acusado — disse do Alto Trono — teve oportunidade de redimir-se de alguns erros. Há muito que ser dito contra ele. Podemos julgar compreensível e até desculpável que tenha sido infiel à Confraria, que a reprovasse através de suas próprias falhas e fantasias, que duvidasse da continuidade de sua existência, que tivesse a estranha ambição de tornar-se seu historiador. Nenhuma dessas acusações pesa gravemente sobre ele. São, se o auto-acusado não se opõe ao termo, tolices de noviciado. Podem ser perdoadas com um sorriso.
Respirei profundamente, e todos os membros da ilustre Assembléia deixaram transparecer um leve sorriso nos lábios. Era para mim um enorme alívio ver que o mais grave de meus pecados, e mesmo minha ilusão de que a Confraria não mais existisse, e que era eu o único discípulo remanescente, eram considerados pelo Presidente como «tolices», coisas sem importância, e ao mesmo tempo que isto me levava de volta ao ponto de partida.
— Contudo — prosseguiu Leo, sua voz agora triste e grave -existem outras ofensas mais sérias atribuídas ao réu, e a mais grave é que ele não se coloca como auto-acusado por esses pecados, mas demonstra desconhecê-los. Lamenta profundamente haver traído a Confraria em pensamento; não pode perdoar-se por não haver reconhecido no serviçal Leo o Presidente Leo, e começa a compreender a extensão de sua infidelidade à Confraria. Mas, ao passo que atribui enorme gravidade a esses pensamentos faltosos, e acaba de perceber que podem .ser perdoados com um sorriso, esquece-se obstinadamente de suas verdadeiras ofensas, que são inumeráveis, cada uma delas grave o bastante para merecer um castigo severo.
Meu coração disparou. Leo voltou-se para mim.
— Réu H., mais tarde compreenderá a extensão de suas faltas e saberá também como evitá-las no futuro. No entanto, apenas para mostrar-lhe como ainda desconhece sua situação, pergunto-lhe: Recorda-se de sua caminhada pelas ruas da cidade em companhia do serviçal Leo, que, no papel de mensageiro, deveria trazê-lo perante o Alto Trono? Sim, você se lembra. Lembra-se também de havermos passado pela Municipalidade, pela Igreja de São Paulo e pela Catedral, quando o serviçal Leo entrou para ajoelhar-se e orar, e você não só recusou-se a entrar em sua companhia para cumprir suas devoções, de acordo com o quarto preceito do seu juramento à Confraria, como permaneceu do lado de fora, impaciente e aborrecido, esperando pelo fim da tediosa cerimônia que lhe parecia tão desnecessária, que para você não passava de um teste desagradável à sua impaciência egoísta? Sim, você se lembra. Pelo simples comportamento que demonstrou à porta da Catedral, já teria ferido os requisitos fundamentais e os costumes da Confraria. Negligenciou a religião, mostrou-se insolente com um irmão da Confraria, rejeitou com impaciência uma oportunidade e um convite para rezar e meditar. Seriam pecados imperdoáveis, não houvesse circunstâncias atenuantes especiais em seu caso. Agora ele chegara ao ponto crítico. Tudo seria dito; não havia mais assuntos secundários, nem tolices. Ele tinha razão. Atingira o ponto crucial da questão.
— Não é nossa intenção enumerar todas as faltas do réu -prosseguiu o Presidente. — Ele não será julgado de acordo com nossos preceitos, e sabemos que seria necessária apenas a nossa advertência para despertar sua consciência e fazê-lo arrepender-se. Do mesmo modo, auto-acusado H., é preciso preveni-lo para que faça um exame de consciência a respeito de outros atos que praticou. Será preciso lembrá-lo da noite em que visitou o serviçal Leo e expressou o desejo de ser por ele reconhecido como um membro da Confraria, embora isso fosse impossíveL pois você se tornara irreconhecível como nosso irmão? Devo lembrá-lo da conversa que manteve com o serviçal Leo sobre a venda de seu violino? A vida estúpida, chocante, medíocre e suicida que levou durante tantos anos?
— Existe ainda um ponto, irmão H., sobre o qual não posso calar-me. É bem possível que o empregado Leo lhe tenha feito uma injustiça naquela noite. Vamos supor que sim. O serviçal Leo talvez tenha sido muito severo, muito racional; talvez não tenha demonstrado muita indulgência ou compreensão pela sua situação. Mas existem autoridades mais poderosas e juizes mais infalíveis do que o serviçal Leo. Como reagiu o animal? Lembra-se do cão Necker, de como o repeliu e condenou? Ele é incorruptível, não toma partido, não é um membro da Confraria.
Fez uma pausa. Sim, o cão policial Necker! Ele sem dúvida me repelira e condenara. Eu concordava. O cão policial e eu mesmo já havíamos feito o meu julgamento.
— Auto-acusado H. — recomeçou Leo, sua voz agora fria e cristalina por sob o brilho dourado do manto e do dossel, como a voz do comandante ao surgir à porta de Don Giovanni no último ato. — Auto-acusado H., você me ouviu e deu-me razão. Presumimos que terá dado seu próprio veredicto?
— Sim — respondi com a voz embargada, — ... sim.
— E presumimos que lhe seja um veredicto desfavorável?
— Sim — murmurei. Leo ergueu-se do trono e estendeu suavemente os braços.
— É a vocês, meus magistrados, que dirijo-me agora. Todos sabem o que ocorreu com nosso irmão da Confraria, H. O problema não lhes é desconhecido; muitos de vocês passaram pela mesma situação. O réu não estava ciente, ou não podia acreditar, que sua apostasia e infrações tratavam-se de um teste. Resistiu durante muitos anos, sem nada saber a respeito da Confraria, vivendo só, vendo tudo aquilo em que acreditava transformar-se em ruínas. Até que não mais pôde ocultar seus sentimentos. Sua agonia tornou-se forte demais, e sabemos que, quando sofremos intensamente, a ação se faz sentir. O irmão H. deixou-se levar pelo desespero em seu teste, e o desespero é o resultado de cada tentativa ansiosa que fazemos para compreender e justificar a vida. É o resultado das tentativas que fazemos de conduzir nossos atos com virtude, justiça e compreensão, e cumprir suas exigências. As crianças vivem em uma das margens do desespero; os lúcidos, em outra, O réu H. não é mais uma criança, e contudo não se encontra totalmente desperto. Vemo-lo ainda presa do desespero. Ele o vencerá e passará desse modo ao seu segundo noviciado. Será novamente recebido pêlos membros da Confraria, cujos segredos não mais deseja conhecer. Nós lhe devolveremos o anel perdido, que o serviçal Leo guardou para ele.
O Presidente da Assembléia trouxe o anel, beijou-me no rosto e colocou-o em meu dedo. Ao fitar a jóia, sentindo sua frieza metálica sobre o dedo, vieram-me à lembrança inúmeros atos de inconcebível negligência. Ocorreu-me principalmente que o anel era composto de quatro pedras separadas pela mesma distância, e que um preceito da Confraria mandava que se girasse o anel lentamente no dedo pelo menos uma vez durante o dia, e que cada uma das quatro pedras devia recordar-nos um dos quatro preceitos fundamentais do juramento. Eu não só perdera o anel e jamais dera pela sua falta, como também, no decorrer de todos aqueles anos terríveis, não voltara a repetir sequer um dos quatro preceitos fundamentais, ou mesmo os evocara. Tentei recitá-los para mini mesmo naquele momento. Tinha consciência de seu conteúdo, estavam ainda dentro de mim, pertenciam-me como um nome que seria lembrado em determinado momento, mas que naquele instante particular não conseguia recordar. Tampouco conseguia repetir as regras, elas ainda estavam mudas em minha mente, esquecera a fórmula. Desprezara os preceitos. Durante tantos anos não os observara e os reputara invioláveis — e ainda me considerara um membro leal da Confraria.
O Presidente da Assembléia tocou de leve em meu braço ao perceber minha surpresa e profunda vergonha. O Presidente tornou a falar:
— O réu e auto-acusado H. está absolvido, mas devo dizer-lhe que é dever de todo irmão absolvido em situação semelhante incorporar-se às fileiras de magistrados e ocupar um de seus lugares assim que passar por um teste de fé e obediência. Tem o direito de escolher esta prova. Agora, irmão H., responda às minhas perguntas:
— Está preparado para domar um cão feroz como prova de sua fé? Recuei, tomado pelo pavor. — Não, eu não poderia fazê-lo, gritei, dando um passo atrás.
— Está preparado e deseja queimar os arquivos da Confraria nesse instante, a uma ordem nossa, como o Presidente da Assembléia queima agora uma parte deles perante suas vistas?
Este último deu um passo à frente, mergulhou as mãos nas bem arrumadas gavetas do arquivo, tirou-as cheias de papéis, centenas deles, que, para meu horror, queimou sobre um tacho de carvão.
— Não — disse eu assustado — também não poderia fazê-lo.
—Cave, frater— clamou o Presidente — tenha cuidado, irmão imperuoso! Comecei com as tarefas mais simples, que requerem a mais ínfima parcela de fé. As tarefas seguintes serão cada vez mais difíceis. Responda-me: está preparado e deseja consultar nossos arquivos a respeito de você mesmo?
Senti um calafrio e a respiração acelerar-se, mas compreendi. As propostas tornavam-se mais severas; não havia saída, a não ser para o pior. Respirei profundamente, levantei-me e disse que sim.
O Presidente da Assembléia conduziu-me até às mesas onde se encontravam as centenas de arquivos. Procurei e encontrei a letra H. Lá estava meu nome. Em primeiro plano, o do meu ancestral Eoban, que, quatrocentos anos atrás, também fora membro da Confraria.
Li a seguir o meu próprio nome, com os dizeres:
Chattorum r. gest. XC.
civ. Calv. infid. 49.
O papel tremia em minhas mãos. Enquanto isso, os magistrados ergueram-se um a um, estenderam-me a mão, fitaram-me diretamente nos olhos e se afastaram. O Alto Trono estava vazio, e, finalmente, o Presidente desceu, estendeu-me a mão, fitou-me nos olhos e sorriu com benevolência, deixando a sala. Ali permaneci inteiramente só, com a anotação nas mãos, para mais tarde buscar informações nos arquivos.
Não estava preparado para consultar, naquele momento, os dados a meu respeito. Fiquei de pé, no meio da sala vazia, vendo estender-se à minha volta caixas, armários, gavetas e arquivos, o conjunto de todos os conhecimentos valiosos aos quais tinha acesso. Contudo, mais por medo de ler o meu próprio registro do que pelo ardente desejo de saber, lancei-me a leirura de algo mais sobre assuntos que me eram importantes, e da minha narrativa sobre a Viagem ao Oriente. Para ser sincero, já sabia há muito tempo que esta fora condenada, e que jamais deveria concluí-la. Não obstante, estava curioso.
Em um dos arquivos vi um memorando que se deslocara entre os demais. Caminhei em sua direção e retirei-o; nele lia-se o seguinte:
Morbio Inferiore.
Nenhum outro título teria expressado mais precisamente minha curiosidade. Com o coração disparado, procurei nos arquivos. Tratava-se de uma divisão que continha uma quantidade considerável de papéis. Havia uma cópia da descrição do Desfiladeiro de Morbio tirada de um velho livro italiano, e em seguida uma folha em forma de livro com anotações breves sobre o papel representado por Morbio na história da Confraria. Todas referiam-se à Viagem ao Oriente e também à base e ao grupo ao qual eu pertencera. Li que nosso grupo chegara a Morbio durante aquela jornada. Lá, fora submetido a um teste que não conseguiu ultrapassar, ou seja, o desaparecimento de Leo. Apesar de que as normas da Confraria devessem ter-nos orientado, e que, mesmo no caso de um grupo ver-se privado de guias, os preceitos inculcados em nós no início da jornada fossem suficientes para orientar-nos, desde o momento em que tomamos conhecimento do desaparecimento de Leo, perdemos o controle e a fé, passando a duvidar e manter discussões inúteis. Ao finaL todo o grupo, contrariando o espírito da Confraria, dividiu-se em facções e desmembrou-se. Esta explicação para o fracasso em Morbio não mais me surpreendia. Surpreendeu-me, sim, o que li a seguir sobre o desmembramento de nosso grupo, ou seja, que tive membros da Confraria fizeram uma tentativa de escrever o relato de nossa jornada, com a descrição dos acontecimentos em Morbio. Eu era um dos três, e havia uma cópia de meu manuscrito naquela divisão. Li o conteúdo dos demais acompanhado dos mais estranhos sentimentos. De maneira geraL os dois escritores descreveram os fatos daquele dia de maneira semelhante à minha, e no entanto como me pareciam diferentes! Um deles dizia:
«A ausência do serviçal Leo revelou-nos de maneira repentina e terrível a extensão das discordâncias e dificuldades que atingiram nossa união até então aparentemente total. Alguns de nós, de fato, imediatamente suspeitaram, ou souberam, que Leo nada sofrera, e que não se tratara de fuga, mas que fora secretamente convocado pêlos magistrados da Confraria. No entanto, nenhum de nós pode considerar sem profundo arrependimento e vergonha a maneira reprovável com que nos submetemos a esse teste. Mal Leo nos deixara, vimos desaparecer a fé e a concórdia que reinava entre nós; foi como se o sangue vital de nosso grupo se esvaísse através de uma ferida invisível. A princípio surgiram divergências de opinião, depois discussões abertas sobre as mais ridículas e insignificantes questões. Lembro-me, por exemplo, de que o popular e digno regente do nosso coro, H. H., passou subitamente a afirmar que Leo levara também em sua sacola, além de outros valiosos objetos, o antigo documento sagrado, o manuscrito original do Mestre. Sua afirmativa foi motivo de acaloradas discussões, que se prolongaram por vários dias. Considerada do ponto de vista simbólico, a absurda afirmação de H. era realmente muito importante; na verdade, parecia que a prosperidade da Confraria, a união de suas fíleiras, desaparecera por completo com a ausência de Leo. O próprio músico H. foi um triste exemplo do que digo. Até aquele dia em Morbio Inferior, era um dos mais leais e fiéis irmãos da Confraria, bastante popular como artista, e, apesar de algumas fraquezas de caráter, constituía-se em um dos membros mais ativos. Mas deixou-se tomar pela melancolia, depressão e desconfiança, tornou-se profundamente negligente no cumprimento de seus deveres, e passou a agir de maneira intolerante, nervoso e irritadiço. Quando, certo dia, finalmente deixou-se ficar para trás em nossa marcha, e não voltou a aparecer, ninguém cogitou em parar para procurá-lo; tratava-se, evidentemente, de um caso de deserção. Infelizmente, ele não foi o único, até que, um dia, nada mais restava de nossa reduzida caravana...»
Li o seguinte trecho da narrativa de outro historiador:
«Assim como a antiga Roma sucumbiu após a morte de César, e o pensamento democrático através do mundo após Wilson abandonar as idéias que defendia, assim nossa Confraria desfez-se naquele malfadado dia em Morbio. No que se refere a culpas e responsabilidade, poderíamos citar dois participantes aparentemente inofensivos, o músico H. H. e Leo, um dos empregados. Estes dois homens eram membros outrora populares e fiéis da Confraria, embora não compreendessem perfeitamente a importância histórica da mesma. Desapareceram, certo dia, sem deixar qualquer vestígio, levando consigo valiosos objetos e documentos importantes, o que indica que os dois pobres diabos foram subornados por inimigos da Confraria ...»
Se a memória desse historiador era tão confusa e imprecisa, embora tivesse feito seu relatório com aparente boa-fé, na certeza de sua completa veracidade — o que valiam minhas próprias anotações? Se houvesse dez narrativas de outros autores sobre Morbio, Leo e eu provavelmente seriam contraditórias e de múrua reprovação. Não, nossos esforços históricos de nada valiam; não adiantava dar-lhes continuidade, nem prosseguir em sua leitura; era melhor deixar que se cobrissem com a poeira dos arquivos.
Estremeci ao pensamento de que tantas outras revelações me esperavam naquela hora. Como eram distorcidas as imagens refletidas por esses espelhos, como a verdade se ocultava, zombeteira e inatingível, por trás daqueles relatórios, contra-relatórios e lendas! Como saber o que era ainda verdade? E o que restaria, quando me fossem revelados os dados a meu respeito, sobre meu caráter, e minha narrativa, contidos nos arquivos?
É preciso estar preparado. De repente, não mais pude suportar a incerteza e a expectativa. Dirigi-me apressadamente à divisãoChattorum res gestae,procurei minha subdivisão e número, e lá estava diante de meu próprio nome. Tratava-se de um nicho, e ao afastar as leves cortinas nada vi escrito. Continha apenas uma imagem, um velho e gasto modelo em madeira ou cera, de um colorido pálido. Pareceu-me uma espécie de divindade ou ídolo barbárico. A princípio, não compreendi. A imagem, na realidade, consistia em duas pessoas, unidas pelas mesmas costas. Fitei-a durante alguns instantes, desapontado e surpreso. Foi então que vislumbrei uma vela presa em um candelabro, fixado na parede do nicho. Havia também uma caixa de fósforos. Acendi a vela, iluminando a imagem dupla.
A compreensão atingiu-me lentamente. Pouco a pouco comecei a suspeitar e finalmente a compreender o que aquilo representava. Era minha imagem, e aquela semelhança pareceu-me desagradavelmente imprecisa e um tanto irreal; as feições apresentavam-se distorcidas, e a expressão tinha qualquer coisa de instável, fraco, moribundo ou desejoso de morrer, mais parecendo uma peça de escultura a que poderíamos denominarTransitoriedade, Decadência,ou algo assim. Por outro lado, a figura que se achava unida à minha, formando um todo, tinha formas e cores vibrantes, e assim que percebi com quem se parecia, ou seja, o serviçal e Presidente Leo, descobri uma outra vela na parede, que também acendi. Vi então que a dupla figura, representando a mim e a Leo, tornava-se mais clara, as feições mais semelhantes, como também que a superfície das mesmas era transparente, e podia-se ver dentro delas, do mesmo modo como se vê através do vidro de um vaso ou garrafa. No seu interior havia algo que se movia lentamente, como uma serpente adormecida a deslocar-se. Ocorria alguma coisa ali dentro, como um lento e suave fluxo, ou uma fusão; e, de fato, alguma coisa em minha imagem fundiu-se ou derramou-se na dele. Vi que minha imagem começava a incorporar-se à de Leo, nutrindo-a e fortalecendo-a. Pareceu-me que, em determinado momento, toda a substância de uma fluiria para dentro da outra, e restaria apenas uma: Leo. Ele devia crescer; eu, desaparecer.
Ao tentar compreender o que via, lembrei-me de um breve diálogo que travara certa vez com Leo, durante os alegres dias em Bremgarten. Dizíamos então que a criação poética é mais viva e real do que os próprios poetas.
As velas arderam lentamente, até que se consumiram. Sentia-me tomado por um cansaço e um sono profundos, e retirei-me em busca de um lugar onde pudesse repousar meu corpo e adormecer.