E de algum modo, depois daquilo, Grande-Jon transformara-se no
braço direito de Robb, no seu campeão mais dedicado, dizendo
sonoramente a todo mundo que o senhor rapaz era afinal um Stark,
e que fariam melhor em dobrar o raio dos joelhos se não quisessem
vê-los arrancados à dentada.
Mas, nessa mesma noite, Robb viera ao quarto de Bran, pálido e
abalado, depois de os fogos se terem consumido no Grande Salão.
- Pensei que ia me matar - Robb confessara. - Viu a maneira como
ele atirou o Hal ao chão, como se não fosse maior que Rickonf
Deuses, fiquei tão assustado. E Grande-Jon não é o pior dentre eles, é
só o mais barulhento. Lorde Roose nunca diz uma palavra, limita-se a
olhar para mim, e tudo em que eu consigo pensar é naquela sala que
eles têm no Forte do Pavor, onde os Bolton penduram as peles de
seus inimigos.
- Isso é só uma das histórias da Velha Ama - Bran dissera. Mas uma
nota de dúvida insinuara--se na sua voz. - Não ti
- Não sei - o irmão abanara a cabeça com ar cansado. - Lorde
Cerwyn quer levar a filha conosco para o sul. Para cozinhar, diz ele.
Theon tem certeza de que hei de encontrar uma noite a moça na
minha cama. Gostaria... gostaria que nosso pai estivesse aqui.
Isso era uma coisa em que eles podiam concordar, Bran, Rickon e
Robb, o Senhor; todos eles desejavam que o pai estivesse ali. Mas
Lorde Eddard estava a mil léguas de distância, preso numa masmorra
qualquer, fugitivo perseguido procurando manter-se vivo, ou até
morto. Ninguém parecia saber ao certo; cada viajante contava uma
história diferente, cada uma mais aterrorizadora que a outra. Que as
cabeças dos guardas do pai apodreciam nas muralhas da Fortaleza
Vermelha, empaladas em lanças. Que o Rei Robert tinha morrido nas
mãos do pai. Que os Baratheon tinham montado cerco a Porto Real.
Que Lorde Eddard fugira para o sul com o irmão malvado do rei,
Renly. Que Arya e Sansa tinham sido assassinadas pelo Cão de Caça.
Que a mãe matara Tyrion, o Duende, e pendurara seu corpo nas
muralhas de Correrrio, Que Lorde Tywin Lannister marchava sobre o
Ninho da Águia, queimando e matando tudo à sua passagem. Um
contador de histórias encharcado de vinho até afirmara que Rhaegar
Targaryen regressara dos mortos e liderava uma vasta tropa de
antigos heróis contra Pedra do Dragão para reclamar o trono do pai.
Quando o corvo chegara, trazendo uma carta marcada com o selo do
pai e escrita com a letra de Sansa, a verdade cruel não parecera
menos incrível. Bran nunca se esqueceria da expressão de Robb
quando vira as palavras da irmã.
- Ela diz que nosso pai conspirou para cometer traição com os
irmãos do rei - lera. - O Rei Robert está morto, e a mãe e eu somos
convocados à Fortaleza Real para jurar fidelidade ajoffrey. Diz que
devemos ser leais e que, quando casar com Joffrey, suplicará a ele
que poupe a vida do senhor nosso pai - seus dedos fecharam-se em
punho, esmagando a carta de Sansa. - E nada diz de Arya, nada, nem
uma única palavra. Maldita seja! Que se passa com ela?
Bran sentira-se completamente frio por dentro.
- Perdeu seu lobo - ele respondeu, a voz fraca, recordando o dia em
que quatro dos guardas do pai tinham regressado do sul com os
ossos de Lady. Verão, Vento Cinzento e Cão Felpudo tinham
começado a uivar antes de eles atravessarem a ponte levadiça, com
sons arrastados e desolados. A sombra da Primeira Torre ficava um
antigo cemitério, com as lajes semeadas de liquens, onde os antigos
Reis do Inverno tinham enterrado seus criados fiéis. Lady fora
enterrada ali, enquanto os irmãos caminhavam por entre as tumbas
como sombras inquietas. Partira para o sul, mas só os ossos tinham
regressado.
O avô, o velho Lorde Rickard, também partira, com o filho Brandon,
que era irmão do seu pai, e duzentos de seus melhores homens,
Nenhum regressara. E o pai fora para o sul, com Arya e Sansa, e Jory,
Hullen, Gordo Tom e os outros, e mais tarde a mãe e Sor Rodrik
tinham partido, e eles também não tinham regressado. E agora era
Robb quem queria partir. Não para Porto Real, e não para jurar
fidelidade, mas para Correrrio, com uma espada na mão. E se o
senhor pai de ambos fosse de fato prisioneiro, isso significaria com
certeza a sua morte. Assustava Bran mais do que era capaz de
exprimir.
- Se Robb tem de ir, olhem por ele - suplicou Bran aos deuses
antigos enquanto o observavam com os olhos vermelhos da árvore-
coração -, e olhem pelos seus homens, por Hal, Quent e os outros, e
por Lorde Umber, pela Senhora Mormont e pelos outros senhores. E
também por Theon, acho. Observem e os mantenham a salvo, se vos
agradar, deuses. Ajudem-nos a derrotar os Lannister e a salvar meu
pai, e a trazê-lo para casa.
Um leve vento suspirou pelo bosque sagrado e as folhas vermelhas
agitaram-se e sussurraram. Verão mostrou os dentes.
- Pode ouvi-los, rapaz? - perguntou uma voz.
Bran ergueu a cabeça. Osha estava em pé do outro lado da lagoa, sob
um antigo carvalho, com o rosto obscurecido por folhas. Mesmo
presa a grilhões, a selvagem movia-se silenciosamente como uma
gata. Veráo deu a volta na lagoa e a farejou. A mulher alta vacilou.
- Verão, a mim - chamou Bran. O lobo selvagem fungou uma última
vez, girou sobre si mesmo e voltou. Bran enrolou os braços nele. -
Que faz aqui? - não tinha visto Osha desde a sua captura na Mata de
Lobos, embora soubesse que a tinham posto para trabalhar nas
cozinhas.
- Também são os meus deuses - Osha disse. - Para lá da Muralha,
são os únicos deuses - os cabelos estavam crescendo, castanhos e
desgrenhados. Faziam-na parecer mais feminina, isto e o vestido
simples de ráfia marrom que lhe tinham dado quando lhe tiraram a
cota de malha e a roupa de couro. - Gage deixa-me orar de vez em
quando, quando sinto falta, e eu o deixo fazer o que quiser debaixo
da minha saia quando sente falta. Para mim não significa nada. Gosto
do cheiro da farinha em suas mãos, e é mais gentil que o Stiv - fez
uma reverência desajeitada. - Vou deixá-lo só. Há panelas que
precisam ser esfregadas.
- Não, fique - ordenou-lhe Bran. - Explique-me o que queria dizer
com ouvir os deuses. Osha o estudou.
- Você fez um pedido e eles estão respondendo. Abra os ouvidos,
escute, e ouvirá. Bran escutou.
- É só o vento - disse após um momento, inseguro. - As folhas estão
batendo.
- Quem você pensa que envia o vento, se não os deuses? - ela sentou
do outro lado da lagoa, tilintando levemente enquanto se movia.
Mikken prendera grilhetas de ferro em seus tornozelos, com uma
corrente pesada entre elas; podia caminhar, desde que mantivesse os
passos pequenos, mas não havia chance de correr, de subir ou de
montar um cavalo. - Eles o veem, rapaz. Ouvem--no falar. Esse bater?
Isso são eles respondendo.
- Que estão dizendo?
- Estão tristes. O senhor seu irmão não terá sua ajuda no lugar para
onde vai. Os velhos deuses não têm poder no Sul. Lá, os represeiros
foram todos derrubados há milhares de anos. Como poderiam vigiar
seu irmão se não têm olhos?
Bran não tinha pensado naquilo. E ficou assustado. Se nem mesmo
os deuses podiam ajudar o irmão, que esperança havia? Talvez Osha
não estivesse ouvindo corretamente. Inclinou a cabeça e tentou
escutar de novo. Julgou conseguir ouvir agora a tristeza, mas nada
além disso.
O bater das folhas tornou-se mais sonoro. Bran ouviu passos
abafados e um cantarolar em voz baixa, e Hodor saiu
desajeitadamente por entre as árvores, sorrindo e nu.
- Hodor!
- Deve ter ouvido as nossas vozes - disse Bran. - Hodor, esqueceu a
roupa.
- Hodor - o gigante concordou. Estava encharcado do pescoço para
baixo, fumegando no ar gelado. Tinha o corpo coberto de pelos
castanhos, espessos como os da pele de um animal. Entre as pernas,
o membro viril pendia, longo e pesado,
Osha o olhou com um sorriso azedo.
- Ora, aí está um homem grande - disse. - Se não tem nele o sangue
dos gigantes, eu sou a rainha.
- Meistre Luwin diz que já não há gigantes. Diz que estão todos
mortos, como os filhos da floresta. Tudo o que resta deles são velhos
ossos que os homens desenterram com arados de quando em
quando.
- Que Meistre Luwin viaje até para lá da Muralha - Osha rebateu. -
Encontrará então gigantes, ou será encontrado por eles. Meu irmão
matou uma. Tinha três metros de altura, e mesmo assim era
enfezada. Sabe-se que crescem até três metros e meio ou quatro
metros. E também são criaturas ferozes, todas pelos e dentes, e as
mulheres têm barbas como os maridos, de modo que não há como
os distinguir. As mulheres tomam homens humanos como amantes, e
é daí que vêm os mestiços. É mais duro para as mulheres que eles
apanham. Os homens são tão grandes que mais depressa rasgam
uma donzela em duas do que a deixam com bebê - deu-lhe um
sorriso,
- Mas você não sabe do que falo, não é, rapaz?
- Sei, sim - Bran insistiu. Compreendia o acasalamento; vira os cães
no pátio, e observara um garanhão montando uma égua. Mas falar
disso o deixava desconfortável. Olhou para Hodor.
- Volte e traga sua roupa, Hodor - ele ordenou. - Vá-se vestir.
- Hodor - o simplório voltou pelo caminho de onde tinha vindo,
abaixando-se para passar sob um ramo baixo de uma árvore.
Ele era muitíssimo grande, pensou Bran enquanto o observava partir.
- Há mesmo gigantes para lá da Muralha? - perguntou a Osha,
incerto.
- Há gigantes e coisas piores que gigantes, senhorzinho. Tentei dizer
a seu irmão quando me interrogou, a ele, ao seu meistre e àquele
rapaz sorridente, Greyjoy. Os ventos frios estão se levantando, e
homens afastam-se de seus fogos e nunca mais regressam... ou,
quando regressam, já não são homens, são só criaturas, com olhos
azuis e mãos frias e negras. Por que você pensa que fugi para o sul
com Stiv, Hali e o resto daqueles idiotas? Mance acha que vai lutar, o
bravo, querido, teimoso do homem, como se os caminhantes brancos
não fossem mais que patrulheiros. Mas, que sabe ele? Ele pode
chamar a si próprio Rei-para-lá-da-Muralha se bem entender, mas
ainda é apenas mais um dos velhos corvos negros que fugiram da
Torre Sombria. Nunca experimentou o inverno. Eu nasci lá em cima,
filho, tal como a minha mãe e a mãe dela antes dela, e a mãe dessa
antes dela, nascida entre o Povo Livre. Nós recordamos - Osha pôs-se
em pé, fazendo tinir as correntes. - Tentei dizer ao senhorzinho seu
irmão. Ontem mesmo, quando o encontrei no pátio. "Senhor Stark",
chamei, com todo o respeito, mas ele olhou através de mim, e aquele
imbecil suado do Grande-Jon Umber afastou-me de seu caminho.
Assim seja. Usarei meus ferros e terei tento na língua. Um homem
que não quer escutar não pode ouvir.
- Diga-me. Robb me escutará, eu sei que sim.
- Será? Veremos. Diz isto a ele, senhor. Diz que ele está decidido a
marchar na direção errada. Ê para o norte que ele devia levar suas
espadas. Para o norte, não para o sul. Está me ouvindo?
Bran anuiu.
- Direi a ele.
Mas naquela noite, durante o banquete no Grande Salão, Robb não
se encontrava lá. Em vez disso, fez sua refeição no aposento privado,
com Lorde Rickard, Grande-Jon e os outros senhores vassalos, a fim
de preparar os últimos planos para a longa marcha que se
aproximava. Bran ficou com a tarefa de ocupar o seu lugar à
cabeceira da mesa e agir como anfitrião perante os filhos e amigos
de honra de Lorde Karstark. Já estavam em seus lugares quando
Hodor o transportou às costas para o salão e ajoelhou ao lado do
cadeirão. Dois dos criados ajudaram a erguê-lo do cesto, Bran
conseguia sentir os olhos de todos os estranhos presentes no salão. O
silêncio se fizera.
- Senhores - anunciou Hallis Mollen -, Brandon Stark, de Winterfell.
- Dou-lhes as boas-vindas às nossas fogueiras - disse Bran
rigidamente - e ofereço-lhes comida e bebida em honra da nossa
amizade.
Harrion Karstark, o mais velho dos filhos de Lorde Karstark, fez uma
reverência, e os irmãos seguiram o seu exemplo, mas, enquanto se
instalavam em seus lugares, ouviu os dois mais novos conversando
em voz baixa sobre o tinir de taças de vinho.
- ... preferia morrer a viver assim - murmurou um deles, o que tinha
o nome do pai, Eddard, e o irmão Torrhen disse que era provável
que o rapaz fosse tão quebrado por dentro como por fora, covarde
demais para tirar a própria vida.
Quebrado, Bran pensou amargamente enquanto se agarrava à faca.
Seria isso agora? Bran, o Quebrado?
- Não quero ser quebrado - sussurrou com veemência a Meistre
Luwin, que estava sentado à sua direita. - Quero ser um cavaleiro.
- Há quem chame à nossa Ordem os cavaleiros da mente -
respondeu Luwin. - É um rapaz extremamente inteligente quando se
esforça, Bran. Alguma vez pensou na possibilidade de usar uma
corrente de meistre? Não há limite para o que pode aprender.
- Quero aprender magia - disse-lhe Bran. - O corvo prometeu que eu
voaria. Meistre Luwin suspirou.
- Posso ensinar história, artes de curar, as ervas. Posso ensinar a
língua dos corvos, e como construir um castelo, e o modo como um
marinheiro orienta o navio pelas estrelas. Posso ensinar a medir os
dias e a marcar a passagem das estações, e na Cidadela, em Vilavelha,
podem lhe ensinar outras mil coisas. Mas, Bran, ninguém pode lhe
ensinar magia.
- Os filhos podiam - Bran respondeu. - Os filhos da floresta - aquilo
lhe lembrou a promessa que fizera a Osha no bosque sagrado, e
contou a Luwin o que ela dissera.
Meistre o ouviu educadamente.
- Parece-me que a selvagem podia dar lições de contar histórias à
Velha Ama - ele disse quando Bran terminou. - Voltarei a falar com
ela, se desejar, mas seria melhor se não incomodasse seu irmão com
esta loucura. Ele tem preocupações mais que suficientes sem se
aborrecer com gigantes e mortos na floresta. São os Lannister que
têm o senhor seu pai cativo, Bran, não os filhos da floresta - pousou
a mão gentil no braço de Bran. - Pense no que eu disse, menino.
Dois dias mais tarde, enquanto uma alvorada vermelha surgia num
céu varrido pelo vento, Bran deu por si no pátio junto ao portão,
atado à Dançarina, enquanto se despedia do irmão.
- Você é agora senhor de Winterfell - disse-lhe Robb. Estava montado
num hirsuto garanhão cinzento, com o escudo pendurado no seu
flanco; madeira reforçada a ferro, branca e cinzenta, com o desenho
de uma cabeça de um lobo gigante a rosnar. O irmão de Bran usava
cota de malha cinza sobre couros branqueados, uma espada e um
punhal à cintura, um manto debruado de pele sobre os ombros. -
Você tem de ocupar o meu lugar, como ocupei o do nosso pai, até
regressarmos.
- Eu sei - respondeu Bran em tom infeliz. Nunca se sentira tão
pequeno, tão só ou tão assustado. Não sabia como ser um senhor.
- Escute os conselhos de Meistre Luwin e tome conta de Rickon.
Diga a ele que volto assim que a luta acabar.
Rickon recusara-se a descer. Estava lá em cima, em seu quarto, de
olhos vermelhos e rebelde.
- Não! - gritara quando Bran lhe perguntara se não queria dizer
adeus a Robb. - Adeus, não!
- Eu lhe disse - Bran respondeu. - Ele diz que nunca ninguém
regressa.
- Não pode ser um bebê para sempre. É um Stark, e tem quase
quatro anos - Robb suspirou. - Bem, nossa mãe estará em casa em
breve. E eu trarei nosso pai, prometo.
Deu meia-volta com o cavalo e afastou-se a trote. Vento Cinzento o
seguiu, saltitando ao lado do cavalo de guerra, esbelto e ligeiro. Hallis
Mollen atravessou o portão à frente da coluna, transportando a
ondulante bandeira branca da Casa Stark no topo de um grande
poste de freixo cinzento. Theon Greyjoy e Grande-Jon puseram-se ao
lado de Robb, e seus cavaleiros formaram uma coluna dupla atrás
deles, com lanças de ponta de aço brilhando ao sol.
De um modo desconfortável recordou as palavras de Osha, Ele
marcha na direção errada, pensou. Por um instante quis galopar
atrás dele e gritar o aviso, mas quando Robb desapareceu sob a
porta levadiça o momento passou,
Para lá das muralhas do castelo ergueu-se um rugido. Bran sabia que
os soldados apeados e os habitantes da vila saudavam Robb enquanto
ele passava; saudavam Lorde Stark, o Senhor de Winterfell no seu
grande garanhão, com seu manto ondulante e Vento Cinzento, que
corria ao seu lado. Compreendeu com uma dor surda que nunca o
saudariam daquele modo. Ele podia ser Senhor de Winterfell
enquanto o irmão e o pai estivessem ausentes, mas era ainda Bran, o
Quebrado. Nem sequer podia sair de cima do cavalo se não fosse
para cair.
Depois de as saudações distantes se reduzirem ao silêncio, e o pátio
ficar por fim vazio, Winterfell pareceu deserto e morto. Bran olhou
em redor, para o rosto dos que ficaram, mulheres, crianças e velhos..
e Hodor. O enorme cavalariço tinha uma expressão perdida e
assustada no rosto.
- Hodor? - disse ele, com voz triste.
- Hodor - concordou Bran, perguntando a si mesmo que significado
teria aquilo.
Daenerys
Depois de obter seu prazer, Khal Drogo levantou-se dos tapetes de
dormir e ficou em pé, acima dela. Sua pele brilhava, escura como
bronze, à luz avermelhada que vinha do braseiro, e podiam-se ver as
tênues linhas de antigas cicatrizes no peito largo. Cabelos negros
como tinta, soltos e sem nós, caíam em cascata sobre os ombros e ao
longo das costas, até bem depois da cintura. O membro viril cintilava
de umidade. A boca do khal torceu-se numa expressão mal-
humorada sob o longo bigode.
- O garanhão que monta o mundo não precisa de cadeiras de ferro
para nada.
Dany apoiou-se sobre o braço para olhá-lo, tão alto e magnífico.
Adorava especialmente os seus cabelos. Nunca foram cortados; ele
nunca conhecera a derrota.
- Foi profetizado que o garanhão cavalgará até os confins da terra -
ela disse.
- A terra termina no mar negro de sal - Drogo respondeu
imediatamente. Molhou um pano numa bacia de água morna para
limpar o suor e o óleo da pele. - Nenhum cavalo pode atravessar a
água venenosa.
- Nas Cidades Livres há navios aos milhares - disse-lhe Dany, tal
como já tinha lhe dito antes. - Cavalos de madeira com cem pernas,
que voam pelo mar em asas cheias de vento.
Khal Drogo não queria ouvir falar do assunto.
- Não falaremos mais de cavalos de madeira e cadeiras de ferro -
deixou cair o pano e começou a se vestir. - Hoje irei para o campo
caçar, mulher esposa - anunciou enquanto se enfiava num colete
pintado e afivelava um cinto largo com pesados medalhões de prata,
ouro e bronze.
- Sim, meu sol-e-estrelas - Dany respondeu. Drogo levaria os
companheiros de sangue e partiriam em busca do hrakkar, o grande
leão branco das planícies. Se regressassem em triunfo, a alegria do
senhor seu marido seria feroz, e talvez estivesse disposto a escutá-la.
Ele não temia animais selvagens ou nenhum homem que já respirara,
mas o mar era outra coisa. Para os dothrakis, água que um cavalo
não pudesse beber era algo de impuro; as agitadas planícies verde-
acinzentadas do oceano enchiam-nos com uma repugnância
supersticiosa. Dany descobrira que Drogo era mais corajoso que os
outros senhores dos cavalos em meia centena de maneiras
diferentes. . mas naquilo, não. Se ao menos conseguisse levá-lo a
entrar num navio...
Depois de o khal e os companheiros de sangue terem partido com
seus arcos, Dany mandou chamar as aias. Sentia agora o corpo tão
gordo e desajeitado que acolhia de bom grado a ajuda de seus fortes
braços e mãos hábeis, ao passo que antes se sentia frequentemente
desconfortável com o modo como elas se agitavam e volteavam ao
seu redor. Limparam-na e vestiram-na com sedareia, leve e solta.
Enquanto Doreah lhe escovava os cabelos, mandou Jhiqui à procura
de Sor Jorah Mormont.
O cavaleiro veio de imediato. Trazia calções de pelo de cavalo e um
colete pintado, como um dothraki. Rudes pelos negros cobriam-lhe o
peito largo e os braços musculosos.
- Minha princesa. Como posso servi-la?
- Precisa falar com o senhor meu marido. Drogo diz que o garanhão
que monta o mundo terá todas as terras para governar e não
precisará atravessar a água venenosa. Fala em levar o kha-lasar para
o leste depois de Rhaego nascer, a fim de saquear as terras em torno
do Mar de Jade.
O cavaleiro ficou pensativo.
- O khal nunca viu os Sete Reinos - ele respondeu. - Para ele, não são
nada. Se chega a pensar neles, não há dúvida que pensa em ilhas,
algumas cidades pequenas agarradas às rochas à maneira de Lorath
ou Lys, rodeadas por mares tempestuosos. As riquezas do leste
devem parecer-lhe uma possibilidade mais tentadora.
- Mas ele tem de ir para oeste - disse Dany, desesperada. - Por favor,
ajude-me a fazê-lo compreender - ela também nunca vira os Sete
Reinos, tal como Drogo, mas era como se os conhecesse de todas as
histórias que o irmão lhe contara. Viserys prometera-lhe mil vezes
que um dia a levaria de volta, mas agora estava morto e as
promessas tinham morrido com ele.
- Os dothrakis fazem as coisas ao seu ritmo, pelas suas razões -
respondeu o cavaleiro. -Tenha paciência, princesa. Não cometa o erro
do seu irmão. Iremos para casa, prometo-lhe.
Casa? A palavra a fez sentir-se triste. Sor Jorah tinha sua Ilha dos
Ursos, mas o que era casa para ela? Algumas histórias, nomes
recitados tão solenemente como as palavras de uma prece, a
memória que se atenuava de uma porta vermelha... Estaria Vaes
Dothrak destinada a ser a sua casa para sempre? Quando olhava
para as feiticeiras do dosh khaleen, estaria olhando para o seu
futuro?
Sor Jorah deve ter visto a tristeza em seu rosto.
- Uma grande caravana chegou durante a noite, khaleesi.
Quatrocentos cavalos vindos de Pentos, via Norvos e Qohor, sob o
comando do Capitão Mercador Byan Votyris. Illyrio pode ter enviado
uma carta. Deseja visitar o Mercado Ocidental?
Dany agitou-se.
- Sim. Gostaria - os mercados ganhavam vida quando uma caravana
chegava. Nunca se sabia que tesouros os comerciantes poderiam
trazer, e seria bom voltar a ouvir homens a falar valiriano, como nas
Cidades Livres. - Irri, diga-lhes para prepararem uma liteira.
- Vou dizer ao seu khas - disse Sor Jorah, retirando-se.
Se Khal Drogo estivesse com ela, Dany teria montado sua prata.
Entre os dothrakis, as mães permaneciam montadas quase até o
momento do parto, e ela não queria parecer fraca aos olhos do
marido. Mas com o khal longe, na caça, era agradável encostar-se a
almofadas suaves e ser transportada através de Vaes Dothrak, com
cortinas de seda vermelha para protegê-la do sol. Sor Jorah selou o
cavalo e seguiu a seu lado, com os quatro jovens do seu khas e as
aias.
O dia estava quente e sem nuvens, o céu de um azul profundo.
Quando o vento soprava, Dany conseguia sentir os ricos odores das
plantas e da terra. A medida que a liteira ia passando sob os
monumentos roubados, passava da sombra para o sol, e de volta à
sombra, balançando, estudando o rosto de heróis mortos e de reis
esquecidos. Perguntou a si mesma se os deuses de cidades queimadas
ainda podiam atender a preces.
Se eu não fosse do sangue do dragão, pensou, melancólica, esta
poderia ser a minha casa. Era khaleesi, tinha um homem forte e um
cavalo rápido, aias para servi-la, guerreiros para mantê-la a salvo, um
lugar de honra no dosh khaleen à sua espera quando envelhecesse,,. e
no seu ventre crescia o filho que um dia montaria o mundo. Isso
seria suficiente para qualquer mulher..., mas não para o dragão. Com
Viserys morto, Daenerys era a última, a última mesmo. Pertencia à
linhagem de reis e conquistadores, e o mesmo acontecia ao filho que
trazia na barriga. Não podia esquecê-lo.
O Mercado Ocidental era uma grande praça de terra batida rodeada
por coelheiras de tijolo de barro cozido, recintos para animais, salas
caiadas para se refrescar. Outeiros elevavam-se do chão como se
fossem dorsos de grandes animais subterrâneos que rompiam a
superfície, com bocejantes bocas negras que levavam a frios e
cavernosos armazéns subterrâneos. O interior da praça era um
labirinto de barracas e passagens retorcidas, ensombradas por toldos
de hera entretecida.
Uma centena de mercadores e comerciantes descarregavam suas
mercadorias e instalavam-se em barracas depois que chegaram, mas,
mesmo assim, o grande mercado parecia silencioso e deserto quando
comparado com os bazares apinhados que Dany recordava dos
tempos passados em Pentos e nas outras Cidades Livres. As
caravanas dirigiam-se a Vaes Dothrak, vindas do leste e do oeste, não
tanto para vender aos dothrakis como para comerciar umas com as
outras, explicou Sor Jorah. Os cavaleiros deixavam-nas ir e vir sem
ser incomodadas, desde que mantivessem a paz da cidade sagrada,
não profanassem a Mãe das Montanhas ou o Ventre do Mundo e
honrassem as feiticeiras do dosh khaleen com os presentes
tradicionais de sal, prata e sementes. Os dothrakis não
compreendiam verdadeiramente este negócio de compras e vendas.
Dany também gostava da estranheza do Mercado Oriental, com todas
as invulgares visões, sons e cheiros que lá havia. Passava com
frequência suas manhãs ali, mordiscando ovos de árvore, torta de
gafanhotos e tiras de massa verde, escutando as agudas vozes
ululantes dos encantores, embasbacando-se perante manticoras em
jaulas de prata, imensos elefantes cinzentos e os cavalos listrados de
preto e branco de Jogos Nhai. Também gostava de observar as
pessoas: os escuros e solenes Asshafi e os altos e claros Qartheens, os
homens de olhos brilhantes de Yi Ti com seus chapéus de cauda de
macaco, as donzelas guerreiras de Bayasabhad, Shamyriana e
Kayakayanaya com anéis de ferro nos mamilos e rubis nas bochechas,
e até mesmo os severos e assustadores Homens das Sombras, que
cobriam os braços e as pernas com tatuagens e escondiam o rosto
atrás de máscaras. Para Dany, o Mercado Oriental era um lugar de
maravilha e magia.
Mas o Mercado Ocidental cheirava a casa.
Enquanto Irri e Jhiqui a ajudavam a sair da liteira, inspirou e
reconheceu os cheiros vivos do alho e da pimenta, fragrâncias que
lhe lembravam dias há muito passados nas vielas de Tyrosh e Myr e
lhe trouxeram um leve sorriso aos lábios. Por baixo daqueles odores
sentiu os pesados perfumes doces de Lys. Viu escravos transportando
braçadas da intrincada renda de Myr e boas lãs numa dúzia de cores
ricas. Guardas de caravana vagueavam pelas passagens com capacetes
de cobre e túnicas até os joelhos de algodão amarelo acolchoado,
com bainhas de espadas vazias pendendo de cintos de couro
trançado. Atrás de uma barraca, um armeiro exibia placas peitorais
de aço, trabalhadas com ouro e prata em padrões intrincados, e
elmos batidos até tomar a forma de animais extravagantes. Ao seu
lado estava uma jovem bonita vendendo ourivesaria de Lannisporto,
anéis, broches, colares e medalhões magnificamente trabalhados,
bons para fazer cintos. Um enorme eunuco guardava-lhe a barraca,
mudo e calvo, vestido com veludos manchados de suor e fechando a
cara a todos que se aproximassem. Em frente, um gordo comerciante
de tecidos de Yi Ti regateava com um pentoshi o preço de um
corante verde qualquer, fazendo oscilar de um lado para o outro a
cauda de macaco do chapéu quando abanava a cabeça.
- Quando era menina adorava brincar no bazar - disse Dany a Sor
Jorah enquanto vagueavam pela passagem coberta entre as barracas.
- Era um lugar tão vivo, com todo mundo gritando e rindo, tantas
coisas maravilhosas para admirar... embora raramente tivéssemos
dinheiro suficiente para comprar alguma coisa... Bem, exceto uma
salsicha de vez em quando, ou dedos-de-mel... Há dedos-de-mel nos
Sete Reinos, como os que fazem em Tyrosh?
- São bolos? Não sei dizer, princesa - o cavaleiro fez uma reverência.
- Se me liberar por algum tempo, irei em busca do capitão para ver
se tem letras para nós.
- Muito bem. Ajudarei a encontrá-lo.
- Não há necessidade de se incomodar. - Sor Jorah afastou o olhar
com impaciência. - Desfrute do mercado. Volto quando concluir os
meus assuntos.
Curioso, pensou Dany enquanto o observava afastar-se a passos
largos por entre a multidão. Não compreendia por que não devia ir
com ele. Talvez Sor Jorah pretendesse encontrar uma mulher depois
de se reunir com o capitão mercador. Sabia que era frequente
prostitutas viajarem com as caravanas, e alguns homens eram
estranhamente tímidos a respeito de suas vidas íntimas. Encolheu os
ombros.
- Venham - disse aos outros.
As aias seguiram-na quando Dany reatou o passeio pelo mercado.
- Ah, olha - exclamou para Doreah -, é aquele o tipo de salsicha de
que falava - apontava para uma barraca onde uma mulherzinha
mirrada grelhava carne e cebolas numa pedra quente.
- São preparadas com montes de alho e malaguetas - deliciada com a
descoberta, Dany insistiu para que os outros a acompanhassem para
comer salsicha. As aias devoraram as suas, aos risinhos e sorrisinhos,
embora os homens do seu khas cheirassem com suspeita a carne
grelhada. - Têm um sabor diferente do que eu recordava - disse
Dany depois das primeiras dentadas.
- Em Pentos, eu as fazia com carne de porco - disse a velha -, mas
todos os meus porcos morreram no mar dothraki. Estas são feitas
com carne de cavalo, khaleesi, mas eu as tempero da mesma forma.
- Ah - Dany sentiu-se desapontada, mas Quaro gostou tanto da sua
salsicha que decidiu comer outra, e Rakharo o superou, comendo
mais três e arrotando sonoramente. Dany riu.
- E a primeira vez que ri desde que vosso irmão, o Khal Rhaggat, foi
coroado por Drogo
- disse Irri, - É bom de ver, khaleesi.
Dany deu um sorriso tímido. Realmente era bom rir. Sentia-se quase
menina de novo.
Vaguearam durante metade da manhã. Dany viu um belo manto de
penas das Ilhas do Verão e o obteve de presente. Em troca, deu ao
mercador um medalhão de prata que tirou do cinto. Era assim que
as coisas eram feitas entre os dothrakis. Um vendedor de aves
ensinou um papagaio verde e vermelho a dizer o seu nome, e Dany
voltou a rir, mas recusou-se a ficar com ele. Que faria ela com um
papagaio vermelho e verde num khalasar? Já ficara com uma dúzia
de frascos de óleos aromáticos, os perfumes da sua infância; bastava
fechar os olhos e senti-los para voltar a ver a casa grande de porta
vermelha. Quando Doreah se pôs a olhar ansiosamente para um
amuleto de fertilidade na tenda de um mago, Dany também ficou
com ele e o deu à aia, pensando que agora tinha de encontrar
também qualquer coisa para Irri e Jhiqui.
Ao virar uma esquina, depararam com um negociante de vinhos que
oferecia taças do tamanho de dedais de seus produtos a quem
passava por ali.
- Tintos doces - gritou em fluente dothraki -, tenho tintos doces, de
Lys, de Volantis e da Árvore. Brancos de Lys. Aguardente de pera de
Tyrosh, vinhardente, vinho apimentado e os néctares verde-claros de
Myr. Castanhos de baga-fumo e amargos dos ándalos, tenho todos
- era um homem pequeno, esguio e bonito, com cabelos louros
ondulados e perfumados à maneira de Lys. Quando Dany parou na
frente da barraca, o homem fez uma profunda reverência.
- A khaleesi deseja uma prova? Tenho um tinto doce de Dorne,
senhora, que canta uma canção de passas, cerejas e rico carvalho
escuro. Um barril, uma taça, um gole? Bastará que o prove, e darei a
seu filho o meu nome. Dany sorriu.
- Meu filho já tem nome, mas vou experimentar o vinho de verão -
disse, em valiriano, aquele valiriano que falavam nas Cidades Livres.
Sentiu as palavras estranhas na língua, depois de tanto tempo. - Só
uma gota, por gentileza.
O mercador devia tê-la tomado por uma dothraki, devido aos seus
trajes, aos cabelos oleados e à pele bronzeada. Quando falou, o
homem abriu a boca de espanto.
- Senhora, é.. tyroshi? Poderá ser?
- Minha fala pode ser tyroshi, e os meus trajes, dothrakis, mas sou de
Westeros, dos Reinos do Poente - disse-lhe Dany.
Doreah aproximou-se.
- Tem a honra de se dirigir a Daenerys da Casa Targaryen, Daenerys,
Filha da Tormenta, khaleesi dos homens a cavalo e princesa dos Sete
Reinos.
O mercador de vinhos caiu de joelhos.
- Princesa - disse, abaixando a cabeça.
- Erga-se - Dany ordenou. - Ainda gostaria de provar esse vinho de
verão de que falou. O homem pôs-se em pé de um salto.
- Isso? Zurrapa de Dorne. Não é digno de uma princesa. Tenho um
tinto seco da Árvore, vivo e agradável. Por favor, deixe-me oferecer
um barril.
As visitas de Khal Drogo às Cidades Livres tinham lhe deixado o
gosto por bom vinho, e Dany sabia que uma colheita tão nobre lhe
agradaria.
- Honra-me, sor - murmurou docemente,
- A honra é minha - o mercador esquadrinhou os fundos da barraca
e voltou com uma pequena barrica de carvalho. Via-se um cacho de
uvas desenhado a fogo na madeira. - O símbolo dos Redwyne - disse,
apontando -, da Árvore. Não há bebida mais fina.
- Khal Drogo e eu a partilharemos. Aggo, leva isto para a liteira, por
gentileza - o vendedor de vinhos mostrou-se radiante quando o
dothraki ergueu o barril.
Dany só reparou que Sor Jorah tinha regressado quando ouviu o
cavaleiro dizer:
- Não - tinha a voz estranha, brusca. - Aggo, coloque esse barril aí.
Aggo olhou para Dany. Ela anuiu, hesitante.
- Sor Jorah, o que há?
- Tenho sede. Abra-o, vendedor.
O mercador franziu as sobrancelhas.
- O vinho é para a khaleesi, não para homens da sua laia, sor. Sor
Jorah aproximou-se da barraca.
- Se não o abrir, parto-o na sua cabeça - ali, na cidade sagrada, não
se transportavam armas a não ser as mãos.. mas as mãos eram o
bastante, grandes, duras e perigosas, com os nós dos dedos cobertos
de rudes pelos escuros. O vendedor de vinhos hesitou um momento,
mas depois pegou no martelo e arrancou o tampão do barril.
- Sirva - ordenou Sor Jorah. Os quatro jovens guerreiros do khas de
Dany dispuseram-se atrás dele, franzindo as sobrancelhas,
observando com seus olhos escuros e amendoados.
- Seria um crime beber um vinho tão rico sem deixá-lo respirar - o
vendedor de vinhos não largara o martelo.
Jhogo estendeu a mão para o chicote que trazia à cintura, mas Dany
o fez parar com um ligeiro toque no braço.
- Faça como diz Sor Jorah - disse. Havia pessoas que paravam para
ver o que se passava. O homem deu um olhar rápido e carrancudo.
- As ordens da princesa - teve de pôr de lado o martelo para erguer
o barril. Encheu duas taças de prova do tamanho de dedais,
despejando tão habilmente o vinho que não derramou uma gota.
Sor Jorah ergueu uma taça e cheirou o vinho, de testa franzida.
- É doce, não é? - disse o vendedor de vinhos, sorrindo. - Conseguiu
sentir o aroma da fruta, sor? O perfume da Árvore. Prove-o, senhor,
e diga-me se não é o mais fino, o mais rico vinho que alguma vez
tocou vossa língua.
Sor Jorah ofereceu-lhe a taça.
- Prove-o você primeiro,
- Eu? - o homem soltou uma gargalhada. - Eu não sou digno deste
vinho, senhor. E o mercador de vinhos que bebe a própria
mercadoria é um pobre mercador - seu sorriso era amigável, mas
Dany conseguia ver o reflexo do suor na sua testa.
- Irá beber - disse Dany, fria como gelo. - Esvazie a taça, senão lhes
digo para que o segurem enquanto Sor Jorah despeja o barril inteiro
pela sua goela abaixo.
O vendedor de vinhos encolheu os ombros, estendeu a mão para a
taça... mas agarrou o barril, atirando-o com as duas mãos. Sor Jorah
atirou-se sobre Dany, afastando-a com um empurrão. A barrica
quicou no ombro do cavaleiro e esmagou-se no chão. Dany tropeçou
e perdeu o equilíbrio.
- Não - gritou, atirando as mãos para a frente a fim de aparar a
queda... Doreah a agarrou pelo braço e a puxou para trás, de modo
que Dany caiu sobre as costas, e não sobre a barriga.
O mercador saltou sobre a bancada, passando como um dardo entre
Aggo e Rakharo. Quaro estendeu a mão para um arakh, que não se
encontrava lá, ao mesmo tempo em que o homem louro o afastava
com um encontrão. Dany ouviu o estalido do chicote de Jhogo, viu o
couro estender-se e enrolar-se em volta da perna do vendedor de
vinhos. O homem estatelou-se de bruços na terra batida.
Uma dúzia de guardas da caravana tinha chegado correndo. Com eles
viera o próprio mestre, o Capitão Mercador Byan Votyris, um
minúsculo norvoshi cuja pele era como couro velho e que tinha um
farto bigode azul que lhe chegava às orelhas. Pareceu compreender o
que se passara sem que uma palavra fosse dita.
- Levem este daqui para esperar a vontade do khal - ordenou,
fazendo um gesto para o homem que estava no chão. Dois guardas
puseram o vendedor de vinhos em pé. - Também a presenteio com
os seus bens, princesa - continuou o capitão mercador. - É um
pequeno sinal de pesar por um dos meus ter feito uma coisa destas.
Doreah e Jhiqui ajudaram Dany a se erguer. O vinho envenenado
jorrava da barrica partida no chão.
- Como soube? - ela perguntou a Sor Jorah, tremendo. - Como?
- Não sabia, khaleesi, pelo menos até que o homem se recusou a
beber, mas assim que li a carta de Magíster Illyrio, tive receio - seus
olhos escuros varreram os rostos estranhos no mercado. - Venha. É
melhor não falar disto aqui.
Dany estava quase às lágrimas quando a levaram de volta. O sabor
que trazia na boca era um que já conhecera: o medo. Vivera anos no
terror de Viserys, com medo de acordar o dragão.
Isto era ainda pior. Agora não temia apenas por si própria, mas pelo
bebê. Ele devia ter sentido seu medo, porque se movia sem descanso
no seu interior. Dany afagou suavemente o inchaço da barriga,
desejando poder alcançá-lo, tocá-lo, acalmá-lo.
- Você é do sangue do dragão, pequeno - segredou enquanto a liteira
balançava pelo caminho, de cortinas bem cerradas. - Você é do
sangue do dragão, e o dragão não sente medo.
Sob o outeiro oco de terra que era a sua casa em Vaes Dothrak,
Dany ordenou-lhes que a deixassem. . todos, menos Sor Jorah.
- Diga-me - ordenou, enquanto se deixava cair sobre as almofadas. -
Foi o Usurpador?
- Sim - o cavaleiro pegou um pergaminho dobrado. - Uma carta para
Viserys, de Magíster Illyrio. Robert Baratheon oferece terras e títulos
pela sua morte ou de seu irmão.
- Do meu irmão? - o soluço soou como meia gargalhada. - Ele ainda
não sabe, não é? O Usurpador deve a Drogo um título - agora, a
gargalhada foi meio soluço. Apertou os braços em volta do corpo,
num gesto protetor. - E pela minha, o senhor disse. Só a minha?
- A sua e a da criança - respondeu Sor Jorah, sombrio.
- Não. Ele não pode ter o meu filho - não choraria, Dany decidiu. Não
tremeria de medo. O Usurpador agora acordou o dragão, disse a si
mesma... e seus olhos desviaram-se para os ovos de dragão que
descansavam em seu ninho de veludo escuro. A oscilante luz da
candeia iluminava as escamas de pedra, e grãos de pó que
tremeluziam em jade, escarlate e ouro dançavam no ar à sua volta,
como cortesãos em torno de um rei.
Teria sido a loucura que a tomara naquele momento, nascida do
medo? Ou alguma estranha sabedoria enterrada em seu sangue?
Dany não saberia dizer. Ouviu a própria voz dizendo:
- Sor Jorah, acenda o braseiro.
- Khaleesi? - o cavaleiro olhou-a de um modo estranho. - Está tão
quente. Tem certeza? Nunca tivera tanta certeza de nada.
- Sim, eu.. eu estou arrepiada. Acenda o braseiro. Ele fez uma
reverência.
- Às suas ordens.
Quando os carvões se incendiaram, Dany mandou Sor Jorah embora.
Tinha de estar só para fazer o que tinha de fazer. Isto é uma loucura,
disse a si mesma enquanto tirava do veludo o ovo negro e escarlate.
Só vai partir-se e arder, e é tão belo, Sor Jorah me chamará de tonta
se estragá-lo, no entanto, no entanto..
Embalando o ovo com as mãos, levou-o para o fogo e o empurrou
para o interior dos carvões ardentes. As escamas negras pareceram
brilhar quando beberam o calor. Chamas lamberam a pedra com
pequenas línguas vermelhas. Dany depositou os outros dois ovos ao
lado do negro, no fogo. Quando deu um passo para longe do
braseiro, a respiração tremeu-lhe na garganta.
Observou até que os carvões se transformaram em cinzas. Fagulhas
flutuavam para cima e seguiam pelo orifício de saída da fumaça.
Ondas de calor estremeciam em torno dos ovos de dragão. E foi
tudo.
Seu irmão Rhaegarfoi o último dragão, dissera Sor Jorah. Dany fitou
tristemente os ovos. Que esperava? Um milhar de milhares de anos
antes tinham estado vivos, mas agora eram apenas rochas bonitas.
Não podiam fazer um dragão. Um dragão era ar e fogo. Carne viva,
não pedra morta.
Quando Khal Drogo regressou, o braseiro estava frio de novo.
Cohollo levava um cavalo de carga à sua frente com a carcaça de um
grande leão branco presa ao dorso. No céu, as estrelas começavam a
surgir. O khal soltou uma gargalhada ao saltar do cavalo e mostrou-
lhe as cicatrizes na perna, onde o hrakkar o arranhara através dos
calções.
- Farei para você um manto de sua pele, lua da minha vida - ele
jurou.
Quando Dany lhe contou o que acontecera no mercado, todos os
risos pararam, e Khal Drogo ficou muito silencioso.
- Esse envenenador foi o primeiro - preveniu-o Sor Jorah Mormont -,
mas não será o último. Os homens arriscarão muito por um título.
Drogo ficou em silêncio durante algum tempo. Por fim, disse:
- Esse vendedor de venenos fugiu da lua da minha vida. Melhor seria
que corresse atrás dela. E é o que vai fazer. Jhogo, Jorah, o ândalo, a
ambos eu digo, escolham qualquer cavalo que desejarem das minhas
manadas, e ele é seu. Qualquer cavalo, exceto o meu vermelho e a
prata que foi presente de casamento à lua da minha vida. Dou-lhes
este presente pelo que fizeram. E a Rhaego, filho de Drogo, o
garanhão que montará o mundo, também a ele prometo um
presente. A ele darei essa cadeira de ferro onde se sentou o pai de
sua mãe. Darei a ele Sete Reinos. Eu, Drogo, khal, farei isto - sua voz
ergueu-se e ele levantou o punho para o céu. - Levarei meu khalasar
para o oeste, até onde o mundo termina, e montarei os cavalos de
madeira através da negra água salgada como nenhum khal fez antes.
Matarei os homens das roupas de ferro e derrubarei suas casas de
pedra. Violarei suas mulheres, tomarei seus filhos como escravos e
trarei seus deuses quebrados para Vaes Dothrak, para que se
verguem sob a Mãe das Montanhas. É isto que prometo, eu, Drogo,
filho de Bharbo. É isto que juro perante a Mãe das Montanhas, com
as estrelas por testemunhas.
O khalasar partiu de Vaes Dothrak dois dias mais tarde, dirigindo-se
para o sul e para o oeste pelas planícies. Khal Drogo os liderou no
seu grande garanhão vermelho, com Daenerys a seu lado na sua
prata. O vendedor de vinhos corria atrás deles, nu, a pé, acorrentado
pela garganta e pelos pulsos. As correntes estavam presas à sela da
prata de Dany. Enquanto ela cavalgava, ele corria a seu lado, de pés
nus e aos tropeções. Nenhum mal lhe aconteceria... enquanto conse-
guisse acompanhá-la.
Catelyn
Estava longe demais para distinguir claramente as bandeiras, mas
mesmo através do nevoeiro podia ver que eram brancas com uma
mancha escura no centro, que só podia ser o lobo gigante dos Stark,
cinzento sobre seu fundo de gelo. Quando viu aquilo com os
próprios olhos, Catelyn puxou as rédeas do cavalo e inclinou a
cabeça num agradecimento. Os deuses eram bons. Não chegara tarde
demais.
- Esperam a nossa vinda, senhora - disse Sor Wylis Manderly -, como
o senhor meu pai jurou que fariam.
- Não os deixemos à espera por mais tempo, sor - Sor Brynden Tully
esporeou o cavalo e dirigiu-se a trote vivo para os estandartes.
Catelyn o acompanhou.
Sor Wylis e o irmão, Sor Wendel, seguiram-nos, à frente de seus
soldados, quase mil e quinhentos homens: pouco mais de vinte
cavaleiros e outros tantos escudeiros, duzentos cavaleiros livres e
lanceiros e espadachins a cavalo e o resto dos homens a pé, armados
com lanças, piques e tridentes. Lorde Wyman tinha ficado para trás,
a fim de organizar as defesas de Porto Branco. Com quase sessenta
anos, tornara-se demasiado corpulento para montar um cavalo.
- Se julgasse que voltaria a ver a guerra na minha vida, teria comido
um pouco menos de enguias - dissera a Catelyn quando recebeu seu
navio, batendo na enorme barriga com as mãos. Tinha os dedos
gordos como salsichas. - Mas os meus rapazes os levarão a salvo até
o vosso filho, nada tema.
Os "rapazes" dele eram ambos mais velhos que Catelyn, e ela teria
preferido que não saíssem tanto ao pai. Sor Wylis estava apenas a
algumas enguias de não ser capaz de montar seu cavalo; Catelyn
sentia pena do pobre animal. Sor Wendel, o filho mais novo, teria
sido o homem mais gordo que vira na vida, não tivesse deparado
com o pai e o irmão. Wylis era silencioso e formal, Wendel, ruidoso e
rude; ambos ostentavam bigodes de morsa e cabeças tão lisas como o
bumbum de um bebê; nenhum parecia possuir uma única peça de
roupa que não estivesse salpicada com manchas de comida. Mas
gostava bastante deles; tinham-na trazido até Robb, como o pai
prometera, e nada mais importava.
Ficou satisfeita por constatar que o filho enviara espiões até mesmo
para o leste. Os Lannis-ter, quando viessem, viriam pelo sul, mas era
bom que Robb estivesse sendo cauteloso. Meu filho está levando uma
tropa para a guerra, pensou, ainda sem bem acreditar. Temia
desesperadamente por ele, e por Winterfell, mas não podia negar que
sentia também certo orgulho. Um ano antes, ele era apenas um
garoto. Que seria agora?, perguntava a si mesma.
Batedores detectaram os estandartes dos Manderly - o tritão branco
de tridente na mão, erguendo-se do mar azul-esverdeado - e
saudaram-nos calorosamente. Foram levados para um ponto elevado
e suficientemente seco para um acampamento. Sor Wylis anunciou
uma parada e ficou para trás com os homens, a fim de supervisionar
o acender das fogueiras e os cuidados com os cavalos, ao passo que o
irmão Wendel prosseguiu com Catelyn e o tio para apresentar os
cumprimentos do pai ao seu suserano.
O terreno sob os cascos dos cavalos era mole e úmido. Cedia devagar
enquanto iam passando por fumarentos fogos de turfa, filas de
cavalos e carroças carregadas de biscoitos e carne de vaca salgada.
Em um afloramento rochoso mais alto que o terreno circundante,
passaram por um pavilhão senhorial com paredes de lona pesada.
Catelyn reconheceu o estandarte, o alce macho dos Hornwood,
castanho no seu campo laranja-escuro.
Logo depois, por entre a névoa, vislumbrou as muralhas e torres de
Fosso Cailin... ou o que restava delas. Imensos blocos de basalto
negro, cada um deles tão grande como uma cabana de caseiro,
jaziam espalhados e tombados como os blocos de madeira de uma
criança, meio enfiados no solo mole pantanoso. Nada mais restava de
uma muralha exterior que em tempos passados se erguera tão alta
como a de Winterfell. A fortaleza de madeira tinha desaparecido por
completo, apodrecida há mil anos, sem sequer deixar uma viga para
marcar o local onde estivera. Tudo o que restava do grande castro
dos Primeiros Homens eram três torres... três que antes tinham sido
vinte, caso seja possível crer nos contadores de histórias.
A Torre do Portão parecia em bastante bom estado, e até podia se
vangloriar de alguns metros de muralha de ambos os lados. A Torre
do Bêbado, no pântano, onde outrora se encontravam as muralhas
sul e oeste, inclinava-se como um homem empanturrado de vinho
prestes a vomitar na sarjeta. E a alta e esguia Torre dos Filhos, onde
segundo a lenda os filhos da floresta tinham um dia convocado seus
deuses sem nome para enviar o martelo das águas, tinha perdido
metade de sua coroa. Era como se algum grande animal tivesse dado
uma dentada nas ameias ao longo do topo da torre e cuspido o
cascalho para o pântano. As três torres estavam verdes de musgo.
Uma árvore crescia entre as pedras do lado norte da Torre do
Portão, com ramos retorcidos ornados com mantos viscosos e
brancos de pele-de-fantasma.
- Que os deuses tenham piedade - exclamou Sor Brynden quando viu
o que se estendia à sua frente. - Isto é Fosso Cailin? Não passa de...
- ...uma armadilha mortal - terminou Catelyn. - Eu sei o que parece,
tio. Pensei o mesmo da primeira vez que o vi, mas Ned assegurou-me
que esta ruína é mais poderosa do que parece. As três torres
sobreviventes dominam o talude de todos os lados, e qualquer
inimigo tem de passar entre elas. Os pântanos, aqui, são
impenetráveis, cheios de areia movediça e poços, e repletos de
serpentes. Para assaltar qualquer uma das torres, um exército teria
de avançar através de esterco negro que chega ao peito dos homens,
atravessar um fosso cheio de lagartos-leões e escalar muralhas
escorregadias com musgo, e tudo isso enquanto fica exposto ao fogo
dos arqueiros nas outras torres - deu um sorriso sombrio para o tio,
- E quando a noite cai, dizem que há fantasmas, espíritos frios e
vingativos do Norte que têm fome de sangue sulista.
Sor Brynden soltou um risinho.
- Lembre-me de não ficar muito tempo por aqui. Da última vez que
verifiquei, eu próprio era sulista.
Tinham sido desfraldados estandartes nas três torres. O resplendor
dos Karstark esvoaçava da Torre do Bêbado sob o lobo gigante; na
Torre das Crianças, era o gigante com as correntes quebradas de
Grande-Jon. Mas na Torre do Portão a bandeira dos Stark voava
sozinha. Fora aí que Robb estabelecera sua base. Catelyn dirigiu-se
para lá, com Sor Brynden e Sor Wendel atrás, levando os cavalos a
passo lento pela estrada de tábuas e troncos que tinha sido disposta
sobre o verde e o negro dos campos de lama.
Encontrou o filho rodeado pelos senhores vassalos do pai, em um
salão cheio de correntes de ar, com um fogo de turfa fumegando em
uma lareira negra. Estava sentado a uma maciça mesa de pedra, com
uma pilha de papéis e mapas à sua frente, conversando seriamente
com Roose Bolton e Grande-Jon. A princípio não reparou nela... mas
o lobo, sim. O grande animal cinzento estava deitado perto do fogo,
mas, quando Catelyn entrou, ergueu a cabeça, e os olhos dourados
encontraram os dela. Os senhores calaram-se, um por um, e Robb
ergueu os olhos perante o súbito silêncio e a viu.
- Mãe? - disse, com a voz pesada de emoção.
Catelyn quis correr para ele, beijar sua querida testa, envolvê-lo nos
braços e apertá-lo com força para que nunca lhe acontecesse
nenhum mal. . mas ali, na frente de seus senhores, não se atrevia. Ele
agora desempenhava um papel de homem, e ela não lhe queria tirar
isto. Por isso, deteve-se na ponta mais distante da laje de basalto que
estavam usando como mesa. O lobo selvagem pôs-se em pé e
caminhou pela sala até ela. Parecia maior do que um lobo deveria
ser.
- Deixou crescer a barba - disse ela para Robb, enquanto Vento
Cinzento lhe farejava a mão. Ele esfregou o queixo, de repente
atrapalhado.
- Sim - os pelos no queixo eram mais vermelhos que os cabelos.
- Gostei - Catelyn afagou suavemente a cabeça do lobo. - Torna-o
parecido com meu irmão Edmure - Vento Cinzento mordiscou-lhe os
dedos, de um jeito brincalhão, e regressou a trote para seu lugar
perto do fogo.
Sor Haleman Tallhart foi o primeiro a seguir o lobo gigante,
atravessando a sala para saudá--la, ajoelhando à sua frente e
encostando a testa à sua mão.
- Senhora Catelyn - disse -, está bela como sempre, uma visão bem-
vinda em tempos conturbados - seguiram-se os Glover, Galbart e
Robett, e Grande-Jon Umber, e os outros, um por um. Theon Greyjoy
foi o último.
- Não esperava vê-la aqui, senhora - disse enquanto se ajoelhava.
- Não pensei em vir - disse Catelyn -, até que desembarquei em
Porto Branco e Lorde Wy-man me disse que Robb convocara os
vassalos. Conheça seu filho, Sor Wendel - Wendel Man-derly avançou
e fez uma reverência tão profunda quanto a barriga lhe permitia. - E
meu tio, Sor Brynden Tully, que trocou o serviço da minha irmã pelo
meu.
- O Peixe Negro - Robb disse, - Obrigado por se juntar a nós, sor.
Precisamos de homens com a sua coragem. E o senhor também, Sor
Wendel, estou contente por tê-lo aqui. Sor Rodrik também está com
a senhora, mãe? Senti a sua falta.
- Sor Rodrik saiu de Porto Branco para o norte. Nomeei-o castelão e
ordenei-lhe que defendesse Winterfell até o nosso regresso. Meistre
Luwin é um sábio conselheiro, mas não tem experiência nas artes da
guerra.
- Nada tema a esse respeito, Senhora Stark - disse-lhe Grande-Jon, no
seu rugido de baixo. - Winterfell está seguro. Vamos enfiar nossas
espadas em breve em Tywin Lannister, com a sua licença, e depois
seguimos a caminho da Fortaleza Vermelha para libertar Ned.
- Senhora, uma pergunta, se me dá licença - Roose Bolton, senhor do
Forte do Pavor, tinha voz fraca, mas, quando falava, os homens
maiores silenciavam-se para ouvir. Seus olhos eram curiosamente
claros, quase desprovidos de cor, e o olhar era perturbador. - Diz-se
que a senhora tem o filho anão de Lorde Tywin cativo. Trouxe o
Duende até nós? Juro, faríamos bom uso de tal refém.
- É verdade que capturei Tyrion Lannister, mas já não o tenho em
meu poder - Catelyn foi forçada a admitir. Um coro de consternação
recebeu a notícia. - Não fiquei mais satisfeita do que os senhores. Os
deuses acharam por bem libertá-lo, com alguma ajuda da tola da
minha irmã - não devia exprimir tão abertamente o seu desprezo,
bem o sabia, mas a partida do Ninho da Águia não fora agradável.
Oferecera-se para levar consigo Lorde Robert, para criá-lo em
Winterfell durante alguns anos. Atrevera-se a sugerir que a
companhia de outros rapazes lhe faria bem. A ira de Lysa fora uma
visão assustadora."Irmã ou não", replicara “se tentar roubar-me meu
filho, sairá pela Porta da Lua." Depois daquilo nada mais tivera a
dizer.
Os senhores estavam ansiosos por lhe colocar mais questões, mas
Catelyn ergueu a mão.
- Sem dúvida que teremos tempo para tudo isso mais tarde, mas a
viagem fatigou-me. Gostaria de falar a sós com meu filho. Sei que me
perdoarão, senhores - não lhes deixou escolha. Liderados pelo sempre
prestativo Lorde Hornwood, os vassalos fizeram suas vénias e se
retiraram.
- Você também, Theon - acrescentou, quando Greyjoy se deixou ficar.
Ele sorriu e os deixou.
Havia cerveja e queijo sobre a mesa. Catelyn encheu um corno,
sentou-se, bebeu um gole e estudou o filho. Parecia mais alto do que
quando ela partira, e os fiapos de barba faziam-no parecer mais
velho.
- Edmure tinha dezesseis anos quando deixou crescer as primeiras
suíças,
- Farei dezesseis em breve - Robb respondeu.
- Mas agora tem quinze. Quinze, e levando uma tropa para a batalha.
Compreende por que tenho motivo para temer, Robb?
O olhar dele ficou obstinado.
- Não havia mais ninguém.
- Ninguém? - ela disse. - Diga-me quem eram aqueles homens que vi
aqui há um momento? Roose Bolton, Rickard Karstark, Galbart e
Robett Glover, Grande-Jon, Heiman Tallhart... podia ter dado o
comando a qualquer um deles. Que os deuses sejam bondosos, podia
até ter enviado Theon, embora ele não tivesse sido a minha escolha.
- Eles não são Starks.
- São homens, Robb, experientes em batalha. Você lutava com
espadas de madeira há menos de um ano.
Viu a ira nos olhos dele ao ouvir aquilo, mas desapareceu tão
depressa como surgiu, e subitamente o filho tornou-se de novo um
garoto.
- Eu sei - disse ele, desconcertado, - Está. . está me mandando de
volta para Winterfell? Catelyn suspirou.
- Era o que devia fazer. Você nunca devia ter partido. Mas não me
atrevo, agora não, Você chegou longe demais. Um dia, aqueles
senhores o verão como seu suserano. Se mandá-lo embora agora,
como uma criança que é mandada para a cama sem jantar, eles se
recordarão e rirão desse fato. Chegará o dia em que necessitará que
o respeitem, e até que o temam um pouco. O riso é veneno para o
medo. Não lhe farei tal coisa, por mais que possa desejar mantê-lo a
salvo.
- Meus agradecimentos, mãe - disse ele, com o alívio transparecendo,
evidente, sob a formalidade.
Ela estendeu o braço por cima da mesa e tocou seus cabelos,
- É meu primogênito, Robb. Basta olhar para você para me lembrar
do dia em que chegou ao mundo, de cara vermelha e berrando.
Ele se levantou, claramente desconfortável com o toque dela, e
caminhou até a lareira. Vento Cinzento esfregou a cabeça em sua
perna.
- Sabe.. do pai?
- Sim - os relatos sobre a morte súbita de Robert e a queda de Ned
tinham assustado Catelyn mais do que era capaz de exprimir, mas
não deixaria que o filho visse seu medo. - Lorde Manderly contou-me
quando desembarquei em Porto Branco. Teve alguma notícia de suas
irmãs?
- Houve uma carta - Robb respondeu, coçando o lobo gigante sob o
focinho. - E uma também para a senhora, mas foi entregue em
Winterfell com a minha - dirigiu-se à mesa, vasculhou entre alguns
mapas e papéis e voltou com um pergaminho amarrotado. - Esta é a
que escreveu para mim, não pensei em trazer a sua.
Houve algo no tom de Robb que a perturbou. Alisou o papel e leu. A
preocupação deu lugar à descrença, depois à ira, e por fim ao medo,
- Isto é uma carta de Cersei, não de sua irmã - disse ao terminar. - A
verdadeira mensagem está naquilo que Sansa não diz. Tudo isto
sobre como os Lannister a estão tratando delicada e gentilmente..
conheço o som de uma ameaça, mesmo sussurrada. Têm Sansa refém
e pretendem mantê-la.
- Não há menção a Arya - Robb fez notar, em tom infeliz.
- Não - Catelyn não queria pensar no que isso poderia querer dizer,
não naquele momento, não ali.
-Tive esperança. . se ainda tivesse o Duende, uma troca de reféns... -
pegou a carta de Sansa e a amassou no punho, e Catelyn percebeu
pelo modo como fez que não era a primeira vez. - Há notícias do
Ninho da Águia? Escrevi à tia Lysa, pedindo ajuda. Sabe se ela
convocou os vassalos de Lorde Arryn? Os cavaleiros do Vale virão
juntar-se a nós?
- Só um - disse ela -, o melhor deles, meu tio... mas Brynden Peixe
Negro é em primeiro lugar um Tully. Minha irmã não pretende
mexer um dedo fora do Portão Sangrento.
Robb recebeu aquilo duramente.
- Mãe, o que vamos fazer? Reuni todo este exército, dezoito mil
homens, mas não vou... não estou certo... - olhou-a, com os olhos
brilhando, o orgulhoso jovem senhor evaporado num instante, e
igualmente depressa se transformou de novo numa criança, um
rapaz de quinze anos procurando respostas com a mãe.
Não podia ser.
- De que tem tanto medo, Robb? - perguntou Catelyn, gentilmente.
- Eu.. - ele virou a cabeça para esconder a primeira lágrima. - Se
marcharmos... mesmo se ganharmos... os Lannister têm Sansa e meu
pai. Vão matá-los, não vão?
- Querem que pensemos que sim.
- Quer dizer que estão mentindo?
- Não sei, Robb. O que sei é que você não tem escolha, Se for até
Porto Real e jurar fidelidade, nunca será autorizado a partir. Se
meter o rabo entre as pernas e se retirar para Winterfell, seus
senhores perderão todo o respeito por você. Alguns até poderão
passar para o lado dos Lannister. Então, a rainha, com muito menos
a perder, pode fazer dos prisioneiros o que quiser. Nossa melhor
esperança, nossa única verdadeira esperança, é que consiga derrotar
o inimigo no campo de batalha. Se acontecer de capturar Lorde
Tywin ou o Regicida, então uma troca poderá ser perfeitamente
possível, mas este não é o âmago da questão. Enquanto tiver
suficiente poder para que o temam, Ned e sua irmã deverão estar
seguros. Cersei é bastante sensata para saber que pode precisar deles
para fazer a paz, caso a luta lhe seja desfavorável.
- E se a luta não lhe for desfavorável? - Robb perguntou. - E se for
desfavorável a nós?
Catelyn tomou-lhe a mão nas suas.
- Robb, não vou suavizar a verdade para você. Se perder, não há
esperança para nenhum de nós. Dizem que não há nada a não ser
pedra no coração do Rochedo Casterly. Lembre-se do destino dos
filhos de Rhaegar.
Então ela viu o medo naqueles jovens olhos, mas neles havia também
uma força.
- Neste caso, não perderei - prometeu.
- Conte-me o que sabe da luta nas terras do rio - ela pediu. Tinha de
saber se ele estava realmente pronto.
- Há menos de uma quinzena, travou-se uma batalha nos montes sob
o Dente Dourado. Tio Edmure enviou Lorde Vance e Lorde Piper
para defender o desfiladeiro, mas o Regicida caiu sobre eles e os pôs
em fuga. Lorde Vance foi morto. A última notícia que recebemos
dizia que Lorde Piper recuava para se juntar ao seu irmão e a seus
outros vassalos em Correrrio, com Jaime Lannister em seu encalço.
Mas isto não é o pior. Enquanto lutavam no desfiladeiro, Lorde
Tywin trazia um segundo exército Lannister pelo sul. Dizem que é
ainda maior que a tropa de Jaime. Meu pai deve ter sabido disso,
porque enviou alguns homens para se opor a eles, sob a bandeira do
próprio rei. Deu o comando a um fidalgo qualquer do sul, um Lorde
Erik, ou Derik, ou algo assim, mas Sor Raymun Darry ia com ele, e a
carta dizia que havia também outros cavaleiros e uma força de
guardas do pai. Mas era uma armadilha. Assim que Lorde Derik atra-
vessou o Ramo Vermelho, os Lannister caíram sobre ele, com
bandeira do rei e tudo, e Gregor Clegane os apanhou pela retaguarda
quando tentaram se retirar pelo Vau do Saltimbanco. Esse Lorde
Derik e alguns outros podem ter escapado, ninguém sabe ao certo,
mas Sor Raymun foi morto, tal como a maior parte dos nossos
homens de Winterfell. Dizem que Lorde Tywin bloqueou a Estrada
do Rei e agora marcha para o norte na direção de Harrenhal,
queimando tudo à sua passagem.
Sinistro e ameaçador, pensou Catelyn. Era pior do que imaginara.
- Pretende esperar por ele aqui? - ela perguntou,
- Se ele vier até tão longe, sim, mas ninguém pensa que virá. Enviei
uma mensagem para Howland Reed, o velho amigo do pai de Atalaia
da Água Cinzenta. Se os Lannister subirem o Gargalo, os
cranogmanos os sangrarão ao longo de todo o caminho, mas Galbart
Glover diz que Lorde Tywin é inteligente demais para isso, e Roose
Bolton concorda. Acreditam que vai permanecer perto do Tridente,
tomando os castelos dos senhores do rio um por um, até Correrrio
ficar sozinho. Precisamos marchar para o sul ao seu encontro.
A simples ideia gelou Catelyn até os ossos. Que chances teria um
rapaz de quinze anos contra comandantes de batalha experientes
como Jaime e Tywin Lannister?
- Será isso sensato? Aqui você tem uma posição forte. Dizem que os
velhos Reis do Norte poderiam instalar-se em Fosso Cailin e repelir
tropas dez vezes maiores que a sua.
- Sim, mas nossa provisão está diminuindo, e esta não é terra de que
possamos viver facilmente. Estivemos à espera de Lorde Manderly,
mas agora que seus filhos se juntaram a nós, temos de marchar.
Catelyn compreendeu que estava ouvindo os senhores vassalos
falarem pela voz do filho. Ao longo dos anos, recebera muitos deles
em Winterfell, e ela e Ned tinham sido acolhidos às suas mesas e
junto de seus fogos. Sabia que tipo de homens eram, cada um deles.
Gostaria de saber se Robb também o sabia.
E, no entanto, havia sentido no que diziam. Esta tropa que o filho
reunira não era um exército regular como os que as Cidades Livres
estavam habituadas a manter, nem uma força de guardas pagos em
dinheiro. A maioria era gente simples: pequenos caseiros,
trabalhadores rurais, pescadores, pastores de ovelhas, filhos de
estalajadeiros, comerciantes e curtidores, complementados por um
punhado de mercenários e cavaleiros livres ansiosos pelo saque.
Quando seus senhores chamavam, eles vinham.. mas não para
sempre.
- Marchar está muito bem - disse ao filho -, mas para onde, e com
que propósito? Que pensa em fazer?
Robb hesitou.
- Grande-Jon acha que devíamos levar a batalha até Lorde Tywin e
surpreendê-lo, mas os Glover e os Karstark pensam que seríamos
mais sensatos em rodear o seu exército e juntar forças com Sor
Edmure contra o Regicida - passou os dedos pela farta cabeleira
ruiva com um ar infeliz. - Embora, quando finalmente atingirmos
Correrrio... não tenho certeza.
- Pois tenha - disse Catelyn ao filho -, ou então volte para casa e
pegue de novo a espada de madeira. Não pode se dar ao luxo de
parecer indeciso perante homens como Roose Bolton e Ri-ckard
Karstark. Não se iluda, Robb... esses homens são seus vassalos, não
seus amigos. Chamou-se a si próprio comandante de batalha.
Comande.
O filho olhou para ela, sobressaltado, como se não conseguisse dar
crédito ao que estava ouvindo.
- Será como diz, mãe.
- Pergunto de novo. O que é que você pensa em fazer?
Robb abriu um mapa sobre a mesa, um esfarrapado pedaço de couro
antigo, coberto com linhas de tinta desbotada. Uma das pontas
teimava em enrolar-se; segurou-a pondo-lhe o punhal em cima.
- Ambos os planos têm virtudes, mas... olhe, se tentarmos rodear a
tropa de Lorde Tywin, corremos o risco de ficar presos entre ele e o
Regicida, e se o atacarmos... segundo todos os relatos, ele tem mais
homens que eu, e muito mais cavalaria armada. Grande-Jon diz que
isso não importa se o apanharmos de calças curtas, mas parece-me
que um homem que travou tantas batalhas como Tywin Lannister
não será apanhado de surpresa com toda essa facilidade.
- Muito bem - disse ela. Enquanto ele estava ali, debruçado sobre o
mapa, conseguia ouvir em sua voz ecos de Ned. - Diga-me mais.
- Eu deixaria aqui uma pequena força defendendo Fosso Cailin,
principalmente arqueiros, e marcharia com o resto pelo talude. Mas
assim que estivéssemos abaixo do Gargalo, dividiria a nossa tropa em
duas. A infantaria pode prosseguir pela Estrada do Rei, ao passo que
nossos cavaleiros atravessam o Ramo Verde nas Gêmeas - apontou. -
Quando Lorde Tywin receber a notícia de que seguimos para o sul,
marchará para o norte a fim de dar batalha à nossa divisão principal,
deixando nossos cavaleiros livres para avançar rapidamente pela
margem ocidental até Correrrio - Robb recostou-se, sem se atrever
propriamente a sorrir, mas satisfeito consigo mesmo e ansioso pelo
elogio da mãe.
Catelyn franziu as sobrancelhas para o mapa.
- Colocaria um rio entre as duas partes do seu exército.
- E entre Jaime e Lorde Tywin - disse ele ardentemente. O sorriso
enfim chegou. - Não há travessias do Ramo Verde a norte do Vau
Rubi, onde Robert conquistou sua coroa. Só nas Gêmeas, bem aqui
em cima, e Lorde Frey controla essa ponte. Ele é vassalo de seu pai,
não é verdade?
O Atrasado Lorde Frey, pensou Catelyn.
- É - admitiu -, mas meu pai nunca confiou nele. E você também não
devia fazê-lo.
- Não confiarei - prometeu Robb. - Que acha?
Contra sua vontade, estava impressionada. Ele parece um Tully,
pensou, mas não deixa de ser filho de seu pai, e Ned o ensinou hem.
- Que força comandaria?
- A cavalaria - respondeu de imediato. De novo como o pai; Ned
guardaria sempre a tarefa mais perigosa para si.
- E a outra?
- Grande-Jon está constantemente dizendo que deveríamos esmagar
Lorde Tywin. Pensei em atribuir-lhe a honra.
Era seu primeiro tropeção, mas como fazê-lo ver isso sem ferir a
confiança do primeiro voo?
- Seu pai uma vez me disse que Grande-Jon era o homem mais
destemido que já conhecera, Robb deu um sorriso.
- Vento Cinzento comeu dois de seus dedos, e ele riu. Então
concorda?
- Seu pai não é destemido - Catelyn fez notar. - É bravo, mas isso é
bem diferente. O filho pesou aquilo por um momento.
- A tropa oriental será tudo o que estará entre Lorde Tywin e
Winterfell - disse ele, pensativo, - Bem, eles e o punhado de
arqueiros que deixarmos aqui no Fosso. Portanto, não quero alguém
destemido, certo?
- Não. Quer astúcia fria, julgo eu, e não coragem.
- Roose Bolton - disse Robb de imediato. - Aquele homem me
assusta.
- Então oremos para que também assuste Tywin Lannister. Robb
assentiu e enrolou o mapa.
- Vou dar as ordens e reunir uma escolta para levá-la para Winterfell.
Catelyn lutara por manter-se forte, para o bem de Ned e deste
teimoso e corajoso filho de ambos. Pusera de lado o desespero e o
medo, como se fossem roupas que escolhera não vestir... mas agora
descobria que afinal de contas as usava.
- Não vou para Winterfell - ouviu-se dizer, surpresa com a súbita
torrente de lágrimas que lhe cobriu a visão. - Meu pai pode estar
morrendo atrás das muralhas de Correrrio. Meu irmão está rodeado
de inimigos. Tenho de ir encontrá-los.
Tyrion
Chella, filha de Cheyk. dos Orelhas Negras, tinha se adiantado para
reconhecer o terreno, e foi ela quem trouxe a notícia sobre o exército
na encruzilhada.
- Pelas fogueiras, digo que são vinte mil homens - ela disse. - Os
estandartes são vermelhos, com um leão dourado.
- Seu pai? - perguntou Bronn.
- Ou meu irmão Jaime - Tyrion respondeu. - Saberemos em breve -
examinou seu andrajoso bando de salteadores: quase trezentos
Corvos de Pedra, Irmãos da Lua, Orelhas Negras e Homens
Queimados, e estes eram apenas a semente do exército que esperava
cultivar. Gunthor, filho de Gurn, andava ainda recrutando os outros
clãs. Perguntou a si mesmo o que o senhor seu pai acharia deles,
com suas peles e pedaços de aço roubado. A bem da verdade, ele
próprio não sabia o que achar. Seria seu comandante ou seu
prisioneiro? Durante a maior parte do tempo, parecia ser um pouco
de ambos. - Pode ser melhor que eu desça sozinho - sugeriu.
- Melhor para Tyrion, filho de Tywin - disse Ulf, que falava pelos
Irmãos da Lua. Shagga apertou as sobrancelhas, o que era uma visão
assustadora.
- Shagga, filho de Dolf, não gosta disto. Shagga irá com o homem-
rapaz, e se o homem-rapaz mente, Shagga lhe cortará o membro
viril...
- ... e o dará de comer às cabras, já sei - disse Tyrion num tom
fatigado. - Sagga, eu voltarei, dou a minha palavra como Lannister.
- E por que deveríamos confiar na sua palavra? - Chella era uma
mulher pequena e dura, reta como um rapaz, e não era nada tola. -
Os senhores das terras baixas já mentiram antes aos clãs.
- Você me magoa, Chella - disse Tyrion. - E eu que pensava que nos
tínhamos tornado tão bons amigos. Mas seja como quiser. Virá
comigo, e também Shagga e Cronn pelos Corvos de Pedra, Ulf pelos
Irmãos da Lua e Timett, filho de Timett, pelos Homens Queimados -
os homens dos clãs trocaram olhares cautelosos à medida que os ia
nomeando. - Os outros ficarão aqui até que os mande chamar.
Tentem não se matar ou mutilar uns aos outros enquanto eu estiver
fora.
Esporeou o cavalo e afastou-se a trote, não lhes deixando escolha que
não fosse segui-lo ou ficar para trás. Uma ou outra coisa para ele
estava bem, bastava que não se sentassem para conversar durante
um dia e uma noite. Era este o problema dos clãs; tinham a ideia
absurda de que a voz de todos os homens devia ser ouvida em
conselho, e por isso discutiam sem fim sobre tudo. Até as mulheres
eram autorizadas a falar. Pouco admirava que se tivessem passado
centenas de anos desde a última vez que ameaçaram o Vale com algo
mais que uma incursão ocasional. Tyrion pretendia mudar isso.
Bronn o acompanhou. Atrás deles, depois de uma rápida sessão de
resmungos, os cinco homens dos clãs seguiram-nos em seus
pequenos cavalos, umas coisas magricelas que pareciam pôneis e
subiam vertentes pedregosas como cabras.
Os Corvos de Pedra iam juntos, e Chella e Ulf também se
mantinham perto um do outro, uma vez que os Irmãos da Lua e os
Orelhas Negras tinham laços fortes entre si. Timett, filho de Timett,
ia só. Todos os clãs das Montanhas da Lua temiam os Homens
Queimados, que flagelavam a carne com fogo para provar sua
coragem e (segundo os outros) assavam bebês em seus banquetes. E
mesmo os outros Homens Queimados temiam Timett, que arrancara
o próprio olho esquerdo com uma faca incandescente quando chegou
à idade adulta. Tyrion deduzira que era mais habitual que um rapaz
arrancasse a fogo um mamilo, um dedo ou (se fosse realmente bravo,
ou realmente louco) uma orelha. Os outros Homens Queimados
ficaram tão atemorizados pela sua escolha de um olho que
imediatamente o nomearam Mão Vermelha, o que parecia ser algum
tipo de chefe de guerra.
- Pergunto a mim mesmo o que o rei deles queimou - dissera Tyrion
a Bronn quando ouviu a história. Sorrindo, o mercenário agarrara a
virilha... mas até Bronn mantinha um respeitoso cuidado com a
língua perto de Timett. Se um homem era suficientemente louco
para destruir o próprio olho, era pouco provável que se mostrasse
gentil para com os inimigos.
Vigias distantes espreitavam de torres de pedra solta quando o grupo
desceu pelo sopé dos montes, e uma vez Tyrion viu um corvo
levantando voo. Onde a estrada de altitude se retorcia entre dois
afloramentos rochosos, chegaram ao primeiro ponto fortificado. Um
muro baixo de terra com um metro e vinte de altura fechava a
estrada, e uma dúzia de soldados com atiradeiras guarnecia os
pontos altos. Tyrion fez seus homens parar fora do alcance e se
dirigiu sozinho para a muralha.
- Quem comanda aqui? - gritou.
O capitão foi rápido para surgir, e ainda mais rápido para
providenciar uma escolta a Tyrion quando reconheceu o filho do seu
senhor. Passaram a trote por campos enegrecidos e fortificações
queimadas, até as terras do rio e o Ramo Verde do Tridente. Tyrion
não viu cadáveres, mas o ar estava cheio de corvos e gralhas-pretas;
tinha havido luta ali, e recentemente.
A meia légua da encruzilhada, tinha sido erigida uma barricada de
estacas aguçadas, guarnecida por lanceiros e arqueiros. Atrás dessa
linha, o acampamento estendia-se até perder de vista. Finos pilares
de fumaça erguiam-se de centenas de fogueiras para cozinhar;
homens vestidos de cota de malha sentavam-se à sombra de árvores
e amolavam suas lâminas; estandartes familiares ondulavam em
mastros enfiados no terreno lamacento,
Um grupo de cavaleiros avançou ao seu encontro quando se
aproximaram das estacas. O cavaleiro que os liderava usava uma
armadura prateada com ametistas encravadas e um manto listrado
de púrpura e prata. Seu escudo mostrava o símbolo do unicórnio, e
um corno em espiral com sessenta centímetros de comprimento
projetava-se da testa de seu elmo em forma de cabeça de cavalo.
Tyrion puxou as rédeas para saudá-lo.
- Sor Flement.
Sor Flement Brax ergueu o visor.
-Tyrion - disse, espantado. - Senhor, todos temíamos que estivesse
morto, ou... - olhou incerto para os homens dos clãs. - Estes... seus
companheiros...
- Amigos de peito e vassalos leais - disse Tyrion. - Onde poderei
encontrar o senhor meu pai?
- Usa a estalagem no entroncamento como abrigo.
Tyrion soltou uma gargalhada, A estalagem no entroncamento!
Talvez os deuses afinal fossem justos.
- Desejo vê-lo de imediato.
- Às suas ordens, senhor - Sor Flement virou o cavalo e gritou
ordens. Três filas de estacas foram arrancadas do chão para abrir um
buraco na linha. Tyrion o atravessou com o grupo.
O acampamento de Lorde Tywin espalhava-se ao longo de léguas. A
estimativa de Chella de vinte mil homens não podia estar muito
longe da verdade. Os plebeus acampavam a céu aberto, mas os
cavaleiros possuíam tendas e alguns dos grandes senhores tinham
erigido pavilhões grandes como casas. Tyrion vislumbrou o touro
vermelho dos Prester, o javali malhado de Lorde Crakehall, a árvore
ardente de Marbrand, o texugo de Lynden. Cavaleiros chamavam-no
enquanto ele ia passando a meio galope, e homens de armas
embasbacavam-se perante os homens dos clãs, em evidente espanto.
Shagga respondia-lhes também abrindo a boca; com toda certeza
nunca tinha visto tantos homens, cavalos e armas em sua vida. Os
outros salteadores da montanha faziam melhor trabalho em manter
uma expressão neutra, mas Tyrion não tinha dúvidas de que estavam
tão cheios de espanto como Shagga. Cada vez melhor. Quanto mais
impressionados estivessem com o poder dos Lannister, mais fácil
seria comandá-los.
A estalagem e seus estábulos estavam muito parecidos com o que ele
recordava, embora pouco restasse da aldeia além de pedras
derrubadas e fundações enegrecidas. Fora erigida uma forca no pátio,
e o corpo que dela pendia estava coberto de corvos. Quando Tyrion
se aproximou, levantaram voo, guinchando e batendo as asas negras.
Desmontou e olhou de relance para o que restava do cadáver. As
aves tinham-lhe comido os lábios, os olhos e a maior parte das
bochechas, deixando arreganhados os dentes manchados de
vermelho, num hediondo sorriso.
- Um quarto, uma refeição e um jarro de vinho, foi tudo o que lhe
pedi - disse ao cadáver com um suspiro de censura.
Rapazes emergiram hesitantemente dos estábulos para tratar de seus
cavalos. Shagga não queria entregar o seu.
- O rapaz não roubará sua égua - garantiu-lhe Tyrion, - Só quer dar-
lhe um pouco de aveia e água, e escovar-lhe o pelo - o pelo de
Shagga também precisava de uma boa escovada, mas mencioná-lo
teria demonstrado pouco tato. - Tem a minha palavra, não farão mal
ao cavalo.
Irritado, Shagga largou as rédeas.
- Este é o cavalo de Shagga, filho de Dolf - rugiu para o cavalariço.
- Se ele não o devolver, arranca-lhe o membro viril e o dá de comer
às cabras - sugeriu Tyrion. - Desde que consiga encontrar alguma.
Um par de guardas domésticos, usando mantos carmesins e elmos
encimados por leões, encontrava-se sob a tabuleta da estalagem, de
ambos os lados da porta. Tyrion reconheceu o capitão.
- Meu pai?
- Na sala comum, senhor.
- Meus homens querem comer e beber - disse-lhe Tyrion. - Trata
disso - e entrou na estalagem, ali estava seu pai.
Tywin Lannister, Senhor de Rochedo Casterly e Protetor do Oeste,
tinha cinquenta e poucos anos, mas era duro como um homem de
vinte. Mesmo sentado, era alto, com pernas longas, ombros largos e
barriga lisa. Os braços finos estavam envolvidos por músculos.
Quando os cabelos dourados, antes espessos, começaram a cair,
ordenara ao barbeiro que lhe rapasse a cabeça; Lorde Tywin não
acreditava em meias medidas. Também escanhoava o queixo e o
bigode, mas conservava as suíças, dois grandes matagais de rijos
pelos dourados que lhe cobriam a maior parte das bochechas, das
orelhas à maxila. Os olhos eram verde-claros salpicados de ouro. Um
bobo mais tolo que a maioria certa vez dissera brincando que até a
merda de Lorde Tywin era salpicada de ouro. Havia quem dissesse
que o homem ainda estava vivo, enterrado bem fundo nas entranhas
de Rochedo Casterly.
Sor Kevan Lannister, o único irmão sobrevivente do pai, partilhava
um jarro de cerveja com Lorde Tywin quando Tyrion entrou na sala
comum. O tio era corpulento e estava perdendo cabelo, com uma
barba amarela cortada curta que seguia a linha do maciço maxilar.
Sor Kevan foi o primeiro a vê-lo.
- Tyrion - disse, surpreso.
- Tio - disse Tyrion, fazendo uma reverência. - E o senhor meu pai.
Que prazer encontrá-los aqui.
Lorde Tywin não se mexeu da cadeira, mas lançou ao filho anão um
longo olhar perscrutador,
- Vejo que os rumores sobre seu falecimento eram infundados.
- Lamento desapontá-lo, pai - disse Tyrion. - Não há necessidade de
saltar da cadeira e vir me abraçar, não desejo que se canse -
atravessou a sala até a mesa onde eles estavam, agudamente
consciente do modo como as pernas deformadas o faziam oscilar a
cada passo. Sempre que os olhos do pai caíam sobre ele, ficava
desconfortavelmente consciente de todas as suas deformidades e
imperfeições. - Foi amável de sua parte ir à guerra por mim - disse,
enquanto subia em uma cadeira e se servia de uma taça da cerveja
do pai,
- Segundo vejo as coisas, foi você quem começou isto - respondeu
Lorde Tywin. - Seu irmão Jaime nunca teria se submetido docilmente
a ser capturado por uma mulher.
- Esta é uma das coisas em que diferimos, Jaime e eu. Ele também é
mais alto, talvez tenha notado.
O pai ignorou o aparte.
- A honra da nossa Casa estava em causa. Não tive alternativa que
não fosse ir para a guerra. Ninguém derrama impunemente sangue
Lannister.
- Ouça-me rugir - disse Tyrion, sorrindo, as palavras Lannister. - A
bem da verdade, nenhuma gota do meu sangue chegou a ser
derramada, embora estivesse perto disso uma ou duas vezes, Morrec
e Jyck foram mortos.
- Suponho que vá querer novos homens.
- Não se incomode, pai, adquiri alguns homens meus - experimentou
um gole da cerveja. Era marrom e cheia de levedura, tão espessa que
quase se conseguia mastigá-la, Muito boa, realmente. Uma pena que
o pai tivesse enforcado a estalajadeira. - Como anda a sua guerra?
Foi o tio quem respondeu.
- Bastante bem, até aqui. Sor Edmure tinha espalhado pequenas
companhias ao longo das fronteiras para parar as nossas incursões, e
o senhor seu pai e eu conseguimos destruir, pouco a pouco, a maior
parte antes que conseguissem se reagrupar.
- Seu irmão tem se coberto de glória - disse o pai. - Esmagou os
lordes Vance e Piper no Dente Dourado e defrontou o poderio
conjunto dos Tully à sombra das muralhas de Correrrio. Os senhores
do Tridente foram postos em fuga. Sor Edmure Tully foi feito cativo,
com muitos de seus cavaleiros e vassalos. Lorde Blackwood levou
alguns sobreviventes para Correrrio, onde Jaime os tem sob cerco. O
resto fugiu para suas próprias terras.
- Seu pai e eu temos vindo marchando contra um deles de cada vez -
disse Sor Kevan. -Com Lorde Blackwood fora. Corvarbor caiu de
imediato, e a Senhora Whent rendeu Harrenhal por falta de homens
para defender o castelo. Sor Gregor incendiou os Piper e os
Bracken..
- Deixando-os sem oposição? - disse Tyrion.
- Não totalmente - disse Sor Kevan. - Os Mallister ainda detêm
Guardamar e Walder Frey põe em ordem seus recrutas nas Gêmeas.
- Não importa - disse Lorde Tywin. - Frey só se põe em campo
quando o cheiro da vitória paira no ar, e tudo o que cheira agora é a
ruína. E a Jason Mallister falta força para lutar sozinho. Uma vez
tomado Correrrio por Jaime, ambos dobrarão o joelho bastante
depressa. A menos que os Stark e os Arryn avancem para nos
confrontar, esta guerra está ganha.
- Não me preocuparia muito com os Arryn se estivesse em seu lugar
- disse Tyrion. - Os Stark são outra coisa. Lorde Eddard. .
- ... é nosso refém - disse o pai. - Não comandará exércitos enquanto
apodrece numa masmorra sob a Fortaleza Vermelha.
- Não - concordou Sor Kevan -, mas o filho convocou os vassalos e
está em Fosso Cailin com uma tropa forte em volta dele.
- Nenhuma espada é forte até ser temperada - declarou Lorde Tywin.
- O rapaz Stark é uma criança. Sem dúvida que gosta bastante do
som das trombetas de guerra e de ver suas bandeiras esvoaçarem ao
vento, mas, no fim das contas, tudo se resume a trabalho de
carniceiro. Duvido que tenha estômago para tanto.
Tyrion pensou que as coisas tinham se tornado interessantes
enquanto estivera longe.
- E o que faz nosso destemido monarca enquanto todo este "trabalho
de carniceiro" se desenrola? - quis saber. - Como foi que minha
adorável e persuasiva irmã levou Robert a concordar com o
aprisionamento de seu querido amigo Ned?
- Robert Baratheon está morto - seu pai respondeu. - Seu sobrinho
reina em Porto Real. Aquilo apanhou mesmo Tyrion de surpresa.
- Minha irmã, quer dizer - bebeu outro gole de cerveja., O reino seria
um lugar muito diferente com Cersei a governar no lugar do marido.
- Se tem intenção de se tornar útil, dou-lhe um comando - seu pai
continuou. - Marq Piper e Karyl Vance andam à solta na nossa
retaguarda, saqueando as terras ao longo do Ramo Vermelho.
Tyrion soltou um tsc.
- Que descaramento deles responder lutando. Em circunstâncias
normais, ficaria feliz por punir tanta falta de educação, pai, mas a
verdade é que tenho negócios mais prementes em outro local.
- Ah, sim? - Lorde Tywin não parecia surpreso. - Também temos um
par de ideias tardias de Ned Stark que tentam se tornar uma maçada
atormentando meus destacamentos logísticos, Beric Dondarrion, um
jovem fidalgote qualquer com ilusões de valor. Tem com ele aquela
caricatura gorda de um sacerdote, aquele que gosta de pôr fogo na
espada. Acha que poderia tratar deles enquanto foge? Sem estragar
demais o serviço?
Tyrion limpou a boca com as costas da mão e sorriu.
-Pai, aquece-me o coração pensar que poderia me confiar... o quê,
vinte homens? Cinquenta? Está seguro de poder dispensar tantos
assim? Bem, não importa. Se encontrar Thoros e Lorde Beric,
espancarei ambos - desceu da cadeira e bamboleou até o aparador,
onde uma rodela de queijo fresco raiado estava rodeada de frutas. -
Mas primeiro tenho algumas promessas minhas a cumprir - disse,
enquanto cortava um pedaço. - Preciso de três mil elmos e outras
tantascamisas de cota de malha, mais espadas, lanças, pontas de
lança em aço, maças, machados de batalha, manoplas, gorjais, grevas,5
placas de peito, carroças para transportar isso tudo...
A porta atrás dele abriu-se com estrondo, tão violentamente que
Tyrion quase deixou cair o queijo. Sor Kevan saltou do banco,
praguejando, enquanto o capitão da guarda atravessou a sala voando
e foi de encontro à lareira. Enquanto caía sobre as cinzas frias, com o
elmo de leão torto, Shagga partiu a espada do homem em duas num
joelho grosso como um tronco de árvore, atirou os pedaços ao chão
e entrou pesadamente na sala comum. Foi precedido pelo fedor que
exalava, mais forte que o do queijo e avassalador naquele espaço
fechado,
- Pequeno capa-vermelha - rosnou - da próxima vez que
desembainhar o aço contra Shagga, filho de Dolf, cortarei seu
membro viril e o assarei numa fogueira.
- O quê? Nada de cabras? - disse Tyrion, dando uma dentada no
queijo.
Os outros homens dos clãs seguiram Shagga para a sala comum, com
Bronn entre eles. O mercenário encolheu tristemente os ombros na
direção de Tyrion.
- E quem são vocês? - perguntou Lorde Tywin, frio como a neve.
- Seguiram-me até em casa, pai - explicou Tyrion. - Posso ficar com
eles? Não comem muito. Ninguém estava sorrindo.
5 Partes da armadura que recobrem as pernas, do joelho para baixo.
- Com que direito, seus selvagens, se intrometem em nossos
concílios? - exigiu saber Sor Kevan.
- Selvagens, homem das planícies? - Cronn bem poderia se parecer
com um se estivesse lavado. - Somos homens livres, e os homens
livres, por direito, tomam parte em todos os concílios de guerra.
- Qual deles é o senhor dos leões? - perguntou Chella.
- São os dois velhos - anunciou Timett, filho de Timett, que ainda
não tinha visto seu vigésimo ano.
A mão de Sor Kevan caiu sobre o cabo da espada, mas o irmão
pousou dois dedos em seu pulso e o segurou. Lorde Tywin parecia
imperturbável.
- Tyrion, esqueceu a boa educação? Seja amável e nos apresente os
nossos... honrados hóspedes.
Tyrion lambeu os dedos.
- Com prazer - respondeu. - A bela donzela é Chella, filha de Cheyk,
dos Orelhas Negras.
- Não sou donzela coisa nenhuma - protestou Chella. - Meus filhos já
somam ao todo cinquenta orelhas.
- Que somem outras cinquenta - Tyrion bamboleou para longe dela.
- Este é Cronn, filho de Coratt. Shagga, filho de Dolf, é aquele que se
parece com um Rochedo Casterly de cabelos. São Corvos de Pedra.
Aqui está Ulf, filho de Umar, dos Irmãos da Lua, e aqui, Timett, filho
de Timett, Mão Vermelha dos Homens Queimados. E este é Bronn,
um mercenário sem nenhuma fidelidade em especial. Já mudou de
lado duas vezes no breve período em que o conheço; o senhor e ele
vão se entender maravilhosamente, pai - para Bronn e para os
homens dos clãs, disse: - Apresento-lhes o senhor meu pai, Tywin,
filho de Tytos, da Casa Lannister, Senhor de Rochedo Casterly,
Protetor do Oeste, Escudo de Lannisporto, e antiga e futura Mão do
Rei.
Lorde Tywin ergueu-se, digno e correto.
- Mesmo no Oeste conhecemos a intrepidez dos clãs guerreiros das
Montanhas da Lua. Que os traz do alto de suas terras, senhores?
- Cavalos - disse Shagga.
- A promessa de seda e aço - disse Timett, filho de Timett.
Tyrion se preparara para contar ao senhor seu pai como propunha
reduzir o Vale de Arryn a um deserto fumegante, mas não lhe foi
dada essa possibilidade. A porta abriu-se de novo com estrondo. O
mensageiro deu uma olhadela rápida e estranha aos homens dos clãs
de Tyrion enquanto caía sobre o joelho perante Lorde Tywin.
- Senhor, Sor Addam pede-me para avisar que a tropa Stark desce
pelo talude.
Lorde Tywin Lannister não sorriu. Ele nunca sorria, mas Tyrion
aprendera a ler o prazer do pai mesmo assim, e ele ali estava, em seu
rosto.
- Então o lobinho está deixando a toca para vir brincar entre os leões
- disse, numa voz de calma satisfação. - Magnífico. Regresse para
junto de Sor Addam e diga-lhe para se retirar. Não deverá dar
combate aos nortenhos até chegarmos, mas quero que lhes
atormente os flancos e os atraia mais para o sul.
- Será feito conforme ordena - o mensageiro respondeu e se retirou.
- Aqui estamos bem situados - fez notar Sor Kevan. - Perto do rio
raso e rodeados de fossos e lanças. Se vierem para o sul, pois que
venham e se quebrem contra nós.
- O rapaz pode esperar ou perder a coragem quando vir nossos
números - respondeu Lorde Tywin. - Quanto mais depressa
quebrarmos os Stark, mais depressa estarei livre para lidar com
Stannis Baratheon. Que rufem os tambores para o agrupamento, e
envie uma mensagem a Jaime dizendo-lhe que marcho contra Robb
Stark.
- Às suas ordens - disse Sor Kevan.
Tyrion observou com um fascínio sombrio quando o senhor seu pai
se virou em seguida para os meio selvagens homens dos clãs.
- Dizem que os homens dos clãs de montanha são guerreiros sem
medo.
- Dizem a verdade - respondeu Cronn, dos Corvos de Pedra.
- E as mulheres também - acrescentou Chella.
- Acompanhem-me contra os meus inimigos e terão tudo o que meu
filho lhes prometeu, e mais ainda - disse-lhes Lorde Tywin.
- Pagará com a nossa própria moeda? - disse Ulf, filho de Umar. -
Por que necessitaríamos da promessa do pai, quando temos a do
filho?
- Nada disse sobre necessidade - respondeu Lorde Tywin. - Minhas
palavras eram uma cortesia, nada mais. Não precisam se juntar a nós.
Os homens das terras de inverno são feitos de ferro e gelo, e até
meus cavaleiros mais corajosos temem defrontá-los.
Ah, mas que habilidade, pensou Tyrion, com um sorriso torto.
- Os Homens Queimados nada temem. Timett, filho de Timett,
acompanhará os leões.
- Onde quer que os Homens Queimados forem, os Corvos de Pedra
estarão lá primeiro - declarou acaloradamente Cronn. - Também
vamos.
- Shagga, filho de Dolf, lhes cortará os órgãos viris e os dará de
comer aos corvos.
- Vamos acompanhá-lo, senhor leão - concordou Chella, filha de
Cheyk -, mas só se seu filho meio-homem vier conosco. Comprou o
ar que respira com promessas. Até termos o aço que nos prometeu,
sua vida nos pertence.
Lorde Tywin virou os olhos semeados de ouro para o filho.
- Alegria - disse Tyrion com um sorriso resignado.
Sansa
As paredes da sala do trono tinham sido desnudadas, removeram-se
as tapeçarias com cenas de caça que o Rei Robert adorava,
amontoadas a um canto, numa pilha desordenada. Sor Mandon
Moore tomou seu lugar sob o trono ao lado de dois de seus
companheiros da Guarda Real. Sansa permaneceu perto da porta,
pela primeira vez sem ser guardada. A rainha lhe tinha dado
liberdade de castelo como recompensa por se comportar bem, mas
mesmo assim era escoltada para todo lado. "Guardas de honra para
minha futura filha", chamava-os a rainha, mas não faziam com que
Sansa se sentisse honrada.
"Liberdade de castelo" significava que podia ir aonde quisesse dentro
da Fortaleza Vermelha, desde que prometesse não atravessar suas
muralhas, uma promessa que Sansa estivera mais que disposta a
fazer. Fosse como fosse, não poderia ter atravessado as muralhas. Os
portões eram vigiados dia e noite pelos homens de manto dourado
de Janos Slynt, e também havia sempre por perto guardas da Casa
Lannister. Além disso, mesmo se pudesse sair do castelo, para onde
iria? Bastava que pudesse andar pelo pátio, apanhar flores no jardim
de Myrcella e visitar o septo para rezar pelo pai. Às vezes, rezava
também no bosque sagrado, visto que os Stark eram fiéis aos velhos
deuses.
Aquela era a primeira audiência do reinado de Joffrey, e Sansa olhou
nervosamente em volta. Uma fileira de guardas Lannister alinhava-se
sob as janelas ocidentais e uma fileira de Patrulheiros da Cidade de
mantos dourados, sob as orientais. De plebeus e gente comum não
viu sinal, mas, sob a galeria, um aglomerado de grandes e pequenos
senhores andava incansavelmente em círculos. Não eram mais de
vinte, quando uma centena costumava esperar pelo Rei Robert.
Sansa deslizou entre eles, murmurando saudações enquanto abria
caminho para a frente. Reconheceu a pele negra de Jalabhar Xho, o
sombrio Sor Aron Santagar, os irmãos Redwyne, Horror e Babeiro...,
mas nenhum deles pareceu reconhecê-la. Ou, se o fizeram,
esquivaram-se como se tivesse a praga cinzenta. O enfermiço Lorde
Gyles cobriu o rosto quando ela se aproximou e fingiu um ataque de
tosse, e quando o engraçado e ébrio Sor Dontos começou a saudá-la,
Sor Balon Swann segredou-lhe ao ouvido e ele se virou.
E havia tantos outros que não estavam ali. Sansa perguntou a si
mesma para onde teriam ido. Em vão, procurou rostos amistosos.
Nem um lhe sustentou o olhar. Era como se tivesse se transformado
em fantasma, morta antes da hora.
O Grande Meistre Pycelle estava sentado, sozinho, à mesa do
conselho, aparentemente adormecido, com as mãos apertadas sobre a
barba. Viu Lorde Varys entrar às pressas na sala, sem fazer o mínimo
som com os pés. Um momento mais tarde, Lorde Baelish entrou
pelas grandes portas sorrindo. Conversou amigavelmente com Sor
Balon e Sor Dontos enquanto abria caminho para a frente.
Borboletas esvoaçaram nervosamente dentro da barriga de Sansa.
Não devia ter medo, repreendeu-se. Não tenho nada a temer, tudo
ficará bem,Jojf me ama e a rainha também, foi ela quem disse. A voz
de um arauto ressoou.
- Saúdem Sua Graça, Joffrey das Casas Baratheon e Lannister, o
Primeiro de Seu Nome, Rei dos Ândalos, dos Roinares e dos
Primeiros Homens e Senhor dos Sete Reinos. Saúdem a senhora sua
mãe, Cersei da Casa Lannister, Rainha Regente, Luz do Oeste e
Protetora do Território,
Sor Barristan Selmy, resplandecente em sua armadura branca, entrou
à frente deles. Sor Arys Oakheart escoltava a rainha, ao passo que
Sor Borós Blount caminhava ao lado de Joffrey; portanto, estavam
agora na sala seis dos membros da Guarda Real, todas as Espadas
Brancas, menos Jaime Lannister. Seu príncipe - não, agora era seu
rei! - subiu de dois em dois os degraus até o Trono de Ferro,
enquanto a mãe se sentava com o conselho. Joffrey vestia pelúcia de
veludo negro rasgado de carmim, uma capa de colarinho alto, de
tecido cintilante de ouro, e na cabeça tinha uma coroa dourada
incrustada de rubis e diamantes negros.
Quando Joffrey se virou para olhar para a sala, os olhos
encontraram-se com os de Sansa. Sorriu, sentou-se, e falou.
- É dever de um rei punir os desleais e recompensar os fiéis. Grande
Meistre Pycelle, ordeno que leia meus decretos.
Pycelle pôs-se em pé. Vestia uma magnífica toga de grosso veludo
vermelho, com um colarinho de arminho e brilhantes presilhas
douradas. Retirou um pergaminho da manga pendente, pesada com
arabescos dourados, e começou a ler uma longa lista de nomes,
ordenando a todos, em nome do rei e do conselho, que se
apresentassem e jurassem lealdade a Joffrey. Caso não o fizessem,
seriam declarados traidores e teriam suas terras e títulos confiscados
pela coroa.
Os nomes que leu fizeram Sansa prender a respiração. Lorde Stannis
Baratheon, a senhora sua esposa e sua filha. Lorde Renly Baratheon.
Ambos os lordes Royce e seus filhos. Sor Loras Tyrell. Lorde Mace
Tyrell, seus irmãos, tios e filhos. O sacerdote vermelho, Thoros de
Myr. Lorde Beric Dondarrion. Senhora Lysa Arryn e o filho, o
pequeno Lorde Robert. Lorde Hoster Tully, o irmão, Sor Brynden, e o
filho, Sor Edmure. Lorde Jason Mallister. Lorde Bryce Caron, da
Marca. Lorde Tytos Blackwood. Lorde Walder Frey e o herdeiro, Sor
Stevron. Lorde Karyl Vance. Lorde Jonos Bracken, A Senhora Sheila
Whent. Doran Martell, Príncipe de Dorne, e todos os seus filhos.
Tantos, pensou, enquanto Pycelle continuava a ler, que será preciso
um bando inteiro de corvos para enviar estas ordens.
E por fim, quase em último, chegaram os nomes que Sansa temia. A
Senhora Catelyn Stark. Robb Stark. Brandon Stark, Rickon Stark,
Arya Stark. Sansa abafou um arquejo. Arya. Queriam que Arya se
apresentasse e fizesse um juramento... isto significava que a irmã
tinha fugido na galé, já devia estar a salvo em Winterfell...
O Grande Meistre Pycelle enrolou a lista, enfiou-a na manga
esquerda e retirou outro pergaminho da direita. Limpou a garganta e
prosseguiu.
- No lugar do traidor Eddard Stark, é desejo de Sua Graça que Tywin
Lannister, Senhor de Rochedo Casterly e Protetor do Oeste, ocupe o
posto de Mão do Rei, para falar com a sua voz, liderar os seus
exércitos contra os seus inimigos e pôr em prática a sua real
vontade. Assim decretou o rei. O pequeno conselho consente. No
lugar do traidor Stannis Baratheon, é desejo de Sua Graça que a
senhora sua mãe, a Rainha Regente Cersei Lannister, que sempre foi
a sua mais dedicada apoiadora, se sente no seu pequeno conselho,
para que possa ajudá-lo a governar sabiamente e com justiça. Assim
decretou o rei. E o pequeno conselho consente.
Sansa ouviu murmúrios dos senhores que a rodeavam, mas foram
rapidamente abafados. Pycelle prosseguiu.
- E também desejo de Sua Graça que o seu leal servidor, Janos Slynt,
Comandante da Patrulha da Cidade de Porto Real, seja de imediato
promovido à categoria de lorde e que lhe seja atribuído o antigo
domínio de Harrenhal com todas as suas terras e rendimentos, e que
seus filhos e netos mantenham essas honrarias após a sua morte e
até o fim dos tempos. Ordena ainda que Lorde Slynt se sente
imediatamente no seu pequeno conselho, para ajudar no governo do
reino. Assim decretou o rei. E o pequeno conselho consente.
Sansa detectou movimento pelo canto do olho quando Janos Slynt
fez sua entrada. E então os murmúrios foram mais sonoros e mais
zangados. Senhores orgulhosos, cujas casas remontavam há milhares
de anos, abriram relutantemente caminho ao plebeu meio careca
com cara de sapo que passava por eles. Escamas douradas tinham
sido cosidas ao veludo negro de seu gibão e ressoavam suavemente a
cada passo. O manto era de cetim xadrez, negro e ouro. Dois rapazes
feios, que deviam ser seus filhos, caminhavam à sua frente, lutando
com o peso de um sólido escudo de metal tão alto como eles. Como
símbolo tinha escolhido uma lança ensanguentada, de ouro em
campo negro como a noite. Ao vê-la, Sansa sentiu arrepios.
Enquanto Lorde Slynt tomava seu lugar, o Grande Meistre Pycelle
prosseguiu:
- Por fim, nestes tempos de traição e perturbação, com o nosso
querido Robert tão recentemente morto, é opinião do conselho que a
vida e a segurança do Rei Joffrey é de suprema importância.. - olhou
para a rainha.
Cersei pôs-se em pé.
- Sor Barristan Selmy, apresente-se.
Sor Barristan tinha estado na base do Trono de Ferro, tão imóvel
como uma estátua, mas agora caía sobre o joelho e inclinava a
cabeça.
- Vossa Graça, estou às suas ordens.
- Erga-se, Sor Barristan - disse Cersei Lannister. - Pode tirar o elmo.
- Senhora? - erguendo-se, o velho cavaleiro tirou o grande elmo
branco, embora não parecesse compreender por quê.
- Tem servido o reino longa e fielmente, meu bom sor, e todos os
homens e mulheres nos Sete Reinos lhe devem agradecimentos. Mas,
agora, temo que seu serviço esteja no fim. É desejo do rei e do
conselho que se alivie do seu pesado fardo.
- O meu... fardo? Temo que... que não...
O recém-nomeado lorde, Janos Slynt, falou com a voz pesada e
brusca.
- Sua Graça está tentando dizer que está demitido do posto de
Senhor Comandante da Guarda Real.
O alto cavaleiro de cabelos brancos pareceu encolher, ali, em pé,
quase sem respirar.
- Vossa Graça - disse por fim. - A Guarda Real é uma Irmandade
Juramentada. Nossos votos são feitos para a vida. Só a morte pode
demitir o Senhor Comandante de sua responsabilidade sagrada.
- A morte de quem, Sor Barristan? - a voz da rainha era suave como
seda, mas as palavras soaram em todo o salão. - A sua, ou a do seu
rei?
- O senhor deixou meu pai morrer - disse Joffrey acusadoramente de
cima do Trono de Ferro. - É velho demais para proteger alguém.
Sansa viu o cavaleiro olhar para seu novo rei. Nunca como agora o
vira aparentar a idade que tinha.
- Vossa Graça - disse. - Fui escolhido para as Espadas Brancas no
meu vigésimo terceiro ano. Sempre sonhara com isso, desde o
primeiro momento em que empunhei uma espada. Renunciei a
qualquer pretensão à minha fortaleza ancestral. A donzela com quem
ia me casar desposou meu primo, eu não tinha falta de terras ou
filhos, viveria pelo reino. Foi o próprio Sor Gerold Hightower quem
me ouviu os votos... de proteger o rei com todas as minhas forças..
de dar meu sangue pelo dele... Lutei ao lado do Touro Branco e do
Príncipe Lewyn de Dorne.. ao lado de Sor Arthur Dayne, a Espada da
Manhã. Antes de servir vosso pai, ajudei a proteger o Rei Aerys, e
antes dele o pai, Jaehaerys... três reis...
- E todos estão mortos - Mindinho fez notar.
- Seu tempo acabou - anunciou Cersei Lannister. - Joffrey precisa de
homens jovens e fortes ao seu redor. O conselho decidiu que Sor
Jaime Lannister tome o seu lugar como Senhor Comandante dos
Irmãos Juramentados das Espadas Brancas.
- O Regicida - disse Sor Barristan, com a voz dura de desprezo. - O
falso cavaleiro que profanou sua lâmina com o sangue do rei que
jurara defender.
- Tenha cuidado com o que diz, senhor - avisou a rainha. - Fala do
nosso amado irmão, do sangue do seu rei.
Lorde Varys falou, mais suavemente que os outros.
- Não esquecemos os seus serviços, meu bom senhor. Lorde Tywin
Lannister concordou generosamente em lhe conceder um bom trecho
de terras ao norte de Lannisporto, junto ao mar, com ouro e homens
suficientes para construir uma robusta fortaleza e criados para lhe
satisfazer todas as necessidades.
Sor Barristan ergueu vivamente os olhos.
- Um salão onde morrer, e homens para me enterrar. Agradeço-lhes,
senhores... mas escarro na sua piedade - ergueu as mãos e abriu as
fivelas que mantinham o manto no lugar, e o pesado pano branco
deslizou-lhe dos ombros e foi cair num monte, no chão. Seu capacete
caiu com um clang. - Sou um cavaleiro - disse-lhes. Abriu as
presilhas de prata da placa de peito e também a deixou cair. -
Morrerei como cavaleiro.
- Um cavaleiro nu, aparentemente - observou Mindinho.
Todos riram, Joffrey de seu trono, os senhores presentes, Janos Slynt,
a Rainha Cersei e San-dor Clegane, e mesmo os outros homens da
Guarda Real, os cinco que tinham sido seus irmãos até um momento
antes. Certamente que isso deve ter sido o que mais magoou, pensou
Sansa. Seu coração compadeceu-se do galante senhor, que ali estava
envergonhado e corado, zangado demais para falar. Por fim, puxou a
espada.
Sansa ouviu alguém ofegar. Sor Borós e Sor Meryn avançaram para
enfrentá-lo, mas Sor Barristan congelou-os no lugar com um olhar
que pingava desprezo.
- Nada temam, senhores, vosso rei está a salvo... mas não graças a
vocês. Mesmo agora, poderia abrir caminho através dos cinco tão
facilmente como um punhal corta o queijo. Se aceitam servir às
ordens do Regicida, então nem um é digno de usar o branco - atirou
a espada aos pés do Trono de Ferro. - Tome, rapaz. Funda-a e junte-
a às outras, se quiser. Fará melhor serviço que as espadas nas mãos
destes cinco. Talvez calhe que Lorde Stannis se sente em cima dela
quando lhe tomar o trono.
Atravessou toda a sala para sair, com os passos ressoando
ruidosamente no chão, arrancando ecos das paredes de pedra nua.
Senhores e senhoras abriram alas para ele passar. Sansa só voltou a
ouvir sons depois de os pajens fecharem as grandes portas de
carvalho e bronze às suas costas: vozes baixas, movimentos
incomodados, o rumor de papéis vindo da mesa do conselho.
- Ele me chamou de rapaz - disse Joffrey em tom rabugento, soando
mais novo do que era.
- E também falou de meu tio Stannis.
- Conversa fiada - disse Varys, o eunuco. - Sem significado...
- Pode estar conspirando com meus tios. Quero-o capturado e
interrogado - ninguém se moveu. Joffrey ergueu a voz. - Eu disse que
o quero capturado!
Janos Slynt levantou-se da mesa do conselho.
- Meus homens tratarão disso, Vossa Graça.
- Ótimo - disse o Rei Joffrey. Lorde Janos saiu do salão, com os filhos
feios correndo para acompanhar seu passo enquanto arrastavam com
dificuldade o grande escudo de metal com as armas da Casa Slynt.
- Vossa Graça - relembrou Mindinho ao rei. - Se pudéssemos
recomeçar, os sete são agora seis. Falta-nos uma nova espada para a
Guarda Real.
Joffrey sorriu.
- Diga-lhes, mãe.
- O rei e o conselho decidiram que não há homem nos Sete Reinos
mais capaz de guardar e proteger Sua Graça do que o seu escudo
juramentado, Sandor Clegane.
- Que acha disso, Cão? - perguntou o Rei Joffrey.
Era difícil ler o rosto cheio de cicatrizes de Cão de Caça, que levou
um longo momento refletindo.
- E por que não? Não tenho terras nem esposa para deixar, e quem
se importaria se tivesse?
- o lado queimado da boca retorceu-se. - Mas aviso que não farei
votos de cavaleiro.
- Os Irmãos Juramentados da Guarda Real sempre foram cavaleiros -
disse firmemente Sor Borós.
- Até agora - disse Cão de Caça na sua profunda voz áspera, e Sor
Borós calou-se. Quando o arauto do rei avançou, Sansa compreendeu
que o momento tinha quase chegado.
Alisou nervosamente o tecido da saia. Estava vestida de luto, em sinal
de respeito pelo rei morto, mas tinha tido especial cuidado em ficar
bela. O vestido era o de seda cor de marfim que a rainha lhe dera,
aquele que Arya estragara, mas havia mandado tingir de negro e não
era possível ver a mancha. Levara horas atormentada com as jóias, e
por fim decidira-se pela elegante simplicidade de uma corrente de
prata sem adornos. A voz do arauto retumbou.
- Se algum homem neste salão tem outros assuntos para colocar a
Sua Graça, que fale agora ou se mantenha em silêncio.
Sansa vacilou. Agora, disse a si mesma, tenho de fazê-lo agora. Que
os deuses me dêem coragem. Deu um passo, depois outro. Senhores
e cavaleiros afastaram-se silenciosamente para deixá-la passar, e
sentiu o peso daqueles olhos em cima de si. Tenho de ser tão forte
como a senhora minha mãe.
- Vossa Graça - chamou, numa voz suave e trêmula.
A altura do Trono de Ferro dava a Joffrey uma visão melhor que a
qualquer outro dos presentes no salão. Foi o primeiro a vê-la.
- Avance, senhora - disse, sorrindo.
O sorriso dele a encorajou, a fez sentir-se bela e forte. Ele me ama
mesmo, ama mesmo. Sansa ergueu a cabeça e caminhou em sua
direção, nem devagar nem depressa demais. Não podia deixá--los ver
como estava nervosa.
- A Senhora Sansa, da Casa Stark - gritou o arauto.
Parou sob o trono, no lugar onde o manto branco de Sor Barristan
estava amontoado no chão, ao lado de seu elmo e sua placa de peito.
- Tem algum assunto para o rei e o conselho, Sansa? - perguntou a
rainha da mesa do conselho.
- Tenho - ajoelhou-se sobre o manto, para não estragar o vestido, e
olhou para seu príncipe naquele temível trono negro. - Se for desejo
de Vossa Graça, peço misericórdia para meu pai, Lorde Eddard Stark,
que foi Mão do Rei - treinara as palavras uma centena de vezes.
A rainha suspirou.
- Sansa, você me desilude. O que lhe disse a respeito do sangue do
traidor?
- Seu pai cometeu graves e terríveis crimes, senhora - entoou o
Grande Meistre Pycelle,
- Ah, pobre coisinha triste - suspirou Varys. - Não é mais que uma
criança inocente, senhores, não sabe o que está pedindo.
Sansa só tinha olhos para Joffrey. Ele tem de me ouvir, tem de me
ouvir, pensou. O rei mudou de posição.
- Deixe-a falar - ordenou, - Quero ouvir o que ela diz.
- Obrigada, Vossa Graça - Sansa sorriu, um tímido sorriso secreto, só
para ele. Ele estava ouvindo. Ela sabia que ouviria.
- A traição é uma erva daninha - declarou solenemente Pycelle. -
Tem de ser arrancada, raiz, caule e semente, para que novos
traidores não nasçam na beira de cada estrada.
- Nega o crime de seu pai? - perguntou Lorde Baelish.
- Não, senhores - Sansa não era assim tão tola. - Sei que ele deve ser
punido. Tudo o que peço é misericórdia. Sei que o senhor meu pai
deve se arrepender do que fez. Era amigo do Rei Robert, e adorava-o,
todos sabem que o adorava. Nunca quis ser Mão até que o rei lhe
pediu. Devem ter mentido para ele. Lorde Renly, ou Lorde Stannis,
ou... ou alguém, devem ter mentido, de outra forma...
O Rei Joffrey inclinou-se para a frente, com as mãos agarrando os
braços do trono. Pontas de espadas quebradas projetaram-se entre
seus dedos.
- Ele disse que eu não era o rei. Por que ele disse isso?
- Tinha a perna quebrada - respondeu ansiosamente Sansa. - Doía
tanto que Meistre Pycelle dava-lhe leite da papoula, e dizem que o
leite da papoula enche a cabeça de nuvens. De outra forma, nunca o
teria dito.
Varys disse:
- A fé de uma criança... que doce inocência.. e, no entanto, dizem
que a sabedoria surge frequentemente das bocas dos inexperientes.
- Traição é traição - Pycelle respondeu imediatamente. Joffrey
agitava-se no trono.
- Mãe?
Cersei Lannister avaliou Sansa pensativamente.
- Se Lorde Eddard confessasse seu crime - acabou por dizer -,
saberíamos que se arrependeu da sua loucura.
Joffrey pôs-se em pé. Por favor, pensou Sansa, por favor, por favor,
seja o rei que sei que é, bom, amável e nobre, por favor.
- Tem algo mais a dizer? - perguntou-lhe.
- Só que.. se me ama, concede-me esta gentileza, meu príncipe - ela
disse. O Rei Joffrey olhou-a de cima a baixo.
- Suas doces palavras me comoveram - disse galantemente, acenando,
como que dizendo que tudo ficaria bem. - Farei como pede.. Mas
primeiro seu pai tem de confessar. Tem de confessar e dizer que eu
sou o rei, ou não haverá misericórdia para ele.
- Ele o fará - disse Sansa, com o coração aos saltos. - Ah, eu sei que
o fará.
Eddard
A palha no chão fedia a urina. Não havia janela, nem cama, nem
mesmo um balde para os dejetos. Lembrava-se de paredes de pedra
vermelho-clara, respingadas com manchas de salitre, uma porta cinza
de madeira rachada, com dez centímetros de espessura e reforçada
com ferro. Vira esses detalhes num rápido relance enquanto o
atiravam lá. Depois de a porta ser fechada com estrondo, nada mais
vira. A escuridão era absoluta. Era como se estivesse cego. Ou morto.
Enterrado com o seu rei.
- Ah, Robert - murmurou enquanto a mão apalpava uma parede fria
de pedra, com a perna latejando a cada movimento. Recordou a
brincadeira do rei nas criptas de Winterfell, enquanto os Reis do
Inverno os olhavam com frios olhos de pedra. O rei come, dissera
Robert, e a Mão recolhe a merda. Como ele rira. Mas enganara-se. O
rei morre, pensou Ned Stark, e a Mão é enterrada.
A masmorra ficava sob a Fortaleza Vermelha, mais fundo do que se
atrevia a imaginar. Lembrava-se das velhas histórias sobre Maegor, o
Cruel, que assassinara todos os pedreiros que tinham trabalhado em
seu castelo para que nunca pudessem revelar os seus segredos.
Maldizia-os a todos: Mindinho, Janos Slynt e seus homens, a rainha, o
Regicida, Pycelle, Varys e Sor Barristan, até Lorde Renly, do próprio
sangue de Robert, que fugira quando era mais necessário. Mas, no
fim das contas, culpava-se a si próprio.
- Estúpido - gritou para a escuridão -, três vezes maldito, cego e
estúpido.
O rosto de Cersei Lannister pareceu flutuar à sua frente na
escuridão. Tinha os cabelos cheios de sol, mas havia troça no sorriso.
"Quando se joga o jogo dos tronos, ganha-se ou morre", sussurrou.
Ned jogara e perdera, e seus homens tinham pagado o preço da sua
loucura com o sangue de suas vidas.
Quando pensou nas filhas, teria chorado de bom grado, mas as
lágrimas não vinham. Mesmo agora, era um Stark de Winterfell, e a
dor e a raiva congelavam dentro dele,
Se se mantivesse muito quieto, a perna não doía tanto, por isso fez o
que pôde para permanecer imóvel. Não saberia dizer durante quanto
tempo. Não havia sol nem lua, Não conseguia enxergar para fazer
marcas nas paredes. Ned fechou e abriu os olhos; não havia
diferença. Adormeceu, acordou e voltou a adormecer. Não sabia o
que era mais doloroso, se estar acordado ou dormindo. Quando
dormia, sonhava, sonhos escuros e perturbadores sobre sangue e
promessas quebradas. Quando acordava, nada havia a fazer a não ser
pensar, e os pensamentos despertos eram piores que pesadelos.
Pensar em Cat era tão doloroso como uma cama de urtigas. Pergun-
tava a si mesmo onde ela poderia estar, o que estaria fazendo.
Perguntava-se se voltaria a vê-la.
As horas transformaram-se em dias, ou pelo menos era o que
parecia. Sentia uma dor surda na perna quebrada, uma comichão por
baixo do gesso. Quando tocava a coxa, sentia a pele quente. O único
som era o de sua respiração. Após algum tempo, começou a falar em
voz alta, só para ouvir uma voz. Fez planos para se manter são,
construiu castelos de esperança na escuridão. Os irmãos de Robert
andavam pelo mundo, recrutando exércitos em Pedra do Dragão e
em Ponta Tempestade. Alyn e Harwin regressariam a Porto Real com
o resto de sua guarda depois de tratarem de Sor Gregor. Catelyn
rebelaria o Norte quando as notícias lhe chegassem, e os senhores do
rio, da montanha e do Vale se juntariam a ela.
Deu por si a pensar cada vez mais em Robert. Via o rei como ele
fora na flor da juventude, alto e bonito, com o grande elmo
guarnecido de chifres na cabeça, de machado de guerra na mão,
montado no cavalo como um deus cornudo. Ouviu seu riso na
escuridão, viu seus olhos, azuis e cristalinos como lagos de
montanha. "Olha para nós, Ned" disse Robert. "Deuses, como chega-
mos a isto? Você aqui e eu morto por um porco. Conquistamos
juntos um trono..."
Falhei com você, Robert, pensou Ned. Não podia dizer aquelas
palavras. Menti, escondi a verdade. Deixei que te matassem.
O rei o ouviu. "Seu pateta de pescoço duro", murmurou, "orgulhoso
demais para escutar. Pode-se comer orgulho, Stark? Será que a honra
protege seus filhos?" Rachaduras correram pelo rosto, fissuras que se
abriam na carne, e ele ergueu a mão e arrancou a máscara, Não era
Robert; era Mindinho, sorrindo, zombando dele. Quando abriu a
boca para falar, as mentiras transformaram-se em mariposas
cinzentas, quase brancas, e levantaram vôo.
Ned estava meio adormecido quando ouviu passos, A princípio
pensou que fosse sonho; passara-se tanto tempo desde que ouvira
algo mais que o som da própria voz. Ned sentia-se febril, com a
perna transformada em uma agonia surda e os lábios secos e
rachados. Quando a pesada porta de madeira abriu com um rangido,
a súbita luz fez seus olhos doerem.
Um carcereiro atirou-lhe um cântaro. O barro era fresco e salpicado
de umidade. Ned agarrou--o com as duas mãos e emborcou
avidamente. Água escorreu-lhe da boca e pingou através da barba.
Bebeu até pensar que ficaria mal-disposto.
- Quanto tempo...? - perguntou, numa voz fraca, quando não mais
conseguiu beber.
O carcereiro era um homem com ar de espantalho, cara de rato e
barba desordenada, vestindo uma camisa de cota de malha e meia
capa de couro.
- Não se fala - disse enquanto arrancava o cântaro dos dedos de Ned.
- Por favor - disse Ned -, as minhas filhas... - a porta fechou-se com
estrondo. Ned piscou quando a luz desapareceu, baixou a cabeça até
o peito e enrolou-se na palha. Já não fedia a urina e a merda. Já não
cheirava a nada.
Já não era capaz de distinguir a diferença entre estar acordado e
estar dormindo. A memória caiu sobre ele na escuridão, tão viva
como um sonho. Era o ano da falsa primavera, e ele tinha de novo
dezoito anos e descera do Ninho da Águia para o torneio em
Harrenhal. Via o profundo verde da campina e cheirava o pólen no
vento. Dias tépidos, noites frescas e o gosto doce do vinho,
Lembrava-se das gargalhadas de Brandon e do enlouquecido valor de
Robert na luta corpo a corpo, do modo como ria enquanto derrubava
dos cavalos homem atrás de homem. Lembrava-se de Jaime Lannister,
um jovem dourado numa armadura branca com escamas, ajoelhado
na grama em frente do pavilhão do rei, fazendo seus votos de
defender e proteger o Rei Aerys. Depois, Sor Oswell Whent ajudou
Jaime a pôr-se em pé, e o próprio Touro Branco, o Senhor
Comandante Sor Gerold Hightower, prendeu o nevado manto da
Guarda Real em volta de seus ombros. Todas as seis Espadas Brancas
estavam lá para dar as boas-vindas ao seu irmão mais novo.
Mas quando a justa começou, o dia foi de Rhaegar Targaryen. O
príncipe herdeiro usava a armadura em que acabaria por morrer:
cintilante placa negra com o dragão de três cabeças de sua Casa
trabalhado em rubis no peito. Uma pluma de seda escarlate estendia-
se atrás dele enquanto cavalgaya, e parecia que nenhuma lança
conseguia tocá-lo. Brandon caiu perante ele, tal como Bronze Yohn
Royce e até o magnífico Sor Arthur Dayne, a Espada da Manhã.
Robert tinha feito comentários jocosos com Jon e o velho Lorde
Hunter enquanto o príncipe dava a volta ao campo depois de
derrubar Sor Barristan na última justa pela coroa de campeão. Ned
lembrava-se do momento em que todos os risos tinham morrido,
quando o Príncipe Rhaegar Targaryen fez o cavalo passar por sua
esposa, a princesa dorniana Elia Martell, e depositou a coroa da
rainha da beleza no colo de Lyanna. Ainda conseguia vê-la: uma
coroa de rosas de inverno, azuis como a geada.
Ned Stark estendeu a mão para agarrar a coroa de flores, mas sob as
pétalas azul-claras estavam escondidos espinhos. Sentiu-os penetrar-
lhe a pele, aguçados e cruéis, viu o lento fio de sangue correr pelos
seus dedos e acordou, tremendo, na escuridão.
Prometa-me, Ned, sussurrara a irmã de sua cama de sangue. Ela
adorava o odor de rosas de inverno.
- Que os deuses me salvem - chorou Ned. - Estou enlouquecendo. Os
deuses não se dignaram a responder.
Cada vez que o carcereiro lhe trazia água, dizia a si mesmo que se
passara mais um dia. A princípio suplicava ao homem alguma notícia
sobre as filhas e o mundo para lá de sua cela. As únicas respostas
eram grunhidos e pontapés. Mais tarde, quando começaram as dores
de estômago, começou a suplicar por comida. Não fazia diferença;
não era alimentado. Os Lannister talvez pretendessem que ele
morresse de fome. "Não", disse consigo mesmo. Se Cersei o quisesse
morto, teria sido abatido na sala do trono com seus homens. Ela o
queria vivo. Fraco, desesperado, mas vivo. Catelyn tinha seu irmão;
não se atreveria a matá-lo, ou a vida do Duende estaria também
perdida.
De fora da sua cela chegou-lhe o chocalhar de correntes de ferro.
Quando a porta se abriu, rangendo, Ned pôs a mão na parede úmida
e empurrou-se para a luz. O clarão de um archote o fez desviar o
rosto.
- Comida - grasnou.
- Vinho - respondeu uma voz. Não era o homem com cara de rato.
Aquele carcereiro era mais robusto e mais baixo, embora usasse a
mesma meia capa de couro e o mesmo capacete de aço com espigão.
- Beba, Lorde Eddard - enfiou um odre de vinho nas mãos de Ned.
A voz do homem era estranhamente familiar, mas Ned Stark
precisou de um momento para a identificar.
- Varys? - disse, vacilante, quando o reconhecimento chegou. Tocou o
rosto do homem. - Não estou... não estou sonhando. Está aqui - as
rechonchudas bochechas do eunuco estavam cobertas com uma
barba cheia e escura. Ned sentiu os pelos rudes com os dedos. Varys
transformara-se num carcereiro grisalho, que fedia a suor e a vinho
amargo. - Como conseguiu... Que tipo de mago é você?
- Um mago sedento - disse Varys. - Beba, senhor. As mãos de Ned
apalparam o odre.
- Este é o mesmo veneno que deram a Robert?
- Ofende-me - disse Varys num tom triste, - É verdade que ninguém
gosta de um eunuco. Dê-me o odre - ele bebeu, com um fio
vermelho escorrendo pelo canto da boca gorda. - Não se compara à
safra que me você ofereceu na noite do torneio, mas não é mais
venenoso que a maioria - concluiu, limpando os lábios. - Aqui está.
Ned experimentou um gole.
- Borras - sentiu-se a ponto de regurgitar o vinho.
- Qualquer homem deve engolir o amargo com o doce. Tanto os
grandes senhores como os eunucos. Sua hora chegou, senhor.
- As minhas filhas...
- A mais nova escapou de Sor Meryn e fugiu - disse-lhe Varys. - Não
fui capaz de encontrá-la. Nem os Lannister. Uma coisa boa, essa.
Nosso novo rei não a ama. Sua filha mais velha continua prometida a
Joffrey. Cersei a mantém por perto. Veio a uma audiência há alguns
dias suplicar que o senhor fosse poupado. Uma pena que não
pudesse estar lá, ficaria comovido - inclinou-se para a frente com
uma expressão séria. - Creio que o senhor compreende que é um
homem morto, Lorde Eddard?
- A rainha não me matará - disse Ned. Sentia a cabeça flutuar; o
vinho era forte, e passara-se muito tempo desde que comera. - Cat..
Cat tem o irmão dela. .
- O irmão errado - suspirou Varys. - E de qualquer modo, está
perdido. Ela deixou que o Duende lhe fugisse por entre os dedos.
Suponho que esteja morto agora, em algum lugar nas Montanhas da
Lua.
- Se isso é verdade, corte-me a garganta e acabe com isto - estava
tonto do vinho, cansado e desolado.
- Seu sangue é a última coisa que desejo. Ned franziu as
sobrancelhas.
- Quando assassinaram minha guarda, você ficou ao lado da rainha,
observando, sem dizer uma palavra.
- E o faria de novo. Julgo recordar que estava desarmado, sem
armadura e rodeado por espadas dos Lannister - o eunuco olhou-o
de forma curiosa, inclinando a cabeça. - Quando era um rapazinho,
antes de ser cortado, viajei com uma trupe de pantomimeiros pelas
Cidades Livres. Ensinaram-me que cada homem tem um papel a
desempenhar, quer na vida quer na pantomima. Assim é na corte. O
Magistrado do Rei tem de ser temível, o mestre da moeda deve ser
frugal, o Senhor Comandante da Guarda Real tem de ser valente... e
o mestre dos espiões deve ser dissimulado, obsequioso e sem
escrúpulos. Um informante corajoso seria tão inútil como um
cavaleiro covarde - recuperou o odre e bebeu.
Ned estudou o rosto do eunuco, procurando a verdade sob as
cicatrizes de pantomimeiro e a barba falsa. Bebeu mais um pouco de
vinho. Desta vez desceu mais facilmente.
- É capaz de me libertar deste buraco?
- Seria... Mas vou fazê-lo? Não. Seriam feitas perguntas, e as
respostas levariam até mim. Ned não esperava outra coisa.
- Você é direto.
- Um eunuco não tem honra, e uma aranha não se beneficia do luxo
dos escrúpulos, senhor,
- Ao menos poderia levar uma mensagem minha?
- Dependeria da mensagem. De bom grado lhe fornecerei papel e
tinta. E depois de escrita, levarei a carta, lerei e a entregarei ou não,
conforme o que melhor sirva aos meus fins.
- Seus fins. E que fins são esses, Lorde Varys?
- A paz - respondeu Varys sem hesitação. - Se havia uma alma em
Porto Real verdadeiramente desesperada por manter Robert
Baratheon vivo era eu - suspirou. - Protegi-o de seus inimigos
durante quinze anos, mas não consegui protegê-lo de seus amigos,
Que estranho ataque de loucura o levou a dizer à rainha que sabia
da verdade sobre o nascimento de Joffrey?
- A loucura da misericórdia - admitiu Ned.
- Ah - disse Varys. - Com certeza. E um homem honesto e honroso,
Lorde Eddard. Por vezes me esqueço disso. Conheci tão poucos ao
longo da vida - lançou uma olhadela pela cela.
- Quando vejo o que a honestidade e a honra lhe trouxeram,
compreendo porquê,
Ned Stark encostou a cabeça à úmida parede de pedra e fechou os
olhos. Sentia a perna latejar.
- O vinho do rei. . interrogou Lancei?
- Ah, decerto. Cersei deu-lhe os odres e lhe disse que eram da safra
favorita de Robert
- o eunuco encolheu os ombros. - Um caçador vive uma vida
perigosa. Se o javali não tivesse acabado com Robert, teria sido uma
queda do cavalo, a picada de uma víbora da mata, uma seta perdida...
a floresta é o matadouro dos deuses. Não foi o vinho que matou o
rei. Foi a sua misericórdia.
Era o que Ned temia.
- Que os deuses me perdoem.
- Se os deuses existirem - disse Varys -, suponho que o farão. Em
qualquer caso, a rainha não teria esperado muito tempo. Robert
estava se tornando incontrolável, e ela precisava se ver livre dele para
lidar com seus irmãos. Formam uma bela dupla, o Stannis e o Renly.
A manopla de ferro e a luva de seda - limpou a boca com as costas
da mão, - Foi tonto, senhor. Devia ter escutado Mindinho quando lhe
sugeriu apoiar a sucessão de Joffrey.
- Como... como podia saber disso? Varys sorriu.
- Sei, e é tudo o que precisa saber. Também sei que de manhã a
rainha virá visitá-lo. Lentamente, Ned ergueu os olhos.
- Por quê?
- Cersei o teme, senhor..., mas tem outros inimigos que teme ainda
mais. Seu querido Jaime está lutando contra os senhores do rio neste
preciso momento. Lysa Arryn mantém-se no Ninho da Águia,
rodeada de pedra e aço, e não há nenhum amor entre ela e a rainha.
Em Dorne, os Martell ainda alimentam ressentimentos pelo
assassinato da Princesa Elia e de seus bebês. E agora o seu filho
marcha pelo Gargalo com uma tropa de nortenhos atrás.
- Robb é só um rapaz - disse Ned, horrorizado,
- Um rapaz com um exército - disse Varys. - Mas apenas um rapaz,
como diz. Os irmãos do rei são quem causa a Cersei noites sem
dormir. . particularmente Lorde Stannis. Sua pretensão é a
verdadeira, é conhecido pelo seu valor como comandante de batalha
e é completamente desprovido de misericórdia. Não há na terra
criatura que seja, nem de longe, tão aterradora como um homem
verdadeiramente justo. Ninguém sabe o que Stannis tem feito em
Pedra do Dragão, mas apostaria com o senhor que reuniu mais
espadas que conchas, Eis o pesadelo de Cersei: enquanto o pai e o
irmão gastam seu poderio batalhando com os Stark e os Tully, Lorde
Stannis desembarca, proclama-se rei e arranca a cabeça loura e
encaracolada do filho.,, e junta a dela ao negócio, embora eu
realmente creia que se preocupa mais com o filho.
- Stannis Baratheon é o verdadeiro herdeiro de Robert - disse Ned. -
O trono é dele por direito. Eu veria com agrado a sua coroação.
Varys soltou um estalido com a língua.
- Cersei não vai querer ouvir isso, garanto. Stannis poderá conquistar
o trono, mas só restará a sua cabeça podre para lhe dar as boas-
vindas, a menos que tenha cuidado com a língua.
Sansa suplicou tão docemente que seria uma pena que pusesse tudo
a perder. Poderá ter a vida de volta, se a quiser. Cersei não é
estúpida. Sabe que um lobo domado é mais útil que um morto.
- Quer que sirva a mulher que assassinou o meu rei, massacrou
meus homens e fez do meu filho um aleijado? - a voz de Ned estava
carregada de incredulidade.
- Quero que sirva o reino - disse Varys. - Diga à rainha que
confessará sua vil traição, ordene a seu filho que pouse a espada e
proclame Joffrey como o herdeiro verdadeiro. Proponha denunciar
Stannis e Renly como usurpadores sem fé. Nossa leoa de olhos verdes
sabe que é um homem de honra. Dando-lhe a paz de que precisa e o
tempo para lidar com Stannis, e jurando levar seu segredo para a
tumba, creio que lhe será permitido vestir o negro e viver o resto de
seus dias na Muralha, com seu irmão e aquele seu filho ilegítimo.
Pensar em Jon encheu Ned com um sentimento de vergonha e uma
mágoa profunda demais para ser expressa em palavras. Se ao menos
pudesse voltar a vê-lo, sentar-se e falar com ele.. Uma dor atacou-lhe
a perna quebrada sob o imundo gesso cinzento que a cobria.
Estremeceu, abrindo e fechando os dedos, impotente.
- Este plano é seu - arquejou para Varys - ou está aliado a Mindinho?
Aquilo pareceu divertir o eunuco.
- Mais depressa me casaria com a Cabra Negra de Qohor, Mindinho
é o segundo homem mais traiçoeiro dos Sete Reinos. Ah, alimento-o
com sussurros escolhidos, o suficiente para que ele pense que estou
do seu lado... tal como permito que Cersei pense que estou do dela.
- E tal como me deixou acreditar que estava do meu. Diga-me, Lorde
Varys, a quem serve realmente?
Varys fez um fino sorriso.
- Ora, o reino, meu bom senhor, como pode duvidar disto? Juro pelo
meu membro viril perdido. Sirvo o reino, e o reino precisa de paz -
bebeu o último gole de vinho e atirou o odre vazio para o lado, -
Então, qual é a sua resposta, Lorde Eddard? Dê-me a sua palavra de
que dirá à rainha aquilo que ela quer ouvir quando vier de visita.
- Se o fizesse, minha palavra seria tão oca como uma armadura vazia.
Minha vida não me é assim tão preciosa,
- É pena - o eunuco pôs-se em pé. - E a vida de sua filha, senhor?
Quão preciosa é? Uma agulha de gelo perfurou o coração de Ned,
-Minha filha...
- Decerto não pensou que havia me esquecido de sua doce inocente,
senhor? A rainha com toda a certeza não o fez.
- Não - suplicou Ned, com a voz quebrantada. - Varys, que os deuses
tenham misericórdia, faça o que quiser comigo, mas deixe minha
filha fora de suas intrigas. Sansa não é mais que uma criança.
- Rhaenys também era uma criança. Filha do Príncipe Rhaegar. Uma
coisinha preciosa, mais nova que suas meninas. Tinha um pequeno
gatinho negro a quem chamava Balerion, sabia? Sempre senti
curiosidade em saber o que lhe teria acontecido. Rhaenys gostava de
fingir que ele era o verdadeiro Balerion, o Terror Negro de outrora,
mas imagino que os Lannister lhe tenham ensinado rapidamente a
diferença entre um gatinho e um dragão no dia em que lhe
arrombaram a porta - Varys soltou um longo suspiro cansado, o
suspiro de um homem que transportava toda a tristeza do mundo
em um saco sobre os ombros. - O Alto Septão disse-me uma vez que
à medida que vamos pecando, assim sofremos. Se isso for verdade,
Lorde Eddard, diga-me... por que são sempre os inocentes a sofrer
mais, quando vocês, os grandes senhores, jogam o seu jogo dos
tronos? Pense sobre isso, se quiser, enquanto espera a rainha. Mas
guarde também um pensamento: o visitante seguinte poderá trazer
pão, queijo e leite da papoula para as vossas dores. . ou a cabeça de
Sansa. A escolha, meu caro senhor Mão, é inteiramente sua.
Catelyn
Enquanto a tropa marchava pelo talude através dos pântanos negros
do Gargalo e se derramava nos terrenos fluviais que se estendiam
para lá dele, as apreensões de Catelyn cresciam. Ela mascarava seus
medos com uma expressão impassível e severa, mas estavam lá,
crescendo a cada légua de caminho. Seus dias eram ansiosos, as
noites, inquietas, e cada corvo que voava sobre sua cabeça a fazia
cerrar os dentes.
Temia pelo senhor seu pai e interrogava-se acerca de seu silêncio
agourento. Temia pelo irmão Edmure e rezava para que os deuses
olhassem por ele se tivesse de enfrentar o Regicida em batalha.
Temia por Ned e pelas meninas, e pelos queridos filhos que deixara
em Winterfell. E, no entanto, nada havia que pudesse fazer por
qualquer um deles, e por isso forçava-se a pôr de lado aqueles
pensamentos. Precisa guardar as forças para Robb, dizia a si mesma.
Ele é o único que pode ajudar. Tem de ser tão feroz e dura como o
Norte, Catelyn Tully. Tem de ser agora uma Stark de verdade, como
seu filho.
Robb cavalgava à cabeça da coluna, sob a esvoaçante bandeira branca
de Winterfell. Pedia todos os dias que um de seus senhores se
juntasse a ele para que pudessem conferenciar enquanto marchavam;
honrava um homem de cada vez, sem mostrar favoritismos,
escutando como o senhor seu pai escutara, pesando as palavras de
um contra as de outro. Ele aprendeu tanto com Ned, pensou ela
enquanto o observava, mas terá aprendido o suficiente?
O Peixe Negro levara cem homens com lanças e cem cavalos rápidos
e correra na frente para ocultar os movimentos do exército e
reconhecer o terreno. Os relatórios que os mensageiros de Sor
Brynden traziam não a sossegavam. A tropa de Lorde Tywin estava
ainda a muitos dias ao sul..., mas Walder Frey, Senhor da Travessia,
reunira uma força de quase quatro mil homens em seus castelos
debruçados sobre o Ramo Verde.
- De novo atrasado - murmurou Catelyn quando ouviu a notícia. Era
a repetição do Tridente, maldito homem. O irmão Edmure chamara
os vassalos; por direito, Lorde Frey deveria ter partido para se juntar
à tropa Tully em Correrrio, e no entanto aqui estava ele.
- Quatro mil homens - repetiu Robb, mais perplexo que zangado. -
Lorde Frey não pode esperar combater sozinho os Lannister. Decerto
pretende juntar seu poder ao nosso.
- Será? - perguntou Catelyn. Cavalgara em frente para se juntar a
Robb e a Robett Glover, seu companheiro do dia. A vanguarda
espalhava-se atrás deles, uma floresta lenta de lanças, estandartes e
espadas. - Tenho minhas dúvidas. Não espere nada de Walder Frey, e
nunca será surpreendido.
- Ele é vassalo de seu pai.
- Alguns horras encaram seus votos com mais seriedade que outros,
Robb. Lorde Walder sempre se mostrou mais amigável para com o
Rochedo Casterly do que meu pai teria gostado.
Um de seus filhos está casado com a irmã de Tywin Lannister. É
verdade que isso pouco significa, pois Lorde Walder gerou ao longo
dos anos um grande número de filhos que têm de casar com alguém.
Mas mesmo assim..
-Julga que ele pretende nos trair pelos Lannister, senhora? -
perguntou Robett Glover em voz grave.
Catelyn suspirou.
- A bem da verdade, duvido que o próprio Lorde Frey saiba o que
pretende fazer. Tem a cautela de um velho e a ambição de um
jovem, e nunca pecou por falta de astúcia.
- Temos de ter as Gêmeas, mãe - disse Robb acaloradamente. - Não
há outra maneira de atravessar o rio. Bem sabe.
- Sim. E Walder Frey também sabe, pode estar certo disso.
Naquela noite acamparam no limite sul dos pântanos, a meio
caminho entre a Estrada do Rei e o rio. Foi aí que Theon Greyjoy
lhes trouxe mais notícias do tio de Catelyn.
- Sor Brynden pede para lhes dizer que cruzou espadas com os
Lannister. Há uma dúzia de batedores que não irão se apresentar a
Lorde Tywin tão cedo. Ou nunca mais - sorriu. - Sor Addam
Marbrand comanda os batedores deles e está retirando para o sul,
incendiando à sua passagem. Sabe onde estamos, mais ou menos,
mas o Peixe Negro jura que não saberá quando nos dividirmos.
- A menos que Lorde Frey lhe diga - disse Catelyn em tom cortante.
- Theon, quando regressar para junto de meu tio, diga-lhe que ele
deve estacionar seus melhores arqueiros em volta das Gêmeas, dia e
noite, com ordens para abater qualquer corvo que deixe as ameias.
Não quero aves levando a Lorde Tywin notícias sobre os movimentos
do meu filho.
- Sor Brynden já tratou disso, senhora - respondeu Theon com um
sorriso pretensioso. - Mais alguns pássaros negros e teremos o
suficiente para fazer uma torta. Guardarei para a senhora suas penas
para um chapéu.
Catelyn devia saber que Brynden Peixe Negro estaria bem adiantado
em relação a ela.
- O que fazem os Frey enquanto os Lannister queimam seus campos
e saqueiam seus castros?
- Houve algumas lutas entre os homens de Sor Addam e os de Lorde
Walder - respondeu Theon. - A menos de um dia de viagem daqui
encontramos dois batedores Lannister servindo de alimento aos
corvos onde os Frey os amarraram. Mas a maior parte das forças de
Lorde Walder permanece reunida nas Gêmeas.
Isso trazia o selo de Walder Frey sem a menor dúvida, pensou
amargamente Catelyn; conter--se, esperar, observar, não correr
riscos, a menos que seja forçado a isso.
- Se ele tem combatido os Lannister, então talvez planeje mesmo
manter-se fiel aos seus votos - disse Robb.
Catelyn sentia-se menos encorajada.
- Defender as próprias terras é uma coisa, uma batalha aberta contra
Lorde Tywin é outra bem diferente.
Robb voltou a virar-se para Theon Greyjoy.
- O Peixe Negro encontrou alguma outra maneira de atravessar o
Ramo Verde? Theon balançou a cabeça.
- O rio corre cheio e rápido. Sor Brynden diz que não pode ser
atravessado pelo baixio, não tão a norte.
- Tenho de ter aquela travessia! - declarou Robb, furioso. - Ah,
suponho que os nossos cavalos poderão ser capazes de atravessar o
rio a nado, mas não com homens vestidos de armadura sobre os
dorsos. Precisaríamos construir jangadas para fazer passar o nosso
aço, os elmos, as cotas de malha e as lanças, e não temos árvores
para tal. Ou tempo. Lorde Tywin marcha para o norte... - cerrou a
mão em punho.
- Lorde Frey teria de ser um louco para tentar nos barrar o caminho
- disse Theon Greyjoy com sua habitual confiança fácil. - Temos
cinco vezes mais homens. Podemos tomar as Gêmeas se for preciso,
Robb.
- Não seria fácil - preveniu-os Catelyn - nem a tempo. Enquanto
montassem seu cerco, Tywin Lannister traria sua tropa e cairia sobre
nós pela retaguarda.
Robb olhou para ela e depois para Greyjoy em busca de uma
resposta, mas sem encontrar nenhuma. Por um momento pareceu ter
ainda menos que os seus quinze anos, apesar da cota de malha, da
espada e da barba que trazia.
- Que faria o senhor meu pai? - perguntou à mãe.
- Encontraria uma maneira de atravessar - ela respondeu. - Custasse
o que custasse.
Na manhã seguinte foi o próprio Sor Brynden Tully quem regressou
para junto deles. Pusera de lado a armadura pesada e o elmo que
usara como Cavaleiro do Portão em favor da proteção mais leve do
couro e da cota de malha de um batedor, mas seu peixe de obsidiana
ainda segurava seu manto.
O rosto do tio de Catelyn mostrava-se grave ao descer do cavalo.
- Houve uma batalha sob as muralhas de Correrrio - disse, com uma
expressão sinistra na boca. - Ouvimos de um batedor Lannister que
capturamos. O Regicida destruiu a tropa de Edmure e pôs os
senhores do Tridente em fuga.
Uma mão fria apertou o coração de Catelyn.
- E meu irmão?
- Foi ferido e feito prisioneiro - disse Sor Brynden. - Lorde
Blackwood e os outros sobreviventes estão sob cerco no interior de
Correrrio, rodeados pela hoste de Jaime.
Robb mostrou-se insatisfeito.
- Temos de atravessar este maldito rio se queremos ter alguma
esperança de socorrê-los a tempo.
- Isso não será fácil - preveniu o tio. - Lorde Frey chamou todas as
suas forças para o interior dos castelos e tem os portões fechados e
trancados.
- Maldito seja esse homem - praguejou Robb. - Se o velho tonto não
cede e me deixa atravessar, não me deixa alternativa a não ser
assaltar suas muralhas. Hei de pôr as Gêmeas abaixo à volta dele,
veremos se gosta disso!
- Parece um rapaz birrento, Robb - disse Catelyn em tom cortante. -
Uma criança vê um obstáculo e a primeira coisa em que pensa é
correr à sua volta ou pô-lo abaixo. Um senhor tem de aprender que
por vezes as palavras são capazes de alcançar o que as espadas não
são.
O pescoço de Robb ficou vermelho ao ouvir a reprimenda,
- Explique-me o que quer dizer, mãe - disse ele brandamente.
- Os Frey possuem a travessia há seiscentos anos, e desde então
nunca deixaram de cobrar a sua taxa.
- Que taxa? O que é que ele quer?
Ela sorriu.
- É isso que temos de descobrir.
- E se eu preferir não pagar esta taxa?
- Então é melhor que se retire de volta para Fosso Cailin, disponha
as tropas para enfrentar Lorde Tywin em batalha,., ou arranje asas.
Não vejo outras hipóteses - Catelyn esporeou o cavalo e afastou-se,
deixando o filho pesar o que dissera. Não seria bom fazê-lo sentir
que a mãe estava usurpando seu lugar. Ensinou-lhe sabedoria como
lhe ensinou valor, Ned?, perguntou a si própria. Ensinou-lhe a
ajoelhar-se? Os cemitérios dos Sete Reinos estavam cheios de homens
corajosos que nunca aprenderam essa lição.
Era perto do meio-dia quando a vanguarda chegou à vista das
Gêmeas, onde os Senhores da Travessia tinham a sua sede.
O Ramo Verde corria ali rápido e profundo, mas os Frey tinham
construído uma ponte sobre ele havia muitos séculos e enriquecido
com o dinheiro que os homens pagavam para atravessar. A ponte era
um sólido arco de pedra lisa e cinzenta, suficientemente largo para
qué duas carroças passassem lado a lado; a Torre da Água erguia-se
no centro da ponte, dominando quer a estrada, quer o rio com suas
seteiras, alçapões e portas levadiças. Os Frey levaram três gerações
para completar a ponte; quando terminaram, construíram robustas
fortalezas de madeira em cada extremidade para que ninguém a
atravessasse sem sua autorização.
Havia muito tempo a madeira tinha dado lugar à pedra. As Gêmeas,
dois castelos atarracados, feios e fortes, idênticos em todos os
aspectos, com a ponte unindo-os em arco, guardavam a travessia
havia séculos. Grandes muralhas exteriores, profundos fossos e
pesados portões de carvalho e ferro protegiam os caminhos, as bases
da ponte erguiam-se do interior de robustas fortalezas internas, havia
um antemuro e uma porta levadiça em cada margem, e a Torre da
Água defendia o arco propriamente dito.
Um relance foi o suficiente para Catelyn compreender que o castelo
não seria tomado de assalto. As ameias eriçavam-se de lanças,
espadas e atiradeiras, havia um arqueiro em cada ameia e seteira, a
ponte levadiça estava erguida, a porta levadiça, descida, os portões
fechados e trancados.
Grande-Jon começou a praguejar assim que viu o que os esperava.
Lorde Rickard Karstark olhava, carrancudo e em silêncio.
- Aquilo não pode ser assaltado, senhores - anunciou Roose Bolton.
- E tampouco podemos tomá-lo por cerco sem um exército na
margem de lá para investir contra a outra fortaleza - Heiman
Tallhart disse sombriamente. Do outro lado das profundas águas
verdes, a gêmea ocidental era como um reflexo da sua irmã do
oriente. - Mesmo se dispuséssemos de tempo, Do qual, na verdade,
não dispomos.
Enquanto os senhores do Norte estudavam o castelo, uma porta
abriu-se, uma ponte de pranchas deslizou através do fosso e uma
dúzia de cavaleiros a atravessou a cavalo para enfrentá-los, liderados
por quatro dos muitos filhos de Lorde Walder. Seu estandarte exibia
torres gêmeas azul-escuras em fundo cinza-prateado claro. Sor
Stevron Frey, herdeiro de Lorde Walder, falou por eles. Todos os
Frey tinham cara de fuinha; Sor Stevron, já com mais de sessenta
anos e com netos seus, assemelhava-se a uma fuinha particularmente
velha e cansada, mas foi bastante bem-educado.
- O senhor meu pai me enviou para saudá-los e perguntar quem
lidera esta poderosa hoste.
- Sou eu - Robb esporeou o cavalo e avançou. Usava sua armadura,
com o escudo do lobo gigante de Winterfell atado à sela, e Vento
Cinzento caminhava ao seu lado.
O velho cavaleiro olhou para o filho de Catelyn com uma leve
cintilação de divertimento nos aguados olhos cinzentos, embora seu
cavalo castrado relinchasse, inquieto, e se afastasse, de lado, do lobo
gigante.
- O senhor meu pai ficaria muito honrado se pudessem partilhar a
sua comida e bebida no castelo e explicar o que os traz aqui.
Aquelas palavras caíram sobre os senhores vassalos como uma
grande pedra atirada por uma catapulta. Nenhum deles aprovou a
ideia. Praguejaram, discutiram e gritaram uns com os outros.
- Não deve fazer isto, senhor - argumentou Galbart Glover com
Robb. - Lorde Walder não é de confiança.
Roose Bolton fez um meneio de concordância.
- Entre ali sozinho e pertencerá a eles. Poderá vendê-lo aos Lannister,
atirá-lo para uma masmorra ou cortar-lhe a garganta, como quiser,
- Se quiser conversar conosco, que abra os portões e partilharemos
todos a sua comida e bebida - declarou Sor Wendel Manderly.
- Ou que saia e converse com Robb aqui, à vista de seus homens e
dos nossos - sugeriu o irmão, Sor Wylis.
Catelyn Stark partilhava todas aquelas dúvidas, mas bastava-lhe olhar
de relance para Sor Stevron para saber que não lhe agradava o que
estava ouvindo. Mais algumas palavras e a chance estaria perdida.
Tinha de agir, e depressa.
- Eu vou - disse em voz alta.
- A senhora? - Grande-Jon enrugou a testa.
- Mãe, tem certeza? - era claro que Robb não tinha.
- Nunca tive tanta - mentiu Catelyn com leveza. - Lorde Walder é
vassalo de meu pai. Conheço-o desde menina. Nunca me faria
nenhum mal - a menos que visse nisso algum lucro, acrescentou em
silêncio, mas algumas verdades não podiam ser ditas, e algumas
mentiras eram necessárias,
- Estou certo de que o senhor meu pai ficaria feliz por falar com a
Senhora Catelyn - disse Sor Stevron. - A fim de atestar as nossas
boas intenções, meu irmão, Sor Perwyn, permanecerá aqui até que
ela lhes seja devolvida em segurança.
- Ele será nosso hóspede de honra - disse Robb. Sor Perwyn, o mais
novo dos quatro Frey do grupo, desmontou e entregou as rédeas do
cavalo a um dos irmãos. - Desejo o retorno de minha mãe até o cair
da noite, Sor Stevron - prosseguiu Robb. - Não pretendo ficar aqui
por muito tempo.
Sor Stevron fez um aceno polido.
- Como quiser, senhor - Catelyn esporeou o cavalo e não olhou para
trás. Os filhos e enviados de Lorde Walder rodearam-na.
O pai de Catelyn tinha dito uma vez que Walder Frey era o único
senhor dos Sete Reinos que podia tirar um exército dos calções.
Quando o Senhor da Travessia recebeu Catelyn no grande salão do
castelo oriental, rodeado por vinte filhos sobreviventes (menos Sor
Perwyn, que teria sido o vigésimo primeiro), trinta e seis netos,
dezenove bisnetos e numerosas filhas, netas, bastardos e bastardos-
netos, compreendeu exatamente o que o pai quis dizer.
Lorde Walder tinha noventa anos, uma mirrada fuinha cor-de-rosa de
cabeça calva e manchada, demasiado artrítico para se erguer sem
ajuda. A última esposa, uma moça pálida e delicada de dezesseis
anos, caminhou ao lado da sua liteira quando o trouxeram para o
salão. Era a oitava Senhora Frey.
- E um grande prazer voltar a vê-lo depois de tanto tempo, senhor -
disse Catelyn. O velho a olhou de soslaio com uma expressão de
suspeita.
- Ah é? Duvido. Poupe-me das suas palavras doces, Senhora Catelyn,
sou velho demais. Por que está aqui? Será o seu rapaz orgulhoso
demais para vir ele próprio apresentar-se? Que farei eu com a
senhora?
Catelyn era uma menina da última vez que visitara as Gêmeas, mas
já então Lorde Frey era irascível, tinha uma língua aguçada e
maneiras bruscas. A idade o tinha tornado pior que nunca, ao que
parecia. Precisaria escolher as palavras com cuidado e fazer o
possível para não se ofender com as dele.
- Pai - disse Sor Stevron em tom reprovador -, atente ao gênio. A
Senhora Stark está aqui a nosso convite.
- Perguntei-lhe alguma coisa? Ainda não é Lorde Frey, e não o será
até que eu morra. Pareço--lhe morto? Não ouvirei instruções vindas
de você.
- Isso não é maneira de falar na frente de nossa nobre convidada, pai
- disse um dos filhos mais novos.
- Agora meus bastardos acham-se no direito de me dar lições de
cortesia - queixou-se Lorde Walder. - Falarei como bem entender,
malditos. Já hospedei três reis ao longo da minha vida, e rainhas
também, julga que preciso de lições de gente como você, Ryger? Sua
mãe ordenhava cabras da primeira vez que lhe dei minha semente -
rechaçou o jovem corado com um movimento súbito de dedos e fez
um gesto para dois de seus outros filhos. - Danwell, Whalen, ajudem-
me a sentar na cadeira.
Ergueram Lorde Walder da liteira e o transportaram para o cadeirão
dos Frey, uma cadeira elevada de carvalho negro, cujo espaldar estava
esculpido como duas torres ligadas por uma ponte. A jovem esposa
subiu timidamente para junto dele e cobriu-lhe as pernas com uma
manta. Depois de se sentar, o velho acenou para que Catelyn se
aproximasse e deu-lhe um beijo na mão, seco como papel.
- Pronto - anunciou. - Agora que observei a cortesia, senhora, talvez
meus filhos me dêem a honra de calar a boca. Por que está aqui?
- Para lhe pedir para abrir os portões, senhor - respondeu Catelyn
polidamente. - Meu filho e os senhores seus vassalos estão muito
impacientes para atravessar o rio e prosseguir caminho.
- Para Correrrio? - soltou um risinho abafado. - Ah, não é preciso
dizer, não é preciso. Ainda não sou cego. O velho ainda consegue ler
um mapa.
- Para Correrrio - confirmou Catelyn. Não via motivo para negar. -
Onde teria esperado encontrá-lo, senhor. Ainda é vassalo de meu pai,
não é?
- Heh — disse Lorde Walder, um ruído a meio caminho entre uma
gargalhada e um grunhido. - Chamei as minhas espadas, sim, chamei,
aqui estão elas, você as viu nas muralhas. Era minha intenção
marchar assim que todas as minhas forças estivessem reunidas. Bem,
enviar meus filhos. Eu já estou há muito para lá das marchas,
Senhora Catelyn - olhou em volta em busca de confirmação e
apontou para um homem alto e curvado de cinquenta anos. - Diga-
lhe, Jared. Diga-lhe que eram essas as minhas intenções.
- Eram, senhora - disse Sor Jared Frey, um dos filhos de sua segunda
mulher. - Pela minha honra.
- Será culpa minha que o tonto do seu irmão tenha perdido sua
batalha antes de nos podermos pôr em marcha? - recostou-se nas
almofadas e franziu as sobrancelhas, como que desafiando-a a
contestar a sua versão dos acontecimentos. - Disseram-me que o
Regicida o atravessou como um machado atravessa queijo podre. Por
que haveriam meus rapazes de correr para o sul para morrer? Todos
aqueles que foram para o sul estão de novo correndo para o norte.
Catelyn teria de bom grado enfiado o lamuriento do velho num
espeto e colocado para assar numa fogueira, mas só tinha até o cair
da noite para abrir a ponte. Calmamente, disse:
- Mais uma razão para que possamos chegar a Correrrio, e depressa.
Onde podemos conversar, senhor?
- Estamos conversando agora - queixou-se Lorde Frey. A cabeça
malhada e rosada dardejou em volta. - O que estão todos olhando? -
gritou para a família. - Saiam daqui. A Senhora Stark deseja falar-me
em privado. Pode ser que tenha planos para a minha fidelidade, heh.
Vão, todos, encontrem algo de útil para fazer. Sim, você também,
mulher. Fora, fora,/ora - enquanto os filhos, netos, filhas, bastardos,
sobrinhas e sobrinhos jorraram da sala, inclinou-se para perto de
Catelyn e confessou: - Estão todos à espera de que eu morra. Stevron
espera há quarenta anos, mas continuo a desapontá-lo. Heh. Por que
haveria de morrer só para que ele seja um senhor?, pergunto, Não o
farei.
- Tenho toda a esperança de que sobreviva até os cem anos.
- Isso os irritaria, não há dúvida. Ah, não há dúvida. Bem, o que
queria dizer?
- Queremos atravessar - disse-lhe Catelyn.
- Ah, sim? Isso é ser direto. Por que haveria eu de deixar? Por um
momento a ira dela relampejou.
- Se fosse suficientemente forte para subir a uma das vossas ameias,
Lorde Frey, veria que meu filho tem vinte mil homens junto de suas
muralhas.
- Serão vinte mil cadáveres frescos quando Lorde Tywin chegar aqui
- disparou o velho em resposta. - Não tente me assustar, senhora.
Seu esposo está numa cela de traidor qualquer debaixo da Fortaleza
Vermelha, seu pai está doente, pode estar morrendo, Jaime Lannister
tem seu irmão a ferros. Que tem a senhora que eu deva temer?
Aquele seu filho? Se der um filho meu para cada um dos seus, ainda
terei dezoito depois de os seus estarem todos mortos.
- O senhor prestou juramento perante meu pai - recordou-lhe
Catelyn. Ele inclinou a cabeça para um lado, sorrindo.
- Ah, sim, disse algumas palavras, mas também prestei juramentos à
coroa, assim me parece. Joffrey é agora o rei, e isso faz da senhora,
do seu rapaz e de todos aqueles tontos lá fora nada mais que
rebeldes. Se eu tivesse o bom-senso que os deuses deram aos peixes,
ajudaria os Lannister a fervê-los a todos.
- E por que não o faz? - ela desafiou. Lorde Walder bufou de desdém.
- Lorde Tywin, o orgulhoso e magnífico, Protetor do Oeste, Mão do
Rei, ah, que grande homem este é, ele e o seu ouro para lá e para cá,
e leões para cá e acolá. Aposto que se comer feijão demais dá peidos
tal como eu dou, mas nunca o ouvirá admitir tal coisa, ah, não. Que
tem ele para ser tão empolado? Só dois filhos, e um deles é um
monstrinho retorcido. Se lhe der um filho meu por cada um dos
dele, ainda terei vinte e meio quando todos os dele estiverem mortos!
- soltou um cacarejo. - Se Lorde Tywin quiser a minha ajuda, bem
pode pedi-la.
Era tudo o que Catelyn precisava ouvir.
- Eu estou pedindo a sua ajuda, senhor - disse humildemente. - E
meu pai, meu irmão, o senhor meu marido e meus filhos pedem pela
minha voz.
Lorde Walder brandiu o dedo ossudo em sua cara.
- Poupe suas palavras doces, senhora. Palavras doces ouço de minha
esposa. Já a viu? Tem dezesseis, uma florzinha, e o seu mel é só para
mim. Aposto que me dá um filho em menos de um ano. Talvez faça
dele herdeiro, isso não irritaria os outros?
- Estou certa de que lhe dará muitos filhos. A cabeça, dele oscilou
para cima e para baixo.
- O senhor seu pai não veio ao casamento. Cá para mim, é um
insulto. Mesmo que esteja morrendo. Também não veio ao meu
último casamento. Chama-me o Atrasado Lorde Frey, sabe? Julgará
que perdi o juízo? Que estou meio morto e a cabeça já não funciona
bem? Não estou, garanto, hei de sobreviver-lhe tal como sobrevivi a
seu pai. Sua família sempre se cagou para mim, não negue, não
minta, sabe que é verdade. Há anos fui visitar seu pai e sugeri um
casamento entre o seu filho e a minha filha. Por que não? Tinha uma
filha em mente, uma querida jovem, só alguns anos mais velha que
Edmure, mas se seu irmão não se engraçasse com ela, tinha outras
que ele podia escolher, novas, velhas, virgens, viúvas, o que quisesse.
Não, Lorde Hoster não quis ouvir falar disso. Deu-me doces palavras,
desculpas, mas o que eu queria era ver-me livre de uma filha. E sua
irmã, esta é tão má como o pai. Foi, ah, há um ano, não mais, ainda
Jon Arryn era Mão do Rei, fui à cidade assistir à participação de
meus filhos no torneio. Stevron e Jared estão já velhos demais para a
arena, mas Danwell e Hosteen participaram, Perwyn, também, e dois
dos meus bastardos experimentaram o corpo a corpo. Se soubesse
como iam me envergonhar, nunca me teria incomodado a fazer a
viagem. Que necessidade tinha eu de cavalgar toda aquela distância
para ver Hosteen ser derrubado do cavalo por aquele cachorrinho do
Tyrell?, pergunto--lhe. O rapaz tem metade da idade dele, chamam-
no Sor Margarida, ou qualquer coisa do gênero. E Danwell foi
derrubado por um cavaleiro menor! Há dias em que pergunto a mim
mesmo se aqueles dois são realmente meus filhos. Minha terceira
mulher era uma Crakehall, e todas as mulheres Crakehall são umas
vacas. Bem, não importa, ela morreu antes do seu nascimento, que
lhe interessa isto? Estava falando de sua irmã. Propus que o Senhor e
a Senhora Arryn criassem dois dos meus netos na corte, e ofereci-me
para criar o filho deles aqui nas Gêmeas. Serão os meus netos
indignos de serem vistos na corte do rei? São bons rapazes, calmos e
bem-educados. Walder é filho de Merrett, deram-lhe o nome em
minha honra, e o outro... heh, não me lembro... pode ter sido outro
Walder, que andam sempre a chamá-lo Walder para que eu os
favoreça, mas o pai dele.. qual deles era o pai dele? - seu rosto
enrugou-se. - Bem, fosse quem fosse, Lorde Arryn não o quis, e nem
ao outro, e por isso culpo a senhora sua irmã. Gelou como se eu
tivesse sugerido vender o filho a uma trupe de saltimbancos ou fazer
dele um eunuco, e quando Lorde Arryn disse que a criança ia para
Pedra do Dragão, para ser criada com Stannis Baratheon, ela saiu
precipitadamente da sala sem uma palavra de desculpa, e tudo o que
a Mão pôde me dar foram lamentos. De que servem lamentos?,
pergunto-lhe.
Catelyn franziu as sobrancelhas, inquieta.
- Tinha entendido que o filho de Lysa deveria ser criado com Lorde
Tywin no Rochedo Casterly.
- Não, era Lorde Stannis - disse Walder Frey num tom irritável. -
Julga que não distingo Lorde Stannis de Lorde Tywin? São os dois
uns rolhas de poço que se acham nobres demais para cagar, mas
deixe isso, eu sei ver a diferença. Ou será que me julga muito velho
para me lembrar? Tenho noventa anos e lembro-me muito bem. E
também me lembro do que se faz com uma mulher. Aquela minha
esposa há de me dar um filho em menos de um ano, aposto. Ou uma
filha, que isso não se pode controlar. Menino ou menina, há de ser
vermelho, encarquilhado e aos berros, e o mais certo é que lhe
queira chamar Walder ou Walda.
Catelyn não se importava com o nome que a Senhora Frey daria ao
filho. -Jon Arryn ia criar o filho com Lorde Stannis, tem certeza
disso?
- Sim, sim, sim - disse o velho. - Só que morreu, portanto, que
importa? Disse que quer atravessar o rio?
- Quero.
- Pois bem, não pode! - anunciou Lorde Walder vivamente. - A
menos que eu deixe, e por que haveria de deixar? Os Tully e os Stark
nunca foram meus amigos - recostou-se na cadeira e cruzou os
braços, com um sorriso afetado, à espera da resposta dela.
O resto foi só regateio.
Um sol vermelho e inchado pendia, baixo, sobre os montes ocidentais
quando os portões do castelo se abriram. A ponte levadiça foi
descida, guinchando, a porta levadiça ergueu-se, e a Senhora Catelyn
Stark avançou para ir juntar-se ao filho e aos senhores seus vassalos.
Atrás dela vinham Sor Jared Frey, Sor Hosteen Frey, Sor Danwell
Frey e o filho bastardo de Lorde Walder, Ronel Rivers, à frente de
uma longa coluna de lanceiros, fileira atrás de fileira de homens
arrastando os pés com cotas de malha de aço azul e mantos cinza-
prateados.
Robb avançou a galope ao seu encontro, com Vento Cinzento
correndo ao lado de seu garanhão.
- Está feito - disse-lhe Catelyn. - Lorde Walder o deixa passar. Suas
espadas são também suas, exceto quatrocentas, que deseja deixar
ficar para defender as Gêmeas. Sugiro que deixe aqui quatrocentos
dos seus homens, uma força mista de arqueiros e espadachins. Ele
dificilmente pode levantar objeções a uma oferta para aumentar a
sua guarnição... mas assegure-se de dar o comando a um homem em
quem possa confiar. Lorde Walder pode precisar de ajuda para
manter a fé.
- Será como diz, mãe - respondeu Robb, olhando pasmado para as
fileiras de lanceiros. -Talvez.. Sor Heiman Tallhart, que lhe parece?
- Uma boa escolha.
- Que... que quis ele de nós?
- Se puder dispensar um tanto dos seus soldados, preciso de alguns
homens para escoltar dois dos netos de Lorde Frey para o norte até
Winterfell - disse-lhe ela. - Concordei em recebemos como
protegidos. São novos, com oito e sete anos. Parece que ambos se
chamam Walder. Julgo que seu irmão Bran acolherá bem a
companhia de rapazes próximos da idade dele.
- É tudo? Dois protegidos? Este é um preço bastante pequeno por...
- O filho de Lorde Frey, Olyvar, virá conosco - ela prosseguiu. -
Deverá servir como seu escudeiro pessoal. O pai quer vê-lo feito
cavaleiro a seu tempo.
- Um escudeiro - encolheu os ombros. - Certo, está bem, se ele...
- Além disso, se sua irmã Arya regressar em segurança para junto de
nós, está acordado que se casará com o filho mais novo de Lorde
Walder, Elmar, quando ambos tiverem idade.
Robb pareceu embaraçado.
- Arya não vai gostar nem um bocadinho disso.
- E você deverá casar com uma das filhas dele quando a luta
terminar - Catelyn terminou. - Sua senhoria consentiu amavelmente
em deixá-lo escolher a moça que preferir. Tem uma quantidade delas
que julga serem adequadas.
Para seu crédito, Robb não vacilou.
- Entendo.
- Consente?
- Posso recusar?
- Se quiser atravessar, não.
- Consinto - disse solenemente Robb. Nunca lhe parecera mais
homem do que naquele momento. Rapazes podem brincar com
espadas, mas era preciso ser um senhor para fazer um pacto de
casamento com a consciência do que ele significava.
Atravessaram ao cair da noite enquanto um quarto de lua flutuava
sobre o rio, A dupla coluna serpenteou pelo portão da gêmea
oriental como uma grande serpente de aço, deslizando pelo pátio, no
interior da fortaleza e através da ponte, irrompendo de novo do
segundo castelo na margem ocidental.
Catelyn seguiu à cabeça da serpente, com o filho, o tio, Sor Brynden
e Sor Stevron Frey. Atrás, seguiam nove décimos da cavalaria;
cavaleiros, lanceiros, cavaleiros livres e arqueiros montados. Foram
necessárias horas para que todos atravessassem. Mais tarde, Catelyn
se recordaria do barulho de incontáveis cascos na ponte levadiça, de
Lorde Walder Frey, em sua liteira, vendo--os passar, do brilho de
olhos que espreitavam entre as tábuas dos alçapões no teto enquanto
cavalgavam através da Torre da Água.
A parte maior da tropa nortenha, lanceiros, arqueiros e grandes
massas de homens de armas a pé, permaneceu na margem oriental
sob o comando de Roose Bolton. Robb ordenara-lhe que prosseguisse
a marcha para o sul, a fim de defrontar o enorme exército Lannister
que vinha para o norte sob o comando de Lorde Tywin.
Para o bem ou para o mal, seu filho lançara os dados.