E de algum modo, depois daquilo, Grande-Jon transformara-se no

braço direito de Robb, no seu campeão mais dedicado, dizendo

sonoramente a todo mundo que o senhor rapaz era afinal um Stark,

e que fariam melhor em dobrar o raio dos joelhos se não quisessem

vê-los arrancados à dentada.

Mas, nessa mesma noite, Robb viera ao quarto de Bran, pálido e

abalado, depois de os fogos se terem consumido no Grande Salão.

- Pensei que ia me matar - Robb confessara. - Viu a maneira como

ele atirou o Hal ao chão, como se não fosse maior que Rickonf

Deuses, fiquei tão assustado. E Grande-Jon não é o pior dentre eles, é

só o mais barulhento. Lorde Roose nunca diz uma palavra, limita-se a

olhar para mim, e tudo em que eu consigo pensar é naquela sala que

eles têm no Forte do Pavor, onde os Bolton penduram as peles de

seus inimigos.

- Isso é só uma das histórias da Velha Ama - Bran dissera. Mas uma

nota de dúvida insinuara--se na sua voz. - Não ti

- Não sei - o irmão abanara a cabeça com ar cansado. - Lorde

Cerwyn quer levar a filha conosco para o sul. Para cozinhar, diz ele.

Theon tem certeza de que hei de encontrar uma noite a moça na

minha cama. Gostaria... gostaria que nosso pai estivesse aqui.

Isso era uma coisa em que eles podiam concordar, Bran, Rickon e

Robb, o Senhor; todos eles desejavam que o pai estivesse ali. Mas

Lorde Eddard estava a mil léguas de distância, preso numa masmorra

qualquer, fugitivo perseguido procurando manter-se vivo, ou até

morto. Ninguém parecia saber ao certo; cada viajante contava uma

história diferente, cada uma mais aterrorizadora que a outra. Que as

cabeças dos guardas do pai apodreciam nas muralhas da Fortaleza

Vermelha, empaladas em lanças. Que o Rei Robert tinha morrido nas

mãos do pai. Que os Baratheon tinham montado cerco a Porto Real.

Que Lorde Eddard fugira para o sul com o irmão malvado do rei,

Renly. Que Arya e Sansa tinham sido assassinadas pelo Cão de Caça.

Que a mãe matara Tyrion, o Duende, e pendurara seu corpo nas

muralhas de Correrrio, Que Lorde Tywin Lannister marchava sobre o

Ninho da Águia, queimando e matando tudo à sua passagem. Um

contador de histórias encharcado de vinho até afirmara que Rhaegar

Targaryen regressara dos mortos e liderava uma vasta tropa de

antigos heróis contra Pedra do Dragão para reclamar o trono do pai.

Quando o corvo chegara, trazendo uma carta marcada com o selo do

pai e escrita com a letra de Sansa, a verdade cruel não parecera

menos incrível. Bran nunca se esqueceria da expressão de Robb

quando vira as palavras da irmã.

- Ela diz que nosso pai conspirou para cometer traição com os

irmãos do rei - lera. - O Rei Robert está morto, e a mãe e eu somos

convocados à Fortaleza Real para jurar fidelidade ajoffrey. Diz que

devemos ser leais e que, quando casar com Joffrey, suplicará a ele

que poupe a vida do senhor nosso pai - seus dedos fecharam-se em

punho, esmagando a carta de Sansa. - E nada diz de Arya, nada, nem

uma única palavra. Maldita seja! Que se passa com ela?

Bran sentira-se completamente frio por dentro.

- Perdeu seu lobo - ele respondeu, a voz fraca, recordando o dia em

que quatro dos guardas do pai tinham regressado do sul com os

ossos de Lady. Verão, Vento Cinzento e Cão Felpudo tinham

começado a uivar antes de eles atravessarem a ponte levadiça, com

sons arrastados e desolados. A sombra da Primeira Torre ficava um

antigo cemitério, com as lajes semeadas de liquens, onde os antigos

Reis do Inverno tinham enterrado seus criados fiéis. Lady fora

enterrada ali, enquanto os irmãos caminhavam por entre as tumbas

como sombras inquietas. Partira para o sul, mas só os ossos tinham

regressado.

O avô, o velho Lorde Rickard, também partira, com o filho Brandon,

que era irmão do seu pai, e duzentos de seus melhores homens,

Nenhum regressara. E o pai fora para o sul, com Arya e Sansa, e Jory,

Hullen, Gordo Tom e os outros, e mais tarde a mãe e Sor Rodrik

tinham partido, e eles também não tinham regressado. E agora era

Robb quem queria partir. Não para Porto Real, e não para jurar

fidelidade, mas para Correrrio, com uma espada na mão. E se o

senhor pai de ambos fosse de fato prisioneiro, isso significaria com

certeza a sua morte. Assustava Bran mais do que era capaz de

exprimir.

- Se Robb tem de ir, olhem por ele - suplicou Bran aos deuses

antigos enquanto o observavam com os olhos vermelhos da árvore-

coração -, e olhem pelos seus homens, por Hal, Quent e os outros, e

por Lorde Umber, pela Senhora Mormont e pelos outros senhores. E

também por Theon, acho. Observem e os mantenham a salvo, se vos

agradar, deuses. Ajudem-nos a derrotar os Lannister e a salvar meu

pai, e a trazê-lo para casa.

Um leve vento suspirou pelo bosque sagrado e as folhas vermelhas

agitaram-se e sussurraram. Verão mostrou os dentes.

- Pode ouvi-los, rapaz? - perguntou uma voz.

Bran ergueu a cabeça. Osha estava em pé do outro lado da lagoa, sob

um antigo carvalho, com o rosto obscurecido por folhas. Mesmo

presa a grilhões, a selvagem movia-se silenciosamente como uma

gata. Veráo deu a volta na lagoa e a farejou. A mulher alta vacilou.

- Verão, a mim - chamou Bran. O lobo selvagem fungou uma última

vez, girou sobre si mesmo e voltou. Bran enrolou os braços nele. -

Que faz aqui? - não tinha visto Osha desde a sua captura na Mata de

Lobos, embora soubesse que a tinham posto para trabalhar nas

cozinhas.

- Também são os meus deuses - Osha disse. - Para lá da Muralha,

são os únicos deuses - os cabelos estavam crescendo, castanhos e

desgrenhados. Faziam-na parecer mais feminina, isto e o vestido

simples de ráfia marrom que lhe tinham dado quando lhe tiraram a

cota de malha e a roupa de couro. - Gage deixa-me orar de vez em

quando, quando sinto falta, e eu o deixo fazer o que quiser debaixo

da minha saia quando sente falta. Para mim não significa nada. Gosto

do cheiro da farinha em suas mãos, e é mais gentil que o Stiv - fez

uma reverência desajeitada. - Vou deixá-lo só. Há panelas que

precisam ser esfregadas.

- Não, fique - ordenou-lhe Bran. - Explique-me o que queria dizer

com ouvir os deuses. Osha o estudou.

- Você fez um pedido e eles estão respondendo. Abra os ouvidos,

escute, e ouvirá. Bran escutou.

- É só o vento - disse após um momento, inseguro. - As folhas estão

batendo.

- Quem você pensa que envia o vento, se não os deuses? - ela sentou

do outro lado da lagoa, tilintando levemente enquanto se movia.

Mikken prendera grilhetas de ferro em seus tornozelos, com uma

corrente pesada entre elas; podia caminhar, desde que mantivesse os

passos pequenos, mas não havia chance de correr, de subir ou de

montar um cavalo. - Eles o veem, rapaz. Ouvem--no falar. Esse bater?

Isso são eles respondendo.

- Que estão dizendo?

- Estão tristes. O senhor seu irmão não terá sua ajuda no lugar para

onde vai. Os velhos deuses não têm poder no Sul. Lá, os represeiros

foram todos derrubados há milhares de anos. Como poderiam vigiar

seu irmão se não têm olhos?

Bran não tinha pensado naquilo. E ficou assustado. Se nem mesmo

os deuses podiam ajudar o irmão, que esperança havia? Talvez Osha

não estivesse ouvindo corretamente. Inclinou a cabeça e tentou

escutar de novo. Julgou conseguir ouvir agora a tristeza, mas nada

além disso.

O bater das folhas tornou-se mais sonoro. Bran ouviu passos

abafados e um cantarolar em voz baixa, e Hodor saiu

desajeitadamente por entre as árvores, sorrindo e nu.

- Hodor!

- Deve ter ouvido as nossas vozes - disse Bran. - Hodor, esqueceu a

roupa.

- Hodor - o gigante concordou. Estava encharcado do pescoço para

baixo, fumegando no ar gelado. Tinha o corpo coberto de pelos

castanhos, espessos como os da pele de um animal. Entre as pernas,

o membro viril pendia, longo e pesado,

Osha o olhou com um sorriso azedo.

- Ora, aí está um homem grande - disse. - Se não tem nele o sangue

dos gigantes, eu sou a rainha.

- Meistre Luwin diz que já não há gigantes. Diz que estão todos

mortos, como os filhos da floresta. Tudo o que resta deles são velhos

ossos que os homens desenterram com arados de quando em

quando.

- Que Meistre Luwin viaje até para lá da Muralha - Osha rebateu. -

Encontrará então gigantes, ou será encontrado por eles. Meu irmão

matou uma. Tinha três metros de altura, e mesmo assim era

enfezada. Sabe-se que crescem até três metros e meio ou quatro

metros. E também são criaturas ferozes, todas pelos e dentes, e as

mulheres têm barbas como os maridos, de modo que não há como

os distinguir. As mulheres tomam homens humanos como amantes, e

é daí que vêm os mestiços. É mais duro para as mulheres que eles

apanham. Os homens são tão grandes que mais depressa rasgam

uma donzela em duas do que a deixam com bebê - deu-lhe um

sorriso,

- Mas você não sabe do que falo, não é, rapaz?

- Sei, sim - Bran insistiu. Compreendia o acasalamento; vira os cães

no pátio, e observara um garanhão montando uma égua. Mas falar

disso o deixava desconfortável. Olhou para Hodor.

- Volte e traga sua roupa, Hodor - ele ordenou. - Vá-se vestir.

- Hodor - o simplório voltou pelo caminho de onde tinha vindo,

abaixando-se para passar sob um ramo baixo de uma árvore.

Ele era muitíssimo grande, pensou Bran enquanto o observava partir.

- Há mesmo gigantes para lá da Muralha? - perguntou a Osha,

incerto.

- Há gigantes e coisas piores que gigantes, senhorzinho. Tentei dizer

a seu irmão quando me interrogou, a ele, ao seu meistre e àquele

rapaz sorridente, Greyjoy. Os ventos frios estão se levantando, e

homens afastam-se de seus fogos e nunca mais regressam... ou,

quando regressam, já não são homens, são só criaturas, com olhos

azuis e mãos frias e negras. Por que você pensa que fugi para o sul

com Stiv, Hali e o resto daqueles idiotas? Mance acha que vai lutar, o

bravo, querido, teimoso do homem, como se os caminhantes brancos

não fossem mais que patrulheiros. Mas, que sabe ele? Ele pode

chamar a si próprio Rei-para-lá-da-Muralha se bem entender, mas

ainda é apenas mais um dos velhos corvos negros que fugiram da

Torre Sombria. Nunca experimentou o inverno. Eu nasci lá em cima,

filho, tal como a minha mãe e a mãe dela antes dela, e a mãe dessa

antes dela, nascida entre o Povo Livre. Nós recordamos - Osha pôs-se

em pé, fazendo tinir as correntes. - Tentei dizer ao senhorzinho seu

irmão. Ontem mesmo, quando o encontrei no pátio. "Senhor Stark",

chamei, com todo o respeito, mas ele olhou através de mim, e aquele

imbecil suado do Grande-Jon Umber afastou-me de seu caminho.

Assim seja. Usarei meus ferros e terei tento na língua. Um homem

que não quer escutar não pode ouvir.

- Diga-me. Robb me escutará, eu sei que sim.

- Será? Veremos. Diz isto a ele, senhor. Diz que ele está decidido a

marchar na direção errada. Ê para o norte que ele devia levar suas

espadas. Para o norte, não para o sul. Está me ouvindo?

Bran anuiu.

- Direi a ele.

Mas naquela noite, durante o banquete no Grande Salão, Robb não

se encontrava lá. Em vez disso, fez sua refeição no aposento privado,

com Lorde Rickard, Grande-Jon e os outros senhores vassalos, a fim

de preparar os últimos planos para a longa marcha que se

aproximava. Bran ficou com a tarefa de ocupar o seu lugar à

cabeceira da mesa e agir como anfitrião perante os filhos e amigos

de honra de Lorde Karstark. Já estavam em seus lugares quando

Hodor o transportou às costas para o salão e ajoelhou ao lado do

cadeirão. Dois dos criados ajudaram a erguê-lo do cesto, Bran

conseguia sentir os olhos de todos os estranhos presentes no salão. O

silêncio se fizera.

- Senhores - anunciou Hallis Mollen -, Brandon Stark, de Winterfell.

- Dou-lhes as boas-vindas às nossas fogueiras - disse Bran

rigidamente - e ofereço-lhes comida e bebida em honra da nossa

amizade.

Harrion Karstark, o mais velho dos filhos de Lorde Karstark, fez uma

reverência, e os irmãos seguiram o seu exemplo, mas, enquanto se

instalavam em seus lugares, ouviu os dois mais novos conversando

em voz baixa sobre o tinir de taças de vinho.

- ... preferia morrer a viver assim - murmurou um deles, o que tinha

o nome do pai, Eddard, e o irmão Torrhen disse que era provável

que o rapaz fosse tão quebrado por dentro como por fora, covarde

demais para tirar a própria vida.

Quebrado, Bran pensou amargamente enquanto se agarrava à faca.

Seria isso agora? Bran, o Quebrado?

- Não quero ser quebrado - sussurrou com veemência a Meistre

Luwin, que estava sentado à sua direita. - Quero ser um cavaleiro.

- Há quem chame à nossa Ordem os cavaleiros da mente -

respondeu Luwin. - É um rapaz extremamente inteligente quando se

esforça, Bran. Alguma vez pensou na possibilidade de usar uma

corrente de meistre? Não há limite para o que pode aprender.

- Quero aprender magia - disse-lhe Bran. - O corvo prometeu que eu

voaria. Meistre Luwin suspirou.

- Posso ensinar história, artes de curar, as ervas. Posso ensinar a

língua dos corvos, e como construir um castelo, e o modo como um

marinheiro orienta o navio pelas estrelas. Posso ensinar a medir os

dias e a marcar a passagem das estações, e na Cidadela, em Vilavelha,

podem lhe ensinar outras mil coisas. Mas, Bran, ninguém pode lhe

ensinar magia.

- Os filhos podiam - Bran respondeu. - Os filhos da floresta - aquilo

lhe lembrou a promessa que fizera a Osha no bosque sagrado, e

contou a Luwin o que ela dissera.

Meistre o ouviu educadamente.

- Parece-me que a selvagem podia dar lições de contar histórias à

Velha Ama - ele disse quando Bran terminou. - Voltarei a falar com

ela, se desejar, mas seria melhor se não incomodasse seu irmão com

esta loucura. Ele tem preocupações mais que suficientes sem se

aborrecer com gigantes e mortos na floresta. São os Lannister que

têm o senhor seu pai cativo, Bran, não os filhos da floresta - pousou

a mão gentil no braço de Bran. - Pense no que eu disse, menino.

Dois dias mais tarde, enquanto uma alvorada vermelha surgia num

céu varrido pelo vento, Bran deu por si no pátio junto ao portão,

atado à Dançarina, enquanto se despedia do irmão.

- Você é agora senhor de Winterfell - disse-lhe Robb. Estava montado

num hirsuto garanhão cinzento, com o escudo pendurado no seu

flanco; madeira reforçada a ferro, branca e cinzenta, com o desenho

de uma cabeça de um lobo gigante a rosnar. O irmão de Bran usava

cota de malha cinza sobre couros branqueados, uma espada e um

punhal à cintura, um manto debruado de pele sobre os ombros. -

Você tem de ocupar o meu lugar, como ocupei o do nosso pai, até

regressarmos.

- Eu sei - respondeu Bran em tom infeliz. Nunca se sentira tão

pequeno, tão só ou tão assustado. Não sabia como ser um senhor.

- Escute os conselhos de Meistre Luwin e tome conta de Rickon.

Diga a ele que volto assim que a luta acabar.

Rickon recusara-se a descer. Estava lá em cima, em seu quarto, de

olhos vermelhos e rebelde.

- Não! - gritara quando Bran lhe perguntara se não queria dizer

adeus a Robb. - Adeus, não!

- Eu lhe disse - Bran respondeu. - Ele diz que nunca ninguém

regressa.

- Não pode ser um bebê para sempre. É um Stark, e tem quase

quatro anos - Robb suspirou. - Bem, nossa mãe estará em casa em

breve. E eu trarei nosso pai, prometo.

Deu meia-volta com o cavalo e afastou-se a trote. Vento Cinzento o

seguiu, saltitando ao lado do cavalo de guerra, esbelto e ligeiro. Hallis

Mollen atravessou o portão à frente da coluna, transportando a

ondulante bandeira branca da Casa Stark no topo de um grande

poste de freixo cinzento. Theon Greyjoy e Grande-Jon puseram-se ao

lado de Robb, e seus cavaleiros formaram uma coluna dupla atrás

deles, com lanças de ponta de aço brilhando ao sol.

De um modo desconfortável recordou as palavras de Osha, Ele

marcha na direção errada, pensou. Por um instante quis galopar

atrás dele e gritar o aviso, mas quando Robb desapareceu sob a

porta levadiça o momento passou,

Para lá das muralhas do castelo ergueu-se um rugido. Bran sabia que

os soldados apeados e os habitantes da vila saudavam Robb enquanto

ele passava; saudavam Lorde Stark, o Senhor de Winterfell no seu

grande garanhão, com seu manto ondulante e Vento Cinzento, que

corria ao seu lado. Compreendeu com uma dor surda que nunca o

saudariam daquele modo. Ele podia ser Senhor de Winterfell

enquanto o irmão e o pai estivessem ausentes, mas era ainda Bran, o

Quebrado. Nem sequer podia sair de cima do cavalo se não fosse

para cair.

Depois de as saudações distantes se reduzirem ao silêncio, e o pátio

ficar por fim vazio, Winterfell pareceu deserto e morto. Bran olhou

em redor, para o rosto dos que ficaram, mulheres, crianças e velhos..

e Hodor. O enorme cavalariço tinha uma expressão perdida e

assustada no rosto.

- Hodor? - disse ele, com voz triste.

- Hodor - concordou Bran, perguntando a si mesmo que significado

teria aquilo.


Daenerys


Depois de obter seu prazer, Khal Drogo levantou-se dos tapetes de

dormir e ficou em pé, acima dela. Sua pele brilhava, escura como

bronze, à luz avermelhada que vinha do braseiro, e podiam-se ver as

tênues linhas de antigas cicatrizes no peito largo. Cabelos negros

como tinta, soltos e sem nós, caíam em cascata sobre os ombros e ao

longo das costas, até bem depois da cintura. O membro viril cintilava

de umidade. A boca do khal torceu-se numa expressão mal-

humorada sob o longo bigode.

- O garanhão que monta o mundo não precisa de cadeiras de ferro

para nada.

Dany apoiou-se sobre o braço para olhá-lo, tão alto e magnífico.

Adorava especialmente os seus cabelos. Nunca foram cortados; ele

nunca conhecera a derrota.

- Foi profetizado que o garanhão cavalgará até os confins da terra -

ela disse.

- A terra termina no mar negro de sal - Drogo respondeu

imediatamente. Molhou um pano numa bacia de água morna para

limpar o suor e o óleo da pele. - Nenhum cavalo pode atravessar a

água venenosa.

- Nas Cidades Livres há navios aos milhares - disse-lhe Dany, tal

como já tinha lhe dito antes. - Cavalos de madeira com cem pernas,

que voam pelo mar em asas cheias de vento.

Khal Drogo não queria ouvir falar do assunto.

- Não falaremos mais de cavalos de madeira e cadeiras de ferro -

deixou cair o pano e começou a se vestir. - Hoje irei para o campo

caçar, mulher esposa - anunciou enquanto se enfiava num colete

pintado e afivelava um cinto largo com pesados medalhões de prata,

ouro e bronze.

- Sim, meu sol-e-estrelas - Dany respondeu. Drogo levaria os

companheiros de sangue e partiriam em busca do hrakkar, o grande

leão branco das planícies. Se regressassem em triunfo, a alegria do

senhor seu marido seria feroz, e talvez estivesse disposto a escutá-la.

Ele não temia animais selvagens ou nenhum homem que já respirara,

mas o mar era outra coisa. Para os dothrakis, água que um cavalo

não pudesse beber era algo de impuro; as agitadas planícies verde-

acinzentadas do oceano enchiam-nos com uma repugnância

supersticiosa. Dany descobrira que Drogo era mais corajoso que os

outros senhores dos cavalos em meia centena de maneiras

diferentes. . mas naquilo, não. Se ao menos conseguisse levá-lo a

entrar num navio...

Depois de o khal e os companheiros de sangue terem partido com

seus arcos, Dany mandou chamar as aias. Sentia agora o corpo tão

gordo e desajeitado que acolhia de bom grado a ajuda de seus fortes

braços e mãos hábeis, ao passo que antes se sentia frequentemente

desconfortável com o modo como elas se agitavam e volteavam ao

seu redor. Limparam-na e vestiram-na com sedareia, leve e solta.

Enquanto Doreah lhe escovava os cabelos, mandou Jhiqui à procura

de Sor Jorah Mormont.

O cavaleiro veio de imediato. Trazia calções de pelo de cavalo e um

colete pintado, como um dothraki. Rudes pelos negros cobriam-lhe o

peito largo e os braços musculosos.

- Minha princesa. Como posso servi-la?

- Precisa falar com o senhor meu marido. Drogo diz que o garanhão

que monta o mundo terá todas as terras para governar e não

precisará atravessar a água venenosa. Fala em levar o kha-lasar para

o leste depois de Rhaego nascer, a fim de saquear as terras em torno

do Mar de Jade.

O cavaleiro ficou pensativo.

- O khal nunca viu os Sete Reinos - ele respondeu. - Para ele, não são

nada. Se chega a pensar neles, não há dúvida que pensa em ilhas,

algumas cidades pequenas agarradas às rochas à maneira de Lorath

ou Lys, rodeadas por mares tempestuosos. As riquezas do leste

devem parecer-lhe uma possibilidade mais tentadora.

- Mas ele tem de ir para oeste - disse Dany, desesperada. - Por favor,

ajude-me a fazê-lo compreender - ela também nunca vira os Sete

Reinos, tal como Drogo, mas era como se os conhecesse de todas as

histórias que o irmão lhe contara. Viserys prometera-lhe mil vezes

que um dia a levaria de volta, mas agora estava morto e as

promessas tinham morrido com ele.

- Os dothrakis fazem as coisas ao seu ritmo, pelas suas razões -

respondeu o cavaleiro. -Tenha paciência, princesa. Não cometa o erro

do seu irmão. Iremos para casa, prometo-lhe.

Casa? A palavra a fez sentir-se triste. Sor Jorah tinha sua Ilha dos

Ursos, mas o que era casa para ela? Algumas histórias, nomes

recitados tão solenemente como as palavras de uma prece, a

memória que se atenuava de uma porta vermelha... Estaria Vaes

Dothrak destinada a ser a sua casa para sempre? Quando olhava

para as feiticeiras do dosh khaleen, estaria olhando para o seu

futuro?

Sor Jorah deve ter visto a tristeza em seu rosto.

- Uma grande caravana chegou durante a noite, khaleesi.

Quatrocentos cavalos vindos de Pentos, via Norvos e Qohor, sob o

comando do Capitão Mercador Byan Votyris. Illyrio pode ter enviado

uma carta. Deseja visitar o Mercado Ocidental?

Dany agitou-se.

- Sim. Gostaria - os mercados ganhavam vida quando uma caravana

chegava. Nunca se sabia que tesouros os comerciantes poderiam

trazer, e seria bom voltar a ouvir homens a falar valiriano, como nas

Cidades Livres. - Irri, diga-lhes para prepararem uma liteira.

- Vou dizer ao seu khas - disse Sor Jorah, retirando-se.

Se Khal Drogo estivesse com ela, Dany teria montado sua prata.

Entre os dothrakis, as mães permaneciam montadas quase até o

momento do parto, e ela não queria parecer fraca aos olhos do

marido. Mas com o khal longe, na caça, era agradável encostar-se a

almofadas suaves e ser transportada através de Vaes Dothrak, com

cortinas de seda vermelha para protegê-la do sol. Sor Jorah selou o

cavalo e seguiu a seu lado, com os quatro jovens do seu khas e as

aias.

O dia estava quente e sem nuvens, o céu de um azul profundo.

Quando o vento soprava, Dany conseguia sentir os ricos odores das

plantas e da terra. A medida que a liteira ia passando sob os

monumentos roubados, passava da sombra para o sol, e de volta à

sombra, balançando, estudando o rosto de heróis mortos e de reis

esquecidos. Perguntou a si mesma se os deuses de cidades queimadas

ainda podiam atender a preces.

Se eu não fosse do sangue do dragão, pensou, melancólica, esta

poderia ser a minha casa. Era khaleesi, tinha um homem forte e um

cavalo rápido, aias para servi-la, guerreiros para mantê-la a salvo, um

lugar de honra no dosh khaleen à sua espera quando envelhecesse,,. e

no seu ventre crescia o filho que um dia montaria o mundo. Isso

seria suficiente para qualquer mulher..., mas não para o dragão. Com

Viserys morto, Daenerys era a última, a última mesmo. Pertencia à

linhagem de reis e conquistadores, e o mesmo acontecia ao filho que

trazia na barriga. Não podia esquecê-lo.

O Mercado Ocidental era uma grande praça de terra batida rodeada

por coelheiras de tijolo de barro cozido, recintos para animais, salas

caiadas para se refrescar. Outeiros elevavam-se do chão como se

fossem dorsos de grandes animais subterrâneos que rompiam a

superfície, com bocejantes bocas negras que levavam a frios e

cavernosos armazéns subterrâneos. O interior da praça era um

labirinto de barracas e passagens retorcidas, ensombradas por toldos

de hera entretecida.

Uma centena de mercadores e comerciantes descarregavam suas

mercadorias e instalavam-se em barracas depois que chegaram, mas,

mesmo assim, o grande mercado parecia silencioso e deserto quando

comparado com os bazares apinhados que Dany recordava dos

tempos passados em Pentos e nas outras Cidades Livres. As

caravanas dirigiam-se a Vaes Dothrak, vindas do leste e do oeste, não

tanto para vender aos dothrakis como para comerciar umas com as

outras, explicou Sor Jorah. Os cavaleiros deixavam-nas ir e vir sem

ser incomodadas, desde que mantivessem a paz da cidade sagrada,

não profanassem a Mãe das Montanhas ou o Ventre do Mundo e

honrassem as feiticeiras do dosh khaleen com os presentes

tradicionais de sal, prata e sementes. Os dothrakis não

compreendiam verdadeiramente este negócio de compras e vendas.

Dany também gostava da estranheza do Mercado Oriental, com todas

as invulgares visões, sons e cheiros que lá havia. Passava com

frequência suas manhãs ali, mordiscando ovos de árvore, torta de

gafanhotos e tiras de massa verde, escutando as agudas vozes

ululantes dos encantores, embasbacando-se perante manticoras em

jaulas de prata, imensos elefantes cinzentos e os cavalos listrados de

preto e branco de Jogos Nhai. Também gostava de observar as

pessoas: os escuros e solenes Asshafi e os altos e claros Qartheens, os

homens de olhos brilhantes de Yi Ti com seus chapéus de cauda de

macaco, as donzelas guerreiras de Bayasabhad, Shamyriana e

Kayakayanaya com anéis de ferro nos mamilos e rubis nas bochechas,

e até mesmo os severos e assustadores Homens das Sombras, que

cobriam os braços e as pernas com tatuagens e escondiam o rosto

atrás de máscaras. Para Dany, o Mercado Oriental era um lugar de

maravilha e magia.

Mas o Mercado Ocidental cheirava a casa.

Enquanto Irri e Jhiqui a ajudavam a sair da liteira, inspirou e

reconheceu os cheiros vivos do alho e da pimenta, fragrâncias que

lhe lembravam dias há muito passados nas vielas de Tyrosh e Myr e

lhe trouxeram um leve sorriso aos lábios. Por baixo daqueles odores

sentiu os pesados perfumes doces de Lys. Viu escravos transportando

braçadas da intrincada renda de Myr e boas lãs numa dúzia de cores

ricas. Guardas de caravana vagueavam pelas passagens com capacetes

de cobre e túnicas até os joelhos de algodão amarelo acolchoado,

com bainhas de espadas vazias pendendo de cintos de couro

trançado. Atrás de uma barraca, um armeiro exibia placas peitorais

de aço, trabalhadas com ouro e prata em padrões intrincados, e

elmos batidos até tomar a forma de animais extravagantes. Ao seu

lado estava uma jovem bonita vendendo ourivesaria de Lannisporto,

anéis, broches, colares e medalhões magnificamente trabalhados,

bons para fazer cintos. Um enorme eunuco guardava-lhe a barraca,

mudo e calvo, vestido com veludos manchados de suor e fechando a

cara a todos que se aproximassem. Em frente, um gordo comerciante

de tecidos de Yi Ti regateava com um pentoshi o preço de um

corante verde qualquer, fazendo oscilar de um lado para o outro a

cauda de macaco do chapéu quando abanava a cabeça.

- Quando era menina adorava brincar no bazar - disse Dany a Sor

Jorah enquanto vagueavam pela passagem coberta entre as barracas.

- Era um lugar tão vivo, com todo mundo gritando e rindo, tantas

coisas maravilhosas para admirar... embora raramente tivéssemos

dinheiro suficiente para comprar alguma coisa... Bem, exceto uma

salsicha de vez em quando, ou dedos-de-mel... Há dedos-de-mel nos

Sete Reinos, como os que fazem em Tyrosh?

- São bolos? Não sei dizer, princesa - o cavaleiro fez uma reverência.

- Se me liberar por algum tempo, irei em busca do capitão para ver

se tem letras para nós.

- Muito bem. Ajudarei a encontrá-lo.

- Não há necessidade de se incomodar. - Sor Jorah afastou o olhar

com impaciência. - Desfrute do mercado. Volto quando concluir os

meus assuntos.

Curioso, pensou Dany enquanto o observava afastar-se a passos

largos por entre a multidão. Não compreendia por que não devia ir

com ele. Talvez Sor Jorah pretendesse encontrar uma mulher depois

de se reunir com o capitão mercador. Sabia que era frequente

prostitutas viajarem com as caravanas, e alguns homens eram

estranhamente tímidos a respeito de suas vidas íntimas. Encolheu os

ombros.

- Venham - disse aos outros.

As aias seguiram-na quando Dany reatou o passeio pelo mercado.

- Ah, olha - exclamou para Doreah -, é aquele o tipo de salsicha de

que falava - apontava para uma barraca onde uma mulherzinha

mirrada grelhava carne e cebolas numa pedra quente.

- São preparadas com montes de alho e malaguetas - deliciada com a

descoberta, Dany insistiu para que os outros a acompanhassem para

comer salsicha. As aias devoraram as suas, aos risinhos e sorrisinhos,

embora os homens do seu khas cheirassem com suspeita a carne

grelhada. - Têm um sabor diferente do que eu recordava - disse

Dany depois das primeiras dentadas.

- Em Pentos, eu as fazia com carne de porco - disse a velha -, mas

todos os meus porcos morreram no mar dothraki. Estas são feitas

com carne de cavalo, khaleesi, mas eu as tempero da mesma forma.

- Ah - Dany sentiu-se desapontada, mas Quaro gostou tanto da sua

salsicha que decidiu comer outra, e Rakharo o superou, comendo

mais três e arrotando sonoramente. Dany riu.

- E a primeira vez que ri desde que vosso irmão, o Khal Rhaggat, foi

coroado por Drogo

- disse Irri, - É bom de ver, khaleesi.

Dany deu um sorriso tímido. Realmente era bom rir. Sentia-se quase

menina de novo.

Vaguearam durante metade da manhã. Dany viu um belo manto de

penas das Ilhas do Verão e o obteve de presente. Em troca, deu ao

mercador um medalhão de prata que tirou do cinto. Era assim que

as coisas eram feitas entre os dothrakis. Um vendedor de aves

ensinou um papagaio verde e vermelho a dizer o seu nome, e Dany

voltou a rir, mas recusou-se a ficar com ele. Que faria ela com um

papagaio vermelho e verde num khalasar? Já ficara com uma dúzia

de frascos de óleos aromáticos, os perfumes da sua infância; bastava

fechar os olhos e senti-los para voltar a ver a casa grande de porta

vermelha. Quando Doreah se pôs a olhar ansiosamente para um

amuleto de fertilidade na tenda de um mago, Dany também ficou

com ele e o deu à aia, pensando que agora tinha de encontrar

também qualquer coisa para Irri e Jhiqui.

Ao virar uma esquina, depararam com um negociante de vinhos que

oferecia taças do tamanho de dedais de seus produtos a quem

passava por ali.

- Tintos doces - gritou em fluente dothraki -, tenho tintos doces, de

Lys, de Volantis e da Árvore. Brancos de Lys. Aguardente de pera de

Tyrosh, vinhardente, vinho apimentado e os néctares verde-claros de

Myr. Castanhos de baga-fumo e amargos dos ándalos, tenho todos

- era um homem pequeno, esguio e bonito, com cabelos louros

ondulados e perfumados à maneira de Lys. Quando Dany parou na

frente da barraca, o homem fez uma profunda reverência.

- A khaleesi deseja uma prova? Tenho um tinto doce de Dorne,

senhora, que canta uma canção de passas, cerejas e rico carvalho

escuro. Um barril, uma taça, um gole? Bastará que o prove, e darei a

seu filho o meu nome. Dany sorriu.

- Meu filho já tem nome, mas vou experimentar o vinho de verão -

disse, em valiriano, aquele valiriano que falavam nas Cidades Livres.

Sentiu as palavras estranhas na língua, depois de tanto tempo. - Só

uma gota, por gentileza.

O mercador devia tê-la tomado por uma dothraki, devido aos seus

trajes, aos cabelos oleados e à pele bronzeada. Quando falou, o

homem abriu a boca de espanto.

- Senhora, é.. tyroshi? Poderá ser?

- Minha fala pode ser tyroshi, e os meus trajes, dothrakis, mas sou de

Westeros, dos Reinos do Poente - disse-lhe Dany.

Doreah aproximou-se.

- Tem a honra de se dirigir a Daenerys da Casa Targaryen, Daenerys,

Filha da Tormenta, khaleesi dos homens a cavalo e princesa dos Sete

Reinos.

O mercador de vinhos caiu de joelhos.

- Princesa - disse, abaixando a cabeça.

- Erga-se - Dany ordenou. - Ainda gostaria de provar esse vinho de

verão de que falou. O homem pôs-se em pé de um salto.

- Isso? Zurrapa de Dorne. Não é digno de uma princesa. Tenho um

tinto seco da Árvore, vivo e agradável. Por favor, deixe-me oferecer

um barril.

As visitas de Khal Drogo às Cidades Livres tinham lhe deixado o

gosto por bom vinho, e Dany sabia que uma colheita tão nobre lhe

agradaria.

- Honra-me, sor - murmurou docemente,

- A honra é minha - o mercador esquadrinhou os fundos da barraca

e voltou com uma pequena barrica de carvalho. Via-se um cacho de

uvas desenhado a fogo na madeira. - O símbolo dos Redwyne - disse,

apontando -, da Árvore. Não há bebida mais fina.

- Khal Drogo e eu a partilharemos. Aggo, leva isto para a liteira, por

gentileza - o vendedor de vinhos mostrou-se radiante quando o

dothraki ergueu o barril.

Dany só reparou que Sor Jorah tinha regressado quando ouviu o

cavaleiro dizer:

- Não - tinha a voz estranha, brusca. - Aggo, coloque esse barril aí.

Aggo olhou para Dany. Ela anuiu, hesitante.

- Sor Jorah, o que há?

- Tenho sede. Abra-o, vendedor.

O mercador franziu as sobrancelhas.

- O vinho é para a khaleesi, não para homens da sua laia, sor. Sor

Jorah aproximou-se da barraca.

- Se não o abrir, parto-o na sua cabeça - ali, na cidade sagrada, não

se transportavam armas a não ser as mãos.. mas as mãos eram o

bastante, grandes, duras e perigosas, com os nós dos dedos cobertos

de rudes pelos escuros. O vendedor de vinhos hesitou um momento,

mas depois pegou no martelo e arrancou o tampão do barril.

- Sirva - ordenou Sor Jorah. Os quatro jovens guerreiros do khas de

Dany dispuseram-se atrás dele, franzindo as sobrancelhas,

observando com seus olhos escuros e amendoados.

- Seria um crime beber um vinho tão rico sem deixá-lo respirar - o

vendedor de vinhos não largara o martelo.

Jhogo estendeu a mão para o chicote que trazia à cintura, mas Dany

o fez parar com um ligeiro toque no braço.

- Faça como diz Sor Jorah - disse. Havia pessoas que paravam para

ver o que se passava. O homem deu um olhar rápido e carrancudo.

- As ordens da princesa - teve de pôr de lado o martelo para erguer

o barril. Encheu duas taças de prova do tamanho de dedais,

despejando tão habilmente o vinho que não derramou uma gota.

Sor Jorah ergueu uma taça e cheirou o vinho, de testa franzida.

- É doce, não é? - disse o vendedor de vinhos, sorrindo. - Conseguiu

sentir o aroma da fruta, sor? O perfume da Árvore. Prove-o, senhor,

e diga-me se não é o mais fino, o mais rico vinho que alguma vez

tocou vossa língua.

Sor Jorah ofereceu-lhe a taça.

- Prove-o você primeiro,

- Eu? - o homem soltou uma gargalhada. - Eu não sou digno deste

vinho, senhor. E o mercador de vinhos que bebe a própria

mercadoria é um pobre mercador - seu sorriso era amigável, mas

Dany conseguia ver o reflexo do suor na sua testa.

- Irá beber - disse Dany, fria como gelo. - Esvazie a taça, senão lhes

digo para que o segurem enquanto Sor Jorah despeja o barril inteiro

pela sua goela abaixo.

O vendedor de vinhos encolheu os ombros, estendeu a mão para a

taça... mas agarrou o barril, atirando-o com as duas mãos. Sor Jorah

atirou-se sobre Dany, afastando-a com um empurrão. A barrica

quicou no ombro do cavaleiro e esmagou-se no chão. Dany tropeçou

e perdeu o equilíbrio.

- Não - gritou, atirando as mãos para a frente a fim de aparar a

queda... Doreah a agarrou pelo braço e a puxou para trás, de modo

que Dany caiu sobre as costas, e não sobre a barriga.

O mercador saltou sobre a bancada, passando como um dardo entre

Aggo e Rakharo. Quaro estendeu a mão para um arakh, que não se

encontrava lá, ao mesmo tempo em que o homem louro o afastava

com um encontrão. Dany ouviu o estalido do chicote de Jhogo, viu o

couro estender-se e enrolar-se em volta da perna do vendedor de

vinhos. O homem estatelou-se de bruços na terra batida.

Uma dúzia de guardas da caravana tinha chegado correndo. Com eles

viera o próprio mestre, o Capitão Mercador Byan Votyris, um

minúsculo norvoshi cuja pele era como couro velho e que tinha um

farto bigode azul que lhe chegava às orelhas. Pareceu compreender o

que se passara sem que uma palavra fosse dita.

- Levem este daqui para esperar a vontade do khal - ordenou,

fazendo um gesto para o homem que estava no chão. Dois guardas

puseram o vendedor de vinhos em pé. - Também a presenteio com

os seus bens, princesa - continuou o capitão mercador. - É um

pequeno sinal de pesar por um dos meus ter feito uma coisa destas.

Doreah e Jhiqui ajudaram Dany a se erguer. O vinho envenenado

jorrava da barrica partida no chão.

- Como soube? - ela perguntou a Sor Jorah, tremendo. - Como?

- Não sabia, khaleesi, pelo menos até que o homem se recusou a

beber, mas assim que li a carta de Magíster Illyrio, tive receio - seus

olhos escuros varreram os rostos estranhos no mercado. - Venha. É

melhor não falar disto aqui.

Dany estava quase às lágrimas quando a levaram de volta. O sabor

que trazia na boca era um que já conhecera: o medo. Vivera anos no

terror de Viserys, com medo de acordar o dragão.

Isto era ainda pior. Agora não temia apenas por si própria, mas pelo

bebê. Ele devia ter sentido seu medo, porque se movia sem descanso

no seu interior. Dany afagou suavemente o inchaço da barriga,

desejando poder alcançá-lo, tocá-lo, acalmá-lo.

- Você é do sangue do dragão, pequeno - segredou enquanto a liteira

balançava pelo caminho, de cortinas bem cerradas. - Você é do

sangue do dragão, e o dragão não sente medo.

Sob o outeiro oco de terra que era a sua casa em Vaes Dothrak,

Dany ordenou-lhes que a deixassem. . todos, menos Sor Jorah.

- Diga-me - ordenou, enquanto se deixava cair sobre as almofadas. -

Foi o Usurpador?

- Sim - o cavaleiro pegou um pergaminho dobrado. - Uma carta para

Viserys, de Magíster Illyrio. Robert Baratheon oferece terras e títulos

pela sua morte ou de seu irmão.

- Do meu irmão? - o soluço soou como meia gargalhada. - Ele ainda

não sabe, não é? O Usurpador deve a Drogo um título - agora, a

gargalhada foi meio soluço. Apertou os braços em volta do corpo,

num gesto protetor. - E pela minha, o senhor disse. Só a minha?

- A sua e a da criança - respondeu Sor Jorah, sombrio.

- Não. Ele não pode ter o meu filho - não choraria, Dany decidiu. Não

tremeria de medo. O Usurpador agora acordou o dragão, disse a si

mesma... e seus olhos desviaram-se para os ovos de dragão que

descansavam em seu ninho de veludo escuro. A oscilante luz da

candeia iluminava as escamas de pedra, e grãos de pó que

tremeluziam em jade, escarlate e ouro dançavam no ar à sua volta,

como cortesãos em torno de um rei.

Teria sido a loucura que a tomara naquele momento, nascida do

medo? Ou alguma estranha sabedoria enterrada em seu sangue?

Dany não saberia dizer. Ouviu a própria voz dizendo:

- Sor Jorah, acenda o braseiro.

- Khaleesi? - o cavaleiro olhou-a de um modo estranho. - Está tão

quente. Tem certeza? Nunca tivera tanta certeza de nada.

- Sim, eu.. eu estou arrepiada. Acenda o braseiro. Ele fez uma

reverência.

- Às suas ordens.

Quando os carvões se incendiaram, Dany mandou Sor Jorah embora.

Tinha de estar só para fazer o que tinha de fazer. Isto é uma loucura,

disse a si mesma enquanto tirava do veludo o ovo negro e escarlate.

Só vai partir-se e arder, e é tão belo, Sor Jorah me chamará de tonta

se estragá-lo, no entanto, no entanto..

Embalando o ovo com as mãos, levou-o para o fogo e o empurrou

para o interior dos carvões ardentes. As escamas negras pareceram

brilhar quando beberam o calor. Chamas lamberam a pedra com

pequenas línguas vermelhas. Dany depositou os outros dois ovos ao

lado do negro, no fogo. Quando deu um passo para longe do

braseiro, a respiração tremeu-lhe na garganta.

Observou até que os carvões se transformaram em cinzas. Fagulhas

flutuavam para cima e seguiam pelo orifício de saída da fumaça.

Ondas de calor estremeciam em torno dos ovos de dragão. E foi

tudo.

Seu irmão Rhaegarfoi o último dragão, dissera Sor Jorah. Dany fitou

tristemente os ovos. Que esperava? Um milhar de milhares de anos

antes tinham estado vivos, mas agora eram apenas rochas bonitas.

Não podiam fazer um dragão. Um dragão era ar e fogo. Carne viva,

não pedra morta.

Quando Khal Drogo regressou, o braseiro estava frio de novo.

Cohollo levava um cavalo de carga à sua frente com a carcaça de um

grande leão branco presa ao dorso. No céu, as estrelas começavam a

surgir. O khal soltou uma gargalhada ao saltar do cavalo e mostrou-

lhe as cicatrizes na perna, onde o hrakkar o arranhara através dos

calções.

- Farei para você um manto de sua pele, lua da minha vida - ele

jurou.

Quando Dany lhe contou o que acontecera no mercado, todos os

risos pararam, e Khal Drogo ficou muito silencioso.

- Esse envenenador foi o primeiro - preveniu-o Sor Jorah Mormont -,

mas não será o último. Os homens arriscarão muito por um título.

Drogo ficou em silêncio durante algum tempo. Por fim, disse:

- Esse vendedor de venenos fugiu da lua da minha vida. Melhor seria

que corresse atrás dela. E é o que vai fazer. Jhogo, Jorah, o ândalo, a

ambos eu digo, escolham qualquer cavalo que desejarem das minhas

manadas, e ele é seu. Qualquer cavalo, exceto o meu vermelho e a

prata que foi presente de casamento à lua da minha vida. Dou-lhes

este presente pelo que fizeram. E a Rhaego, filho de Drogo, o

garanhão que montará o mundo, também a ele prometo um

presente. A ele darei essa cadeira de ferro onde se sentou o pai de

sua mãe. Darei a ele Sete Reinos. Eu, Drogo, khal, farei isto - sua voz

ergueu-se e ele levantou o punho para o céu. - Levarei meu khalasar

para o oeste, até onde o mundo termina, e montarei os cavalos de

madeira através da negra água salgada como nenhum khal fez antes.

Matarei os homens das roupas de ferro e derrubarei suas casas de

pedra. Violarei suas mulheres, tomarei seus filhos como escravos e

trarei seus deuses quebrados para Vaes Dothrak, para que se

verguem sob a Mãe das Montanhas. É isto que prometo, eu, Drogo,

filho de Bharbo. É isto que juro perante a Mãe das Montanhas, com

as estrelas por testemunhas.

O khalasar partiu de Vaes Dothrak dois dias mais tarde, dirigindo-se

para o sul e para o oeste pelas planícies. Khal Drogo os liderou no

seu grande garanhão vermelho, com Daenerys a seu lado na sua

prata. O vendedor de vinhos corria atrás deles, nu, a pé, acorrentado

pela garganta e pelos pulsos. As correntes estavam presas à sela da

prata de Dany. Enquanto ela cavalgava, ele corria a seu lado, de pés

nus e aos tropeções. Nenhum mal lhe aconteceria... enquanto conse-

guisse acompanhá-la.


Catelyn


Estava longe demais para distinguir claramente as bandeiras, mas

mesmo através do nevoeiro podia ver que eram brancas com uma

mancha escura no centro, que só podia ser o lobo gigante dos Stark,

cinzento sobre seu fundo de gelo. Quando viu aquilo com os

próprios olhos, Catelyn puxou as rédeas do cavalo e inclinou a

cabeça num agradecimento. Os deuses eram bons. Não chegara tarde

demais.

- Esperam a nossa vinda, senhora - disse Sor Wylis Manderly -, como

o senhor meu pai jurou que fariam.

- Não os deixemos à espera por mais tempo, sor - Sor Brynden Tully

esporeou o cavalo e dirigiu-se a trote vivo para os estandartes.

Catelyn o acompanhou.

Sor Wylis e o irmão, Sor Wendel, seguiram-nos, à frente de seus

soldados, quase mil e quinhentos homens: pouco mais de vinte

cavaleiros e outros tantos escudeiros, duzentos cavaleiros livres e

lanceiros e espadachins a cavalo e o resto dos homens a pé, armados

com lanças, piques e tridentes. Lorde Wyman tinha ficado para trás,

a fim de organizar as defesas de Porto Branco. Com quase sessenta

anos, tornara-se demasiado corpulento para montar um cavalo.

- Se julgasse que voltaria a ver a guerra na minha vida, teria comido

um pouco menos de enguias - dissera a Catelyn quando recebeu seu

navio, batendo na enorme barriga com as mãos. Tinha os dedos

gordos como salsichas. - Mas os meus rapazes os levarão a salvo até

o vosso filho, nada tema.

Os "rapazes" dele eram ambos mais velhos que Catelyn, e ela teria

preferido que não saíssem tanto ao pai. Sor Wylis estava apenas a

algumas enguias de não ser capaz de montar seu cavalo; Catelyn

sentia pena do pobre animal. Sor Wendel, o filho mais novo, teria

sido o homem mais gordo que vira na vida, não tivesse deparado

com o pai e o irmão. Wylis era silencioso e formal, Wendel, ruidoso e

rude; ambos ostentavam bigodes de morsa e cabeças tão lisas como o

bumbum de um bebê; nenhum parecia possuir uma única peça de

roupa que não estivesse salpicada com manchas de comida. Mas

gostava bastante deles; tinham-na trazido até Robb, como o pai

prometera, e nada mais importava.

Ficou satisfeita por constatar que o filho enviara espiões até mesmo

para o leste. Os Lannis-ter, quando viessem, viriam pelo sul, mas era

bom que Robb estivesse sendo cauteloso. Meu filho está levando uma

tropa para a guerra, pensou, ainda sem bem acreditar. Temia

desesperadamente por ele, e por Winterfell, mas não podia negar que

sentia também certo orgulho. Um ano antes, ele era apenas um

garoto. Que seria agora?, perguntava a si mesma.

Batedores detectaram os estandartes dos Manderly - o tritão branco

de tridente na mão, erguendo-se do mar azul-esverdeado - e

saudaram-nos calorosamente. Foram levados para um ponto elevado

e suficientemente seco para um acampamento. Sor Wylis anunciou

uma parada e ficou para trás com os homens, a fim de supervisionar

o acender das fogueiras e os cuidados com os cavalos, ao passo que o

irmão Wendel prosseguiu com Catelyn e o tio para apresentar os

cumprimentos do pai ao seu suserano.

O terreno sob os cascos dos cavalos era mole e úmido. Cedia devagar

enquanto iam passando por fumarentos fogos de turfa, filas de

cavalos e carroças carregadas de biscoitos e carne de vaca salgada.

Em um afloramento rochoso mais alto que o terreno circundante,

passaram por um pavilhão senhorial com paredes de lona pesada.

Catelyn reconheceu o estandarte, o alce macho dos Hornwood,

castanho no seu campo laranja-escuro.

Logo depois, por entre a névoa, vislumbrou as muralhas e torres de

Fosso Cailin... ou o que restava delas. Imensos blocos de basalto

negro, cada um deles tão grande como uma cabana de caseiro,

jaziam espalhados e tombados como os blocos de madeira de uma

criança, meio enfiados no solo mole pantanoso. Nada mais restava de

uma muralha exterior que em tempos passados se erguera tão alta

como a de Winterfell. A fortaleza de madeira tinha desaparecido por

completo, apodrecida há mil anos, sem sequer deixar uma viga para

marcar o local onde estivera. Tudo o que restava do grande castro

dos Primeiros Homens eram três torres... três que antes tinham sido

vinte, caso seja possível crer nos contadores de histórias.

A Torre do Portão parecia em bastante bom estado, e até podia se

vangloriar de alguns metros de muralha de ambos os lados. A Torre

do Bêbado, no pântano, onde outrora se encontravam as muralhas

sul e oeste, inclinava-se como um homem empanturrado de vinho

prestes a vomitar na sarjeta. E a alta e esguia Torre dos Filhos, onde

segundo a lenda os filhos da floresta tinham um dia convocado seus

deuses sem nome para enviar o martelo das águas, tinha perdido

metade de sua coroa. Era como se algum grande animal tivesse dado

uma dentada nas ameias ao longo do topo da torre e cuspido o

cascalho para o pântano. As três torres estavam verdes de musgo.

Uma árvore crescia entre as pedras do lado norte da Torre do

Portão, com ramos retorcidos ornados com mantos viscosos e

brancos de pele-de-fantasma.

- Que os deuses tenham piedade - exclamou Sor Brynden quando viu

o que se estendia à sua frente. - Isto é Fosso Cailin? Não passa de...

- ...uma armadilha mortal - terminou Catelyn. - Eu sei o que parece,

tio. Pensei o mesmo da primeira vez que o vi, mas Ned assegurou-me

que esta ruína é mais poderosa do que parece. As três torres

sobreviventes dominam o talude de todos os lados, e qualquer

inimigo tem de passar entre elas. Os pântanos, aqui, são

impenetráveis, cheios de areia movediça e poços, e repletos de

serpentes. Para assaltar qualquer uma das torres, um exército teria

de avançar através de esterco negro que chega ao peito dos homens,

atravessar um fosso cheio de lagartos-leões e escalar muralhas

escorregadias com musgo, e tudo isso enquanto fica exposto ao fogo

dos arqueiros nas outras torres - deu um sorriso sombrio para o tio,

- E quando a noite cai, dizem que há fantasmas, espíritos frios e

vingativos do Norte que têm fome de sangue sulista.

Sor Brynden soltou um risinho.

- Lembre-me de não ficar muito tempo por aqui. Da última vez que

verifiquei, eu próprio era sulista.

Tinham sido desfraldados estandartes nas três torres. O resplendor

dos Karstark esvoaçava da Torre do Bêbado sob o lobo gigante; na

Torre das Crianças, era o gigante com as correntes quebradas de

Grande-Jon. Mas na Torre do Portão a bandeira dos Stark voava

sozinha. Fora aí que Robb estabelecera sua base. Catelyn dirigiu-se

para lá, com Sor Brynden e Sor Wendel atrás, levando os cavalos a

passo lento pela estrada de tábuas e troncos que tinha sido disposta

sobre o verde e o negro dos campos de lama.

Encontrou o filho rodeado pelos senhores vassalos do pai, em um

salão cheio de correntes de ar, com um fogo de turfa fumegando em

uma lareira negra. Estava sentado a uma maciça mesa de pedra, com

uma pilha de papéis e mapas à sua frente, conversando seriamente

com Roose Bolton e Grande-Jon. A princípio não reparou nela... mas

o lobo, sim. O grande animal cinzento estava deitado perto do fogo,

mas, quando Catelyn entrou, ergueu a cabeça, e os olhos dourados

encontraram os dela. Os senhores calaram-se, um por um, e Robb

ergueu os olhos perante o súbito silêncio e a viu.

- Mãe? - disse, com a voz pesada de emoção.

Catelyn quis correr para ele, beijar sua querida testa, envolvê-lo nos

braços e apertá-lo com força para que nunca lhe acontecesse

nenhum mal. . mas ali, na frente de seus senhores, não se atrevia. Ele

agora desempenhava um papel de homem, e ela não lhe queria tirar

isto. Por isso, deteve-se na ponta mais distante da laje de basalto que

estavam usando como mesa. O lobo selvagem pôs-se em pé e

caminhou pela sala até ela. Parecia maior do que um lobo deveria

ser.

- Deixou crescer a barba - disse ela para Robb, enquanto Vento

Cinzento lhe farejava a mão. Ele esfregou o queixo, de repente

atrapalhado.

- Sim - os pelos no queixo eram mais vermelhos que os cabelos.

- Gostei - Catelyn afagou suavemente a cabeça do lobo. - Torna-o

parecido com meu irmão Edmure - Vento Cinzento mordiscou-lhe os

dedos, de um jeito brincalhão, e regressou a trote para seu lugar

perto do fogo.

Sor Haleman Tallhart foi o primeiro a seguir o lobo gigante,

atravessando a sala para saudá--la, ajoelhando à sua frente e

encostando a testa à sua mão.

- Senhora Catelyn - disse -, está bela como sempre, uma visão bem-

vinda em tempos conturbados - seguiram-se os Glover, Galbart e

Robett, e Grande-Jon Umber, e os outros, um por um. Theon Greyjoy

foi o último.

- Não esperava vê-la aqui, senhora - disse enquanto se ajoelhava.

- Não pensei em vir - disse Catelyn -, até que desembarquei em

Porto Branco e Lorde Wy-man me disse que Robb convocara os

vassalos. Conheça seu filho, Sor Wendel - Wendel Man-derly avançou

e fez uma reverência tão profunda quanto a barriga lhe permitia. - E

meu tio, Sor Brynden Tully, que trocou o serviço da minha irmã pelo

meu.

- O Peixe Negro - Robb disse, - Obrigado por se juntar a nós, sor.

Precisamos de homens com a sua coragem. E o senhor também, Sor

Wendel, estou contente por tê-lo aqui. Sor Rodrik também está com

a senhora, mãe? Senti a sua falta.

- Sor Rodrik saiu de Porto Branco para o norte. Nomeei-o castelão e

ordenei-lhe que defendesse Winterfell até o nosso regresso. Meistre

Luwin é um sábio conselheiro, mas não tem experiência nas artes da

guerra.

- Nada tema a esse respeito, Senhora Stark - disse-lhe Grande-Jon, no

seu rugido de baixo. - Winterfell está seguro. Vamos enfiar nossas

espadas em breve em Tywin Lannister, com a sua licença, e depois

seguimos a caminho da Fortaleza Vermelha para libertar Ned.

- Senhora, uma pergunta, se me dá licença - Roose Bolton, senhor do

Forte do Pavor, tinha voz fraca, mas, quando falava, os homens

maiores silenciavam-se para ouvir. Seus olhos eram curiosamente

claros, quase desprovidos de cor, e o olhar era perturbador. - Diz-se

que a senhora tem o filho anão de Lorde Tywin cativo. Trouxe o

Duende até nós? Juro, faríamos bom uso de tal refém.

- É verdade que capturei Tyrion Lannister, mas já não o tenho em

meu poder - Catelyn foi forçada a admitir. Um coro de consternação

recebeu a notícia. - Não fiquei mais satisfeita do que os senhores. Os

deuses acharam por bem libertá-lo, com alguma ajuda da tola da

minha irmã - não devia exprimir tão abertamente o seu desprezo,

bem o sabia, mas a partida do Ninho da Águia não fora agradável.

Oferecera-se para levar consigo Lorde Robert, para criá-lo em

Winterfell durante alguns anos. Atrevera-se a sugerir que a

companhia de outros rapazes lhe faria bem. A ira de Lysa fora uma

visão assustadora."Irmã ou não", replicara “se tentar roubar-me meu

filho, sairá pela Porta da Lua." Depois daquilo nada mais tivera a

dizer.

Os senhores estavam ansiosos por lhe colocar mais questões, mas

Catelyn ergueu a mão.

- Sem dúvida que teremos tempo para tudo isso mais tarde, mas a

viagem fatigou-me. Gostaria de falar a sós com meu filho. Sei que me

perdoarão, senhores - não lhes deixou escolha. Liderados pelo sempre

prestativo Lorde Hornwood, os vassalos fizeram suas vénias e se

retiraram.

- Você também, Theon - acrescentou, quando Greyjoy se deixou ficar.

Ele sorriu e os deixou.

Havia cerveja e queijo sobre a mesa. Catelyn encheu um corno,

sentou-se, bebeu um gole e estudou o filho. Parecia mais alto do que

quando ela partira, e os fiapos de barba faziam-no parecer mais

velho.

- Edmure tinha dezesseis anos quando deixou crescer as primeiras

suíças,

- Farei dezesseis em breve - Robb respondeu.

- Mas agora tem quinze. Quinze, e levando uma tropa para a batalha.

Compreende por que tenho motivo para temer, Robb?

O olhar dele ficou obstinado.

- Não havia mais ninguém.

- Ninguém? - ela disse. - Diga-me quem eram aqueles homens que vi

aqui há um momento? Roose Bolton, Rickard Karstark, Galbart e

Robett Glover, Grande-Jon, Heiman Tallhart... podia ter dado o

comando a qualquer um deles. Que os deuses sejam bondosos, podia

até ter enviado Theon, embora ele não tivesse sido a minha escolha.

- Eles não são Starks.

- São homens, Robb, experientes em batalha. Você lutava com

espadas de madeira há menos de um ano.

Viu a ira nos olhos dele ao ouvir aquilo, mas desapareceu tão

depressa como surgiu, e subitamente o filho tornou-se de novo um

garoto.

- Eu sei - disse ele, desconcertado, - Está. . está me mandando de

volta para Winterfell? Catelyn suspirou.

- Era o que devia fazer. Você nunca devia ter partido. Mas não me

atrevo, agora não, Você chegou longe demais. Um dia, aqueles

senhores o verão como seu suserano. Se mandá-lo embora agora,

como uma criança que é mandada para a cama sem jantar, eles se

recordarão e rirão desse fato. Chegará o dia em que necessitará que

o respeitem, e até que o temam um pouco. O riso é veneno para o

medo. Não lhe farei tal coisa, por mais que possa desejar mantê-lo a

salvo.

- Meus agradecimentos, mãe - disse ele, com o alívio transparecendo,

evidente, sob a formalidade.

Ela estendeu o braço por cima da mesa e tocou seus cabelos,

- É meu primogênito, Robb. Basta olhar para você para me lembrar

do dia em que chegou ao mundo, de cara vermelha e berrando.

Ele se levantou, claramente desconfortável com o toque dela, e

caminhou até a lareira. Vento Cinzento esfregou a cabeça em sua

perna.

- Sabe.. do pai?

- Sim - os relatos sobre a morte súbita de Robert e a queda de Ned

tinham assustado Catelyn mais do que era capaz de exprimir, mas

não deixaria que o filho visse seu medo. - Lorde Manderly contou-me

quando desembarquei em Porto Branco. Teve alguma notícia de suas

irmãs?

- Houve uma carta - Robb respondeu, coçando o lobo gigante sob o

focinho. - E uma também para a senhora, mas foi entregue em

Winterfell com a minha - dirigiu-se à mesa, vasculhou entre alguns

mapas e papéis e voltou com um pergaminho amarrotado. - Esta é a

que escreveu para mim, não pensei em trazer a sua.

Houve algo no tom de Robb que a perturbou. Alisou o papel e leu. A

preocupação deu lugar à descrença, depois à ira, e por fim ao medo,

- Isto é uma carta de Cersei, não de sua irmã - disse ao terminar. - A

verdadeira mensagem está naquilo que Sansa não diz. Tudo isto

sobre como os Lannister a estão tratando delicada e gentilmente..

conheço o som de uma ameaça, mesmo sussurrada. Têm Sansa refém

e pretendem mantê-la.

- Não há menção a Arya - Robb fez notar, em tom infeliz.

- Não - Catelyn não queria pensar no que isso poderia querer dizer,

não naquele momento, não ali.

-Tive esperança. . se ainda tivesse o Duende, uma troca de reféns... -

pegou a carta de Sansa e a amassou no punho, e Catelyn percebeu

pelo modo como fez que não era a primeira vez. - Há notícias do

Ninho da Águia? Escrevi à tia Lysa, pedindo ajuda. Sabe se ela

convocou os vassalos de Lorde Arryn? Os cavaleiros do Vale virão

juntar-se a nós?

- Só um - disse ela -, o melhor deles, meu tio... mas Brynden Peixe

Negro é em primeiro lugar um Tully. Minha irmã não pretende

mexer um dedo fora do Portão Sangrento.

Robb recebeu aquilo duramente.

- Mãe, o que vamos fazer? Reuni todo este exército, dezoito mil

homens, mas não vou... não estou certo... - olhou-a, com os olhos

brilhando, o orgulhoso jovem senhor evaporado num instante, e

igualmente depressa se transformou de novo numa criança, um

rapaz de quinze anos procurando respostas com a mãe.

Não podia ser.

- De que tem tanto medo, Robb? - perguntou Catelyn, gentilmente.

- Eu.. - ele virou a cabeça para esconder a primeira lágrima. - Se

marcharmos... mesmo se ganharmos... os Lannister têm Sansa e meu

pai. Vão matá-los, não vão?

- Querem que pensemos que sim.

- Quer dizer que estão mentindo?

- Não sei, Robb. O que sei é que você não tem escolha, Se for até

Porto Real e jurar fidelidade, nunca será autorizado a partir. Se

meter o rabo entre as pernas e se retirar para Winterfell, seus

senhores perderão todo o respeito por você. Alguns até poderão

passar para o lado dos Lannister. Então, a rainha, com muito menos

a perder, pode fazer dos prisioneiros o que quiser. Nossa melhor

esperança, nossa única verdadeira esperança, é que consiga derrotar

o inimigo no campo de batalha. Se acontecer de capturar Lorde

Tywin ou o Regicida, então uma troca poderá ser perfeitamente

possível, mas este não é o âmago da questão. Enquanto tiver

suficiente poder para que o temam, Ned e sua irmã deverão estar

seguros. Cersei é bastante sensata para saber que pode precisar deles

para fazer a paz, caso a luta lhe seja desfavorável.

- E se a luta não lhe for desfavorável? - Robb perguntou. - E se for

desfavorável a nós?

Catelyn tomou-lhe a mão nas suas.

- Robb, não vou suavizar a verdade para você. Se perder, não há

esperança para nenhum de nós. Dizem que não há nada a não ser

pedra no coração do Rochedo Casterly. Lembre-se do destino dos

filhos de Rhaegar.

Então ela viu o medo naqueles jovens olhos, mas neles havia também

uma força.

- Neste caso, não perderei - prometeu.

- Conte-me o que sabe da luta nas terras do rio - ela pediu. Tinha de

saber se ele estava realmente pronto.

- Há menos de uma quinzena, travou-se uma batalha nos montes sob

o Dente Dourado. Tio Edmure enviou Lorde Vance e Lorde Piper

para defender o desfiladeiro, mas o Regicida caiu sobre eles e os pôs

em fuga. Lorde Vance foi morto. A última notícia que recebemos

dizia que Lorde Piper recuava para se juntar ao seu irmão e a seus

outros vassalos em Correrrio, com Jaime Lannister em seu encalço.

Mas isto não é o pior. Enquanto lutavam no desfiladeiro, Lorde

Tywin trazia um segundo exército Lannister pelo sul. Dizem que é

ainda maior que a tropa de Jaime. Meu pai deve ter sabido disso,

porque enviou alguns homens para se opor a eles, sob a bandeira do

próprio rei. Deu o comando a um fidalgo qualquer do sul, um Lorde

Erik, ou Derik, ou algo assim, mas Sor Raymun Darry ia com ele, e a

carta dizia que havia também outros cavaleiros e uma força de

guardas do pai. Mas era uma armadilha. Assim que Lorde Derik atra-

vessou o Ramo Vermelho, os Lannister caíram sobre ele, com

bandeira do rei e tudo, e Gregor Clegane os apanhou pela retaguarda

quando tentaram se retirar pelo Vau do Saltimbanco. Esse Lorde

Derik e alguns outros podem ter escapado, ninguém sabe ao certo,

mas Sor Raymun foi morto, tal como a maior parte dos nossos

homens de Winterfell. Dizem que Lorde Tywin bloqueou a Estrada

do Rei e agora marcha para o norte na direção de Harrenhal,

queimando tudo à sua passagem.

Sinistro e ameaçador, pensou Catelyn. Era pior do que imaginara.

- Pretende esperar por ele aqui? - ela perguntou,

- Se ele vier até tão longe, sim, mas ninguém pensa que virá. Enviei

uma mensagem para Howland Reed, o velho amigo do pai de Atalaia

da Água Cinzenta. Se os Lannister subirem o Gargalo, os

cranogmanos os sangrarão ao longo de todo o caminho, mas Galbart

Glover diz que Lorde Tywin é inteligente demais para isso, e Roose

Bolton concorda. Acreditam que vai permanecer perto do Tridente,

tomando os castelos dos senhores do rio um por um, até Correrrio

ficar sozinho. Precisamos marchar para o sul ao seu encontro.

A simples ideia gelou Catelyn até os ossos. Que chances teria um

rapaz de quinze anos contra comandantes de batalha experientes

como Jaime e Tywin Lannister?

- Será isso sensato? Aqui você tem uma posição forte. Dizem que os

velhos Reis do Norte poderiam instalar-se em Fosso Cailin e repelir

tropas dez vezes maiores que a sua.

- Sim, mas nossa provisão está diminuindo, e esta não é terra de que

possamos viver facilmente. Estivemos à espera de Lorde Manderly,

mas agora que seus filhos se juntaram a nós, temos de marchar.

Catelyn compreendeu que estava ouvindo os senhores vassalos

falarem pela voz do filho. Ao longo dos anos, recebera muitos deles

em Winterfell, e ela e Ned tinham sido acolhidos às suas mesas e

junto de seus fogos. Sabia que tipo de homens eram, cada um deles.

Gostaria de saber se Robb também o sabia.

E, no entanto, havia sentido no que diziam. Esta tropa que o filho

reunira não era um exército regular como os que as Cidades Livres

estavam habituadas a manter, nem uma força de guardas pagos em

dinheiro. A maioria era gente simples: pequenos caseiros,

trabalhadores rurais, pescadores, pastores de ovelhas, filhos de

estalajadeiros, comerciantes e curtidores, complementados por um

punhado de mercenários e cavaleiros livres ansiosos pelo saque.

Quando seus senhores chamavam, eles vinham.. mas não para

sempre.

- Marchar está muito bem - disse ao filho -, mas para onde, e com

que propósito? Que pensa em fazer?

Robb hesitou.

- Grande-Jon acha que devíamos levar a batalha até Lorde Tywin e

surpreendê-lo, mas os Glover e os Karstark pensam que seríamos

mais sensatos em rodear o seu exército e juntar forças com Sor

Edmure contra o Regicida - passou os dedos pela farta cabeleira

ruiva com um ar infeliz. - Embora, quando finalmente atingirmos

Correrrio... não tenho certeza.

- Pois tenha - disse Catelyn ao filho -, ou então volte para casa e

pegue de novo a espada de madeira. Não pode se dar ao luxo de

parecer indeciso perante homens como Roose Bolton e Ri-ckard

Karstark. Não se iluda, Robb... esses homens são seus vassalos, não

seus amigos. Chamou-se a si próprio comandante de batalha.

Comande.

O filho olhou para ela, sobressaltado, como se não conseguisse dar

crédito ao que estava ouvindo.

- Será como diz, mãe.

- Pergunto de novo. O que é que você pensa em fazer?

Robb abriu um mapa sobre a mesa, um esfarrapado pedaço de couro

antigo, coberto com linhas de tinta desbotada. Uma das pontas

teimava em enrolar-se; segurou-a pondo-lhe o punhal em cima.

- Ambos os planos têm virtudes, mas... olhe, se tentarmos rodear a

tropa de Lorde Tywin, corremos o risco de ficar presos entre ele e o

Regicida, e se o atacarmos... segundo todos os relatos, ele tem mais

homens que eu, e muito mais cavalaria armada. Grande-Jon diz que

isso não importa se o apanharmos de calças curtas, mas parece-me

que um homem que travou tantas batalhas como Tywin Lannister

não será apanhado de surpresa com toda essa facilidade.

- Muito bem - disse ela. Enquanto ele estava ali, debruçado sobre o

mapa, conseguia ouvir em sua voz ecos de Ned. - Diga-me mais.

- Eu deixaria aqui uma pequena força defendendo Fosso Cailin,

principalmente arqueiros, e marcharia com o resto pelo talude. Mas

assim que estivéssemos abaixo do Gargalo, dividiria a nossa tropa em

duas. A infantaria pode prosseguir pela Estrada do Rei, ao passo que

nossos cavaleiros atravessam o Ramo Verde nas Gêmeas - apontou. -

Quando Lorde Tywin receber a notícia de que seguimos para o sul,

marchará para o norte a fim de dar batalha à nossa divisão principal,

deixando nossos cavaleiros livres para avançar rapidamente pela

margem ocidental até Correrrio - Robb recostou-se, sem se atrever

propriamente a sorrir, mas satisfeito consigo mesmo e ansioso pelo

elogio da mãe.

Catelyn franziu as sobrancelhas para o mapa.

- Colocaria um rio entre as duas partes do seu exército.

- E entre Jaime e Lorde Tywin - disse ele ardentemente. O sorriso

enfim chegou. - Não há travessias do Ramo Verde a norte do Vau

Rubi, onde Robert conquistou sua coroa. Só nas Gêmeas, bem aqui

em cima, e Lorde Frey controla essa ponte. Ele é vassalo de seu pai,

não é verdade?

O Atrasado Lorde Frey, pensou Catelyn.

- É - admitiu -, mas meu pai nunca confiou nele. E você também não

devia fazê-lo.

- Não confiarei - prometeu Robb. - Que acha?

Contra sua vontade, estava impressionada. Ele parece um Tully,

pensou, mas não deixa de ser filho de seu pai, e Ned o ensinou hem.

- Que força comandaria?

- A cavalaria - respondeu de imediato. De novo como o pai; Ned

guardaria sempre a tarefa mais perigosa para si.

- E a outra?

- Grande-Jon está constantemente dizendo que deveríamos esmagar

Lorde Tywin. Pensei em atribuir-lhe a honra.

Era seu primeiro tropeção, mas como fazê-lo ver isso sem ferir a

confiança do primeiro voo?

- Seu pai uma vez me disse que Grande-Jon era o homem mais

destemido que já conhecera, Robb deu um sorriso.

- Vento Cinzento comeu dois de seus dedos, e ele riu. Então

concorda?

- Seu pai não é destemido - Catelyn fez notar. - É bravo, mas isso é

bem diferente. O filho pesou aquilo por um momento.

- A tropa oriental será tudo o que estará entre Lorde Tywin e

Winterfell - disse ele, pensativo, - Bem, eles e o punhado de

arqueiros que deixarmos aqui no Fosso. Portanto, não quero alguém

destemido, certo?

- Não. Quer astúcia fria, julgo eu, e não coragem.

- Roose Bolton - disse Robb de imediato. - Aquele homem me

assusta.

- Então oremos para que também assuste Tywin Lannister. Robb

assentiu e enrolou o mapa.

- Vou dar as ordens e reunir uma escolta para levá-la para Winterfell.

Catelyn lutara por manter-se forte, para o bem de Ned e deste

teimoso e corajoso filho de ambos. Pusera de lado o desespero e o

medo, como se fossem roupas que escolhera não vestir... mas agora

descobria que afinal de contas as usava.

- Não vou para Winterfell - ouviu-se dizer, surpresa com a súbita

torrente de lágrimas que lhe cobriu a visão. - Meu pai pode estar

morrendo atrás das muralhas de Correrrio. Meu irmão está rodeado

de inimigos. Tenho de ir encontrá-los.


Tyrion


Chella, filha de Cheyk. dos Orelhas Negras, tinha se adiantado para

reconhecer o terreno, e foi ela quem trouxe a notícia sobre o exército

na encruzilhada.

- Pelas fogueiras, digo que são vinte mil homens - ela disse. - Os

estandartes são vermelhos, com um leão dourado.

- Seu pai? - perguntou Bronn.

- Ou meu irmão Jaime - Tyrion respondeu. - Saberemos em breve -

examinou seu andrajoso bando de salteadores: quase trezentos

Corvos de Pedra, Irmãos da Lua, Orelhas Negras e Homens

Queimados, e estes eram apenas a semente do exército que esperava

cultivar. Gunthor, filho de Gurn, andava ainda recrutando os outros

clãs. Perguntou a si mesmo o que o senhor seu pai acharia deles,

com suas peles e pedaços de aço roubado. A bem da verdade, ele

próprio não sabia o que achar. Seria seu comandante ou seu

prisioneiro? Durante a maior parte do tempo, parecia ser um pouco

de ambos. - Pode ser melhor que eu desça sozinho - sugeriu.

- Melhor para Tyrion, filho de Tywin - disse Ulf, que falava pelos

Irmãos da Lua. Shagga apertou as sobrancelhas, o que era uma visão

assustadora.

- Shagga, filho de Dolf, não gosta disto. Shagga irá com o homem-

rapaz, e se o homem-rapaz mente, Shagga lhe cortará o membro

viril...

- ... e o dará de comer às cabras, já sei - disse Tyrion num tom

fatigado. - Sagga, eu voltarei, dou a minha palavra como Lannister.

- E por que deveríamos confiar na sua palavra? - Chella era uma

mulher pequena e dura, reta como um rapaz, e não era nada tola. -

Os senhores das terras baixas já mentiram antes aos clãs.

- Você me magoa, Chella - disse Tyrion. - E eu que pensava que nos

tínhamos tornado tão bons amigos. Mas seja como quiser. Virá

comigo, e também Shagga e Cronn pelos Corvos de Pedra, Ulf pelos

Irmãos da Lua e Timett, filho de Timett, pelos Homens Queimados -

os homens dos clãs trocaram olhares cautelosos à medida que os ia

nomeando. - Os outros ficarão aqui até que os mande chamar.

Tentem não se matar ou mutilar uns aos outros enquanto eu estiver

fora.

Esporeou o cavalo e afastou-se a trote, não lhes deixando escolha que

não fosse segui-lo ou ficar para trás. Uma ou outra coisa para ele

estava bem, bastava que não se sentassem para conversar durante

um dia e uma noite. Era este o problema dos clãs; tinham a ideia

absurda de que a voz de todos os homens devia ser ouvida em

conselho, e por isso discutiam sem fim sobre tudo. Até as mulheres

eram autorizadas a falar. Pouco admirava que se tivessem passado

centenas de anos desde a última vez que ameaçaram o Vale com algo

mais que uma incursão ocasional. Tyrion pretendia mudar isso.

Bronn o acompanhou. Atrás deles, depois de uma rápida sessão de

resmungos, os cinco homens dos clãs seguiram-nos em seus

pequenos cavalos, umas coisas magricelas que pareciam pôneis e

subiam vertentes pedregosas como cabras.

Os Corvos de Pedra iam juntos, e Chella e Ulf também se

mantinham perto um do outro, uma vez que os Irmãos da Lua e os

Orelhas Negras tinham laços fortes entre si. Timett, filho de Timett,

ia só. Todos os clãs das Montanhas da Lua temiam os Homens

Queimados, que flagelavam a carne com fogo para provar sua

coragem e (segundo os outros) assavam bebês em seus banquetes. E

mesmo os outros Homens Queimados temiam Timett, que arrancara

o próprio olho esquerdo com uma faca incandescente quando chegou

à idade adulta. Tyrion deduzira que era mais habitual que um rapaz

arrancasse a fogo um mamilo, um dedo ou (se fosse realmente bravo,

ou realmente louco) uma orelha. Os outros Homens Queimados

ficaram tão atemorizados pela sua escolha de um olho que

imediatamente o nomearam Mão Vermelha, o que parecia ser algum

tipo de chefe de guerra.

- Pergunto a mim mesmo o que o rei deles queimou - dissera Tyrion

a Bronn quando ouviu a história. Sorrindo, o mercenário agarrara a

virilha... mas até Bronn mantinha um respeitoso cuidado com a

língua perto de Timett. Se um homem era suficientemente louco

para destruir o próprio olho, era pouco provável que se mostrasse

gentil para com os inimigos.

Vigias distantes espreitavam de torres de pedra solta quando o grupo

desceu pelo sopé dos montes, e uma vez Tyrion viu um corvo

levantando voo. Onde a estrada de altitude se retorcia entre dois

afloramentos rochosos, chegaram ao primeiro ponto fortificado. Um

muro baixo de terra com um metro e vinte de altura fechava a

estrada, e uma dúzia de soldados com atiradeiras guarnecia os

pontos altos. Tyrion fez seus homens parar fora do alcance e se

dirigiu sozinho para a muralha.

- Quem comanda aqui? - gritou.

O capitão foi rápido para surgir, e ainda mais rápido para

providenciar uma escolta a Tyrion quando reconheceu o filho do seu

senhor. Passaram a trote por campos enegrecidos e fortificações

queimadas, até as terras do rio e o Ramo Verde do Tridente. Tyrion

não viu cadáveres, mas o ar estava cheio de corvos e gralhas-pretas;

tinha havido luta ali, e recentemente.

A meia légua da encruzilhada, tinha sido erigida uma barricada de

estacas aguçadas, guarnecida por lanceiros e arqueiros. Atrás dessa

linha, o acampamento estendia-se até perder de vista. Finos pilares

de fumaça erguiam-se de centenas de fogueiras para cozinhar;

homens vestidos de cota de malha sentavam-se à sombra de árvores

e amolavam suas lâminas; estandartes familiares ondulavam em

mastros enfiados no terreno lamacento,

Um grupo de cavaleiros avançou ao seu encontro quando se

aproximaram das estacas. O cavaleiro que os liderava usava uma

armadura prateada com ametistas encravadas e um manto listrado

de púrpura e prata. Seu escudo mostrava o símbolo do unicórnio, e

um corno em espiral com sessenta centímetros de comprimento

projetava-se da testa de seu elmo em forma de cabeça de cavalo.

Tyrion puxou as rédeas para saudá-lo.

- Sor Flement.

Sor Flement Brax ergueu o visor.

-Tyrion - disse, espantado. - Senhor, todos temíamos que estivesse

morto, ou... - olhou incerto para os homens dos clãs. - Estes... seus

companheiros...

- Amigos de peito e vassalos leais - disse Tyrion. - Onde poderei

encontrar o senhor meu pai?

- Usa a estalagem no entroncamento como abrigo.

Tyrion soltou uma gargalhada, A estalagem no entroncamento!

Talvez os deuses afinal fossem justos.

- Desejo vê-lo de imediato.

- Às suas ordens, senhor - Sor Flement virou o cavalo e gritou

ordens. Três filas de estacas foram arrancadas do chão para abrir um

buraco na linha. Tyrion o atravessou com o grupo.

O acampamento de Lorde Tywin espalhava-se ao longo de léguas. A

estimativa de Chella de vinte mil homens não podia estar muito

longe da verdade. Os plebeus acampavam a céu aberto, mas os

cavaleiros possuíam tendas e alguns dos grandes senhores tinham

erigido pavilhões grandes como casas. Tyrion vislumbrou o touro

vermelho dos Prester, o javali malhado de Lorde Crakehall, a árvore

ardente de Marbrand, o texugo de Lynden. Cavaleiros chamavam-no

enquanto ele ia passando a meio galope, e homens de armas

embasbacavam-se perante os homens dos clãs, em evidente espanto.

Shagga respondia-lhes também abrindo a boca; com toda certeza

nunca tinha visto tantos homens, cavalos e armas em sua vida. Os

outros salteadores da montanha faziam melhor trabalho em manter

uma expressão neutra, mas Tyrion não tinha dúvidas de que estavam

tão cheios de espanto como Shagga. Cada vez melhor. Quanto mais

impressionados estivessem com o poder dos Lannister, mais fácil

seria comandá-los.

A estalagem e seus estábulos estavam muito parecidos com o que ele

recordava, embora pouco restasse da aldeia além de pedras

derrubadas e fundações enegrecidas. Fora erigida uma forca no pátio,

e o corpo que dela pendia estava coberto de corvos. Quando Tyrion

se aproximou, levantaram voo, guinchando e batendo as asas negras.

Desmontou e olhou de relance para o que restava do cadáver. As

aves tinham-lhe comido os lábios, os olhos e a maior parte das

bochechas, deixando arreganhados os dentes manchados de

vermelho, num hediondo sorriso.

- Um quarto, uma refeição e um jarro de vinho, foi tudo o que lhe

pedi - disse ao cadáver com um suspiro de censura.

Rapazes emergiram hesitantemente dos estábulos para tratar de seus

cavalos. Shagga não queria entregar o seu.

- O rapaz não roubará sua égua - garantiu-lhe Tyrion, - Só quer dar-

lhe um pouco de aveia e água, e escovar-lhe o pelo - o pelo de

Shagga também precisava de uma boa escovada, mas mencioná-lo

teria demonstrado pouco tato. - Tem a minha palavra, não farão mal

ao cavalo.

Irritado, Shagga largou as rédeas.

- Este é o cavalo de Shagga, filho de Dolf - rugiu para o cavalariço.

- Se ele não o devolver, arranca-lhe o membro viril e o dá de comer

às cabras - sugeriu Tyrion. - Desde que consiga encontrar alguma.

Um par de guardas domésticos, usando mantos carmesins e elmos

encimados por leões, encontrava-se sob a tabuleta da estalagem, de

ambos os lados da porta. Tyrion reconheceu o capitão.

- Meu pai?

- Na sala comum, senhor.

- Meus homens querem comer e beber - disse-lhe Tyrion. - Trata

disso - e entrou na estalagem, ali estava seu pai.

Tywin Lannister, Senhor de Rochedo Casterly e Protetor do Oeste,

tinha cinquenta e poucos anos, mas era duro como um homem de

vinte. Mesmo sentado, era alto, com pernas longas, ombros largos e

barriga lisa. Os braços finos estavam envolvidos por músculos.

Quando os cabelos dourados, antes espessos, começaram a cair,

ordenara ao barbeiro que lhe rapasse a cabeça; Lorde Tywin não

acreditava em meias medidas. Também escanhoava o queixo e o

bigode, mas conservava as suíças, dois grandes matagais de rijos

pelos dourados que lhe cobriam a maior parte das bochechas, das

orelhas à maxila. Os olhos eram verde-claros salpicados de ouro. Um

bobo mais tolo que a maioria certa vez dissera brincando que até a

merda de Lorde Tywin era salpicada de ouro. Havia quem dissesse

que o homem ainda estava vivo, enterrado bem fundo nas entranhas

de Rochedo Casterly.

Sor Kevan Lannister, o único irmão sobrevivente do pai, partilhava

um jarro de cerveja com Lorde Tywin quando Tyrion entrou na sala

comum. O tio era corpulento e estava perdendo cabelo, com uma

barba amarela cortada curta que seguia a linha do maciço maxilar.

Sor Kevan foi o primeiro a vê-lo.

- Tyrion - disse, surpreso.

- Tio - disse Tyrion, fazendo uma reverência. - E o senhor meu pai.

Que prazer encontrá-los aqui.

Lorde Tywin não se mexeu da cadeira, mas lançou ao filho anão um

longo olhar perscrutador,

- Vejo que os rumores sobre seu falecimento eram infundados.

- Lamento desapontá-lo, pai - disse Tyrion. - Não há necessidade de

saltar da cadeira e vir me abraçar, não desejo que se canse -

atravessou a sala até a mesa onde eles estavam, agudamente

consciente do modo como as pernas deformadas o faziam oscilar a

cada passo. Sempre que os olhos do pai caíam sobre ele, ficava

desconfortavelmente consciente de todas as suas deformidades e

imperfeições. - Foi amável de sua parte ir à guerra por mim - disse,

enquanto subia em uma cadeira e se servia de uma taça da cerveja

do pai,

- Segundo vejo as coisas, foi você quem começou isto - respondeu

Lorde Tywin. - Seu irmão Jaime nunca teria se submetido docilmente

a ser capturado por uma mulher.

- Esta é uma das coisas em que diferimos, Jaime e eu. Ele também é

mais alto, talvez tenha notado.

O pai ignorou o aparte.

- A honra da nossa Casa estava em causa. Não tive alternativa que

não fosse ir para a guerra. Ninguém derrama impunemente sangue

Lannister.

- Ouça-me rugir - disse Tyrion, sorrindo, as palavras Lannister. - A

bem da verdade, nenhuma gota do meu sangue chegou a ser

derramada, embora estivesse perto disso uma ou duas vezes, Morrec

e Jyck foram mortos.

- Suponho que vá querer novos homens.

- Não se incomode, pai, adquiri alguns homens meus - experimentou

um gole da cerveja. Era marrom e cheia de levedura, tão espessa que

quase se conseguia mastigá-la, Muito boa, realmente. Uma pena que

o pai tivesse enforcado a estalajadeira. - Como anda a sua guerra?

Foi o tio quem respondeu.

- Bastante bem, até aqui. Sor Edmure tinha espalhado pequenas

companhias ao longo das fronteiras para parar as nossas incursões, e

o senhor seu pai e eu conseguimos destruir, pouco a pouco, a maior

parte antes que conseguissem se reagrupar.

- Seu irmão tem se coberto de glória - disse o pai. - Esmagou os

lordes Vance e Piper no Dente Dourado e defrontou o poderio

conjunto dos Tully à sombra das muralhas de Correrrio. Os senhores

do Tridente foram postos em fuga. Sor Edmure Tully foi feito cativo,

com muitos de seus cavaleiros e vassalos. Lorde Blackwood levou

alguns sobreviventes para Correrrio, onde Jaime os tem sob cerco. O

resto fugiu para suas próprias terras.

- Seu pai e eu temos vindo marchando contra um deles de cada vez -

disse Sor Kevan. -Com Lorde Blackwood fora. Corvarbor caiu de

imediato, e a Senhora Whent rendeu Harrenhal por falta de homens

para defender o castelo. Sor Gregor incendiou os Piper e os

Bracken..

- Deixando-os sem oposição? - disse Tyrion.

- Não totalmente - disse Sor Kevan. - Os Mallister ainda detêm

Guardamar e Walder Frey põe em ordem seus recrutas nas Gêmeas.

- Não importa - disse Lorde Tywin. - Frey só se põe em campo

quando o cheiro da vitória paira no ar, e tudo o que cheira agora é a

ruína. E a Jason Mallister falta força para lutar sozinho. Uma vez

tomado Correrrio por Jaime, ambos dobrarão o joelho bastante

depressa. A menos que os Stark e os Arryn avancem para nos

confrontar, esta guerra está ganha.

- Não me preocuparia muito com os Arryn se estivesse em seu lugar

- disse Tyrion. - Os Stark são outra coisa. Lorde Eddard. .

- ... é nosso refém - disse o pai. - Não comandará exércitos enquanto

apodrece numa masmorra sob a Fortaleza Vermelha.

- Não - concordou Sor Kevan -, mas o filho convocou os vassalos e

está em Fosso Cailin com uma tropa forte em volta dele.

- Nenhuma espada é forte até ser temperada - declarou Lorde Tywin.

- O rapaz Stark é uma criança. Sem dúvida que gosta bastante do

som das trombetas de guerra e de ver suas bandeiras esvoaçarem ao

vento, mas, no fim das contas, tudo se resume a trabalho de

carniceiro. Duvido que tenha estômago para tanto.

Tyrion pensou que as coisas tinham se tornado interessantes

enquanto estivera longe.

- E o que faz nosso destemido monarca enquanto todo este "trabalho

de carniceiro" se desenrola? - quis saber. - Como foi que minha

adorável e persuasiva irmã levou Robert a concordar com o

aprisionamento de seu querido amigo Ned?

- Robert Baratheon está morto - seu pai respondeu. - Seu sobrinho

reina em Porto Real. Aquilo apanhou mesmo Tyrion de surpresa.

- Minha irmã, quer dizer - bebeu outro gole de cerveja., O reino seria

um lugar muito diferente com Cersei a governar no lugar do marido.

- Se tem intenção de se tornar útil, dou-lhe um comando - seu pai

continuou. - Marq Piper e Karyl Vance andam à solta na nossa

retaguarda, saqueando as terras ao longo do Ramo Vermelho.

Tyrion soltou um tsc.

- Que descaramento deles responder lutando. Em circunstâncias

normais, ficaria feliz por punir tanta falta de educação, pai, mas a

verdade é que tenho negócios mais prementes em outro local.

- Ah, sim? - Lorde Tywin não parecia surpreso. - Também temos um

par de ideias tardias de Ned Stark que tentam se tornar uma maçada

atormentando meus destacamentos logísticos, Beric Dondarrion, um

jovem fidalgote qualquer com ilusões de valor. Tem com ele aquela

caricatura gorda de um sacerdote, aquele que gosta de pôr fogo na

espada. Acha que poderia tratar deles enquanto foge? Sem estragar

demais o serviço?

Tyrion limpou a boca com as costas da mão e sorriu.

-Pai, aquece-me o coração pensar que poderia me confiar... o quê,

vinte homens? Cinquenta? Está seguro de poder dispensar tantos

assim? Bem, não importa. Se encontrar Thoros e Lorde Beric,

espancarei ambos - desceu da cadeira e bamboleou até o aparador,

onde uma rodela de queijo fresco raiado estava rodeada de frutas. -

Mas primeiro tenho algumas promessas minhas a cumprir - disse,

enquanto cortava um pedaço. - Preciso de três mil elmos e outras

tantascamisas de cota de malha, mais espadas, lanças, pontas de

lança em aço, maças, machados de batalha, manoplas, gorjais, grevas,5

placas de peito, carroças para transportar isso tudo...

A porta atrás dele abriu-se com estrondo, tão violentamente que

Tyrion quase deixou cair o queijo. Sor Kevan saltou do banco,

praguejando, enquanto o capitão da guarda atravessou a sala voando

e foi de encontro à lareira. Enquanto caía sobre as cinzas frias, com o

elmo de leão torto, Shagga partiu a espada do homem em duas num

joelho grosso como um tronco de árvore, atirou os pedaços ao chão

e entrou pesadamente na sala comum. Foi precedido pelo fedor que

exalava, mais forte que o do queijo e avassalador naquele espaço

fechado,

- Pequeno capa-vermelha - rosnou - da próxima vez que

desembainhar o aço contra Shagga, filho de Dolf, cortarei seu

membro viril e o assarei numa fogueira.

- O quê? Nada de cabras? - disse Tyrion, dando uma dentada no

queijo.

Os outros homens dos clãs seguiram Shagga para a sala comum, com

Bronn entre eles. O mercenário encolheu tristemente os ombros na

direção de Tyrion.

- E quem são vocês? - perguntou Lorde Tywin, frio como a neve.

- Seguiram-me até em casa, pai - explicou Tyrion. - Posso ficar com

eles? Não comem muito. Ninguém estava sorrindo.


5 Partes da armadura que recobrem as pernas, do joelho para baixo.

- Com que direito, seus selvagens, se intrometem em nossos

concílios? - exigiu saber Sor Kevan.

- Selvagens, homem das planícies? - Cronn bem poderia se parecer

com um se estivesse lavado. - Somos homens livres, e os homens

livres, por direito, tomam parte em todos os concílios de guerra.

- Qual deles é o senhor dos leões? - perguntou Chella.

- São os dois velhos - anunciou Timett, filho de Timett, que ainda

não tinha visto seu vigésimo ano.

A mão de Sor Kevan caiu sobre o cabo da espada, mas o irmão

pousou dois dedos em seu pulso e o segurou. Lorde Tywin parecia

imperturbável.

- Tyrion, esqueceu a boa educação? Seja amável e nos apresente os

nossos... honrados hóspedes.

Tyrion lambeu os dedos.

- Com prazer - respondeu. - A bela donzela é Chella, filha de Cheyk,

dos Orelhas Negras.

- Não sou donzela coisa nenhuma - protestou Chella. - Meus filhos já

somam ao todo cinquenta orelhas.

- Que somem outras cinquenta - Tyrion bamboleou para longe dela.

- Este é Cronn, filho de Coratt. Shagga, filho de Dolf, é aquele que se

parece com um Rochedo Casterly de cabelos. São Corvos de Pedra.

Aqui está Ulf, filho de Umar, dos Irmãos da Lua, e aqui, Timett, filho

de Timett, Mão Vermelha dos Homens Queimados. E este é Bronn,

um mercenário sem nenhuma fidelidade em especial. Já mudou de

lado duas vezes no breve período em que o conheço; o senhor e ele

vão se entender maravilhosamente, pai - para Bronn e para os

homens dos clãs, disse: - Apresento-lhes o senhor meu pai, Tywin,

filho de Tytos, da Casa Lannister, Senhor de Rochedo Casterly,

Protetor do Oeste, Escudo de Lannisporto, e antiga e futura Mão do

Rei.

Lorde Tywin ergueu-se, digno e correto.

- Mesmo no Oeste conhecemos a intrepidez dos clãs guerreiros das

Montanhas da Lua. Que os traz do alto de suas terras, senhores?

- Cavalos - disse Shagga.

- A promessa de seda e aço - disse Timett, filho de Timett.

Tyrion se preparara para contar ao senhor seu pai como propunha

reduzir o Vale de Arryn a um deserto fumegante, mas não lhe foi

dada essa possibilidade. A porta abriu-se de novo com estrondo. O

mensageiro deu uma olhadela rápida e estranha aos homens dos clãs

de Tyrion enquanto caía sobre o joelho perante Lorde Tywin.

- Senhor, Sor Addam pede-me para avisar que a tropa Stark desce

pelo talude.

Lorde Tywin Lannister não sorriu. Ele nunca sorria, mas Tyrion

aprendera a ler o prazer do pai mesmo assim, e ele ali estava, em seu

rosto.

- Então o lobinho está deixando a toca para vir brincar entre os leões

- disse, numa voz de calma satisfação. - Magnífico. Regresse para

junto de Sor Addam e diga-lhe para se retirar. Não deverá dar

combate aos nortenhos até chegarmos, mas quero que lhes

atormente os flancos e os atraia mais para o sul.

- Será feito conforme ordena - o mensageiro respondeu e se retirou.

- Aqui estamos bem situados - fez notar Sor Kevan. - Perto do rio

raso e rodeados de fossos e lanças. Se vierem para o sul, pois que

venham e se quebrem contra nós.

- O rapaz pode esperar ou perder a coragem quando vir nossos

números - respondeu Lorde Tywin. - Quanto mais depressa

quebrarmos os Stark, mais depressa estarei livre para lidar com

Stannis Baratheon. Que rufem os tambores para o agrupamento, e

envie uma mensagem a Jaime dizendo-lhe que marcho contra Robb

Stark.

- Às suas ordens - disse Sor Kevan.

Tyrion observou com um fascínio sombrio quando o senhor seu pai

se virou em seguida para os meio selvagens homens dos clãs.

- Dizem que os homens dos clãs de montanha são guerreiros sem

medo.

- Dizem a verdade - respondeu Cronn, dos Corvos de Pedra.

- E as mulheres também - acrescentou Chella.

- Acompanhem-me contra os meus inimigos e terão tudo o que meu

filho lhes prometeu, e mais ainda - disse-lhes Lorde Tywin.

- Pagará com a nossa própria moeda? - disse Ulf, filho de Umar. -

Por que necessitaríamos da promessa do pai, quando temos a do

filho?

- Nada disse sobre necessidade - respondeu Lorde Tywin. - Minhas

palavras eram uma cortesia, nada mais. Não precisam se juntar a nós.

Os homens das terras de inverno são feitos de ferro e gelo, e até

meus cavaleiros mais corajosos temem defrontá-los.

Ah, mas que habilidade, pensou Tyrion, com um sorriso torto.

- Os Homens Queimados nada temem. Timett, filho de Timett,

acompanhará os leões.

- Onde quer que os Homens Queimados forem, os Corvos de Pedra

estarão lá primeiro - declarou acaloradamente Cronn. - Também

vamos.

- Shagga, filho de Dolf, lhes cortará os órgãos viris e os dará de

comer aos corvos.

- Vamos acompanhá-lo, senhor leão - concordou Chella, filha de

Cheyk -, mas só se seu filho meio-homem vier conosco. Comprou o

ar que respira com promessas. Até termos o aço que nos prometeu,

sua vida nos pertence.

Lorde Tywin virou os olhos semeados de ouro para o filho.

- Alegria - disse Tyrion com um sorriso resignado.


Sansa


As paredes da sala do trono tinham sido desnudadas, removeram-se

as tapeçarias com cenas de caça que o Rei Robert adorava,

amontoadas a um canto, numa pilha desordenada. Sor Mandon

Moore tomou seu lugar sob o trono ao lado de dois de seus

companheiros da Guarda Real. Sansa permaneceu perto da porta,

pela primeira vez sem ser guardada. A rainha lhe tinha dado

liberdade de castelo como recompensa por se comportar bem, mas

mesmo assim era escoltada para todo lado. "Guardas de honra para

minha futura filha", chamava-os a rainha, mas não faziam com que

Sansa se sentisse honrada.

"Liberdade de castelo" significava que podia ir aonde quisesse dentro

da Fortaleza Vermelha, desde que prometesse não atravessar suas

muralhas, uma promessa que Sansa estivera mais que disposta a

fazer. Fosse como fosse, não poderia ter atravessado as muralhas. Os

portões eram vigiados dia e noite pelos homens de manto dourado

de Janos Slynt, e também havia sempre por perto guardas da Casa

Lannister. Além disso, mesmo se pudesse sair do castelo, para onde

iria? Bastava que pudesse andar pelo pátio, apanhar flores no jardim

de Myrcella e visitar o septo para rezar pelo pai. Às vezes, rezava

também no bosque sagrado, visto que os Stark eram fiéis aos velhos

deuses.

Aquela era a primeira audiência do reinado de Joffrey, e Sansa olhou

nervosamente em volta. Uma fileira de guardas Lannister alinhava-se

sob as janelas ocidentais e uma fileira de Patrulheiros da Cidade de

mantos dourados, sob as orientais. De plebeus e gente comum não

viu sinal, mas, sob a galeria, um aglomerado de grandes e pequenos

senhores andava incansavelmente em círculos. Não eram mais de

vinte, quando uma centena costumava esperar pelo Rei Robert.

Sansa deslizou entre eles, murmurando saudações enquanto abria

caminho para a frente. Reconheceu a pele negra de Jalabhar Xho, o

sombrio Sor Aron Santagar, os irmãos Redwyne, Horror e Babeiro...,

mas nenhum deles pareceu reconhecê-la. Ou, se o fizeram,

esquivaram-se como se tivesse a praga cinzenta. O enfermiço Lorde

Gyles cobriu o rosto quando ela se aproximou e fingiu um ataque de

tosse, e quando o engraçado e ébrio Sor Dontos começou a saudá-la,

Sor Balon Swann segredou-lhe ao ouvido e ele se virou.

E havia tantos outros que não estavam ali. Sansa perguntou a si

mesma para onde teriam ido. Em vão, procurou rostos amistosos.

Nem um lhe sustentou o olhar. Era como se tivesse se transformado

em fantasma, morta antes da hora.

O Grande Meistre Pycelle estava sentado, sozinho, à mesa do

conselho, aparentemente adormecido, com as mãos apertadas sobre a

barba. Viu Lorde Varys entrar às pressas na sala, sem fazer o mínimo

som com os pés. Um momento mais tarde, Lorde Baelish entrou

pelas grandes portas sorrindo. Conversou amigavelmente com Sor

Balon e Sor Dontos enquanto abria caminho para a frente.

Borboletas esvoaçaram nervosamente dentro da barriga de Sansa.

Não devia ter medo, repreendeu-se. Não tenho nada a temer, tudo

ficará bem,Jojf me ama e a rainha também, foi ela quem disse. A voz

de um arauto ressoou.

- Saúdem Sua Graça, Joffrey das Casas Baratheon e Lannister, o

Primeiro de Seu Nome, Rei dos Ândalos, dos Roinares e dos

Primeiros Homens e Senhor dos Sete Reinos. Saúdem a senhora sua

mãe, Cersei da Casa Lannister, Rainha Regente, Luz do Oeste e

Protetora do Território,

Sor Barristan Selmy, resplandecente em sua armadura branca, entrou

à frente deles. Sor Arys Oakheart escoltava a rainha, ao passo que

Sor Borós Blount caminhava ao lado de Joffrey; portanto, estavam

agora na sala seis dos membros da Guarda Real, todas as Espadas

Brancas, menos Jaime Lannister. Seu príncipe - não, agora era seu

rei! - subiu de dois em dois os degraus até o Trono de Ferro,

enquanto a mãe se sentava com o conselho. Joffrey vestia pelúcia de

veludo negro rasgado de carmim, uma capa de colarinho alto, de

tecido cintilante de ouro, e na cabeça tinha uma coroa dourada

incrustada de rubis e diamantes negros.

Quando Joffrey se virou para olhar para a sala, os olhos

encontraram-se com os de Sansa. Sorriu, sentou-se, e falou.

- É dever de um rei punir os desleais e recompensar os fiéis. Grande

Meistre Pycelle, ordeno que leia meus decretos.

Pycelle pôs-se em pé. Vestia uma magnífica toga de grosso veludo

vermelho, com um colarinho de arminho e brilhantes presilhas

douradas. Retirou um pergaminho da manga pendente, pesada com

arabescos dourados, e começou a ler uma longa lista de nomes,

ordenando a todos, em nome do rei e do conselho, que se

apresentassem e jurassem lealdade a Joffrey. Caso não o fizessem,

seriam declarados traidores e teriam suas terras e títulos confiscados

pela coroa.

Os nomes que leu fizeram Sansa prender a respiração. Lorde Stannis

Baratheon, a senhora sua esposa e sua filha. Lorde Renly Baratheon.

Ambos os lordes Royce e seus filhos. Sor Loras Tyrell. Lorde Mace

Tyrell, seus irmãos, tios e filhos. O sacerdote vermelho, Thoros de

Myr. Lorde Beric Dondarrion. Senhora Lysa Arryn e o filho, o

pequeno Lorde Robert. Lorde Hoster Tully, o irmão, Sor Brynden, e o

filho, Sor Edmure. Lorde Jason Mallister. Lorde Bryce Caron, da

Marca. Lorde Tytos Blackwood. Lorde Walder Frey e o herdeiro, Sor

Stevron. Lorde Karyl Vance. Lorde Jonos Bracken, A Senhora Sheila

Whent. Doran Martell, Príncipe de Dorne, e todos os seus filhos.

Tantos, pensou, enquanto Pycelle continuava a ler, que será preciso

um bando inteiro de corvos para enviar estas ordens.

E por fim, quase em último, chegaram os nomes que Sansa temia. A

Senhora Catelyn Stark. Robb Stark. Brandon Stark, Rickon Stark,

Arya Stark. Sansa abafou um arquejo. Arya. Queriam que Arya se

apresentasse e fizesse um juramento... isto significava que a irmã

tinha fugido na galé, já devia estar a salvo em Winterfell...

O Grande Meistre Pycelle enrolou a lista, enfiou-a na manga

esquerda e retirou outro pergaminho da direita. Limpou a garganta e

prosseguiu.

- No lugar do traidor Eddard Stark, é desejo de Sua Graça que Tywin

Lannister, Senhor de Rochedo Casterly e Protetor do Oeste, ocupe o

posto de Mão do Rei, para falar com a sua voz, liderar os seus

exércitos contra os seus inimigos e pôr em prática a sua real

vontade. Assim decretou o rei. O pequeno conselho consente. No

lugar do traidor Stannis Baratheon, é desejo de Sua Graça que a

senhora sua mãe, a Rainha Regente Cersei Lannister, que sempre foi

a sua mais dedicada apoiadora, se sente no seu pequeno conselho,

para que possa ajudá-lo a governar sabiamente e com justiça. Assim

decretou o rei. E o pequeno conselho consente.

Sansa ouviu murmúrios dos senhores que a rodeavam, mas foram

rapidamente abafados. Pycelle prosseguiu.

- E também desejo de Sua Graça que o seu leal servidor, Janos Slynt,

Comandante da Patrulha da Cidade de Porto Real, seja de imediato

promovido à categoria de lorde e que lhe seja atribuído o antigo

domínio de Harrenhal com todas as suas terras e rendimentos, e que

seus filhos e netos mantenham essas honrarias após a sua morte e

até o fim dos tempos. Ordena ainda que Lorde Slynt se sente

imediatamente no seu pequeno conselho, para ajudar no governo do

reino. Assim decretou o rei. E o pequeno conselho consente.

Sansa detectou movimento pelo canto do olho quando Janos Slynt

fez sua entrada. E então os murmúrios foram mais sonoros e mais

zangados. Senhores orgulhosos, cujas casas remontavam há milhares

de anos, abriram relutantemente caminho ao plebeu meio careca

com cara de sapo que passava por eles. Escamas douradas tinham

sido cosidas ao veludo negro de seu gibão e ressoavam suavemente a

cada passo. O manto era de cetim xadrez, negro e ouro. Dois rapazes

feios, que deviam ser seus filhos, caminhavam à sua frente, lutando

com o peso de um sólido escudo de metal tão alto como eles. Como

símbolo tinha escolhido uma lança ensanguentada, de ouro em

campo negro como a noite. Ao vê-la, Sansa sentiu arrepios.

Enquanto Lorde Slynt tomava seu lugar, o Grande Meistre Pycelle

prosseguiu:

- Por fim, nestes tempos de traição e perturbação, com o nosso

querido Robert tão recentemente morto, é opinião do conselho que a

vida e a segurança do Rei Joffrey é de suprema importância.. - olhou

para a rainha.

Cersei pôs-se em pé.

- Sor Barristan Selmy, apresente-se.

Sor Barristan tinha estado na base do Trono de Ferro, tão imóvel

como uma estátua, mas agora caía sobre o joelho e inclinava a

cabeça.

- Vossa Graça, estou às suas ordens.

- Erga-se, Sor Barristan - disse Cersei Lannister. - Pode tirar o elmo.

- Senhora? - erguendo-se, o velho cavaleiro tirou o grande elmo

branco, embora não parecesse compreender por quê.

- Tem servido o reino longa e fielmente, meu bom sor, e todos os

homens e mulheres nos Sete Reinos lhe devem agradecimentos. Mas,

agora, temo que seu serviço esteja no fim. É desejo do rei e do

conselho que se alivie do seu pesado fardo.

- O meu... fardo? Temo que... que não...

O recém-nomeado lorde, Janos Slynt, falou com a voz pesada e

brusca.

- Sua Graça está tentando dizer que está demitido do posto de

Senhor Comandante da Guarda Real.

O alto cavaleiro de cabelos brancos pareceu encolher, ali, em pé,

quase sem respirar.

- Vossa Graça - disse por fim. - A Guarda Real é uma Irmandade

Juramentada. Nossos votos são feitos para a vida. Só a morte pode

demitir o Senhor Comandante de sua responsabilidade sagrada.

- A morte de quem, Sor Barristan? - a voz da rainha era suave como

seda, mas as palavras soaram em todo o salão. - A sua, ou a do seu

rei?

- O senhor deixou meu pai morrer - disse Joffrey acusadoramente de

cima do Trono de Ferro. - É velho demais para proteger alguém.

Sansa viu o cavaleiro olhar para seu novo rei. Nunca como agora o

vira aparentar a idade que tinha.

- Vossa Graça - disse. - Fui escolhido para as Espadas Brancas no

meu vigésimo terceiro ano. Sempre sonhara com isso, desde o

primeiro momento em que empunhei uma espada. Renunciei a

qualquer pretensão à minha fortaleza ancestral. A donzela com quem

ia me casar desposou meu primo, eu não tinha falta de terras ou

filhos, viveria pelo reino. Foi o próprio Sor Gerold Hightower quem

me ouviu os votos... de proteger o rei com todas as minhas forças..

de dar meu sangue pelo dele... Lutei ao lado do Touro Branco e do

Príncipe Lewyn de Dorne.. ao lado de Sor Arthur Dayne, a Espada da

Manhã. Antes de servir vosso pai, ajudei a proteger o Rei Aerys, e

antes dele o pai, Jaehaerys... três reis...

- E todos estão mortos - Mindinho fez notar.

- Seu tempo acabou - anunciou Cersei Lannister. - Joffrey precisa de

homens jovens e fortes ao seu redor. O conselho decidiu que Sor

Jaime Lannister tome o seu lugar como Senhor Comandante dos

Irmãos Juramentados das Espadas Brancas.

- O Regicida - disse Sor Barristan, com a voz dura de desprezo. - O

falso cavaleiro que profanou sua lâmina com o sangue do rei que

jurara defender.

- Tenha cuidado com o que diz, senhor - avisou a rainha. - Fala do

nosso amado irmão, do sangue do seu rei.

Lorde Varys falou, mais suavemente que os outros.

- Não esquecemos os seus serviços, meu bom senhor. Lorde Tywin

Lannister concordou generosamente em lhe conceder um bom trecho

de terras ao norte de Lannisporto, junto ao mar, com ouro e homens

suficientes para construir uma robusta fortaleza e criados para lhe

satisfazer todas as necessidades.

Sor Barristan ergueu vivamente os olhos.

- Um salão onde morrer, e homens para me enterrar. Agradeço-lhes,

senhores... mas escarro na sua piedade - ergueu as mãos e abriu as

fivelas que mantinham o manto no lugar, e o pesado pano branco

deslizou-lhe dos ombros e foi cair num monte, no chão. Seu capacete

caiu com um clang. - Sou um cavaleiro - disse-lhes. Abriu as

presilhas de prata da placa de peito e também a deixou cair. -

Morrerei como cavaleiro.

- Um cavaleiro nu, aparentemente - observou Mindinho.

Todos riram, Joffrey de seu trono, os senhores presentes, Janos Slynt,

a Rainha Cersei e San-dor Clegane, e mesmo os outros homens da

Guarda Real, os cinco que tinham sido seus irmãos até um momento

antes. Certamente que isso deve ter sido o que mais magoou, pensou

Sansa. Seu coração compadeceu-se do galante senhor, que ali estava

envergonhado e corado, zangado demais para falar. Por fim, puxou a

espada.

Sansa ouviu alguém ofegar. Sor Borós e Sor Meryn avançaram para

enfrentá-lo, mas Sor Barristan congelou-os no lugar com um olhar

que pingava desprezo.

- Nada temam, senhores, vosso rei está a salvo... mas não graças a

vocês. Mesmo agora, poderia abrir caminho através dos cinco tão

facilmente como um punhal corta o queijo. Se aceitam servir às

ordens do Regicida, então nem um é digno de usar o branco - atirou

a espada aos pés do Trono de Ferro. - Tome, rapaz. Funda-a e junte-

a às outras, se quiser. Fará melhor serviço que as espadas nas mãos

destes cinco. Talvez calhe que Lorde Stannis se sente em cima dela

quando lhe tomar o trono.

Atravessou toda a sala para sair, com os passos ressoando

ruidosamente no chão, arrancando ecos das paredes de pedra nua.

Senhores e senhoras abriram alas para ele passar. Sansa só voltou a

ouvir sons depois de os pajens fecharem as grandes portas de

carvalho e bronze às suas costas: vozes baixas, movimentos

incomodados, o rumor de papéis vindo da mesa do conselho.

- Ele me chamou de rapaz - disse Joffrey em tom rabugento, soando

mais novo do que era.

- E também falou de meu tio Stannis.

- Conversa fiada - disse Varys, o eunuco. - Sem significado...

- Pode estar conspirando com meus tios. Quero-o capturado e

interrogado - ninguém se moveu. Joffrey ergueu a voz. - Eu disse que

o quero capturado!

Janos Slynt levantou-se da mesa do conselho.

- Meus homens tratarão disso, Vossa Graça.

- Ótimo - disse o Rei Joffrey. Lorde Janos saiu do salão, com os filhos

feios correndo para acompanhar seu passo enquanto arrastavam com

dificuldade o grande escudo de metal com as armas da Casa Slynt.

- Vossa Graça - relembrou Mindinho ao rei. - Se pudéssemos

recomeçar, os sete são agora seis. Falta-nos uma nova espada para a

Guarda Real.

Joffrey sorriu.

- Diga-lhes, mãe.

- O rei e o conselho decidiram que não há homem nos Sete Reinos

mais capaz de guardar e proteger Sua Graça do que o seu escudo

juramentado, Sandor Clegane.

- Que acha disso, Cão? - perguntou o Rei Joffrey.

Era difícil ler o rosto cheio de cicatrizes de Cão de Caça, que levou

um longo momento refletindo.

- E por que não? Não tenho terras nem esposa para deixar, e quem

se importaria se tivesse?

- o lado queimado da boca retorceu-se. - Mas aviso que não farei

votos de cavaleiro.

- Os Irmãos Juramentados da Guarda Real sempre foram cavaleiros -

disse firmemente Sor Borós.

- Até agora - disse Cão de Caça na sua profunda voz áspera, e Sor

Borós calou-se. Quando o arauto do rei avançou, Sansa compreendeu

que o momento tinha quase chegado.

Alisou nervosamente o tecido da saia. Estava vestida de luto, em sinal

de respeito pelo rei morto, mas tinha tido especial cuidado em ficar

bela. O vestido era o de seda cor de marfim que a rainha lhe dera,

aquele que Arya estragara, mas havia mandado tingir de negro e não

era possível ver a mancha. Levara horas atormentada com as jóias, e

por fim decidira-se pela elegante simplicidade de uma corrente de

prata sem adornos. A voz do arauto retumbou.

- Se algum homem neste salão tem outros assuntos para colocar a

Sua Graça, que fale agora ou se mantenha em silêncio.

Sansa vacilou. Agora, disse a si mesma, tenho de fazê-lo agora. Que

os deuses me dêem coragem. Deu um passo, depois outro. Senhores

e cavaleiros afastaram-se silenciosamente para deixá-la passar, e

sentiu o peso daqueles olhos em cima de si. Tenho de ser tão forte

como a senhora minha mãe.

- Vossa Graça - chamou, numa voz suave e trêmula.

A altura do Trono de Ferro dava a Joffrey uma visão melhor que a

qualquer outro dos presentes no salão. Foi o primeiro a vê-la.

- Avance, senhora - disse, sorrindo.

O sorriso dele a encorajou, a fez sentir-se bela e forte. Ele me ama

mesmo, ama mesmo. Sansa ergueu a cabeça e caminhou em sua

direção, nem devagar nem depressa demais. Não podia deixá--los ver

como estava nervosa.

- A Senhora Sansa, da Casa Stark - gritou o arauto.

Parou sob o trono, no lugar onde o manto branco de Sor Barristan

estava amontoado no chão, ao lado de seu elmo e sua placa de peito.

- Tem algum assunto para o rei e o conselho, Sansa? - perguntou a

rainha da mesa do conselho.

- Tenho - ajoelhou-se sobre o manto, para não estragar o vestido, e

olhou para seu príncipe naquele temível trono negro. - Se for desejo

de Vossa Graça, peço misericórdia para meu pai, Lorde Eddard Stark,

que foi Mão do Rei - treinara as palavras uma centena de vezes.

A rainha suspirou.

- Sansa, você me desilude. O que lhe disse a respeito do sangue do

traidor?

- Seu pai cometeu graves e terríveis crimes, senhora - entoou o

Grande Meistre Pycelle,

- Ah, pobre coisinha triste - suspirou Varys. - Não é mais que uma

criança inocente, senhores, não sabe o que está pedindo.

Sansa só tinha olhos para Joffrey. Ele tem de me ouvir, tem de me

ouvir, pensou. O rei mudou de posição.

- Deixe-a falar - ordenou, - Quero ouvir o que ela diz.

- Obrigada, Vossa Graça - Sansa sorriu, um tímido sorriso secreto, só

para ele. Ele estava ouvindo. Ela sabia que ouviria.

- A traição é uma erva daninha - declarou solenemente Pycelle. -

Tem de ser arrancada, raiz, caule e semente, para que novos

traidores não nasçam na beira de cada estrada.

- Nega o crime de seu pai? - perguntou Lorde Baelish.

- Não, senhores - Sansa não era assim tão tola. - Sei que ele deve ser

punido. Tudo o que peço é misericórdia. Sei que o senhor meu pai

deve se arrepender do que fez. Era amigo do Rei Robert, e adorava-o,

todos sabem que o adorava. Nunca quis ser Mão até que o rei lhe

pediu. Devem ter mentido para ele. Lorde Renly, ou Lorde Stannis,

ou... ou alguém, devem ter mentido, de outra forma...

O Rei Joffrey inclinou-se para a frente, com as mãos agarrando os

braços do trono. Pontas de espadas quebradas projetaram-se entre

seus dedos.

- Ele disse que eu não era o rei. Por que ele disse isso?

- Tinha a perna quebrada - respondeu ansiosamente Sansa. - Doía

tanto que Meistre Pycelle dava-lhe leite da papoula, e dizem que o

leite da papoula enche a cabeça de nuvens. De outra forma, nunca o

teria dito.

Varys disse:

- A fé de uma criança... que doce inocência.. e, no entanto, dizem

que a sabedoria surge frequentemente das bocas dos inexperientes.

- Traição é traição - Pycelle respondeu imediatamente. Joffrey

agitava-se no trono.

- Mãe?

Cersei Lannister avaliou Sansa pensativamente.

- Se Lorde Eddard confessasse seu crime - acabou por dizer -,

saberíamos que se arrependeu da sua loucura.

Joffrey pôs-se em pé. Por favor, pensou Sansa, por favor, por favor,

seja o rei que sei que é, bom, amável e nobre, por favor.

- Tem algo mais a dizer? - perguntou-lhe.

- Só que.. se me ama, concede-me esta gentileza, meu príncipe - ela

disse. O Rei Joffrey olhou-a de cima a baixo.

- Suas doces palavras me comoveram - disse galantemente, acenando,

como que dizendo que tudo ficaria bem. - Farei como pede.. Mas

primeiro seu pai tem de confessar. Tem de confessar e dizer que eu

sou o rei, ou não haverá misericórdia para ele.

- Ele o fará - disse Sansa, com o coração aos saltos. - Ah, eu sei que

o fará.


Eddard


A palha no chão fedia a urina. Não havia janela, nem cama, nem

mesmo um balde para os dejetos. Lembrava-se de paredes de pedra

vermelho-clara, respingadas com manchas de salitre, uma porta cinza

de madeira rachada, com dez centímetros de espessura e reforçada

com ferro. Vira esses detalhes num rápido relance enquanto o

atiravam lá. Depois de a porta ser fechada com estrondo, nada mais

vira. A escuridão era absoluta. Era como se estivesse cego. Ou morto.

Enterrado com o seu rei.

- Ah, Robert - murmurou enquanto a mão apalpava uma parede fria

de pedra, com a perna latejando a cada movimento. Recordou a

brincadeira do rei nas criptas de Winterfell, enquanto os Reis do

Inverno os olhavam com frios olhos de pedra. O rei come, dissera

Robert, e a Mão recolhe a merda. Como ele rira. Mas enganara-se. O

rei morre, pensou Ned Stark, e a Mão é enterrada.

A masmorra ficava sob a Fortaleza Vermelha, mais fundo do que se

atrevia a imaginar. Lembrava-se das velhas histórias sobre Maegor, o

Cruel, que assassinara todos os pedreiros que tinham trabalhado em

seu castelo para que nunca pudessem revelar os seus segredos.

Maldizia-os a todos: Mindinho, Janos Slynt e seus homens, a rainha, o

Regicida, Pycelle, Varys e Sor Barristan, até Lorde Renly, do próprio

sangue de Robert, que fugira quando era mais necessário. Mas, no

fim das contas, culpava-se a si próprio.

- Estúpido - gritou para a escuridão -, três vezes maldito, cego e

estúpido.

O rosto de Cersei Lannister pareceu flutuar à sua frente na

escuridão. Tinha os cabelos cheios de sol, mas havia troça no sorriso.

"Quando se joga o jogo dos tronos, ganha-se ou morre", sussurrou.

Ned jogara e perdera, e seus homens tinham pagado o preço da sua

loucura com o sangue de suas vidas.

Quando pensou nas filhas, teria chorado de bom grado, mas as

lágrimas não vinham. Mesmo agora, era um Stark de Winterfell, e a

dor e a raiva congelavam dentro dele,

Se se mantivesse muito quieto, a perna não doía tanto, por isso fez o

que pôde para permanecer imóvel. Não saberia dizer durante quanto

tempo. Não havia sol nem lua, Não conseguia enxergar para fazer

marcas nas paredes. Ned fechou e abriu os olhos; não havia

diferença. Adormeceu, acordou e voltou a adormecer. Não sabia o

que era mais doloroso, se estar acordado ou dormindo. Quando

dormia, sonhava, sonhos escuros e perturbadores sobre sangue e

promessas quebradas. Quando acordava, nada havia a fazer a não ser

pensar, e os pensamentos despertos eram piores que pesadelos.

Pensar em Cat era tão doloroso como uma cama de urtigas. Pergun-

tava a si mesmo onde ela poderia estar, o que estaria fazendo.

Perguntava-se se voltaria a vê-la.

As horas transformaram-se em dias, ou pelo menos era o que

parecia. Sentia uma dor surda na perna quebrada, uma comichão por

baixo do gesso. Quando tocava a coxa, sentia a pele quente. O único

som era o de sua respiração. Após algum tempo, começou a falar em

voz alta, só para ouvir uma voz. Fez planos para se manter são,

construiu castelos de esperança na escuridão. Os irmãos de Robert

andavam pelo mundo, recrutando exércitos em Pedra do Dragão e

em Ponta Tempestade. Alyn e Harwin regressariam a Porto Real com

o resto de sua guarda depois de tratarem de Sor Gregor. Catelyn

rebelaria o Norte quando as notícias lhe chegassem, e os senhores do

rio, da montanha e do Vale se juntariam a ela.

Deu por si a pensar cada vez mais em Robert. Via o rei como ele

fora na flor da juventude, alto e bonito, com o grande elmo

guarnecido de chifres na cabeça, de machado de guerra na mão,

montado no cavalo como um deus cornudo. Ouviu seu riso na

escuridão, viu seus olhos, azuis e cristalinos como lagos de

montanha. "Olha para nós, Ned" disse Robert. "Deuses, como chega-

mos a isto? Você aqui e eu morto por um porco. Conquistamos

juntos um trono..."

Falhei com você, Robert, pensou Ned. Não podia dizer aquelas

palavras. Menti, escondi a verdade. Deixei que te matassem.

O rei o ouviu. "Seu pateta de pescoço duro", murmurou, "orgulhoso

demais para escutar. Pode-se comer orgulho, Stark? Será que a honra

protege seus filhos?" Rachaduras correram pelo rosto, fissuras que se

abriam na carne, e ele ergueu a mão e arrancou a máscara, Não era

Robert; era Mindinho, sorrindo, zombando dele. Quando abriu a

boca para falar, as mentiras transformaram-se em mariposas

cinzentas, quase brancas, e levantaram vôo.

Ned estava meio adormecido quando ouviu passos, A princípio

pensou que fosse sonho; passara-se tanto tempo desde que ouvira

algo mais que o som da própria voz. Ned sentia-se febril, com a

perna transformada em uma agonia surda e os lábios secos e

rachados. Quando a pesada porta de madeira abriu com um rangido,

a súbita luz fez seus olhos doerem.

Um carcereiro atirou-lhe um cântaro. O barro era fresco e salpicado

de umidade. Ned agarrou--o com as duas mãos e emborcou

avidamente. Água escorreu-lhe da boca e pingou através da barba.

Bebeu até pensar que ficaria mal-disposto.

- Quanto tempo...? - perguntou, numa voz fraca, quando não mais

conseguiu beber.

O carcereiro era um homem com ar de espantalho, cara de rato e

barba desordenada, vestindo uma camisa de cota de malha e meia

capa de couro.

- Não se fala - disse enquanto arrancava o cântaro dos dedos de Ned.

- Por favor - disse Ned -, as minhas filhas... - a porta fechou-se com

estrondo. Ned piscou quando a luz desapareceu, baixou a cabeça até

o peito e enrolou-se na palha. Já não fedia a urina e a merda. Já não

cheirava a nada.

Já não era capaz de distinguir a diferença entre estar acordado e

estar dormindo. A memória caiu sobre ele na escuridão, tão viva

como um sonho. Era o ano da falsa primavera, e ele tinha de novo

dezoito anos e descera do Ninho da Águia para o torneio em

Harrenhal. Via o profundo verde da campina e cheirava o pólen no

vento. Dias tépidos, noites frescas e o gosto doce do vinho,

Lembrava-se das gargalhadas de Brandon e do enlouquecido valor de

Robert na luta corpo a corpo, do modo como ria enquanto derrubava

dos cavalos homem atrás de homem. Lembrava-se de Jaime Lannister,

um jovem dourado numa armadura branca com escamas, ajoelhado

na grama em frente do pavilhão do rei, fazendo seus votos de

defender e proteger o Rei Aerys. Depois, Sor Oswell Whent ajudou

Jaime a pôr-se em pé, e o próprio Touro Branco, o Senhor

Comandante Sor Gerold Hightower, prendeu o nevado manto da

Guarda Real em volta de seus ombros. Todas as seis Espadas Brancas

estavam lá para dar as boas-vindas ao seu irmão mais novo.

Mas quando a justa começou, o dia foi de Rhaegar Targaryen. O

príncipe herdeiro usava a armadura em que acabaria por morrer:

cintilante placa negra com o dragão de três cabeças de sua Casa

trabalhado em rubis no peito. Uma pluma de seda escarlate estendia-

se atrás dele enquanto cavalgaya, e parecia que nenhuma lança

conseguia tocá-lo. Brandon caiu perante ele, tal como Bronze Yohn

Royce e até o magnífico Sor Arthur Dayne, a Espada da Manhã.

Robert tinha feito comentários jocosos com Jon e o velho Lorde

Hunter enquanto o príncipe dava a volta ao campo depois de

derrubar Sor Barristan na última justa pela coroa de campeão. Ned

lembrava-se do momento em que todos os risos tinham morrido,

quando o Príncipe Rhaegar Targaryen fez o cavalo passar por sua

esposa, a princesa dorniana Elia Martell, e depositou a coroa da

rainha da beleza no colo de Lyanna. Ainda conseguia vê-la: uma

coroa de rosas de inverno, azuis como a geada.

Ned Stark estendeu a mão para agarrar a coroa de flores, mas sob as

pétalas azul-claras estavam escondidos espinhos. Sentiu-os penetrar-

lhe a pele, aguçados e cruéis, viu o lento fio de sangue correr pelos

seus dedos e acordou, tremendo, na escuridão.

Prometa-me, Ned, sussurrara a irmã de sua cama de sangue. Ela

adorava o odor de rosas de inverno.

- Que os deuses me salvem - chorou Ned. - Estou enlouquecendo. Os

deuses não se dignaram a responder.

Cada vez que o carcereiro lhe trazia água, dizia a si mesmo que se

passara mais um dia. A princípio suplicava ao homem alguma notícia

sobre as filhas e o mundo para lá de sua cela. As únicas respostas

eram grunhidos e pontapés. Mais tarde, quando começaram as dores

de estômago, começou a suplicar por comida. Não fazia diferença;

não era alimentado. Os Lannister talvez pretendessem que ele

morresse de fome. "Não", disse consigo mesmo. Se Cersei o quisesse

morto, teria sido abatido na sala do trono com seus homens. Ela o

queria vivo. Fraco, desesperado, mas vivo. Catelyn tinha seu irmão;

não se atreveria a matá-lo, ou a vida do Duende estaria também

perdida.

De fora da sua cela chegou-lhe o chocalhar de correntes de ferro.

Quando a porta se abriu, rangendo, Ned pôs a mão na parede úmida

e empurrou-se para a luz. O clarão de um archote o fez desviar o

rosto.

- Comida - grasnou.

- Vinho - respondeu uma voz. Não era o homem com cara de rato.

Aquele carcereiro era mais robusto e mais baixo, embora usasse a

mesma meia capa de couro e o mesmo capacete de aço com espigão.

- Beba, Lorde Eddard - enfiou um odre de vinho nas mãos de Ned.

A voz do homem era estranhamente familiar, mas Ned Stark

precisou de um momento para a identificar.

- Varys? - disse, vacilante, quando o reconhecimento chegou. Tocou o

rosto do homem. - Não estou... não estou sonhando. Está aqui - as

rechonchudas bochechas do eunuco estavam cobertas com uma

barba cheia e escura. Ned sentiu os pelos rudes com os dedos. Varys

transformara-se num carcereiro grisalho, que fedia a suor e a vinho

amargo. - Como conseguiu... Que tipo de mago é você?

- Um mago sedento - disse Varys. - Beba, senhor. As mãos de Ned

apalparam o odre.

- Este é o mesmo veneno que deram a Robert?

- Ofende-me - disse Varys num tom triste, - É verdade que ninguém

gosta de um eunuco. Dê-me o odre - ele bebeu, com um fio

vermelho escorrendo pelo canto da boca gorda. - Não se compara à

safra que me você ofereceu na noite do torneio, mas não é mais

venenoso que a maioria - concluiu, limpando os lábios. - Aqui está.

Ned experimentou um gole.

- Borras - sentiu-se a ponto de regurgitar o vinho.

- Qualquer homem deve engolir o amargo com o doce. Tanto os

grandes senhores como os eunucos. Sua hora chegou, senhor.

- As minhas filhas...

- A mais nova escapou de Sor Meryn e fugiu - disse-lhe Varys. - Não

fui capaz de encontrá-la. Nem os Lannister. Uma coisa boa, essa.

Nosso novo rei não a ama. Sua filha mais velha continua prometida a

Joffrey. Cersei a mantém por perto. Veio a uma audiência há alguns

dias suplicar que o senhor fosse poupado. Uma pena que não

pudesse estar lá, ficaria comovido - inclinou-se para a frente com

uma expressão séria. - Creio que o senhor compreende que é um

homem morto, Lorde Eddard?

- A rainha não me matará - disse Ned. Sentia a cabeça flutuar; o

vinho era forte, e passara-se muito tempo desde que comera. - Cat..

Cat tem o irmão dela. .

- O irmão errado - suspirou Varys. - E de qualquer modo, está

perdido. Ela deixou que o Duende lhe fugisse por entre os dedos.

Suponho que esteja morto agora, em algum lugar nas Montanhas da

Lua.

- Se isso é verdade, corte-me a garganta e acabe com isto - estava

tonto do vinho, cansado e desolado.

- Seu sangue é a última coisa que desejo. Ned franziu as

sobrancelhas.

- Quando assassinaram minha guarda, você ficou ao lado da rainha,

observando, sem dizer uma palavra.

- E o faria de novo. Julgo recordar que estava desarmado, sem

armadura e rodeado por espadas dos Lannister - o eunuco olhou-o

de forma curiosa, inclinando a cabeça. - Quando era um rapazinho,

antes de ser cortado, viajei com uma trupe de pantomimeiros pelas

Cidades Livres. Ensinaram-me que cada homem tem um papel a

desempenhar, quer na vida quer na pantomima. Assim é na corte. O

Magistrado do Rei tem de ser temível, o mestre da moeda deve ser

frugal, o Senhor Comandante da Guarda Real tem de ser valente... e

o mestre dos espiões deve ser dissimulado, obsequioso e sem

escrúpulos. Um informante corajoso seria tão inútil como um

cavaleiro covarde - recuperou o odre e bebeu.

Ned estudou o rosto do eunuco, procurando a verdade sob as

cicatrizes de pantomimeiro e a barba falsa. Bebeu mais um pouco de

vinho. Desta vez desceu mais facilmente.

- É capaz de me libertar deste buraco?

- Seria... Mas vou fazê-lo? Não. Seriam feitas perguntas, e as

respostas levariam até mim. Ned não esperava outra coisa.

- Você é direto.

- Um eunuco não tem honra, e uma aranha não se beneficia do luxo

dos escrúpulos, senhor,

- Ao menos poderia levar uma mensagem minha?

- Dependeria da mensagem. De bom grado lhe fornecerei papel e

tinta. E depois de escrita, levarei a carta, lerei e a entregarei ou não,

conforme o que melhor sirva aos meus fins.

- Seus fins. E que fins são esses, Lorde Varys?

- A paz - respondeu Varys sem hesitação. - Se havia uma alma em

Porto Real verdadeiramente desesperada por manter Robert

Baratheon vivo era eu - suspirou. - Protegi-o de seus inimigos

durante quinze anos, mas não consegui protegê-lo de seus amigos,

Que estranho ataque de loucura o levou a dizer à rainha que sabia

da verdade sobre o nascimento de Joffrey?

- A loucura da misericórdia - admitiu Ned.

- Ah - disse Varys. - Com certeza. E um homem honesto e honroso,

Lorde Eddard. Por vezes me esqueço disso. Conheci tão poucos ao

longo da vida - lançou uma olhadela pela cela.

- Quando vejo o que a honestidade e a honra lhe trouxeram,

compreendo porquê,

Ned Stark encostou a cabeça à úmida parede de pedra e fechou os

olhos. Sentia a perna latejar.

- O vinho do rei. . interrogou Lancei?

- Ah, decerto. Cersei deu-lhe os odres e lhe disse que eram da safra

favorita de Robert

- o eunuco encolheu os ombros. - Um caçador vive uma vida

perigosa. Se o javali não tivesse acabado com Robert, teria sido uma

queda do cavalo, a picada de uma víbora da mata, uma seta perdida...

a floresta é o matadouro dos deuses. Não foi o vinho que matou o

rei. Foi a sua misericórdia.

Era o que Ned temia.

- Que os deuses me perdoem.

- Se os deuses existirem - disse Varys -, suponho que o farão. Em

qualquer caso, a rainha não teria esperado muito tempo. Robert

estava se tornando incontrolável, e ela precisava se ver livre dele para

lidar com seus irmãos. Formam uma bela dupla, o Stannis e o Renly.

A manopla de ferro e a luva de seda - limpou a boca com as costas

da mão, - Foi tonto, senhor. Devia ter escutado Mindinho quando lhe

sugeriu apoiar a sucessão de Joffrey.

- Como... como podia saber disso? Varys sorriu.

- Sei, e é tudo o que precisa saber. Também sei que de manhã a

rainha virá visitá-lo. Lentamente, Ned ergueu os olhos.

- Por quê?

- Cersei o teme, senhor..., mas tem outros inimigos que teme ainda

mais. Seu querido Jaime está lutando contra os senhores do rio neste

preciso momento. Lysa Arryn mantém-se no Ninho da Águia,

rodeada de pedra e aço, e não há nenhum amor entre ela e a rainha.

Em Dorne, os Martell ainda alimentam ressentimentos pelo

assassinato da Princesa Elia e de seus bebês. E agora o seu filho

marcha pelo Gargalo com uma tropa de nortenhos atrás.

- Robb é só um rapaz - disse Ned, horrorizado,

- Um rapaz com um exército - disse Varys. - Mas apenas um rapaz,

como diz. Os irmãos do rei são quem causa a Cersei noites sem

dormir. . particularmente Lorde Stannis. Sua pretensão é a

verdadeira, é conhecido pelo seu valor como comandante de batalha

e é completamente desprovido de misericórdia. Não há na terra

criatura que seja, nem de longe, tão aterradora como um homem

verdadeiramente justo. Ninguém sabe o que Stannis tem feito em

Pedra do Dragão, mas apostaria com o senhor que reuniu mais

espadas que conchas, Eis o pesadelo de Cersei: enquanto o pai e o

irmão gastam seu poderio batalhando com os Stark e os Tully, Lorde

Stannis desembarca, proclama-se rei e arranca a cabeça loura e

encaracolada do filho.,, e junta a dela ao negócio, embora eu

realmente creia que se preocupa mais com o filho.

- Stannis Baratheon é o verdadeiro herdeiro de Robert - disse Ned. -

O trono é dele por direito. Eu veria com agrado a sua coroação.

Varys soltou um estalido com a língua.

- Cersei não vai querer ouvir isso, garanto. Stannis poderá conquistar

o trono, mas só restará a sua cabeça podre para lhe dar as boas-

vindas, a menos que tenha cuidado com a língua.

Sansa suplicou tão docemente que seria uma pena que pusesse tudo

a perder. Poderá ter a vida de volta, se a quiser. Cersei não é

estúpida. Sabe que um lobo domado é mais útil que um morto.

- Quer que sirva a mulher que assassinou o meu rei, massacrou

meus homens e fez do meu filho um aleijado? - a voz de Ned estava

carregada de incredulidade.

- Quero que sirva o reino - disse Varys. - Diga à rainha que

confessará sua vil traição, ordene a seu filho que pouse a espada e

proclame Joffrey como o herdeiro verdadeiro. Proponha denunciar

Stannis e Renly como usurpadores sem fé. Nossa leoa de olhos verdes

sabe que é um homem de honra. Dando-lhe a paz de que precisa e o

tempo para lidar com Stannis, e jurando levar seu segredo para a

tumba, creio que lhe será permitido vestir o negro e viver o resto de

seus dias na Muralha, com seu irmão e aquele seu filho ilegítimo.

Pensar em Jon encheu Ned com um sentimento de vergonha e uma

mágoa profunda demais para ser expressa em palavras. Se ao menos

pudesse voltar a vê-lo, sentar-se e falar com ele.. Uma dor atacou-lhe

a perna quebrada sob o imundo gesso cinzento que a cobria.

Estremeceu, abrindo e fechando os dedos, impotente.

- Este plano é seu - arquejou para Varys - ou está aliado a Mindinho?

Aquilo pareceu divertir o eunuco.

- Mais depressa me casaria com a Cabra Negra de Qohor, Mindinho

é o segundo homem mais traiçoeiro dos Sete Reinos. Ah, alimento-o

com sussurros escolhidos, o suficiente para que ele pense que estou

do seu lado... tal como permito que Cersei pense que estou do dela.

- E tal como me deixou acreditar que estava do meu. Diga-me, Lorde

Varys, a quem serve realmente?

Varys fez um fino sorriso.

- Ora, o reino, meu bom senhor, como pode duvidar disto? Juro pelo

meu membro viril perdido. Sirvo o reino, e o reino precisa de paz -

bebeu o último gole de vinho e atirou o odre vazio para o lado, -

Então, qual é a sua resposta, Lorde Eddard? Dê-me a sua palavra de

que dirá à rainha aquilo que ela quer ouvir quando vier de visita.

- Se o fizesse, minha palavra seria tão oca como uma armadura vazia.

Minha vida não me é assim tão preciosa,

- É pena - o eunuco pôs-se em pé. - E a vida de sua filha, senhor?

Quão preciosa é? Uma agulha de gelo perfurou o coração de Ned,

-Minha filha...

- Decerto não pensou que havia me esquecido de sua doce inocente,

senhor? A rainha com toda a certeza não o fez.

- Não - suplicou Ned, com a voz quebrantada. - Varys, que os deuses

tenham misericórdia, faça o que quiser comigo, mas deixe minha

filha fora de suas intrigas. Sansa não é mais que uma criança.

- Rhaenys também era uma criança. Filha do Príncipe Rhaegar. Uma

coisinha preciosa, mais nova que suas meninas. Tinha um pequeno

gatinho negro a quem chamava Balerion, sabia? Sempre senti

curiosidade em saber o que lhe teria acontecido. Rhaenys gostava de

fingir que ele era o verdadeiro Balerion, o Terror Negro de outrora,

mas imagino que os Lannister lhe tenham ensinado rapidamente a

diferença entre um gatinho e um dragão no dia em que lhe

arrombaram a porta - Varys soltou um longo suspiro cansado, o

suspiro de um homem que transportava toda a tristeza do mundo

em um saco sobre os ombros. - O Alto Septão disse-me uma vez que

à medida que vamos pecando, assim sofremos. Se isso for verdade,

Lorde Eddard, diga-me... por que são sempre os inocentes a sofrer

mais, quando vocês, os grandes senhores, jogam o seu jogo dos

tronos? Pense sobre isso, se quiser, enquanto espera a rainha. Mas

guarde também um pensamento: o visitante seguinte poderá trazer

pão, queijo e leite da papoula para as vossas dores. . ou a cabeça de

Sansa. A escolha, meu caro senhor Mão, é inteiramente sua.


Catelyn


Enquanto a tropa marchava pelo talude através dos pântanos negros

do Gargalo e se derramava nos terrenos fluviais que se estendiam

para lá dele, as apreensões de Catelyn cresciam. Ela mascarava seus

medos com uma expressão impassível e severa, mas estavam lá,

crescendo a cada légua de caminho. Seus dias eram ansiosos, as

noites, inquietas, e cada corvo que voava sobre sua cabeça a fazia

cerrar os dentes.

Temia pelo senhor seu pai e interrogava-se acerca de seu silêncio

agourento. Temia pelo irmão Edmure e rezava para que os deuses

olhassem por ele se tivesse de enfrentar o Regicida em batalha.

Temia por Ned e pelas meninas, e pelos queridos filhos que deixara

em Winterfell. E, no entanto, nada havia que pudesse fazer por

qualquer um deles, e por isso forçava-se a pôr de lado aqueles

pensamentos. Precisa guardar as forças para Robb, dizia a si mesma.

Ele é o único que pode ajudar. Tem de ser tão feroz e dura como o

Norte, Catelyn Tully. Tem de ser agora uma Stark de verdade, como

seu filho.

Robb cavalgava à cabeça da coluna, sob a esvoaçante bandeira branca

de Winterfell. Pedia todos os dias que um de seus senhores se

juntasse a ele para que pudessem conferenciar enquanto marchavam;

honrava um homem de cada vez, sem mostrar favoritismos,

escutando como o senhor seu pai escutara, pesando as palavras de

um contra as de outro. Ele aprendeu tanto com Ned, pensou ela

enquanto o observava, mas terá aprendido o suficiente?

O Peixe Negro levara cem homens com lanças e cem cavalos rápidos

e correra na frente para ocultar os movimentos do exército e

reconhecer o terreno. Os relatórios que os mensageiros de Sor

Brynden traziam não a sossegavam. A tropa de Lorde Tywin estava

ainda a muitos dias ao sul..., mas Walder Frey, Senhor da Travessia,

reunira uma força de quase quatro mil homens em seus castelos

debruçados sobre o Ramo Verde.

- De novo atrasado - murmurou Catelyn quando ouviu a notícia. Era

a repetição do Tridente, maldito homem. O irmão Edmure chamara

os vassalos; por direito, Lorde Frey deveria ter partido para se juntar

à tropa Tully em Correrrio, e no entanto aqui estava ele.

- Quatro mil homens - repetiu Robb, mais perplexo que zangado. -

Lorde Frey não pode esperar combater sozinho os Lannister. Decerto

pretende juntar seu poder ao nosso.

- Será? - perguntou Catelyn. Cavalgara em frente para se juntar a

Robb e a Robett Glover, seu companheiro do dia. A vanguarda

espalhava-se atrás deles, uma floresta lenta de lanças, estandartes e

espadas. - Tenho minhas dúvidas. Não espere nada de Walder Frey, e

nunca será surpreendido.

- Ele é vassalo de seu pai.

- Alguns horras encaram seus votos com mais seriedade que outros,

Robb. Lorde Walder sempre se mostrou mais amigável para com o

Rochedo Casterly do que meu pai teria gostado.

Um de seus filhos está casado com a irmã de Tywin Lannister. É

verdade que isso pouco significa, pois Lorde Walder gerou ao longo

dos anos um grande número de filhos que têm de casar com alguém.

Mas mesmo assim..

-Julga que ele pretende nos trair pelos Lannister, senhora? -

perguntou Robett Glover em voz grave.

Catelyn suspirou.

- A bem da verdade, duvido que o próprio Lorde Frey saiba o que

pretende fazer. Tem a cautela de um velho e a ambição de um

jovem, e nunca pecou por falta de astúcia.

- Temos de ter as Gêmeas, mãe - disse Robb acaloradamente. - Não

há outra maneira de atravessar o rio. Bem sabe.

- Sim. E Walder Frey também sabe, pode estar certo disso.

Naquela noite acamparam no limite sul dos pântanos, a meio

caminho entre a Estrada do Rei e o rio. Foi aí que Theon Greyjoy

lhes trouxe mais notícias do tio de Catelyn.

- Sor Brynden pede para lhes dizer que cruzou espadas com os

Lannister. Há uma dúzia de batedores que não irão se apresentar a

Lorde Tywin tão cedo. Ou nunca mais - sorriu. - Sor Addam

Marbrand comanda os batedores deles e está retirando para o sul,

incendiando à sua passagem. Sabe onde estamos, mais ou menos,

mas o Peixe Negro jura que não saberá quando nos dividirmos.

- A menos que Lorde Frey lhe diga - disse Catelyn em tom cortante.

- Theon, quando regressar para junto de meu tio, diga-lhe que ele

deve estacionar seus melhores arqueiros em volta das Gêmeas, dia e

noite, com ordens para abater qualquer corvo que deixe as ameias.

Não quero aves levando a Lorde Tywin notícias sobre os movimentos

do meu filho.

- Sor Brynden já tratou disso, senhora - respondeu Theon com um

sorriso pretensioso. - Mais alguns pássaros negros e teremos o

suficiente para fazer uma torta. Guardarei para a senhora suas penas

para um chapéu.

Catelyn devia saber que Brynden Peixe Negro estaria bem adiantado

em relação a ela.

- O que fazem os Frey enquanto os Lannister queimam seus campos

e saqueiam seus castros?

- Houve algumas lutas entre os homens de Sor Addam e os de Lorde

Walder - respondeu Theon. - A menos de um dia de viagem daqui

encontramos dois batedores Lannister servindo de alimento aos

corvos onde os Frey os amarraram. Mas a maior parte das forças de

Lorde Walder permanece reunida nas Gêmeas.

Isso trazia o selo de Walder Frey sem a menor dúvida, pensou

amargamente Catelyn; conter--se, esperar, observar, não correr

riscos, a menos que seja forçado a isso.

- Se ele tem combatido os Lannister, então talvez planeje mesmo

manter-se fiel aos seus votos - disse Robb.

Catelyn sentia-se menos encorajada.

- Defender as próprias terras é uma coisa, uma batalha aberta contra

Lorde Tywin é outra bem diferente.

Robb voltou a virar-se para Theon Greyjoy.

- O Peixe Negro encontrou alguma outra maneira de atravessar o

Ramo Verde? Theon balançou a cabeça.

- O rio corre cheio e rápido. Sor Brynden diz que não pode ser

atravessado pelo baixio, não tão a norte.

- Tenho de ter aquela travessia! - declarou Robb, furioso. - Ah,

suponho que os nossos cavalos poderão ser capazes de atravessar o

rio a nado, mas não com homens vestidos de armadura sobre os

dorsos. Precisaríamos construir jangadas para fazer passar o nosso

aço, os elmos, as cotas de malha e as lanças, e não temos árvores

para tal. Ou tempo. Lorde Tywin marcha para o norte... - cerrou a

mão em punho.

- Lorde Frey teria de ser um louco para tentar nos barrar o caminho

- disse Theon Greyjoy com sua habitual confiança fácil. - Temos

cinco vezes mais homens. Podemos tomar as Gêmeas se for preciso,

Robb.

- Não seria fácil - preveniu-os Catelyn - nem a tempo. Enquanto

montassem seu cerco, Tywin Lannister traria sua tropa e cairia sobre

nós pela retaguarda.

Robb olhou para ela e depois para Greyjoy em busca de uma

resposta, mas sem encontrar nenhuma. Por um momento pareceu ter

ainda menos que os seus quinze anos, apesar da cota de malha, da

espada e da barba que trazia.

- Que faria o senhor meu pai? - perguntou à mãe.

- Encontraria uma maneira de atravessar - ela respondeu. - Custasse

o que custasse.

Na manhã seguinte foi o próprio Sor Brynden Tully quem regressou

para junto deles. Pusera de lado a armadura pesada e o elmo que

usara como Cavaleiro do Portão em favor da proteção mais leve do

couro e da cota de malha de um batedor, mas seu peixe de obsidiana

ainda segurava seu manto.

O rosto do tio de Catelyn mostrava-se grave ao descer do cavalo.

- Houve uma batalha sob as muralhas de Correrrio - disse, com uma

expressão sinistra na boca. - Ouvimos de um batedor Lannister que

capturamos. O Regicida destruiu a tropa de Edmure e pôs os

senhores do Tridente em fuga.

Uma mão fria apertou o coração de Catelyn.

- E meu irmão?

- Foi ferido e feito prisioneiro - disse Sor Brynden. - Lorde

Blackwood e os outros sobreviventes estão sob cerco no interior de

Correrrio, rodeados pela hoste de Jaime.

Robb mostrou-se insatisfeito.

- Temos de atravessar este maldito rio se queremos ter alguma

esperança de socorrê-los a tempo.

- Isso não será fácil - preveniu o tio. - Lorde Frey chamou todas as

suas forças para o interior dos castelos e tem os portões fechados e

trancados.

- Maldito seja esse homem - praguejou Robb. - Se o velho tonto não

cede e me deixa atravessar, não me deixa alternativa a não ser

assaltar suas muralhas. Hei de pôr as Gêmeas abaixo à volta dele,

veremos se gosta disso!

- Parece um rapaz birrento, Robb - disse Catelyn em tom cortante. -

Uma criança vê um obstáculo e a primeira coisa em que pensa é

correr à sua volta ou pô-lo abaixo. Um senhor tem de aprender que

por vezes as palavras são capazes de alcançar o que as espadas não

são.

O pescoço de Robb ficou vermelho ao ouvir a reprimenda,

- Explique-me o que quer dizer, mãe - disse ele brandamente.

- Os Frey possuem a travessia há seiscentos anos, e desde então

nunca deixaram de cobrar a sua taxa.

- Que taxa? O que é que ele quer?

Ela sorriu.

- É isso que temos de descobrir.

- E se eu preferir não pagar esta taxa?

- Então é melhor que se retire de volta para Fosso Cailin, disponha

as tropas para enfrentar Lorde Tywin em batalha,., ou arranje asas.

Não vejo outras hipóteses - Catelyn esporeou o cavalo e afastou-se,

deixando o filho pesar o que dissera. Não seria bom fazê-lo sentir

que a mãe estava usurpando seu lugar. Ensinou-lhe sabedoria como

lhe ensinou valor, Ned?, perguntou a si própria. Ensinou-lhe a

ajoelhar-se? Os cemitérios dos Sete Reinos estavam cheios de homens

corajosos que nunca aprenderam essa lição.

Era perto do meio-dia quando a vanguarda chegou à vista das

Gêmeas, onde os Senhores da Travessia tinham a sua sede.

O Ramo Verde corria ali rápido e profundo, mas os Frey tinham

construído uma ponte sobre ele havia muitos séculos e enriquecido

com o dinheiro que os homens pagavam para atravessar. A ponte era

um sólido arco de pedra lisa e cinzenta, suficientemente largo para

qué duas carroças passassem lado a lado; a Torre da Água erguia-se

no centro da ponte, dominando quer a estrada, quer o rio com suas

seteiras, alçapões e portas levadiças. Os Frey levaram três gerações

para completar a ponte; quando terminaram, construíram robustas

fortalezas de madeira em cada extremidade para que ninguém a

atravessasse sem sua autorização.

Havia muito tempo a madeira tinha dado lugar à pedra. As Gêmeas,

dois castelos atarracados, feios e fortes, idênticos em todos os

aspectos, com a ponte unindo-os em arco, guardavam a travessia

havia séculos. Grandes muralhas exteriores, profundos fossos e

pesados portões de carvalho e ferro protegiam os caminhos, as bases

da ponte erguiam-se do interior de robustas fortalezas internas, havia

um antemuro e uma porta levadiça em cada margem, e a Torre da

Água defendia o arco propriamente dito.

Um relance foi o suficiente para Catelyn compreender que o castelo

não seria tomado de assalto. As ameias eriçavam-se de lanças,

espadas e atiradeiras, havia um arqueiro em cada ameia e seteira, a

ponte levadiça estava erguida, a porta levadiça, descida, os portões

fechados e trancados.

Grande-Jon começou a praguejar assim que viu o que os esperava.

Lorde Rickard Karstark olhava, carrancudo e em silêncio.

- Aquilo não pode ser assaltado, senhores - anunciou Roose Bolton.

- E tampouco podemos tomá-lo por cerco sem um exército na

margem de lá para investir contra a outra fortaleza - Heiman

Tallhart disse sombriamente. Do outro lado das profundas águas

verdes, a gêmea ocidental era como um reflexo da sua irmã do

oriente. - Mesmo se dispuséssemos de tempo, Do qual, na verdade,

não dispomos.

Enquanto os senhores do Norte estudavam o castelo, uma porta

abriu-se, uma ponte de pranchas deslizou através do fosso e uma

dúzia de cavaleiros a atravessou a cavalo para enfrentá-los, liderados

por quatro dos muitos filhos de Lorde Walder. Seu estandarte exibia

torres gêmeas azul-escuras em fundo cinza-prateado claro. Sor

Stevron Frey, herdeiro de Lorde Walder, falou por eles. Todos os

Frey tinham cara de fuinha; Sor Stevron, já com mais de sessenta

anos e com netos seus, assemelhava-se a uma fuinha particularmente

velha e cansada, mas foi bastante bem-educado.

- O senhor meu pai me enviou para saudá-los e perguntar quem

lidera esta poderosa hoste.

- Sou eu - Robb esporeou o cavalo e avançou. Usava sua armadura,

com o escudo do lobo gigante de Winterfell atado à sela, e Vento

Cinzento caminhava ao seu lado.

O velho cavaleiro olhou para o filho de Catelyn com uma leve

cintilação de divertimento nos aguados olhos cinzentos, embora seu

cavalo castrado relinchasse, inquieto, e se afastasse, de lado, do lobo

gigante.

- O senhor meu pai ficaria muito honrado se pudessem partilhar a

sua comida e bebida no castelo e explicar o que os traz aqui.

Aquelas palavras caíram sobre os senhores vassalos como uma

grande pedra atirada por uma catapulta. Nenhum deles aprovou a

ideia. Praguejaram, discutiram e gritaram uns com os outros.

- Não deve fazer isto, senhor - argumentou Galbart Glover com

Robb. - Lorde Walder não é de confiança.

Roose Bolton fez um meneio de concordância.

- Entre ali sozinho e pertencerá a eles. Poderá vendê-lo aos Lannister,

atirá-lo para uma masmorra ou cortar-lhe a garganta, como quiser,

- Se quiser conversar conosco, que abra os portões e partilharemos

todos a sua comida e bebida - declarou Sor Wendel Manderly.

- Ou que saia e converse com Robb aqui, à vista de seus homens e

dos nossos - sugeriu o irmão, Sor Wylis.

Catelyn Stark partilhava todas aquelas dúvidas, mas bastava-lhe olhar

de relance para Sor Stevron para saber que não lhe agradava o que

estava ouvindo. Mais algumas palavras e a chance estaria perdida.

Tinha de agir, e depressa.

- Eu vou - disse em voz alta.

- A senhora? - Grande-Jon enrugou a testa.

- Mãe, tem certeza? - era claro que Robb não tinha.

- Nunca tive tanta - mentiu Catelyn com leveza. - Lorde Walder é

vassalo de meu pai. Conheço-o desde menina. Nunca me faria

nenhum mal - a menos que visse nisso algum lucro, acrescentou em

silêncio, mas algumas verdades não podiam ser ditas, e algumas

mentiras eram necessárias,

- Estou certo de que o senhor meu pai ficaria feliz por falar com a

Senhora Catelyn - disse Sor Stevron. - A fim de atestar as nossas

boas intenções, meu irmão, Sor Perwyn, permanecerá aqui até que

ela lhes seja devolvida em segurança.

- Ele será nosso hóspede de honra - disse Robb. Sor Perwyn, o mais

novo dos quatro Frey do grupo, desmontou e entregou as rédeas do

cavalo a um dos irmãos. - Desejo o retorno de minha mãe até o cair

da noite, Sor Stevron - prosseguiu Robb. - Não pretendo ficar aqui

por muito tempo.

Sor Stevron fez um aceno polido.

- Como quiser, senhor - Catelyn esporeou o cavalo e não olhou para

trás. Os filhos e enviados de Lorde Walder rodearam-na.

O pai de Catelyn tinha dito uma vez que Walder Frey era o único

senhor dos Sete Reinos que podia tirar um exército dos calções.

Quando o Senhor da Travessia recebeu Catelyn no grande salão do

castelo oriental, rodeado por vinte filhos sobreviventes (menos Sor

Perwyn, que teria sido o vigésimo primeiro), trinta e seis netos,

dezenove bisnetos e numerosas filhas, netas, bastardos e bastardos-

netos, compreendeu exatamente o que o pai quis dizer.

Lorde Walder tinha noventa anos, uma mirrada fuinha cor-de-rosa de

cabeça calva e manchada, demasiado artrítico para se erguer sem

ajuda. A última esposa, uma moça pálida e delicada de dezesseis

anos, caminhou ao lado da sua liteira quando o trouxeram para o

salão. Era a oitava Senhora Frey.

- E um grande prazer voltar a vê-lo depois de tanto tempo, senhor -

disse Catelyn. O velho a olhou de soslaio com uma expressão de

suspeita.

- Ah é? Duvido. Poupe-me das suas palavras doces, Senhora Catelyn,

sou velho demais. Por que está aqui? Será o seu rapaz orgulhoso

demais para vir ele próprio apresentar-se? Que farei eu com a

senhora?

Catelyn era uma menina da última vez que visitara as Gêmeas, mas

já então Lorde Frey era irascível, tinha uma língua aguçada e

maneiras bruscas. A idade o tinha tornado pior que nunca, ao que

parecia. Precisaria escolher as palavras com cuidado e fazer o

possível para não se ofender com as dele.

- Pai - disse Sor Stevron em tom reprovador -, atente ao gênio. A

Senhora Stark está aqui a nosso convite.

- Perguntei-lhe alguma coisa? Ainda não é Lorde Frey, e não o será

até que eu morra. Pareço--lhe morto? Não ouvirei instruções vindas

de você.

- Isso não é maneira de falar na frente de nossa nobre convidada, pai

- disse um dos filhos mais novos.

- Agora meus bastardos acham-se no direito de me dar lições de

cortesia - queixou-se Lorde Walder. - Falarei como bem entender,

malditos. Já hospedei três reis ao longo da minha vida, e rainhas

também, julga que preciso de lições de gente como você, Ryger? Sua

mãe ordenhava cabras da primeira vez que lhe dei minha semente -

rechaçou o jovem corado com um movimento súbito de dedos e fez

um gesto para dois de seus outros filhos. - Danwell, Whalen, ajudem-

me a sentar na cadeira.

Ergueram Lorde Walder da liteira e o transportaram para o cadeirão

dos Frey, uma cadeira elevada de carvalho negro, cujo espaldar estava

esculpido como duas torres ligadas por uma ponte. A jovem esposa

subiu timidamente para junto dele e cobriu-lhe as pernas com uma

manta. Depois de se sentar, o velho acenou para que Catelyn se

aproximasse e deu-lhe um beijo na mão, seco como papel.

- Pronto - anunciou. - Agora que observei a cortesia, senhora, talvez

meus filhos me dêem a honra de calar a boca. Por que está aqui?

- Para lhe pedir para abrir os portões, senhor - respondeu Catelyn

polidamente. - Meu filho e os senhores seus vassalos estão muito

impacientes para atravessar o rio e prosseguir caminho.

- Para Correrrio? - soltou um risinho abafado. - Ah, não é preciso

dizer, não é preciso. Ainda não sou cego. O velho ainda consegue ler

um mapa.

- Para Correrrio - confirmou Catelyn. Não via motivo para negar. -

Onde teria esperado encontrá-lo, senhor. Ainda é vassalo de meu pai,

não é?

- Heh — disse Lorde Walder, um ruído a meio caminho entre uma

gargalhada e um grunhido. - Chamei as minhas espadas, sim, chamei,

aqui estão elas, você as viu nas muralhas. Era minha intenção

marchar assim que todas as minhas forças estivessem reunidas. Bem,

enviar meus filhos. Eu já estou há muito para lá das marchas,

Senhora Catelyn - olhou em volta em busca de confirmação e

apontou para um homem alto e curvado de cinquenta anos. - Diga-

lhe, Jared. Diga-lhe que eram essas as minhas intenções.

- Eram, senhora - disse Sor Jared Frey, um dos filhos de sua segunda

mulher. - Pela minha honra.

- Será culpa minha que o tonto do seu irmão tenha perdido sua

batalha antes de nos podermos pôr em marcha? - recostou-se nas

almofadas e franziu as sobrancelhas, como que desafiando-a a

contestar a sua versão dos acontecimentos. - Disseram-me que o

Regicida o atravessou como um machado atravessa queijo podre. Por

que haveriam meus rapazes de correr para o sul para morrer? Todos

aqueles que foram para o sul estão de novo correndo para o norte.

Catelyn teria de bom grado enfiado o lamuriento do velho num

espeto e colocado para assar numa fogueira, mas só tinha até o cair

da noite para abrir a ponte. Calmamente, disse:

- Mais uma razão para que possamos chegar a Correrrio, e depressa.

Onde podemos conversar, senhor?

- Estamos conversando agora - queixou-se Lorde Frey. A cabeça

malhada e rosada dardejou em volta. - O que estão todos olhando? -

gritou para a família. - Saiam daqui. A Senhora Stark deseja falar-me

em privado. Pode ser que tenha planos para a minha fidelidade, heh.

Vão, todos, encontrem algo de útil para fazer. Sim, você também,

mulher. Fora, fora,/ora - enquanto os filhos, netos, filhas, bastardos,

sobrinhas e sobrinhos jorraram da sala, inclinou-se para perto de

Catelyn e confessou: - Estão todos à espera de que eu morra. Stevron

espera há quarenta anos, mas continuo a desapontá-lo. Heh. Por que

haveria de morrer só para que ele seja um senhor?, pergunto, Não o

farei.

- Tenho toda a esperança de que sobreviva até os cem anos.

- Isso os irritaria, não há dúvida. Ah, não há dúvida. Bem, o que

queria dizer?

- Queremos atravessar - disse-lhe Catelyn.

- Ah, sim? Isso é ser direto. Por que haveria eu de deixar? Por um

momento a ira dela relampejou.

- Se fosse suficientemente forte para subir a uma das vossas ameias,

Lorde Frey, veria que meu filho tem vinte mil homens junto de suas

muralhas.

- Serão vinte mil cadáveres frescos quando Lorde Tywin chegar aqui

- disparou o velho em resposta. - Não tente me assustar, senhora.

Seu esposo está numa cela de traidor qualquer debaixo da Fortaleza

Vermelha, seu pai está doente, pode estar morrendo, Jaime Lannister

tem seu irmão a ferros. Que tem a senhora que eu deva temer?

Aquele seu filho? Se der um filho meu para cada um dos seus, ainda

terei dezoito depois de os seus estarem todos mortos.

- O senhor prestou juramento perante meu pai - recordou-lhe

Catelyn. Ele inclinou a cabeça para um lado, sorrindo.

- Ah, sim, disse algumas palavras, mas também prestei juramentos à

coroa, assim me parece. Joffrey é agora o rei, e isso faz da senhora,

do seu rapaz e de todos aqueles tontos lá fora nada mais que

rebeldes. Se eu tivesse o bom-senso que os deuses deram aos peixes,

ajudaria os Lannister a fervê-los a todos.

- E por que não o faz? - ela desafiou. Lorde Walder bufou de desdém.

- Lorde Tywin, o orgulhoso e magnífico, Protetor do Oeste, Mão do

Rei, ah, que grande homem este é, ele e o seu ouro para lá e para cá,

e leões para cá e acolá. Aposto que se comer feijão demais dá peidos

tal como eu dou, mas nunca o ouvirá admitir tal coisa, ah, não. Que

tem ele para ser tão empolado? Só dois filhos, e um deles é um

monstrinho retorcido. Se lhe der um filho meu por cada um dos

dele, ainda terei vinte e meio quando todos os dele estiverem mortos!

- soltou um cacarejo. - Se Lorde Tywin quiser a minha ajuda, bem

pode pedi-la.

Era tudo o que Catelyn precisava ouvir.

- Eu estou pedindo a sua ajuda, senhor - disse humildemente. - E

meu pai, meu irmão, o senhor meu marido e meus filhos pedem pela

minha voz.

Lorde Walder brandiu o dedo ossudo em sua cara.

- Poupe suas palavras doces, senhora. Palavras doces ouço de minha

esposa. Já a viu? Tem dezesseis, uma florzinha, e o seu mel é só para

mim. Aposto que me dá um filho em menos de um ano. Talvez faça

dele herdeiro, isso não irritaria os outros?

- Estou certa de que lhe dará muitos filhos. A cabeça, dele oscilou

para cima e para baixo.

- O senhor seu pai não veio ao casamento. Cá para mim, é um

insulto. Mesmo que esteja morrendo. Também não veio ao meu

último casamento. Chama-me o Atrasado Lorde Frey, sabe? Julgará

que perdi o juízo? Que estou meio morto e a cabeça já não funciona

bem? Não estou, garanto, hei de sobreviver-lhe tal como sobrevivi a

seu pai. Sua família sempre se cagou para mim, não negue, não

minta, sabe que é verdade. Há anos fui visitar seu pai e sugeri um

casamento entre o seu filho e a minha filha. Por que não? Tinha uma

filha em mente, uma querida jovem, só alguns anos mais velha que

Edmure, mas se seu irmão não se engraçasse com ela, tinha outras

que ele podia escolher, novas, velhas, virgens, viúvas, o que quisesse.

Não, Lorde Hoster não quis ouvir falar disso. Deu-me doces palavras,

desculpas, mas o que eu queria era ver-me livre de uma filha. E sua

irmã, esta é tão má como o pai. Foi, ah, há um ano, não mais, ainda

Jon Arryn era Mão do Rei, fui à cidade assistir à participação de

meus filhos no torneio. Stevron e Jared estão já velhos demais para a

arena, mas Danwell e Hosteen participaram, Perwyn, também, e dois

dos meus bastardos experimentaram o corpo a corpo. Se soubesse

como iam me envergonhar, nunca me teria incomodado a fazer a

viagem. Que necessidade tinha eu de cavalgar toda aquela distância

para ver Hosteen ser derrubado do cavalo por aquele cachorrinho do

Tyrell?, pergunto--lhe. O rapaz tem metade da idade dele, chamam-

no Sor Margarida, ou qualquer coisa do gênero. E Danwell foi

derrubado por um cavaleiro menor! Há dias em que pergunto a mim

mesmo se aqueles dois são realmente meus filhos. Minha terceira

mulher era uma Crakehall, e todas as mulheres Crakehall são umas

vacas. Bem, não importa, ela morreu antes do seu nascimento, que

lhe interessa isto? Estava falando de sua irmã. Propus que o Senhor e

a Senhora Arryn criassem dois dos meus netos na corte, e ofereci-me

para criar o filho deles aqui nas Gêmeas. Serão os meus netos

indignos de serem vistos na corte do rei? São bons rapazes, calmos e

bem-educados. Walder é filho de Merrett, deram-lhe o nome em

minha honra, e o outro... heh, não me lembro... pode ter sido outro

Walder, que andam sempre a chamá-lo Walder para que eu os

favoreça, mas o pai dele.. qual deles era o pai dele? - seu rosto

enrugou-se. - Bem, fosse quem fosse, Lorde Arryn não o quis, e nem

ao outro, e por isso culpo a senhora sua irmã. Gelou como se eu

tivesse sugerido vender o filho a uma trupe de saltimbancos ou fazer

dele um eunuco, e quando Lorde Arryn disse que a criança ia para

Pedra do Dragão, para ser criada com Stannis Baratheon, ela saiu

precipitadamente da sala sem uma palavra de desculpa, e tudo o que

a Mão pôde me dar foram lamentos. De que servem lamentos?,

pergunto-lhe.

Catelyn franziu as sobrancelhas, inquieta.

- Tinha entendido que o filho de Lysa deveria ser criado com Lorde

Tywin no Rochedo Casterly.

- Não, era Lorde Stannis - disse Walder Frey num tom irritável. -

Julga que não distingo Lorde Stannis de Lorde Tywin? São os dois

uns rolhas de poço que se acham nobres demais para cagar, mas

deixe isso, eu sei ver a diferença. Ou será que me julga muito velho

para me lembrar? Tenho noventa anos e lembro-me muito bem. E

também me lembro do que se faz com uma mulher. Aquela minha

esposa há de me dar um filho em menos de um ano, aposto. Ou uma

filha, que isso não se pode controlar. Menino ou menina, há de ser

vermelho, encarquilhado e aos berros, e o mais certo é que lhe

queira chamar Walder ou Walda.

Catelyn não se importava com o nome que a Senhora Frey daria ao

filho. -Jon Arryn ia criar o filho com Lorde Stannis, tem certeza

disso?

- Sim, sim, sim - disse o velho. - Só que morreu, portanto, que

importa? Disse que quer atravessar o rio?

- Quero.

- Pois bem, não pode! - anunciou Lorde Walder vivamente. - A

menos que eu deixe, e por que haveria de deixar? Os Tully e os Stark

nunca foram meus amigos - recostou-se na cadeira e cruzou os

braços, com um sorriso afetado, à espera da resposta dela.

O resto foi só regateio.

Um sol vermelho e inchado pendia, baixo, sobre os montes ocidentais

quando os portões do castelo se abriram. A ponte levadiça foi

descida, guinchando, a porta levadiça ergueu-se, e a Senhora Catelyn

Stark avançou para ir juntar-se ao filho e aos senhores seus vassalos.

Atrás dela vinham Sor Jared Frey, Sor Hosteen Frey, Sor Danwell

Frey e o filho bastardo de Lorde Walder, Ronel Rivers, à frente de

uma longa coluna de lanceiros, fileira atrás de fileira de homens

arrastando os pés com cotas de malha de aço azul e mantos cinza-

prateados.

Robb avançou a galope ao seu encontro, com Vento Cinzento

correndo ao lado de seu garanhão.

- Está feito - disse-lhe Catelyn. - Lorde Walder o deixa passar. Suas

espadas são também suas, exceto quatrocentas, que deseja deixar

ficar para defender as Gêmeas. Sugiro que deixe aqui quatrocentos

dos seus homens, uma força mista de arqueiros e espadachins. Ele

dificilmente pode levantar objeções a uma oferta para aumentar a

sua guarnição... mas assegure-se de dar o comando a um homem em

quem possa confiar. Lorde Walder pode precisar de ajuda para

manter a fé.

- Será como diz, mãe - respondeu Robb, olhando pasmado para as

fileiras de lanceiros. -Talvez.. Sor Heiman Tallhart, que lhe parece?

- Uma boa escolha.

- Que... que quis ele de nós?

- Se puder dispensar um tanto dos seus soldados, preciso de alguns

homens para escoltar dois dos netos de Lorde Frey para o norte até

Winterfell - disse-lhe ela. - Concordei em recebemos como

protegidos. São novos, com oito e sete anos. Parece que ambos se

chamam Walder. Julgo que seu irmão Bran acolherá bem a

companhia de rapazes próximos da idade dele.

- É tudo? Dois protegidos? Este é um preço bastante pequeno por...

- O filho de Lorde Frey, Olyvar, virá conosco - ela prosseguiu. -

Deverá servir como seu escudeiro pessoal. O pai quer vê-lo feito

cavaleiro a seu tempo.

- Um escudeiro - encolheu os ombros. - Certo, está bem, se ele...

- Além disso, se sua irmã Arya regressar em segurança para junto de

nós, está acordado que se casará com o filho mais novo de Lorde

Walder, Elmar, quando ambos tiverem idade.

Robb pareceu embaraçado.

- Arya não vai gostar nem um bocadinho disso.

- E você deverá casar com uma das filhas dele quando a luta

terminar - Catelyn terminou. - Sua senhoria consentiu amavelmente

em deixá-lo escolher a moça que preferir. Tem uma quantidade delas

que julga serem adequadas.

Para seu crédito, Robb não vacilou.

- Entendo.

- Consente?

- Posso recusar?

- Se quiser atravessar, não.

- Consinto - disse solenemente Robb. Nunca lhe parecera mais

homem do que naquele momento. Rapazes podem brincar com

espadas, mas era preciso ser um senhor para fazer um pacto de

casamento com a consciência do que ele significava.

Atravessaram ao cair da noite enquanto um quarto de lua flutuava

sobre o rio, A dupla coluna serpenteou pelo portão da gêmea

oriental como uma grande serpente de aço, deslizando pelo pátio, no

interior da fortaleza e através da ponte, irrompendo de novo do

segundo castelo na margem ocidental.

Catelyn seguiu à cabeça da serpente, com o filho, o tio, Sor Brynden

e Sor Stevron Frey. Atrás, seguiam nove décimos da cavalaria;

cavaleiros, lanceiros, cavaleiros livres e arqueiros montados. Foram

necessárias horas para que todos atravessassem. Mais tarde, Catelyn

se recordaria do barulho de incontáveis cascos na ponte levadiça, de

Lorde Walder Frey, em sua liteira, vendo--os passar, do brilho de

olhos que espreitavam entre as tábuas dos alçapões no teto enquanto

cavalgavam através da Torre da Água.

A parte maior da tropa nortenha, lanceiros, arqueiros e grandes

massas de homens de armas a pé, permaneceu na margem oriental

sob o comando de Roose Bolton. Robb ordenara-lhe que prosseguisse

a marcha para o sul, a fim de defrontar o enorme exército Lannister

que vinha para o norte sob o comando de Lorde Tywin.

Para o bem ou para o mal, seu filho lançara os dados.


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