-Não,

Chett soltou uma gargalhada desagradável.

-Já vi o que acontece aos fidalgos moles quando são postos para

trabalhar. Mandem-nos fazer manteiga, as mãos se enchem de bolhas

e começam a sangrar. Dêem-lhes um machado para partir lenha, eles

cortam o próprio pé.

- Eu sei de uma coisa que Sam poderia fazer melhor que ninguém.

- Sim? - disse Meistre Aemon.

Jon lançou um olhar cauteloso a Chett, que estava junto à porta, com

os furúnculos vermelhos e zangado.

- Ele podia ajudá-lo - disse rapidamente. - Sabe fazer conta, e sabe ler

e escrever. Sei que Chett não sabe ler, e Clydas tem olhos fracos.

Sam leu todos os livros da biblioteca do pai. Também seria bom com

os corvos. Os animais parecem gostar dele. Fantasma o adotou logo.

Há muito que ele pode fazer além de lutar. A Patrulha da Noite

precisa de todos os homens. Para que matar um sem justificativa?

Em vez disso, por que não usá-lo?

Meistre Aemon fechou os olhos, e por um breve momento Jon temeu

que tivesse adormecido. Por fim, ele disse:

- Meistre Luwin o ensinou bem, Jon Snow. Parece que sua mente é

tão hábil como sua espada.

- Isso quer dizer que...?

- Quer dizer que vou pensar no que disse - o meistre respondeu

firmemente. - E agora creio que estou pronto para dormir. Chett,

acompanhe nosso jovem irmão até a porta.


Tyrion


Tinham se abrigado sob uma pequena mata de faias pretas logo ao

lado da estrada de altitude. Tyrion recolhia lenha enquanto os

cavalos bebiam água de um córrego cujas águas desciam da

montanha. Inclinou-se para apanhar um galho quebrado e o

examinou criticamente.

- Isto serve? Não tenho prática em fazer fogueiras. Morrec tratava

disso por mim.

- Uma fogueira? - disse Bronn, cuspindo. - Tem assim tanta sede de

morte, anão? Ou terá perdido o juízo? Uma fogueira atrairá sobre

nós homens dos clãs vindos de milhas ao redor. Pretendo sobreviver

a esta viagem, Lannister.

- E como espera fazer isso? - Tyrion perguntou. Enfiou o galho

debaixo do braço e espreitou através da pouco densa vegetação

rasteira em busca de mais. Doíam-lhe as costas do esforço de se

dobrar; cavalgavam desde o nascer do dia, quando um Sor Lyn

Corbray com o rosto duro como pedra os fizera atravessar o Portão

Sangrento e lhes ordenara que jamais voltassem.

- Não temos nenhuma chance de abrir caminho lutando - disse

Bronn -, mas dois homens podem cobrir maior distância do que dez,

e atrair menos atenções. Quanto menos dias passarmos nestas

montanhas, mais provável é que alcancemos as terras fluviais. Digo

para cavalgarmos duramente e depressa. Para viajarmos de noite e

nos escondermos de dia, para evitarmos a estrada sempre que

pudermos, para não fazermos barulho e não acendermos fogueiras.

Tyrion Lannister suspirou.

- Um magnífico plano, Bronn. Experimente-o, se quiser... e perdoe-

me que não me detenha para enterrá-lo.

- Pensa sobreviver mais tempo do que eu, anão? - o mercenário

sorriu. Tinha um hiato escuro no sorriso onde a borda do escudo de

Sor Vardis Egen partira um dente ao meio.

Tyrion encolheu os ombros.

- Cavalgar duramente e depressa à noite é uma maneira segura de

cair por uma montanha abaixo e partir o crânio. Prefiro fazer minha

travessia lenta e facilmente. Sei que gosta do sabor do cavalo, Bronn,

mas desta vez, se nossas montarias morrerem, teremos de tentar

colocar selas em gatos-das-sombras.. e, a bem da verdade, penso que

os clãs nos encontrarão, façamos o que fizermos. Seus vigias estão

por todo lado - com um gesto largo da mão enluvada, indicou os

altos penhascos esculpidos pelo vento que os rodeavam.

Bronn fez uma careta.

- Então somos homens mortos, Lannister.

- Se assim for, prefiro morrer confortável - respondeu Tyrion. -

Precisamos de uma fogueira. As noites são frias aqui em cima, e

comida quente nos aquecerá a barriga e animará o espírito. Supõe

que haverá caça? A Senhora Lysa nos forneceu bondosamente um

verdadeiro banquete de carne de vaca salgada, queijo duro e pão

seco, mas eu detestaria quebrar um dente tão longe do meistre mais

próximo.

- Eu consigo encontrar carne - sob uma cascata de cabelos negros, os

olhos de Bronn olharam Tyrion com suspeita. - Devia deixá-lo aqui

com a sua estúpida fogueira. Se levasse seu cavalo, teria duas vezes

mais chances de fazer a travessia. Que faria então, anão?

- Morreria, provavelmente - Tyrion inclinou-se para apanhar outro

graveto.

- Acha que eu não o faria?

- Faria num instante, se isso te salvasse a vida. Foi bastante rápido ao

silenciar teu amigo Chiggen quando ele foi atingido por aquela seta

na barriga - Bronn agarrara os cabelos do homem, puxara-lhe a

cabeça para trás e enterrara a ponta do punhal sob a orelha, e depois

dissera a Catelyn Stark que o mercenário morrera do ferimento,

- Ele não sobreviveria - disse Bronn -, e seus gemidos os estavam

atraindo para onde estávamos. Chiggen teria feito o mesmo por

mim... e não era amigo nenhum, só um homem com quem viajava.

Não se iluda, anão. Lutei por você, mas não sou seu amigo,

- Era da sua espada que eu precisava - disse Tyrion -, não da sua

amizade - deixou cair a braçada de lenha.

Bronn sorriu.

- Você é tão corajoso como qualquer mercenário, tenho de

reconhecer. Como sabia que eu ficaria do seu lado?

- Saber? - Tyrion acocorou-se desajeitadamente nas pernas atrofiadas

para fazer a fogueira. - Lancei os dados. Na estalagem, você e

Chiggen ajudaram que me tomassem como cativo. Por quê? Os

outros viram nisso seu dever, pela honra dos senhores que serviam,

mas vocês dois não. Não tinham senhor nem dever, e, quanto à

honra, era preciosamente pequena, portanto, por que se

incomodaram envolvendo-se no assunto? - puxou a faca e raspou

algumas lascas de um dos gravetos que reunira, para acender o fogo.

- Bem, por que é que os mercenários fazem seja o que for? Pelo

ouro. Pensavam que a Senhora Catelyn os recompensaria pela ajuda,

ou talvez até os tomasse a seu serviço. Pronto, isto deve servir,

espero eu. Tem pedra de fogo?

Bronn enfiou dois dedos na bolsa do cinto e atirou-lhe uma pedra.

Tyrion apanhou-a no ar,

- Muito obrigado - disse. - Mas acontece que vocês não conheciam os

Stark. Lorde Eddard é um homem orgulhoso, honrado e honesto, e a

senhora sua esposa é pior. Ah, não há dúvida de que teria

encontrado uma ou duas moedas para vocês quando tudo terminasse

e as enfiaria em suas mãos com umas palavras bem-educadas e um

olhar de desagrado, mas isso é o máximo que poderiam esperar. Os

Stark procuram coragem, lealdade e honra nos homens que escolhem

para servi-los, e, a bem da verdade, você e Chiggen são escória

malnascida - Tyrion bateu com a pedra de fogo no punhal, tentando

obter uma faísca. Nada.

Bronn resfolegou.

- Você tem uma língua audaciosa, homenzinho. É provável que algum

dia alguém a corte e o obrigue a engoli-la.

- Todo mundo me diz isso - Tyrion olhou para o mercenário de

relance. - Ofendi-o? Minhas desculpas.. mas você é escória, Bronn,

não se iluda. O dever, a honra, a amizade, que é isso para você? Não,

não se incomode, ambos sabemos a resposta. Apesar disso, não é

estúpido. Ao chegarmos ao Vale, a Senhora Stark deixou de ter

necessidade de você.. mas eu tinha, e se há coisa que nunca faltou

aos Lannister é ouro. Quando chegou o momento de lançar os dados,

contei que fosse suficientemente esperto para saber onde residiam os

seus interesses. Felizmente para mim, você era - voltou a bater com a

pedra no aço, mas sem obter frutos.

- Dê aqui - disse Bronn, agachando-se —, eu trato disso - tirou a

faca e a pedra de fogo das mãos de Tyrion e conseguiu faíscas na

primeira tentativa. Uma espiral de casca começou a inflamar-se.

- Muito bem - disse Tyrion. - Até pode ser escória, mas é inegável

que é útil, e com uma espada na mão é quase tão bom como meu

irmão Jaime. Que deseja, Bronn? Ouro? Terras? Mulheres?

Mantenha-me vivo, e o terá.

Bronn soprou suavemente sobre o fogo, e as chamas saltaram mais

alto.

- E se você morrer?

- Ora, nesse caso terei um carpidor cuja dor é sincera - disse Tyrion,

sorrindo. - O ouro acaba quando eu acabar.

O fogo queimava bem. Bronn ergueu-se, voltou a enfiar a pedra na

bolsa e atirou o punhal a Tyrion.

- É justo - disse. - Minha espada é sua, então... mas não espere que

eu ande por aí dobrando o joelho e tratando-o por meu s e n h o r

cada vez que for cagar. Não lambo as botas de ninguém.

- Nem é amigo de ninguém - disse Tyrion. - Não tenho dúvidas de

que me trairia tão depressa como traiu a Senhora Stark se visse nisso

lucro. Se chegar o dia em que se sinta tentado a me vender, lembre-

se do seguinte, Bronn: eu cubro o preço deles, seja qual for. G o s t o

de viver, E agora, acha que poderia arranjar nosso jantar?

- Trate dos cavalos - disse Bronn, desembainhando o longo punhal

que usava na cintura e dirigindo-se para as árvores.

Uma hora mais tarde, os cavalos tinham sido escovados e

alimentados, a fogueira estalava alegremente e o quadril de uma

cabra jovem era virado sobre as chamas, deixando cair gordura e

silvando.

- Só o que nos falta agora é um bom vinho para empurrar nossa

cabrita para baixo - disse Tyrion.

- Isso, uma mulher e mais uma dúzia de espadas - Bronn completou.

Estava sentado de pernas cruzadas junto à fogueira, afiando o gume

da espada com uma pedra de amolar. Havia algo de estranhamente

tranqüilizador no som de raspar que fazia ao percorrer o aço com a

pedra.

- Em breve será noite cerrada - fez notar o mercenário. - Eu fico com

o primeiro turno... sirva isto para o que servir. Provavelmente seria

melhor deixá-los nos matar durante o sono.

- Ah, suponho que estejam aqui muito antes de chegarmos a dormir

- o cheiro da carne que assava fazia com que a boca de Tyrion se

enchesse de água.

Bronn observou-o por cima da fogueira.

- Você tem um plano - disse em tom monocórdio, acompanhando as

palavras com um raspar de aço em pedra.

- Chama-se esperança - disse Tyrion. - Outro lançamento de dados.

- Com nossas vidas como aposta?

Tyrion encolheu os ombros.

- E que escolha temos? - inclinou-se sobre a fogueira e cortou uma

fina fatia de carne do cabrito. - Ahhhh - suspirou, feliz, enquanto

mastigava. Gordura correu-lhe pelo queixo abaixo.

- Um pouco mais dura do que eu gostaria, e falta tempero, mas não

me queixarei alto demais. Se estivesse no Ninho da Águia, estaria

dançando num precipício com a esperança de receber um feijão

cozido.

- E apesar disso, deu ao carcereiro uma bolsa de ouro - disse Bronn.

- Um Lannister sempre paga as suas dívidas.

Até Mord quase não acreditou quando Tyrion lhe atirou a bolsa de

couro. Os olhos do carcereiro tinham se esbugalhado quando puxou

o cordel e admirou o brilho do ouro.

- Fiquei com a prata - dissera-lhe Tyrion com um sorriso torto -, mas

lhe foi prometido o ouro, e aí está ele - era mais que um homem

como Mord poderia esperar ganhar ao longo de uma vida de abuso

sobre os prisioneiros. - E lembre-se do que eu disse: isso é só um

aperitivo. Se alguma vez se cansar do serviço da Senhora Arryn,

apresente-se no Rochedo Casterly e pagarei o resto do que lhe devo -

com dragões de ouro derramando-se das mãos, Mord caíra de joelhos

e prometera que seria isso mesmo o que faria.

Bronn sacou o punhal e puxou a carne da fogueira. Começou a

cortar grossos pedaços de carne chamuscada enquanto Tyrion

arrumava duas fatias de pão duro para servir de tabuleiros,

- Se chegarmos ao rio, o que fará? - perguntou o mercenário

enquanto cortava.

- Ah, para começar, uma prostituta, uma cama de penas e um jarro

de vinho - Tyrion estendeu seu tabuleiro e Bronn o encheu de carne.

- E depois penso que irei para Rochedo Casterly ou Porto Real.

Tenho algumas perguntas que precisam de respostas a respeito de

um certo punhal.

O mercenário mastigou e engoliu.

- Então estava falando a verdade? Não era sua a faca?

Tyrion fez um pequeno sorriso.

- Pareço-lhe um mentiroso?

Quando suas barrigas ficaram cheias, as estrelas já tinham surgido e

uma meia-lua erguia-se sobre as montanhas. Tyrion estendeu no

chão o manto de pele de gato-das-sombras e deitou-se, usando a sela

como almofada.

- Nossos amigos estão ganhando tempo.

- Se eu estivesse no lugar deles, temeria uma armadilha - disse

Bronn. - Que motivo haveria para estarmos tão abertos, além de

funcionarmos como isca?

Tyrion soltou um risinho.

- Então deveríamos cantar, para que fugissem aterrorizados - e

começou a assobiar uma melodia.

- Você é louco, anão - disse Bronn, enquanto limpava a gordura por

debaixo das unhas com o punhal.

- Onde está o seu amor pela música, Bronn?

- Se era música o que queria, devia ter ficado com o cantor como

campeão. Tyrion sorriu.

- Isso teria sido divertido. Estou mesmo vendo-o parar as estocadas

de Sor Vardis com a harpa - reatou os assobios. - Conhece esta

canção? - perguntou.

- Ouve-se aqui e ali, em estalagens e bordéis.

- É de Myr. "As Estações do Meu Amor." Doce e triste, se

compreender as palavras. A primeira mulher com que me deitei

costumava cantá-la, e nunca fui capaz de tirá-la da cabeça - Tyrion

olhou para o céu. Estava uma noite fria e límpida, e as estrelas

brilhavam sobre as montanhas, tão brilhantes e sem misericórdia

como a verdade. - Encontrei-a numa noite como esta - ouviu-se

dizer. - Jaime e eu vínhamos de volta de Lannisporto quando

ouvimos um grito, e ela apareceu correndo pela estrada com dois

homens no seu encalço, e gritando ameaças. Meu irmão

desembainhou a espada e foi atrás deles, enquanto eu desmontava

para proteger a jovem. Era quase um ano mais velha que eu, de

cabelos escuros, esguia, com um rosto que te partiria o coração.

Certamente que partiu o meu. Malnascida, meio morta de fome,

suja... mas mesmo assim adorável. Tinham-lhe arrancado metade das

costas dos farrapos que vestia, e por isso enrolei-a no meu manto

enquanto Jaime perseguia os homens na floresta. Quando regressou,

a trote, já tinha arrancado dela um nome e uma história. Era filha de

um pequeno caseiro, tornada órfã quando o pai morrera de febre, a

caminho de.. bem, na verdade de parte alguma. Jaime estava todo

eriçado para ir à caça dos homens. Não era frequente que foras da lei

se atrevessem a atacar os viajantes tão perto do Rochedo Casterly, e

ele tomou aquilo como um insulto. Mas a moça estava assustada

demais para partir sozinha, e assim me ofereci para levá-la até a

estalagem mais próxima e alimentá-la enquanto meu irmão cavalgava

de volta ao Rochedo para buscar ajuda. Ela estava com mais fome do

que eu julgaria possível. Acabamos com dois frangos inteiros e parte

de um terceiro, e bebemos um jarro de vinho, conversando. Eu só

tinha treze anos, e temo que o vinho me tenha subido à cabeça.

Quando dei por mim, partilhava a sua cama. Se ela era tímida, mais

tímido era eu. Nunca saberei onde encontrei coragem. Quando lhe

rompi a virgindade, ela chorou, mas depois me beijou e cantou a sua

cançãozinha, e quando a manhã chegou, eu estava apaixonado.

- Você? - a voz de Bronn soava divertida.

- Absurdo, não é? - Tyrion recomeçou a assobiar a canção. - Casei

com ela - admitiu por fim.

- Um Lannister de Rochedo Casterly casado com a filha de um

caseiro - disse Bronn. -Como conseguiu isso?

- Ah, ficaria espantado com o que um rapaz pode fazer com algumas

mentiras, cinquenta peças de prata e um septão bêbado. Não me

atrevi a levar minha noiva para casa, no Rochedo Casterly, por isso

lhe arranjei uma casa de campo e durante uma quinzena brincamos

de marido e mulher. E então passou a bebedeira do septão, que

confessou tudo ao senhor meu pai - Tyrion surpreendeu-se com o

modo como dizer aquilo o fazia sentir-se desolado, mesmo depois de

tantos anos. Talvez estivesse apenas cansado. - Assim foi o fim do

meu casamento - sentou-se e fixou os olhos na fogueira que se

extinguia, piscando.

- Mandou a moça embora?

- Fez melhor que isso - disse Tyrion. - Primeiro, obrigou meu irmão

a me contar a verdade. A moça era uma prostituta, percebe? Jaime

organizou tudo, a estrada, os foras da lei, tudo. Achou que já era

tempo que eu tivesse uma mulher. Pagou o dobro por uma donzela,

sabendo que seria minha primeira vez. Depois de Jaime ter feito sua

confissão, para que a lição ficasse bem aprendida, Lorde Tywin

trouxe minha esposa e a deu aos guardas. Pagaram-lhe bem. Uma

peça de prata por cada homem; quantas prostitutas exigem um preço

tão elevado? Sentou-me a um canto da caserna e obrigou-me a

assistir e, no final, ela tinha tantas peças de prata que as moedas

escorregavam entre seus dedos e rolavam para o chão, ela.. - a

fumaça estava ardendo em seus olhos, Tyrion limpou a garganta e

desviou o olhar do fogo, perdendo-o na escuridão. - Lorde Tywin

obrigou-me a ser o último - disse em voz baixa. - E me deu uma

moeda de ouro para pagá-la, porque era um Lannister, e por isso

valia mais.

Depois de algum tempo, ele voltou a ouvir o barulho, o raspar de aço

na pedra em que Bronn afiava a espada.

- Com treze, trinta ou três anos, eu teria matado o homem que me

fizesse isso. Tyrion virou-se para encará-lo.

- Pode ter essa chance um dia. Lembre-se do que lhe disse. Um

Lannister paga sempre suas dívidas - bocejou. - Acho que vou tentar

dormir. Acorde-me se estivermos prestes a morrer.

Enrolou-se na pele de gato-das-sombras e fechou os olhos. O chão

era pedregoso e frio, mas passado algum tempo Tyrion Lannister

adormeceu. Sonhou com a cela aberta. Dessa vez ele era o carcereiro,

não o prisioneiro, g r a n d e , com uma correia na mão, e batia no pai,

empurrando-o para trás, na direção do abismo...

- T y r i o n - o aviso de Bronn era baixo e urgente.

Tyrion acordou num piscar de olhos. A fogueira tinha se reduzido a

brasas, e as sombras aproximavam-se de todos os lados, Bronn

apoiara-se no joelho, com a espada em uma mão e o punhal na

outra. Tyrion ergueu a mão: f i c a q u i e t o , ela dizia.

- Venham partilhar da nossa fogueira, a noite está fria - gritou para

as sombras que se aproximavam. - Temo que não tenhamos vinho

para lhes oferecer, mas podem servir-se de um pouco da nossa cabra.

Todo o movimento parou. Tyrion viu a cintilação do luar vinda de

um metal.

- A montanha é nossa - gritou uma voz das árvores, profunda, dura e

nada amistosa. - A cabra é nossa.

- A cabra é sua - concordou Tyrion. - Quem são?

- Quando se encontrarem com os seus deuses - respondeu uma voz

diferente -, digam que foi Gunthor, filho de Gurn, dos Corvos de

Pedra, quem os enviou até eles - um galho se quebrou quando ele

avançou para a luz; um homem magro com um capacete provido de

chifres, armado com uma longa faca.

- E Shagga, filho de Dolf - aquela era a primeira voz, profunda e

mortífera. Um pedregulho deslocou-se para a esquerda, pôs-se de pé

e transformou-se num homem. Parecia maciço, lento e forte, todo

vestido de peles, com uma clava na mão direita e um machado na

esquerda. Bateu as armas uma contra a outra ao se aproximar.

Outras vozes gritaram outros nomes, Cronn, Torrek, Jaggot e mais,

que Tyrion esqueceu no instante em que os ouviu; pelo menos dez.

Alguns traziam espadas e facas; outros brandiam forquilhas, foices e

lanças de madeira. Esperou até que tivessem terminado de gritar

seus nomes antes de lhes dar resposta.

- Sou Tyrion, filho de Tywin, do Clã Lannister, os Leões do Rochedo.

De bom grado lhes pagaremos pela cabra que comemos.

- Que tem você para nos dar, Tyrion, filho de Tywin? - perguntou

aquele que chamara a si próprio Gunthor, que parecia ser o chefe do

bando.

- Há prata na minha bolsa - disse-lhes Tyrion. - Esta cota de malha

que uso está grande para mim, mas deve servir bem a Conn, e o

machado de batalha que transporto se adequará à poderosa mão de

Shagga muito melhor que o machado de cortar lenha que ele tem.

- O meio homem quer nos pagar com as nossas próprias moedas -

disse Cronn.

- Cronn fala a verdade - disse Gunthor. - Sua prata é nossa. Seus

cavalos são nossos. Sua cota de malha, seu machado de batalha e a

faca que tem no cinto também são nossos, Não têm nada para nos

dar exceto suas vidas, Como quer morrer, Tyrion, filho de Tywin?

- Na minha cama, com a barriga cheia de vinho e meu membro na

boca de uma donzela, aos oitenta anos de idade — respondeu.

O grandalhão, Shagga, foi o primeiro a rir e o que riu mais alto. Os

outros pareceram menos divertidos.

- Cronn, trate dos cavalos - ordenou Gunthor. - Matem o outro e

capturem o meio homem. Ele poderá ordenhar as cabras e divertir as

mães.

Bronn pôs-se em pé de um salto.

- Quem morre primeiro?

- Não! - disse Tyrion em tom penetrante. - Gunthor, filho de Gurn,

escute-me. Minha Casa é rica e poderosa. Se os Corvos de Pedra nos

levarem em segurança através destas montanhas, o senhor meu pai

vos encherá de ouro.

- O ouro de um senhor das Terras Baixas é tão inútil como as

promessas de um meio homem - Gunthor respondeu.

- Até posso ser meio homem - disse Tyrion -, mas tenho a coragem

de enfrentar os meus inimigos, O que fazem os Corvos de Pedra

enquanto os cavaleiros do Vale passam por eles, além de se

esconderem atrás das rochas e tremerem de medo?

Shagga soltou um rugido de raiva e atirou a clava contra o machado,

Jaggot cutucou o rosto de Tyrion com a ponta endurecida pelo fogo

de uma longa lança de madeira. O anão fez o possível para não

vacilar.

- Essas são as melhores armas que conseguem roubar? - disse. -

Talvez sirvam para matar ovelhas... se as ovelhas não lutarem. Os

ferreiros do meu pai cagam melhor aço que esse.

- Homenzinho - rugiu Shagga -, continuará caçoando do meu

machado depois de lhe cortar o membro viril e dá-lo de comer às

cabras?

Mas Gunthor ergueu a mão.

- Não. Quero ouvir suas palavras. As mães passam fome, e o aço

enche mais bocas que o ouro. O que nos daria em troca de suas

vidas, Tyrion, filho de Tywin? Espadas? Lanças? Cotas de malha?

- Tudo isso, e mais, Gunthor, filho de Gurn - respondeu Tyrion

Lannister, sorrindo. - Eu lhe darei o Vale de Arryn.


Eddard


Entrando pelas altas e estreitas janelas da cavernosa sala do trono da

Fortaleza Vermelha, a luz do pôr do sol derramava-se pelo chão,

depositando listras vermelhas escuras nas paredes onde as cabeças

dos dragões tinham estado penduradas antes. Agora, a pedra

encontrava-se coberta por tapeçarias que mostravam vívidas cenas de

caça, cheias de azuis, verdes e marrons, mas, mesmo assim, parecia a

Ned Stark que a única cor existente no salão era o vermelho do

sangue.

Estava sentado bem alto, no imenso e antigo cadeirão de Aegon, o

Conquistador, uma monstruosidade trabalhada em ferro, toda ela

hastes, arestas irregulares e metal grotescamente retorcido. Era, tal

como Robert prevenira, uma cadeira infernalmente desconfortável, e

nunca o tinha sido mais do que naquele momento em que sua perna

estilhaçada latejava mais penetrantemente a cada minuto. O metal

em que se apoiava tornava-se mais duro com o passar do tempo, e o

aço coberto de dentes que tinha atrás das costas tornava impossível

recostar-se. Um rei nunca deve se sentar à vontade, dissera Aegon, o

Conquistador, quando ordenara aos armeiros que forjassem um

grande trono a partir das espadas depostas pelos seus inimigos.

M a l d i t o s e j a A e g o n p e l a s u a a r r o g â n c i a , pensou Ned,

carrancudo, e m a l d i t o s e j a t a m b é m R o b e r t e s u a s

c a ç a d a s ,

- Tem certeza absoluta de que eram mais que salteadores? -

perguntou suavemente Varys da mesa do conselho abaixo do trono.

O Grande Meistre Pycelle agitou-se ao seu lado, pouco à vontade, e

Mindinho pôs-se a brincar com uma pena. Eram os únicos

conselheiros presentes. Fora avistado um veado branco na

Mataderrei, e Lorde Renly e Sor Barristan tinham se juntado ao rei

na caçada, bem como Príncipe Joffrey, Sandor Clegane, Balon Swann

e metade da corte. E assim, Ned tinha de ocupar o Trono de Ferro

na sua ausência.

Pelo menos p o d i a se sentar. A exceção do conselho, os outros

tinham de ficar respeitosamente em pé ou de joelhos. Os

peticionários que se aglomeravam perto das grandes portas, os

cavaleiros e grandes senhores e senhoras sob as tapeçarias, a arraia-

miúda na galeria, os guardas cobertos de cota de malha e de mantos

dourados ou cinzentos, todos estavam em pé.

Os aldeãos estavam ajoelhados: homens, mulheres e crianças,

igualmente esfarrapados e ensanguentados, com o rosto distorcido

pelo medo. Os três cavaleiros que os tinham trazido até ali para

prestar testemunho estavam em pé atrás deles.

- S a l t e a d o r e s , Lorde Varys? - a voz de Sor Raymun Darry pingava

desprezo. - Ah, eram salteadores, para lá de qualquer dúvida.

Salteadores Lannister.

Ned conseguia sentir o desconforto no salão enquanto, dos grandes

senhores aos criados, todos se esforçavam para escutar. Não podia

fingir surpresa. O Ocidente transformara-se num barril de pólvora

desde que Catelyn capturara Tyrion Lannister. Quer Correrrio quer

Rochedo Casterly tinham convocado os vassalos, e reuniam-se

exércitos no desfiladeiro sob o Dente

Dourado. Fora apenas uma questão de tempo até que o sangue

começasse a jorrar. A única questão que restava sem resposta era

qual a melhor forma de estancá-lo.

Sor Karyl Vance, de olhos tristes, que teria sido bonito não fosse a

marca de nascença que lhe roubava a cor do rosto, indicou com um

gesto os aldeãos ajoelhados,

- Isto é tudo o que resta do castro de Sherrer, Lorde Eddard. Os

outros estão mortos, tal como o povo de Vila Vêneda e do Vau do

Saltimbanco.

- Ergam-se - ordenou Ned aos aldeãos. Nunca confiara no que os

homens lhe diziam de joelhos. - Todos em pé.

Um a um ou aos pares, o castro de Sherrer pôs-se em pé com

dificuldade. Um ancião precisou ser ajudado, e uma menininha com o

vestido ensanguentado ficou de joelhos, olhando sem expressão para

Sor Arys Oakheart, que se aprumava junto à base do trono na

armadura branca da Guarda Real, pronto a proteger e defender o

rei... ou, ao que Ned supunha, a Mão do Rei.

- Joss - disse Sor Raymun Darry, dirigindo-se a um homem roliço que

começava a perder os cabelos, vestido com um avental de cervejeiro.

- Conta à Mão o que aconteceu em Sherrer.

Joss inclinou a cabeça.

- Se Vossa Graça deixar. .

- Sua Graça está caçando para lá do Água Negra - disse Ned,

perguntando a si próprio como era possível que um homem passasse

a vida inteira a poucos dias de viagem da Fortaleza Vermelha e não

fizesse ideia alguma do aspecto de seu rei. Ned trajava um gibão de

linho branco com o lobo gigante dos Stark no peito; seu manto de lã

negra estava preso ao colarinho pela mão de prata do cargo. Negro,

branco e cinza, todos os tons da verdade. - Sou Lorde Eddard Stark,

a Mão do Rei. Diga-me quem é e o que sabe desses salteadores.

- Eu tenho.. t in h a. . . eu tinha uma cervejaria, senhor, em Sherrer,

junto à ponte de pedra. A melhor cerveja ao sul do Gargalo, todos

diziam, com a vossa licença, senhor. Agora já não existe, como todo o

resto, senhor. Eles chegaram, beberam o que quiseram e derramaram

o resto antes de atear fogo ao meu telhado, e teriam também

derramado meu sangue se me tivessem apanhado, senhor.

- Eles queimaram tudo - disse um agricultor ao seu lado. - Saíram a

cavalo na escuridão, do sul, e atearam fogo tanto nos campos como

nas casas, matando quem tentava impedi-los. Mas não eram

salteadores, não, senhor. Não faziam tenção de nos roubar o gado,

estes, não, mataram minha vaca leiteira no lugar em que a

encontraram e a deixaram para os corvos e as moscas.

- Mataram meu aprendiz - disse um homem atarracado com

músculos de ferreiro e uma atadura em torno da cabeça. Vestira suas

melhores roupas para vir até a corte, mas tinha as calças remendadas

e o manto manchado e empoeirado pela viagem. - Perseguiram-no à

cavalo, de um lado para o outro, pelos campos, espetando-lhe as

lanças como se fosse um jogo, eles rindo e o rapaz tropeçando e

gritando, até que o grande o trespassou.

A jovem ajoelhada ergueu a cabeça para Ned, muito acima dela, no

trono.

- Também mataram minha mãe, Vossa Graça. E eles... eles... - a voz

extinguiu-se, como se se tivesse esquecido do que ia dizer, e começou

a soluçar.

Sor Raymun Darry retomou a história.

- Em Vila Vêneda o povo procurou refúgio no castro, mas os muros

eram de madeira. Os atacantes empilharam palha contra a madeira e

queimaram todos vivos. Quando as pessoas de Vêneda abriram os

portões para fugir do fogo, foram abatidas com setas à medida que

corriam, até mesmo mulheres com bebês de colo.

- Ah, que horror - murmurou Varys. - Quão cruéis podem ser os

homens?

- Gostariam de ter feito o mesmo com a gente, mas o castro de

Sherrer é feito de pedra - disse Joss, - Alguns queriam nos fazer sair

com nuvens de fumaça, mas o grande disse que havia fruta madura

mais acima no rio, e seguiram para o Vau do Saltimbanco.

Ned sentiu o aço frio entre os dedos quando se inclinou para a

frente. Entre cada dedo havia uma lâmina, pontas de espadas

retorcidas que se projetavam em leque, como garras, dos braços do

trono. Mesmo após três séculos, algumas ainda eram suficientemente

afiadas para cortar. O Trono de Ferro estava cheio de armadilhas

para os incautos. Segundo as canções, tinham sido necessárias mil

lâminas para fazê-lo, aquecidas até brilharem, brancas, pelo sopro de

fornalha de Balerion, o Terror Negro. A batedura levara cinquenta e

nove dias. E o resultado fora aquela besta negra e corcovada feita de

gumes de lâminas, farpas e tiras de metal aguçado; uma cadeira

capaz de matar um homem, e que já o fizera, se fosse possível

acreditar nas histórias,

Eddard Stark nunca conseguiria compreender o que fazia sentado

nela, mas ali estava, e aquelas pessoas buscavam nele justiça.

- Que prova há de serem Lannister? - perguntou, tentando manter a

fúria controlada. -Usavam mantos carmesins ou ostentavam um

estandarte do leão?

- Nem mesmo os Lannister são assim tão imbecis - exclamou Sor

Marq Piper. Era um jovem garnisé arrogante, novo demais e com o

sangue quente demais para o gosto de Ned, apesar de ser grande

amigo do irmão de Catelyn, Edmure Tully.

- Todos eles estavam a cavalo e usavam cotas de malha, senhor -

respondeu calmamente Sor Karyl, - Estavam armados com lanças de

pontas de aço e espadas longas, e machados de batalha para o

massacre - fez um gesto para um. dos esfarrapados sobreviventes. -

Você. Sim, você, ninguém vai lhe fazer mal. Conta à Mão o que me

contou.

O velho homem inclinou a cabeça.

- A respeito dos cavalos - disse -, o que montavam eram cavalos de

batalha. Trabalhei muitos anos nos estábulos do velho Sor Willum e

sei qual é a diferença. Nenhum daqueles animais puxou algum dia

uma charrua, que os deuses sejam testemunhas do que digo.

- Salteadores bem montados - observou Mindinho. - Talvez tenham

roubado os cavalos do último lugar que saquearam.

- Quantos homens tinha esse grupo? - perguntou Ned.

- Uma centena, pelo menos - respondeu Joss, no mesmo instante em

que o ferreiro com a atadura dizia "Cinquenta" e a avó atrás dele,

"Centos e centos, senhor, eram um exército, ah, se eram."

- A senhora tem mais razão do que pensa, boa mulher - disse-lhe

Lorde Eddard. - Dizem que não ostentavam estandartes. Então, e as

armaduras? Alguém reparou em ornamentos ou distintivos, divisas

em escudos ou elmos?

O cervejeiro, Joss, balançou a cabeça,

- Entristece-me dizê-lo, senhor, mas não, as armaduras que usavam

eram simples, só.. aquele que os liderava, sua armadura era igual à

dos outros, mas mesmo assim não era possível confundi-lo. Era o

tamanho, senhor. Os que dizem que todos os gigantes estão mortos

nunca viram aquele, juro. Era grande como um touro, era sim, e

tinha uma voz como pedra se partindo.

- A M o n t an h a . - disse Sor Marq ruidosamente. - Poderá alguém

duvidar? Isto foi trabalho de Gregor Clegane.

Ned ouviu os murmúrios que emanaram sob as janelas e da

extremidade mais distante do salão. Até na galeria se trocaram

sussurros nervosos. Tanto os grandes senhores como a gente simples

sabiam o que poderia significar provar que Sor Marq tinha razão.

Sor Gregor Clegane era vassalo de Lorde Tywin Lannister.

Estudou os rostos assustados dos aldeãos. Pouco admirava que

estivessem tão medrosos; tinham pensado que estavam sendo

arrastados até ali para chamar Lorde Tywin de carniceiro perante um

rei que era seu filho por casamento. Perguntou a si mesmo se os

cavaleiros lhes tinham dado alguma escolha.

O Grande Meistre Pycelle ergueu-se solenemente da mesa do

conselho, com a corrente do seu cargo a tilintar.

- Sor Marq, com o devido respeito, não há como saber se este fora da

lei era Sor Gregor. Há muitos homens grandes no reino.

- Tão grandes como a Montanha Que Cavalga? - disse Sor Karyl. -

Nunca encontrei nenhum.

- Nem nenhum dos presentes - acrescentou Sor Raymun em tom

acalorado. - Até o irmão é um cachorrinho ao seu lado. Senhores,

abram os olhos. Será preciso ver o seu selo nos cadáveres? Foi

Gregor.

- Por que haveria Sor Gregor de se transformar em salteador? -

perguntou Pycelle. - Pela graça do seu suserano, possui uma fortaleza

robusta e terras próprias. O homem é um cavaleiro ungido.

- Um falso cavaleiro! - disse Sor Marq. - O cão raivoso de Lorde

Tywin.

- Senhor Mão - declarou Pycelle numa voz rígida -, peço-lhe recordar

a este b o m cavaleiro que Lorde Tywin Lannister é o pai da nossa

graciosa rainha.

- Obrigado, Grande Meistre Pycelle - disse Ned. - Temo que

pudéssemos nos esquecer deste fato se não nos tivesse feito notar.

De cima do trono podia ver homens que se esgueiravam pela porta,

no fundo do salão. Lebres que regressavam às tocas, supôs... ou

ratazanas que partiam para mordiscar o queijo da rainha. Viu de

relance Septã Mordane na galeria, com a filha Sansa ao seu lado. Ned

sentiu uma ira súbita; aquele não era lugar para uma menina. Mas a

septã não poderia saber que a audiência de hoje seria diferente do

habitual tédio de escutar petições, resolver disputas entre

proprietários de terras rivais e arbitrar a colocação de pedras de

demarcação de terras.

Na mesa do conselho, abaixo, Petyr Baelish perdeu o interesse na sua

pena e inclinou-se para a frente.

- Sor Marq, Sor Karyl, Sor Raymun... será que posso colocar uma

questão? Esses lugares estavam sob a vossa proteção. Onde estavam

enquanto decorriam estes massacres e incêndios?

Sor Karyl Vance respondeu:

- Eu estava prestando serviço ao senhor meu pai no desfiladeiro sob

o Dente Dourado, tal como Sor Marq, Quando a notícia destes

ultrajes chegou a Sor Edmure Tully, ordenou que levássemos uma

pequena força a fim de encontrar os sobreviventes que

conseguíssemos e trazê-los até o rei.

Sor Raymun Darry interveio.

- Sor Edmure tinha me chamado a Correrrio com todos os meus

homens. Estava acampado perto de suas muralhas, do outro lado do

rio, à espera de suas ordens, quando a notícia me chegou. Quando

consegui regressar às minhas terras, já Clegane e a sua ralé tinham

atravessado o Ramo Vermelho, de regresso aos montes dos Lannister.

Mindinho afagou pensativamente a ponta da barba.

- E se voltarem, sor?

- Então, usaremos o seu sangue para regar os campos que

queimaram - declarou acaloradamente Sor Marq Piper.

- Sor Edmure enviou homens para todas as aldeias e castelos a um

dia de viagem da fronteira - explicou Sor Karyl. - Para o próximo

atacante as coisas já não serão assim tão fáceis.

E i s s o p o d e s e r p r e c i s a m e n t e o q u e L o r d e T y w i n q u e r ,

pensou Ned, p a r a r e d u z i r a f o r ç a d e C o r r e r r i o , l e v a n d o

o r a p a z a e s p a l h a r a s s u a s a r m a s . O irmão de sua esposa

era jovem, e mais valente que sábio. Tentaria guardar cada polegada

de seu solo, defender todos os homens, mulheres e crianças que o

chamavam de senhor, e Tywin Lannister era suficientemente astuto

para saber disso.

- Se os seus campos e propriedades estão a salvo - dizia Lorde Petyr

-, o que querem então da coroa?

- Os senhores do Tridente mantêm a paz do rei - disse Sor Raymun

Darry. - Os Lannister a quebraram. Pedimos licença para lhes

responder, aço contra aço. Pedimos justiça para o povo de Sherrer,

Vila Vêneda e Vau do Saltimbanco.

- Edmure concorda que devemos pagar a Gregor Clegane na sua

sangrenta moeda - declarou Sor Marq -, mas o velho Lorde Hoster

ordenou que viajássemos até aqui para pedir licença ao rei antes de

atacar.

E n t ã o , g r a ç a s a o s d e u s e s p e l o v e l h o L o r d e H o s t e r .

Tywin Lannister era tanto raposa como leão, Se tinha de fato enviado

Sor Gregor para incendiar e pilhar, e Ned não duvidava que o tivesse

feito, tivera o cuidado de garantir que Clegane avançasse na

cobertura da noite, sem estandartes, sob o disfarce de um salteador

comum. Se Correrrio respondesse ao ataque, Cersei e o pai

insistiriam em que tinham sido os Tully e não os Lannister a quebrar

a paz do rei. Só os deuses sabiam no que acreditaria Robert.

O Grande Meistre Pycelle estava de novo em pé.

- Senhor Mão, se esta boa gente acredita que Sor Gregor esqueceu

seus votos sagrados para se dedicar ao saque e à violação, que vão se

queixar ao seu suserano. Estes crimes não dizem respeito à coroa.

Que procurem a justiça de Lorde Tywin.

- Tudo é a justiça do rei - disse-lhe Ned. - No norte, no sul, no oeste

e no leste, tudo o que fazemos, fazemos em nome de Robert.

- A justiça do r e i - disse o Grande Meistre Pycelle. - É bem verdade,

e por isso deveríamos adiar este assunto até que o rei...

- O rei está caçando para lá do rio e pode regressar só daqui a dias -

observou Lorde Eddard.

- Robert pediu-me que sentasse aqui no seu lugar, para ouvir com os

seus ouvidos e falar com a sua voz. Pretendo fazer isso mesmo...

embora concorde que ele deva ser informado - então viu um rosto

familiar sob as tapeçarias. - Sor Robar.

Sor Robar Royce avançou e fez uma reverência.

- Senhor.

- Seu pai está caçando com o rei - disse Ned. - Pode fazer chegar até

ele a notícia do que foi aqui dito e feito hoje?

- Imediatamente, senhor.

- Temos então a sua licença para exercer vingança contra Sor

Gregor? - perguntou Marq Piper à Mão.

- Vingança? - disse Ned. - Pensei que estávamos falando de justiça.

Queimar os campos de Clegane e matar a sua gente não restaurará a

paz do rei, mas apenas o seu orgulho ferido - afastou o olhar antes

que o jovem cavaleiro desse voz ao seu ultrajado protesto e dirigiu-se

aos aldeãos.

- Povo de Sherrer, não posso devolver as casas e colheitas nem sou

capaz de trazer os mortos de volta à vida. Mas talvez possa conceder

um pouco de justiça, em nome do nosso rei, Robert.

Todos os olhos no salão estavam postos nele, à espera. Lentamente,

Ned lutou para se pôr em pé, erguendo-se do trono com a força dos

braços, com a perna quebrada gritando dentro do gesso. Fez o que

pôde para ignorar a dor; não era o momento de deixar que vissem a

sua fraqueza.

- Os Primeiros Homens acreditavam que o juiz que clamasse pela

morte devia manejar a espada, e no Norte ainda mantemos esse

costume. Não me agrada enviar outro para matar em meu nome...,

mas parece que não tenho escolha - indicou com um gesto a perna

quebrada.

- L o rd e E d d a rd ! - o grito veio da ala leste do salão quando um

bonito adolescente avançou ousadamente a passos largos. Sem a

armadura, Sor Loras Tyrell parecia ter menos ainda do que os seus

dezesseis anos. Trajava seda azul-clara, e o cinto era uma corrente de

rosas douradas, o símbolo de sua Casa. - Suplico a honra de agir em

vosso lugar. Atribua-me esta tarefa, senhor, e juro que não vos

deixarei ficar mal.

Mindinho soltou um risinho.

- Sor Loras, se o enviarmos sozinho, Sor Gregor nos mandará de

volta a sua cabeça com uma ameixa enfiada nessa linda boca. A

Montanha não é do tipo que dobra o pescoço perante a justiça de

qualquer homem.

- Não temo Gregor Clegane - disse Sor Loras altivamente.

Ned deixou-se cair lentamente sobre o duro assento de ferro do

deformado trono de Aegon. Seus olhos procuraram entre os rostos

junto à parede,

- Lorde Beric - chamou -, Thoros de Myr. Sor Gladden. Lorde Lothar

- os homens nomeados avançaram um por um. - Cada um de vocês

deverá reunir vinte homens para levar as minhas ordens à fortaleza

de Gregor. Vinte dos meus guardas irão junto. Lorde Beric

Dondarrion, o comando é seu, como é próprio da sua posição.

O jovem senhor de cabelos ruivos aloirados fez uma reverência.

- Às vossas ordens, Lorde Eddard.

Ned ergueu a voz para que fosse levada até a extremidade mais

distante da sala do trono.

- Em nome de Robert, o Primeiro do seu Nome, Rei dos Ândalos e

dos Roinares e dos Primeiros Homens, Senhor dos Sete Reinos e

Protetor do Território, pela voz de Eddard da Casa Stark, sua Mão,

encarrego os senhores de seguirem a toda pressa às terras do

Ocidente, atravessarem o Ramo Vermelho do Tridente sob a

bandeira do rei e de lá levarem a justiça do rei ao falso cavaleiro

Gregor Clegane e a todos os que partilharam dos seus crimes.

Denuncio-o, acuso-o e despojo-o de sua posição e seus títulos, de

todas as terras, rendimentos e domínios, e sentencio-o à morte. Que

os deuses se apiedem de sua alma.

Quando o eco de suas palavras se extinguiu, o Cavaleiro das Flores

pareceu perplexo.

- Lorde Eddard, e eu?

Ned o olhou. De sua posição elevada, Loras Tyrell parecia quase tão

novo como Robb.

- Ninguém duvida de seu valor, Sor Loras, mas nosso assunto aqui é

a justiça, e o que você busca é a vingança - voltou a olhar para Lorde

Beric. - Partirão à primeira luz. Estas coisas são mais bem tratadas

depressa - ergueu a mão. - A coroa não ouvirá mais petições hoje.

Alyn e Porther subiram os íngremes degraus de ferro para ajudá-lo a

descer. Enquanto desciam, conseguia sentir o carrancudo olhar de

Loras Tyrell, mas quando chegou ao chão da sala do trono o rapaz já

se afastara a passos largos.

Na base do Trono de Ferro Varys recolhia papéis da mesa do

conselho. Mindinho e o Grande Meistre Pycelle já tinham se retirado.

- É um homem mais corajoso que eu, senhor - disse suavemente o

eunuco.

- Por que, Lorde Varys? - Ned perguntou bruscamente. Sentia a

perna latejar e não estava com disposição para jogos de palavras.

- Se fosse eu a estar ali em cima, teria enviado Sor Loras. Ele queria

t a n t o ir... e um homem que tem os Lannister como inimigos faria

bem em fazer dos Tyrell seus amigos.

- Sor Loras é jovem - disse Ned. - Atrevo-me a dizer que ele superará

o desapontamento.

- E Sor Ilyn? - o eunuco afagou a bochecha rechonchuda e empoada.

- Afinal de contas, ele é o Magistrado do Rei. Enviar outros homens

para desempenhar o seu trabalho... alguns poderiam interpretá-lo

como um grave insulto.

- Não houve intenção alguma de lhe faltar com o respeito - na

verdade, Ned não confiava no cavaleiro mudo, embora esse fato

talvez se devesse apenas ao seu desagrado por carrascos. - Recordo-

lhe que os Payne são vassalos da Casa Lannister. Julguei que seria

melhor escolher homens que não devessem lealdade a Lorde Tywin,

- Muito prudente, sem dúvida - disse Varys. - Mesmo assim, vi, por

um acaso, Sor Ilyn ao fundo do salão, olhando-nos com aqueles seus

olhos claros, e devo dizer que não parecia contente, embora seja bem

verdade que é difícil ter certeza com o nosso silencioso cavaleiro.

Espero que também ele supere o desapontamento. Ele a m a tanto o

trabalho que faz...


Sansa


- Ele não quis enviar Sor Loras - disse Sansa ajeyne Poole naquela

noite, enquanto partilhavam um jantar frio à luz das candeias. - Acho

que foi por causa da perna. Lorde Eddard jantara no quarto, com

Alyn, Harwin e Vayon Poole, a fim de repousar a perna quebrada, e

Septã Mordane queixara-se de ter os pés doloridos depois de ficar o

dia inteiro em pé na galeria. Esperava-se que Arya se juntasse a eles,

mas seu regresso da aula de dança estava atrasado.

- A perna? - disse Jeyne em tom incerto. Era uma menina bonita, de

cabelos escuros, e tinha a mesma idade de Sansa. - Sor Loras

machucou a perna?

- Não é a perna d e l e - disse Sansa, mordiscando delicadamente uma

coxa de galinha. - É a perna do meu p a i , tontinha. Dói-lhe tanto

que o faz praguejar. Se não fosse isso, tenho certeza de que teria

enviado Sor Loras.

A decisão do pai ainda a confundia. Quando o Cavaleiro das Flores

falou, teve a certeza de que estava prestes a ver as histórias da Velha

Ama tomar vida. Sor Gregor era o monstro e Sor Loras, o herói leal

que o mataria. Ele até p a r e c i a um herói leal, tão magro e belo, com

rosas douradas em volta do peito esguio e os ricos cabelos castanhos

caindo sobre os olhos. E então o pai o r e j e i t a r a . Aquilo a

perturbara imensamente. Dissera isso à Septã Mordane enquanto

desciam as escadas da galeria, mas ela lhe respondera apenas que

não lhe competia questionar as decisões do senhor seu pai.

Foi então que Lorde Baelish disse:

- Ah, não sei, septã. Algumas das decisões do senhor seu pai podiam

bem ser um pouco questionadas. A jovem senhora é tão sábia como

adorável - fez uma elaborada reverência a Sansa, tão profunda que

ela ficou na dúvida sobre se estaria sendo cumprimentada ou

escarnecida.

Septã Mordane ficara m u i t o perturbada ao se dar conta de que

Lorde Baelish a ouvira.

- A menina estava apenas falando, senhor - ela retrucou. - Tagarelice

sem importância. Ela não quis dizer nada com o comentário.

Lorde Baelish afagara a pequena barba pontiaguda e disse:

- Nada? Diz-me, filha, por que queria enviar Sor Loras?

Sansa não vira alternativa senão lhe falar de heróis e monstros. O

conselheiro do rei sorrira.

- Bem, não seriam essas as razões que eu daria, mas... - tocara seu

rosto, fazendo o polegar percorrer com suavidade a linha da maçã. -

A vida não é uma canção, querida. Aprenderá isso um dia, para sua

mágoa.

Mas não apetecia a Sansa contar tudo aquilo a Jeyne; só de pensar na

conversa sentia-se desconfortável,

- O Magistrado do Rei é Sor Ilyn, não Sor Loras - disse Jeyne. - Lorde

Eddard devia tê-lo enviado.

Sansa estremeceu. Todas as vezes que olhava para Sor Ilyn Payne

estremecia. O homem a fazia sentir como se alguma coisa morta lhe

rastejasse sobre a pele nua.

- Sor Ilyn é quase como um se g u n d o monstro. Estou feliz que meu

pai não o tenha escolhido.

- Lorde Beric é tão herói quanto Sor Loras. E tão bravo e galante.

- Suponho que sim - disse Sansa em tom de dúvida. Beric

Dondarrion era bem bonito, mas terrivelmente v e l h o , com quase

vinte e dois anos; o Cavaleiro das Flores teria sido muito melhor.

Claro, Jeyne estava enamorada de Lorde Beric desde o momento em

que o vislumbrara na arena. Pensava que a amiga estava sendo tola;

afinal de contas, Jeyne era apenas filha de um intendente, e por mais

que suspirasse por ele, Lorde Beric nunca repararia em alguém tão

abaixo dele, mesmo se não tivesse metade da sua idade.

Mas teria sido indelicado dizê-lo, por isso Sansa sorveu um pouco de

leite e mudou de assunto.

- Tive um sonho em que era Joffrey quem ganhava o veado branco -

disse. Na verdade, fora mais um desejo, mas soava melhor chamar de

sonho. Todos sabiam que os sonhos eram proféticos. Acreditava-se

que os veados brancos fossem muito raros e mágicos, e ela sabia, de

coração, que seu galante príncipe era mais digno que o bêbado do

pai.

- Um sonho? De verdade? E o Príncipe Joffrey foi até o animal,

tocou-o com a mão nua e não lhe fez nenhum mal?

- Não - disse Sansa. - Abateu-o com uma seta dourada e o trouxe de

volta para mim - nas canções, os cavaleiros nunca matavam os

animais mágicos, limitavam-se a encontrá-los e tocá-los, sem lhes

fazer nenhum mal, mas ela sabia que Joffrey gostava de caçar, e

especialmente da parte da matança. Mas só animais. Sansa tinha

certeza de que seu príncipe não tivera nenhum papel no assassinato

de Jory e dos outros pobres homens; quem fizera isso fora seu tio

malvado, o Regicida. Sansa sabia que o pai ainda estava zangado com

aquilo, mas não era justo culpar Joff. Seria como culpá-la de algo que

Arya tivesse feito.

- Esta tarde vi sua irmã - Jeyne falou, como se estivesse lendo os

pensamentos de Sansa. - Estava caminhando pelos estábulos de

pernas para o ar. Por que haveria de fazer uma coisa dessas?

- Estou certa de que não sei por que motivo Arya faz seja o que for -

Sansa detestava estábulos, lugares malcheirosos cheios de estrume e

de moscas. Mesmo quando ia montar, gostava que o rapaz selasse o

cavalo e o trouxesse até o pátio. - Quer que lhe conte da audiência

ou não?

- Quero - Jeyne assentiu.

- Estava lá um irmão negro - disse Sansa -, em busca de homens para

a Muralha, só que era mais ou menos velho e mal-cheiroso - não

gostara nada daquilo. Sempre imaginara que a Patrulha da Noite era

composta por homens como Tio Benjen. Nas canções, eram

chamados os cavaleiros negros da Muralha. Mas aquele homem era

corcunda e hediondo, e pelo aspecto podia bem ter piolhos. Se a

verdadeira Patrulha da Noite era assim, sentia pena do meio-irmão

bastardo, Jon. - Meu pai perguntou se havia cavaleiros no salão que

quisessem honrar suas casas vestindo o negro, mas ninguém se

apresentou, e ele disse ao homem, Yoren, que fizesse sua escolha nas

masmorras do rei e o mandou embora. E mais tarde houve dois

irmãos que vieram perante ele, cavaleiros livres vindos da Marca de

Dorne, que colocaram suas espadas a serviço do rei. Meu pai aceitou

seus votos...

Jeyne bocejou.

- Haverá bolos de limão?

Sansa não gostava de ser interrompida, mas tinha de admitir que

bolos de limão soavam mais interessantes que a maior parte do que

se tinha passado na sala do trono.

- Vamos ver - ela respondeu.

A cozinha não tinha bolos de limão, mas encontraram metade de

uma torta fria de morangos, e isso era quase igualmente bom.

Comeram-na nos degraus da torre, entre risinhos, mexericos e

segredos partilhados, e naquela noite Sansa foi para a cama sentido-

se quase tão malvada como Arya.

Na manhã seguinte, acordou antes da primeira luz e deslizou,

sonolenta, até a janela, a fim de observar Lorde Beric, que punha os

homens em formação. Partiram quando a aurora raiava sobre a

cidade, com três estandartes à cabeça da coluna: o veado coroado do

rei esvoaçava no poste maior; o lobo gigante dos Stark e o estandarte

do relâmpago bifurcado de Lorde Beric, nos postes mais curtos. Tudo

aquilo era excitante, uma canção trazida à vida; o tinir das espadas, o

tremeluzir dos archotes, estandartes dançando ao vento, cavalos

resfolegando e relinchando, o brilho dourado da alvorada

trespassando através das barras da porta levadiça quando foi puxada

para cima. Os homens de Winterfell tinham especialmente bom

aspecto, com cotas de malha prateadas e longos mantos cinzentos.

Alyn transportava o estandarte dos Stark. Quando o viu puxar as

rédeas ao lado de Lorde Beric para trocar algumas palavras com ele,

Sansa sentiu um grande orgulho. Alyn era mais bonito do que Jory

fora; e um dia seria um cavaleiro.

A Torre da Mão parecia tão vazia depois de os homens terem partido

que Sansa até ficou contente por ver Arya quando desceu para o

desjejum.

- Onde estão todos? - quis saber sua irmã enquanto arrancava a

casca de uma laranja sanguínea. - Nosso pai os mandou em

perseguição de Jaime Lannister?

Sansa suspirou,

- Partiram com Lorde Beric para decapitar Sor Gregor Clegane -

virou-se para Septã Mordane, que estava comendo mingau de aveia

com uma colher de pau. - Septã, Lorde Beric vai espetar a cabeça de

Sor Gregor no portão dele ou vai trazê-la para cá e dá-la ao rei? - ela

e Jeyne Poole tinham discutido sobre aquilo na noite anterior.

A septã ficou horrorizada.

- Uma senhora não discute essas coisas à mesa. Onde está sua

educação, Sansa? Juro, nos últimos tempos tem sido quase tão má

como a sua irmã.

- Que fez Gregor? - Arya perguntou.

- Queimou um castelo e assassinou uma porção de pessoas, mulheres

e crianças também. Arya fechou o rosto numa carranca.

- Jaime Lannister assassinou Jory, Heward e Wyl, e Cão de Caça

assassinou o Mycah. Alguém devia t ê - l o s decapitado.

- Não é a mesma coisa - disse Sansa, - Cão de Caça é por juramento

o escudo de Joffrey. Seu amigo, filho de carniceiro, atacou o príncipe.

- Mentirosa - disse Arya. Agarrou a laranja sanguínea com tanta força

que sumo vermelho escorreu entre seus dedos.

- Vá em frente, chame-me os nomes que quiser - disse Sansa em tom

alegre. - Quando eu estiver casada com Joffrey, não se atreverá. Terá

de me fazer reverências e me chamar Vossa Graça - soltou um

gemido estridente quando Arya lhe arremessou a laranja. O fruto a

atingiu no meio da testa com um salpico molhado e tombou no seu

colo.

- Tem sumo na cara, Vossa Graça - Arya disse.

O sumo escorria pelo rosto e fazia arder os olhos. Sansa se limpou

com um guardanapo. Quando viu o que o fruto tinha feito em seu

belo vestido de seda cor de marfim, soltou outro gemido.

- Você é h o r r í v e l - gritou para a irmã. - Deviam ter matado v o c ê

em vez da Lady!

Septá Mordane pôs-se subitamente em pé.

- O senhor seu pai ouvirá falar disto! Vão imediatamente para os

seus aposentos. I m e d i a t a m e n t e !

- Eu também? - lágrimas jorraram dos olhos de Sansa. - Não é justo.

- Não haverá discussão. Vá!

Sansa foi embora a passos largos, de cabeça levantada. Seria uma

rainha, e as rainhas não choram. Pelo menos onde as pessoas vissem,

Quando chegou ao quarto, trancou a porta e despiu o vestido. A

laranja sanguínea deixara uma grande mancha vermelha na seda.

- Eu a odeio! - gritou. Amarfanhou o vestido numa bola e atirou-o

para a lareira fria, para cima das cinzas do fogo da noite anterior.

Quando viu que a mancha tinha escorrido para a saia de baixo, não

conseguiu resistir e começou a soluçar. Arrancou furiosamente o

resto da roupa, atirou-se na cama e chorou até dormir.

Era meio-dia quando Septã Mordane bateu à sua porta.

- Sansa. O senhor seu pai a receberá agora. Sansa sentou-se.

- Lady - sussurrou. Por um momento, foi como se o lobo selvagem

estivesse ali no quarto, olhando-a com seus olhos dourados, tristes e

sábios. Compreendeu que tinha sonhado. Lady estava com ela e

corriam juntas, e... e.. tentar recordar era como tentar apanhar

chuva com os dedos. O sonho desvaneceu-se e Lady ficou de novo

morta.

- Sansa - a pancada voltou, sonora. - Está ouvindo?

- Sim, Septã - gritou. - Posso, por favor, ter um momento para me

vestir? - tinha os olhos vermelhos de chorar, mas fez tudo que pôde

para se pôr bonita.

Lorde Eddard estava inclinado sobre um enorme livro de capa de

couro, com a perna engessada, rígida, sobre a mesa, quando Septã

Mordane a introduziu no aposento privado,

- Venha cá, Sansa - ele disse, num tom que não era desprovido de

delicadeza, depois de a septã partir para ir buscar a irmã. - Sente-se

ao meu lado - fechou o livro.

Septã Mordane regressou com Arya, que se debatia em suas mãos.

Sansa vestia um belo vestido verde-claro de damasco e um ar de

remorso, mas a irmã ainda trajava as maltrapilhas roupas de couro e

ráfia que usava na refeição matinal.

- Aqui está a outra - anunciou a septã.

- Agradeço-lhe, Septã Mordane. Gostaria de falar com minhas filhas a

sós, com a sua licença - a septá fez uma reverência e saiu.

- Foi Arya que começou - Sansa disse rapidamente, ansiosa por ter a

primeira palavra. -Chamou-me de mentirosa, atirou-me uma laranja e

estragou meu vestido, o de seda cor de marfim, aquele que a Rainha

Cersei me deu quando fui prometida ao Príncipe Joffrey. Ela detesta

que eu vá casar com o príncipe. Ela procura estragar t u d o , pai, não

suporta que nada seja belo, ou amável, ou esplêndido.

- B a st a, Sansa - a voz de Lorde Eddard estava carregada de

impaciência. Arya ergueu os olhos.

- Lamento, pai. Eu estava errada e peço o perdão de minha querida

irmã.

Sansa ficou tão surpresa que por um momento perdeu a fala. Por

fim, recuperou a voz.

- Então, e o meu vestido?

- Talvez... eu possa lavá-lo - disse Arya em tom de dúvida.

- Lavá-lo não resolve nada - disse Sansa. - Nem que o esfregasse dia e

noite. A seda está a r r u i n a d a .

- Então eu... faço-lhe um novo - Arya tentou. Sansa atirou a cabeça

para trás com desdém.

- Você? Nem seria capaz de coser um vestido bom para limpar os

chiqueiros. O pai suspirou.

- Não as chamei aqui para falar de vestidos. Enviarei ambas de volta

para Winterfell.

Pela segunda vez Sansa ficou surpresa demais para falar. Sentiu que

seus olhos se umedeciam de novo.

- Não p o d e - Arya reagiu.

- Por favor, pai - Sansa conseguiu dizer por fim. - Não, por favor.

Eddard Stark concedeu às filhas um sorriso cansado,

- Finalmente encontramos alguma coisa em que estão de acordo.

- Eu não fiz nada de mal - Sansa argumentou. - Não quero voltar -

adorava Porto Real; o aparato da corte, os grandes senhores e

senhoras com seus veludos, sedas e pedras preciosas, a grande cidade

com toda a sua gente. O torneio constituíra o período mais mágico

de toda sua vida, e havia tantas coisas que ainda não vira, festas das

colheitas, bailes de máscaras e espetáculos de pantomima. Não

aguentava a ideia de perder tudo aquilo. - Mande Arya embora, foi

ela quem começou, pai, juro. Eu serei boa, verá, deixe-me ficar e

prometo ser tão agradável, nobre e cortês como a rainha.

A boca do pai retorceu-se de um modo estranho.

- Sansa, não estou mandando vocês embora por causa das brigas,

embora os deuses bem saibam como estou farto das suas disputas.

Quero que voltem a Winterfell para a sua segurança, Três dos meus

homens foram abatidos como cães a menos de uma légua de onde

estamos, e que fez Robert? Foi à c a ç a .

Arya mordiscava o lábio daquela sua maneira nojenta.

- Podemos levar Syrio de volta conosco?

- Quem se importa com seu estúpido m e st re d e d a n ç ai - Sansa

disparou. - Pai, acabei de me lembrar, n ã o p o s s o ir embora, vou

me casar com o Príncipe Joffrey - tentou sorrir com bravura para ele.

- Eu o amo, pai, amo mesmo, mesmo, tanto como a Rainha Naerys

amou o Príncipe Aemon, o Cavaleiro do Dragão, tanto como Jonquil

amou Sor Florian. Quero ser a sua rainha e ter os seus bebês.

- Querida - disse o pai gentilmente -, escute-me. Quando tiver idade,

lhe arranjarei casamento com algum grande senhor que seja digno de

você, alguém que seja corajoso, gentil e forte. Esta promessa a Joffrey

foi um erro terrível. Aquele rapaz não é nenhum Príncipe Aemon,

acredite no que digo.

- É, s i m ! - Sansa insistiu. - Não quero alguém corajoso e gentil,

quero e l e . Seremos tão felizes, assim como nas canções, o senhor

verá. Darei a ele um filho de cabelos dourados, que um dia será o rei

de todo o reino, o maior rei que já existiu, bravo como o lobo e

orgulhoso como o leão.

Arya fez uma careta.

- Só se Joffrey não for o pai - ela rebateu. - Joffrey é um mentiroso e

um covarde, e de qualquer forma é um veado, não um leão.

Sansa sentiu lágrimas nos olhos.

- Não é n a d a i Não é nem um bocadinho como aquele velho rei

bêbado - gritou para a irmã, perdida no seu desgosto.

O pai a olhou com uma expressão estranha.

- Deuses - praguejou em voz baixa e da boca das crianças... - gritou

pela Septã Mordane. As meninas, disse: - Estou à procura de uma

galé mercante que seja rápida para levá-las para casa. Nos dias que

correm, o mar é mais seguro do que a Estrada do Rei. Partirão assim

que eu encontre um navio adequado, com Septã Mordane e uma

guarnição de guardas. . e, sim, com Syrio Forel, se ele concordar em

entrar a meu serviço. Mas não digam nada sobre isto. É melhor que

ninguém saiba dos nossos planos. Amanhã voltaremos a conversar.

Sansa chorou enquanto Septã Mordane as levava pelas escadas. Iam

tirar-lhe tudo; os torneios, a corte e o seu príncipe, tudo, iam enviá-

la de volta para os gelados muros cinzentos de Winterfell e trancá-la

para sempre. Sua vida tinha terminado antes mesmo de começar.

- Pare com esse choro, menina - Septã Mordane disse severamente. -

Tenho certeza de que o senhor seu pai sabe o que é melhor para

vocês.

- Não vai ser assim tão mau, Sansa - Arya disse. - Vamos viajar numa

galé. Será uma aventura, e depois estaremos outra vez com Bran e

Robb, e a Velha Ama, Hodor e os outros - tocou--lhe o braço.

- H o d o r! - Sansa berrou. - Devia casar com o Hodor, é mesmo

como ele, estúpida, peluda e feia! - escapuliu da mão da irmã, entrou

correndo no quarto e trancou a porta atrás de si.


Eddard


- A dor é um presente dos deuses, Lorde Eddard - disse o Grande

Meistre Pycelle. - Significa que o osso está cicatrizando, a carne

sarando. Deveria ser grato por isso.

- Ficarei grato quando a perna deixar de latejar.

Pycelle depositou um frasco rolhado na mesa junto à cama.

- O leite da papoula, para quando a dor ficar muito pesada. -Já

durmo demais.

- O sono é o grande curandeiro.

- Tinha esperança de que fosse o senhor. Pycelle deu um sorriso

triste.

- É bom vê-lo com um humor tão vigoroso, senhor - inclinou-se para

mais perto e abaixou a voz. - Chegou um corvo hoje de manhã, uma

carta para a rainha do senhor seu pai. Pensei que deveria saber.

- Asas escuras, palavras escuras - disse Ned em tom sombrio. - Que

tem a mensagem?

- Lorde Tywin está muito irado com os homens que o senhor enviou

contra Sor Gregor Clegane - confidenciou o meistre. - Temi que

ficasse. Disse isso mesmo no conselho.

- Deixe-o irar-se - Ned respondeu. Cada vez que a perna latejava,

lembrava-se do sorriso de Jaime Lannister e de Jory morto em seus

braços. - Que escreva todas as cartas que quiser à rainha. Lorde

Beric avança sob o estandarte do rei. Se Lorde Tywin tentar interferir

na justiça do rei, terá de responder perante Robert. A única coisa de

que Sua Graça mais gosta que caçar é de mover guerra aos senhores

que o desafiam.

Pycelle afastou-se, com a corrente de meistre chocalhando,

- Como quiser. Virei visitá-lo de novo amanhã - o velho homem

recolheu apressadamente suas coisas e se retirou. Ned tinha poucas

dúvidas de que se dirigia diretamente aos aposentos reais para

segredar à rainha. P e n s e i q u e d e v e r i a s a b e r , realmente.. como

se Cersei não o tivesse instruído para entregar as ameaças do pai.

Esperava que a resposta fizesse ranger aqueles seus dentes perfeitos.

Ned não estava, nem de perto, tão confiante como fingira estar, mas

não havia motivo para que Cersei soubesse disso.

Depois de Pycelle sair, Ned mandou vir uma taça de vinho com mel.

Aquilo também enevoava a mente, mas não tanto. Precisava estar

capaz para pensar. Mil vezes perguntara a si mesmo o que teria feito

Jon Arryn se tivesse vivido o suficiente para atuar com base no que

soubera. Ou talvez t i v e s s e atuado e morrido por isso.

Era estranho como por vezes os olhos inocentes de uma criança

eram capazes de ver coisas a que os adultos eram cegos. Um dia,

quando Sansa crescesse, teria de lhe contar como ela fizera com que

tudo se tornasse claro. N ã o é n e m u m b o c a d i n h o c o m o

a q u e l e v e l h o r e i b ê b a d o , declarara zangada e sem consciência

do que dizia, e a simples verdade daquelas palavras retorcera-se den-

tro dele, fria como a morte. F o i e s t a a e s p a d a q u e m a t o u J o n

A r r y n , pensara Ned então, e m a t a r á t a m b é m R o b e r t , u m a

m o r t e m a i s l e n t a , m a s n ã o m e n o s c e r t a . Pernas quebradas

podem sarar com o tempo, mas certas traições ulceram e envenenam

a alma.

Mindinho veio de visita uma hora depois de o Grande Meistre partir,

vestindo um gibão cor de ameixa, com um tejo bordado de negro no

peito e uma capa listrada de preto e branco.

- Não posso me demorar, senhor - anunciou. - A Senhora Tanda

espera-me para o almoço. Sem dúvida assará uma vitela de engorda.

Se a engorda se aproximar da filha dela, é provável que eu arrebente

e morra. E como vai a perna?

- Inflamada e dolorida, com uma comichão que me deixa louco.

Mindinho ergueu uma sobrancelha.

- No futuro, tente evitar que os cavalos caiam em cima dela. Gostaria

que sarasse rapidamente. O reino inquieta-se. Varys escutou

murmúrios de mau agouro vindos do Ocidente. Cavaleiros livres e

mercenários estão afluindo ao Rochedo Casterly, e não é pelo simples

prazer de conversar com Lorde Tywin.

- Há notícias do rei? - Ned perguntou. - Quanto tempo Robert ainda

tenciona continuar caçando?

- Dadas as suas preferências, creio que gostaria de permanecer na

floresta até que tanto o senhor como a rainha morram de velhice -

Lorde Petyr respondeu com um leve sorriso. - Não sendo isso

possível, creio que regressará assim que tiver matado alguma coisa.

Ao que parece, encontraram o veado branco... ou, antes, o que restou

dele. Uns lobos o encontraram primeiro e deixaram a Sua Graça

pouco mais que um casco e um chifre. Robert ficou furioso, até ouvir

falar de um javali monstruoso que vive mais no interior da floresta.

Daí em diante, nada estaria bem a não ser que ele o capturasse.

Príncipe Joffrey regressou hoje de manhã, com os Royce, Sor Balon

Swann e uns vinte outros membros do grupo. Os restantes

continuam com o rei.

- E Cão de Caça? - Ned franziu a testa. De todo o grupo dos

Lannister, era Sandor Clegane quem mais o preocupava, agora que

Sor Jaime fugira da cidade para ir se juntar ao pai.

- Ah, regressou com Joffrey e foi logo ter com a rainha - Mindinho

sorriu. - Teria dado cem veados de prata para ser uma barata nas

esteiras quando ele soube que Lorde Beric partiu para decapitar o

irmão.

- Até um cego vê que Cão de Caça detesta o irmão.

- Ah, mas Gregor é para e l e detestar, não para o senhor matar.

Depois de Dondarrion desbastar o cume da nossa Montanha, as

terras e rendimentos dos Clegane passarão para Sandor, mas não

prenderia a respiração à espera de agradecimentos daquele, não. E

agora, perdoe-me. A Senhora Tanda aguarda com as suas gordas

vitelas.

A caminho da porta, Lorde Petyr pousou os olhos no maciço volume

do Grande Meistre Malleon que estava sobre a mesa e fez uma pausa

para abrir vagarosamente a capa.

- A s l i n h a g e n s e h i s t ó r i a s d a s G r a n d e s C a s a s d o s S e t e

R e i n o s , c o m d e s c r i ç õ e s d e m u i t o s g r a n d e s s e n h o r e s e

n o b r e s s e n h o r a s e d e s e u s f i l h o s - leu. - Se alguma vez vi

uma leitura entediante, aqui está ela. Uma poção para dormir,

senhor?

Por um breve momento Ned considerou a hipótese de lhe contar

tudo, mas havia algo nas brincadeiras de Mindinho que o aborrecia.

O homem era muito mais esperto do que devia, sempre com um

sorriso de troça nos lábios.

-Jon Arryn estudava este volume quando adoeceu - disse Ned em

tom cauteloso, para ver como o outro responderia.

E o outro respondeu como respondia sempre: com um gracejo.

- Neste caso - disse -, a morte deve ter chegado como um abençoado

alívio - Lorde Petyr Baelish fez uma reverência e se retirou.

Eddard Stark permitiu-se uma praga, Além de seus próprios vassalos,

não havia ninguém naquela cidade em quem confiasse. Mindinho

escondera Catelyn e ajudara Ned em suas investigações, mas a pressa

em salvar a própria peie quando Jaime saíra da chuva com os

soldados ainda lhe irritava as feridas. Varys era pior, Com todas as

suas declarações solenes de lealdade, o eunuco sabia demais e fazia

muito pouco. O Grande Meistre Pycelle parecia-se mais com uma

criatura de Cersei a cada dia que passava, e Sor Barristan era velho e

rígido. Diria a Ned para cumprir seu dever.

O tempo era perigosamente curto. O rei devia regressar em breve da

caçada, e a honra obrigava Ned a contar-lhe tudo o que soubera.

Vayon Poole organizara as coisas de modo que Sansa e Arya

embarcassem na B r u x a d o s V e n t o s , de Bravos, dali a três dias.

Estariam de volta a Winterfell antes das colheitas. Ned já não podia

usar a preocupação com a segurança delas como desculpa para o

atraso.

Mas na noite anterior sonhara com os filhos de Rhaegar. Lorde

Tywin depositara os corpos sob o Trono de Ferro, envolvidos nos

mantos carmesins de sua guarda. Fora uma atitude inteligente; o

sangue não se notava tanto no pano vermelho. A pequena princesa

estava descalça, ainda vestida com a camisola, e o rapaz.,, o rapaz...

Ned não podia deixar que aquilo voltasse a acontecer. O reino não

suportaria um segundo rei louco, outra dança de sangue e vingança.

Tinha de encontrar algum modo de salvar as crianças.

Robert podia ser misericordioso. Sor Barristan estava longe de ser o

único homem que perdoara. O Grande Meistre Pycelle, Varys, a

Aranha, Lorde Balon Greyjoy; cada um deles esteve um dia entre os

inimigos de Robert, e todos foram bem-vindos à amizade e

autorizados a manter as honrarias e os cargos em troca de um

juramento de fidelidade. Desde que um homem fosse bravo e

honesto, Robert o trataria com toda a honra e o respeito devidos a

um inimigo valente.

Isto era outra coisa: veneno no escuro, uma faca arremessada à alma.

isto ele nunca poderia perdoar, tal como não era capaz de perdoar

Rhaegar. M a t a r á a t o d o s , compreendeu Ned.

E, no entanto, sabia que não podia se manter em silêncio. Tinha um

dever para com Robert, para com o reino, para com a sombra dejon

Arryn.. e para com Bran, que sem dúvida devia ter tropeçado em

alguma parte desta verdade. Que outro motivo teriam para tentar

assassiná-lo?

Durante a tarde mandou chamar Tomard, o guarda corpulento de

suíças ruivas a quem os filhos chamavam Gordo Tom. Com Jory

morto e Alyn distante, Gordo Tom tinha o comando de sua guarda

pessoal. A ideia encheu Ned com uma vaga inquietação. Tomard era

um homem sólido, afável, leal, incansável, capaz a seu modo limitado,

mas tinha quase cinquenta anos e nem mesmo na juventude fora

enérgico. Talvez Ned não devesse ter se precipitado a enviar para

longe metade dos seus guardas, e com todos os melhores

espadachins entre eles.

- Vou precisar da sua ajuda - disse Ned quando Tomard apareceu,

com o ar levemente apreensivo que tinha sempre que era chamado à

presença do seu senhor. - Leve-me ao bosque sagrado.

- Será sensato, Lorde Eddard? Com a sua perna e tudo?

Tomard chamou Varly. Com os braços em volta dos ombros dos dois

homens, Ned conseguiu descer os íngremes degraus da torre e

atravessar a muralha coxeando.

- Quero a guarda duplicada - disse a Gordo Tom. - Ninguém entra

ou sai da Torre da Mão sem a minha autorização.

Tom pestanejou.

- Senhor, com Alyn e os outros longe, já estamos sobrecarregados...

- Será só por pouco tempo. Aumente os turnos.

- Como quiser, senhor - respondeu Tom. - Posso perguntar por

quê...?

- E melhor não - Ned respondeu bruscamente.

O bosque sagrado estava vazio, como sempre estava naquela cidadela

dos deuses do sul. A perna de Ned gritava quando o depositaram na

relva ao lado da árvore-coração.

- Obrigado - tirou um papel da manga, lacrado com o selo de sua

Casa. - Tenha a bondade de entregar isto imediatamente.

Tomard olhou para o nome que Ned escrevera no papel e lambeu

ansiosamente os lábios.

- Senhor...

- Faça o que lhe peço, Tom - disse Ned.

Não saberia dizer quanto tempo esperou no sossego do bosque

sagrado. Era um lugar tranquilo. As espessas muralhas mantinham

do lado de fora o clamor do castelo, e conseguia ouvir aves cantando,

o murmúrio dos grilos, o farfalhar das folhas sob um vento fraco. A

árvore-coração era um carvalho, castanho e sem rosto, mas Ned

Stark sentia nela a presença dos seus deuses. A perna não parecia

doer-lhe tanto.

Ela veio ao pôr do sol, quando as nuvens se avermelhavam sobre as

muralhas e torres. Veio só, como ele lhe pedira. Pela primeira vez

estava vestida de forma simples, com botas de couro e roupas verdes

de caça. Quando puxou para trás o capuz da capa marrom, Ned viu

a nódoa negra onde o rei lhe batera. A zangada cor de ameixa

esmaecera até tomar um tom de amarelo, e o inchaço reduzira-se,

mas não era possível confundir a marca com outra coisa qualquer.

- Por que aqui? - perguntou Cersei Lannister, em pé, a seu lado.

- Para que os deuses possam ver.

Ela sentou-se a seu lado na relva. Cada um dos seus movimentos era

gracioso. Os cabelos louros encaracolados moviam-se ao vento, e os

olhos eram verdes como as folhas do verão. Passara--se muito tempo

desde que Ned Stark lhe vira a beleza, mas a via agora.

- Conheço a verdade pela qual Jon Arryn morreu - disse-lhe.

- Ah, sim? - a rainha observou-lhe o rosto, cuidadosa como um gato.

- Foi por isso que me chamou aqui, Lorde Stark? Para me propor

adivinhas? Ou será sua intenção raptar-me, como sua esposa raptou

meu irmão?

- Se acreditasse mesmo nisso, nunca teria vindo - Ned tocou-lhe a

face com gentileza. - Ele já tinha feito isso antes?

- Uma ou duas vezes - ela se afastou de sua mão. - Nunca no rosto.

Jaime o mataria, mesmo se isso lhe custasse a vida - Cersei olhou-o

em desafio. - Meu irmão vale cem vezes mais que o seu amigo.

- Seu irmão? - disse Ned. - Ou seu amante?

- As duas coisas - ela não vacilou perante a verdade. - Desde

crianças. E por que não? Os Targaryen casaram irmão com irmã ao

longo de trezentos anos para manter o sangue puro. Jaime e eu

somos mais que irmão e irmã. Somos uma pessoa em dois corpos.

Partilhamos um ventre. Nosso velho meistre dizia que ele chegou ao

mundo agarrado ao meu pé. Quando está em mim, sinto-me..

completa - o fantasma de um sorriso passou rapidamente sobre seus

lábios.

-Meu filho Bran...

Para seu crédito, Cersei não desviou o olhar.

- Ele nos viu. Ama seus filhos, não é verdade?

Robert colocara-lhe a mesmíssima questão na manhã do corpo a

corpo. Deu a Cersei a mesma resposta.

- De todo o coração.

- Não mais do que eu amo os meus.

Ned pensou: S e c h e g a s s e a e s s e p o n t o , c o l o c a n d o a v i d a

d e u m a c r i a n ç a q u e n ã o c o n h e ç o c o n t r a R o b b , S a n s a ,

A r y a , B r a n e R i c k o n , o q u e f a r i a ? M a i s , q u e f a r i a

C a t e l y n , s e f o s s e a v i d a d e J o n c o n t r a o s f i l h o s d e s e u

c o r p o ? Não sabia. E rezava para nunca saber.

- Todos os três são de Jaime - ele disse. E não era uma pergunta.

- Graças aos deuses.

A semente é forte, gritara Jon Arryn no seu leito de morte, e de fato

era. Todos aqueles bastardos, todos de cabelos negros como a noite.

O Grande Meistre Malleon registrou a última união entre veado e

leão há cerca de noventa anos, quando Tya Lannister se casou com

Gowen Baratheon, terceiro filho do detentor do título. Sua única

descendência, um rapaz sem nome descrito no volume de Malleon

como u m r a p a z g r a n d e e v i g o r o s o , n a s c i d o c o m a

c a b e ç a c h e i a d e c a b e l o s n e g r o s , morrera na infância. Trinta

anos antes, um Lannister tomara uma donzela Baratheon como

esposa. Ela lhe dera três filhas e um filho, todos de cabelos negros.

Não importava o quanto Ned recuasse nas quebradiças páginas

amareladas, encontrava sempre o ouro cedendo perante o carvão.

- Uma dúzia de anos - disse Ned. - Como foi que não teve filhos do

rei? Ela ergueu a cabeça, em desafio.

- Vosso Robert deixou-me uma vez à espera de bebê - disse, com a

voz espessa de desprezo. - Meu irmão encontrou uma mulher para

me purificar. Ele nunca soube. A bem da verdade, quase não suporto

que me toque, e há anos que não o deixo entrar em mim. Conheço

outras maneiras de lhe dar prazer, quando abandona suas rameiras

durante tempo suficiente para cambalear até meu quarto de dormir.

Façamos o que fizermos, o rei está geralmente tão bêbado que na

manhã seguinte já esqueceu tudo.

Como podiam ter sido todos tão cegos? A verdade estivera sempre

ali na sua frente, escrita no rosto das crianças. Ned sentiu-se enjoado.

- Lembro-me de Robert como era no dia em que ocupou o trono,

cada centímetro dele um rei - disse em voz baixa. - Mil outras

mulheres o teriam amado de todo o coração. O que ele fez para que

o odiasse tanto?

Os olhos dela ardiam, fogo verde na penumbra, como a leoa que era

o seu símbolo.

- Na noite do nosso banquete de casamento, na primeira vez que

partilhamos a cama, chamou-me pelo nome de sua irmã. Estava em

cima de mim, d e n t r o de mim, fedendo a vinho, e sussurrou

L y a n n a .

Ned Stark pensou em rosas azul-claras, e por um momento quis

chorar.

- Não sei de qual dos dois sinto mais pena. A rainha pareceu

divertida ao ouvir aquilo.

- Guarde sua piedade para você, Lorde Stark. Não quero nem um

bocadinho dela.

- Sabe o que devo fazer.

- O que d e v e ? - Cersei pousou a mão na sua perna boa, logo acima

do joelho. - Um homem de verdade faz o que quer, não o que deve -

seus dedos deslizaram levemente pela sua coxa, na mais suave das

promessas. - O reino precisa de uma Mão forte. Joff não terá idade

durante anos. Ninguém quer uma nova guerra, especialmente eu - a

mão dela tocou-lhe o rosto, os cabelos. - Se amigos podem se

transformar em inimigos, inimigos podem se tornar amigos. Sua

esposa está a mil léguas de distância, e o meu irmão fugiu. Seja bom

para mim, Ned. Juro que nunca se arrependerá.

- Você fez a mesma oferta a Jon Arryn?

Ela o esbofeteou.

- Vou usar isto como um distintivo de honra - Ned disse secamente.

- H o n r a - e l a cuspiu. - Como se atreve a fazer comigo o jogo do

senhor honrado? Por quem me toma? Também você tem um

bastardo, eu o vi. Sempre quis saber quem era a mãe. Alguma

camponesa de Dorne que você violou enquanto seu castelo ardia?

Uma prostituta? Ou teria sido a irmã desgostosa, a Senhora Ashara?

Dizem que se atirou ao mar. Por quê? Pelo irmão que você

assassinou ou pelo filho que lhe roubou? Diga-me, meu h o n r a d o

Lorde Eddard, em que medida é diferente de Robert, de mim ou de

Jaime?

- Para começar - disse Ned -, não mato crianças. Seria bom me

escutar, senhora. Direi isto apenas uma vez. Quando o rei regressar

de sua caçada, pretendo colocar a verdade perante ele. Nesse

momento já deverá estar longe. A senhora e seus filhos, os três, e

não no Rochedo Casterly. Se fosse você, embarcaria para as Cidades

Livres, ou até para mais longe, para as Ilhas do Verão ou o Porto de

Ibben. Até tão longe quanto os ventos soprarem.

- Exílio - disse ela. - Uma taça amarga de onde beber.

- Uma taça mais doce do que a que o seu pai serviu aos filhos de

Rhaegar - Ned disse -, e mais bondosa do que merece. Seu pai e seus

irmãos fariam bem em ir com você. O ouro de Lorde Tywin lhe

comprará conforto e contratará soldados para mantê-la em

segurança. Irá precisar deles. Garanto-lhe, não importa para onde

fuja, a ira de Robert a seguirá até o fim do mundo se necessário.

A rainha se levantou.

- E a minha ira, Lorde Stark? - perguntou num tom suave. Seus

olhos esquadrinharam o rosto dele. - Devia ter ficado com o reino.

Estava livre para quem o tomasse. Jaime contou-me como você o

encontrou no Trono de Ferro no dia em que Porto Real caiu e o

obrigou a cedê-lo. Esse foi o seu momento. Tudo o que tinha de

fazer era subir aqueles degraus e se sentar. Um erro tão triste.

- Cometi mais erros do que pode imaginar, mas este não foi um

deles.

- Ah, mas foi, senhor - Cersei insistiu. - Quando se joga o jogo dos

tronos, ganha-se ou morre. Não existe meio-termo.

Ergueu o capuz para esconder o rosto inchado e o deixou ali, na

escuridão, sob o carvalho, no sossego do bosque sagrado, sob um céu

quase negro. As estrelas começavam a surgir.


Daenerys


O coração fumegava no ar frio da noite quando Khal Drogo o

depositou à sua frente, cru e sangrento. Os braços dele estavam

vermelhos até o cotovelo. Atrás, os companheiros de sangue

ajoelhavam ao lado do cadáver do garanhão selvagem com facas de

pedra nas mãos. O sangue do garanhão parecia negro sob o oscilante

clarão laranja dos archotes que rodeavam as altas paredes de calcário

do recinto,

Dany tocou o suave inchaço da barriga, Tinha a pele coberta de

gotículas de suor que lhe escorriam pela testa. Podia sentir as velhas

observando-a, as antigas feiticeiras de Vaes Dothrak, com olhos que

brilhavam, escuros como sílex polido, nos rostos enrugados. Não

devia vacilar nem parecer assustada. S o u d o s a n g u e d o d r a g ã o ,

disse a si mesma quando tomou o coração do garanhão em ambas as

mãos, o levou à boca e mergulhou os dentes na carne dura e fibrosa.

Sangue quente encheu-lhe a boca e escorreu-lhe pelo queixo. O sabor

ameaçou nauseá-la, mas obrigou-se a mastigar e a engolir. O coração

de um garanhão tornaria seu filho forte, ágil e destemido, ou pelo

menos era isso que os dothrakis pensavam, mas só se a mãe

conseguisse comê-lo todo. Caso se engasgasse com o sangue ou

vomitasse a carne, os presságios eram menos favoráveis; a criança

podia nascer morta ou, se sobrevivesse, podia vir fraca, deformada,

ou mulher.

As aias tinham-na ajudado a se preparar para a cerimônia. Apesar do

seu estômago fraco de mãe que a afligira ao longo das últimas duas

luas, Dany jantara tigelas de sangue meio coagulado para se habituar

ao sabor, e Irri a fizera mastigar bocados de carne-seca de cavalo até

deixá-la com os maxilares doloridos. Antes da cerimônia, jejuara

durante um dia e uma noite, na esperança de que a fome a ajudasse

a manter a carne crua no estômago.

O coração do garanhão selvagem era puro músculo, e Dany tinha de

dilacerá-lo com os dentes e mastigar cada bocado durante muito

tempo. Nenhum aço era permitido dentro das sagradas fronteiras de

Vaes Dothrak, sob a sombra da Mãe das Montanhas; tinha de rasgar

o coração com os dentes e as unhas. O estômago irritava-se e se

nauseava, mas ela insistiu, com o rosto manchado de sangue, que por

vezes parecia explodir contra os lábios.

Khal Drogo estava em pé ao seu lado enquanto ela comia, com o

rosto duro como um escudo de bronze. A longa trança negra

brilhava de óleo. Usava anéis de ouro no bigode, campainhas de ouro

na trança e um pesado cinto de medalhões de puro ouro em torno

da cintura, mas o tronco estava nu. Dany olhava-o sempre que sentia

que as forças lhe faltavam; olhava-o, e mastigava e engolia, mastigava

e engolia, mastigava e engolia. Por fim, julgou vislumbrar um orgulho

feroz em seus olhos escuros e amendoados, mas não tinha certeza.

Não era frequente que o rosto do k h a l traísse os pensamentos

interiores.

E, por fim, foi feito. Sentia o rosto e os dedos pegajosos enquanto

forçava os últimos bocados para baixo. Só então voltou a olhar para

as velhas mulheres, as feiticeiras do d o s h k h a l e e n .

- K h a l a k k a d o t h r a e m r ’ a n h a ! - Dany proclamou no seu

melhor dothraki. U m p r í n c i p e c a v a l g a d e n t r o d e m i m !

Treinara a frase durante dias com a aia Jhiqui.

A mais velha das feiticeiras, uma mulher que mais parecia um pau

dobrado e seco, com um único olho negro, ergueu bem alto os

braços.

- K h a l a k ka d o t h r ae ! - guinchou. O p rí n c i pe c av a lg a!

- E le c av a lg a! - responderam as outras mulheres, - R a k h ! R ak h !

R a k h h a j ! - proclamaram. U m r a p a z , u m r a p a z , u m f o r t e

r a p a z .

Soaram sinos, um súbito clangor de aves de bronze. Uma trombeta

de guerra de som profundo ressoou com sua longa nota grave. As

velhas iniciaram um cântico. Sob as vestes de couro pintado, os seios

murchos balançaram de um lado para o outro, brilhantes de óleo e

suor. Os eunucos que as serviam atiraram feixes de ervas secas sobre

um grande braseiro de bronze, e nuvens de fumaça odorífera

ergueram-se na direção da lua e das estrelas. Os dothrakis acredi-

tavam que as estrelas eram cavalos feitos de fogo, uma grande

manada que galopava pelo céu durante a noite.

Enquanto a fumaça subia, o cântico morreu e a feiticeira mais velha

fechou o único olho, a fim de melhor espreitar o futuro. O silêncio

que caiu foi total. Dany ouvia os chamamentos distantes de aves

noturnas, os silvos e estalidos dos archotes, o suave bater da água do

lago. Os dothrakis olharam-na com olhos de noite, à espera.

Khal Drogo pousou a mão sobre o braço de Dany. Ela sentia a tensão

de seus dedos. Mesmo um k h a l tão poderoso como Drogo conhecia

o medo quando a d o s h k h a l e e n espreitava a fumaça do futuro.

Atrás dela, as aias agitavam-se ansiosamente.

Por fim, a feiticeira abriu o olho e ergueu os braços.

- Vi seu rosto e ouvi o troar de seus cascos - proclamou numa voz

fina e vacilante.

- O troar de seus cascos! - responderam os outros em coro.

- Cavalga veloz como o vento, e atrás dele seu k h a la s ar cobre a

terra, homens sem-número, com a r a k h s brilhando nas mãos como

folhas de um gramado afiado. Será feroz como a tempestade, este

príncipe. Os inimigos tremerão perante ele e suas esposas chorarão

lágrimas de sangue e rasgarão a carne de desgosto. Os sinos de seus

cabelos cantarão a sua chegada, e os homens de leite nas tendas de

pedra temerão o seu nome - a velha tremeu e olhou para Dany quase

como se tivesse medo. - O príncipe cavalga, e será ele o garanhão

que monta o mundo.

- O g ar an h ã o q ue m o n t a o m u n d o ! - gritaram em eco os

espectadores, até que a noite ressoou ao som de suas vozes.

A feiticeira de um olho só espreitou na direção de Dany.

- Como será chamado o garanhão que monta o mundo?

Dany ergueu-se para responder.

- Será chamado Rhaego - disse, usando as palavras que Jhiqui lhe

ensinara. Tocou protetoramente o inchaço sob os seios quando um

rugido chegou de entre os dothrakis.

- R h a e g o - gritaram. - R h a e g o . R h a e g o . R h a e g o !

O nome ainda ressoava em seus ouvidos quando Khal Drogo a levou

para fora do recinto. Seus companheiros de sangue puseram-se atrás

deles. Uma procissão os seguiu pelo caminho dos deuses, a larga

estrada coberta de relva que corria pelo coração de Vaes Dothrak, do

portão dos cavalos até a Mãe das Montanhas. As feiticeiras do d o s h

k h a l e e n vinham à frente, com seus eunucos e escravos. Algumas se

apoiavam em altos cajados esculpidos enquanto avançavam com

dificuldade sobre pernas antigas e trêmulas, ao passo que outras

caminhavam com um porte tão orgulhoso como o de um senhor dos

cavalos. Cada uma das velhas mulheres tinha sido antes uma

k h a l e e s i .

Quando os senhores seus maridos morreram e novos k h a l s lhes

tomaram os lugares à frente de seus cavaleiros, com novas k h a l e e s i

montadas a seu lado, foram enviadas para lá, a fim de reinar sobre a

vasta nação dothraki. Mesmo o mais poderoso dos k h a l s se dobrava

perante a sabedoria e autoridade do d o s h k h a l e e n . Apesar disso,

pensar que um dia poderia ser enviada para lá, quer quisesse quer

não, causava arrepios em Dany.

Atrás das sábias vinham os outros: Khal Ogo e o filho, o k h a l a k k a

Fogo, Khal Jommo e as esposas, os homens mais importantes do

k h a l a s a r de Drogo, as aias de Dany, os servos e escravos do k h a l ,

e mais pessoas. Sinos tocavam e tambores ressoavam numa cadência

imponente enquanto marchavam ao longo do caminho dos deuses.

Heróis roubados e os deuses de povos mortos meditavam na

escuridão atrás da estrada. Ao lado da procissão, escravos corriam

pela relva com pés ligeiros e archotes nas mãos, e as chamas

oscilantes faziam com que os grandes monumentos quase

parecessem estar vivos.

- Que significado tem esse nome Rhaego? - perguntou Khal Drogo

enquanto caminhavam, usando o Idioma Comum dos Sete Reinos.

Dany tinha procurado lhe ensinar algumas palavras sempre que

podia. Drogo aprendia depressa quando se decidia a isso, embora seu

sotaque fosse tão forte e bárbaro que nem Sor Jorah nem Viserys

entendessem uma palavra do que dizia.

- Meu irmão Rhaegar era um feroz guerreiro, meu sol-e-estrelas - ela

disse. - Morreu antes de eu nascer. Sor Jorah diz que ele foi o último

dos dragões.

Khal Drogo a olhou. O rosto era uma máscara de cobre, mas sob o

longo bigode negro, pesado por causa de seus anéis de ouro, ela

julgou vislumbrar a sombra de um sorriso.

- E bom nome, esposa Dan Ares, lua da minha vida - ele disse.

Caminharam até o lago a que os dothrakis chamavam o Ventre do

Mundo, rodeado por uma orla de juncos, de água quieta e calma. Um

milhar de milhares de anos antes, dissera-lhe Jhiqui, o primeiro

homem emergira das suas profundezas, montado sobre o dorso do

primeiro cavalo.

A procissão aguardou na costa coberta de mato enquanto Dany se

despia e deixava cair ao chão a roupa manchada. Nua, entrou

cuidadosamente na água. Irri dizia que o lago não tinha fundo, mas

Dany sentiu lama mole espirrando entre os dedos dos pés enquanto

abria caminho por entre os grandes juncos. A lua flutuava nas negras

águas paradas, estilhaçando-se e recompondo--se enquanto as

ondulações que Dany provocava a varriam. A pele branca arrepiou-se

quando o frio deslizou pelas coxas e lhe beijou os lábios de baixo. O

sangue do garanhão havia secado em suas mãos e em torno da boca.

Dany fez uma taça com os dedos e ergueu as águas sagradas acima

da cabeça, purificando a si e ao filho que trazia no ventre enquanto o

k h a l e os outros olhavam. Ouviu as velhas do d o s h k h a l e e n

murmurarem umas com as outras enquanto a observavam, e sentiu

curiosidade de saber o que estariam dizendo.

Quando emergiu do lago, tremendo e pingando, a aia Doreah correu

para ela com um roupão de sedareia pintada, mas Khal Drogo

mandou-a embora com um gesto. Olhava com admiração para seus

seios inchados e a curva de sua barriga, e Dany conseguia ver a

forma de seu membro viril fazendo pressão contra as calças de couro

de cavalo, sob os pesados medalhões de ouro do cinto. Foi até ele e o

ajudou a despir-se. Então, seu enorme k h a l a pegou pelas ancas e

ergueu-a no ar, como se ela fosse uma criança. As campainhas que

trazia nos cabelos tiniram suavemente.

Dany envolveu-lhe os ombros com os braços e encostou o rosto ao

seu pescoço enquanto ele a penetrava. Três rápidos impulsos e estava

feito.

- O garanhão que monta o mundo - sussurrou Drogo em voz rouca.

As mãos ainda cheiravam a sangue de cavalo. Mordeu-lhe a garganta,

com força, no momento do prazer e, quando a ergueu de novo, seu

sêmen a encheu e escorreu pelas suas coxas. Só então Doreah foi

autorizada a envolvê-la em sedareia perfumada e Irri, a calçar-lhe

chinelos suaves.

Khal Drogo atou as calças e deu uma ordem, e foram trazidos

cavalos até a margem do lago. Cohollo teve a honra de ajudar a

k h a l e e s i a montar sua prata. Drogo esporeou o garanhão e partiu

ao longo do caminho dos deuses, sob a lua e as estrelas. Sobre a

prata, Dany acompanhou seu ritmo com facilidade.

A cobertura de seda que fornecia um teto ao salão de Khal Drogo

fora enrolada naquela noite, e a lua os seguiu ao entrar. Chamas

saltavam até uma altura de três metros, vindas de três enormes

covas rodeadas por pedras. O ar estava pesado com os cheiros de

carne assando e de leite de égua coalhado e fermentado. O salão

estava cheio de gente e ruidoso quando entraram; as almofadas

apinhadas daqueles cujo estatuto e nome não eram suficientes para

lhes permitir a presença na cerimônia. Quando Dany passou por

baixo do arco da entrada e caminhou pela nave central, todos os

olhos a seguiram. Os dothrakis gritavam comentários sobre sua

barriga e seus seios, saudando a vida no seu interior. Não

compreendia tudo o que gritavam, mas uma frase era clara. " 0

g a r a n h ã o q u e m o n t a o m u n d o " , ouviu, palavras berradas por

um milhar de vozes.

Os sons de tambores e trompas giraram pela noite adentro.

Mulheres seminuas rodopiaram e dançaram sobre as mesas baixas,

por entre peças de carne e bandejas apinhadas de ameixas, tâmaras e

romãs. Muitos dos homens estavam bêbados de leite coalhado de

égua, mas Dany sabia que naquela noite os a r a k h s não se

chocariam, não ali na cidade sagrada, onde as lâminas e o

derramamento de sangue eram proibidos.

Khal Drogo desmontou e ocupou seu lugar no banco elevado. Khal

Jommo e Khal Ogo, que já estavam em Vaes Dothrak com seus

k h a l a s a r e s quando o deles chegara, ficaram nos lugares de grande

honra, à esquerda e à direita de Drogo. Os companheiros de sangue

dos três k h a l s sentaram-se abaixo deles e, mais abaixo, as quatro

esposas de Khal Jommo.

Dany desceu de sua prata e entregou as rédeas a um dos escravos.

Enquanto Doreah e Irri lhe preparavam as almofadas, procurou pelo

irmão. Mesmo do outro lado do salão apinhado, Viserys seria fácil de

se notar com a sua pele clara, cabelos prateados e farrapos de

pedinte, mas não o via em lugar nenhum.

Seu olhar vagueou pelas mesas apinhadas junto às paredes, onde

homens cujas tranças eram ainda mais curtas que seus membros se

sentavam sobre tapetes puídos e almofadas achatadas em torno das

mesas baixas, mas todos os rostos que viu tinham olhos negros e

pele acobreada. Vislumbrou Sor Jorah Mormont perto do centro do

salão, nas imediações da fogueira do meio. Era um lugar de respeito,

se não de grande honra; os dothrakis estimavam a perícia do

cavaleiro com uma espada. Dany mandou Jhiqui trazê-lo para sua

mesa. Mormont veio de imediato e caiu sobre o joelho à sua frente,

- K h a l e e s i - disse -, estou às vossas ordens.

Dany deu palmadinhas na grossa almofada de couro de cavalo que

tinha ao lado.

- Sente-se e converse comigo.

- Será uma honra - o cavaleiro sentou-se na almofada com as pernas

cruzadas. Um escravo ajoelhou-se à sua frente, oferecendo uma

bandeja de madeira cheia de figos maduros. Sor Jorah pegou um e

arrancou metade com uma dentada.

- Onde está meu irmão? - Dany perguntou. - Já deveria ter chegado

para o banquete.

- Vi Sua Graça hoje de manhã - ele respondeu. - Disse-me que ia ao

Mercado Ocidental, em busca de vinho.

- Vinho? - a voz de Dany tinha tom de dúvida. Sabia que Viserys não

conseguia se habituar ao gosto do leite fermentado de égua que os

dothrakis bebiam, e por aqueles dias era frequente encontrá-lo nos

bazares bebendo com os mercadores que chegavam nas grandes

caravanas do leste e do oeste. Parecia achar a companhia deles mais

agradável que a sua.

- Vinho - confirmou Sor Jorah -, e alimenta algumas ideias de

recrutar homens para o seu exército entre os mercenários que

guardam as caravanas - uma criada depositou uma torta de sangue

na sua frente, e o cavaleiro a atacou com ambas as mãos,

- Será isso sensato? - Dany perguntou. - Ele não tem ouro para pagar

a soldados. E se for traído? - os guardas das caravanas raramente

eram muito perturbados por pensamentos sobre honra, e o

Usurpador em Porto Real pagaria bem pela cabeça do irmão. - Devia

ter ido com ele, para mantê-lo a salvo. O senhor é seu juramentado.

- Estamos em Vaes Dothrak - lembrou-lhe. - Aqui ninguém pode

transportar uma lâmina ou derramar o sangue de um homem.

- Apesar disso, os homens morrem. Jhogo contou-me. Alguns dos

mercadores têm consigo eunucos, homens enormes que estrangulam

ladrões com faixas de seda. Desse modo, nenhum sangue é

derramado e os deuses não se zangam.

- Então, esperemos que seu irmão seja suficientemente sensato para

não roubar nada - Sor Jorah limpou a gordura da boca com as costas

da mão e aproximou-se por sobre a mesa. - Ele tinha planejado

roubar seus ovos de dragão, mas o preveni de que lhe cortaria a mão

se os tocasse.

Por um momento Dany sentiu-se tão chocada que não encontrou

palavras.

- Os meus ovos... mas são m e u s , Magíster Illyrio os deu para mim,

uma prenda de noivado, por que quereria Viserys... são apenas

pedras...

- O mesmo poderia ser dito de rubis, diamantes e opalas de fogo,

princesa... e ovos de dragão são de longe mais raros. Aqueles

mercadores com quem ele tem bebido venderiam os próprios

membros viris por apenas uma dessas p e d r a s , e, com as três,

Viserys poderia comprar tantos mercenários quanto quisesse.

Dany não sabia, nem sequer suspeitara.

- Então.. ele devia ficar com eles. Não precisa roubá-los. Só tinha de

pedir. Ele é meu irmão... e o meu rei verdadeiro.

- Ele é seu irmão - reconheceu Sor Jorah.

- Não compreende, sor - ela disse, - Minha mãe morreu ao dar-me à

luz, e meu pai e meu irmão Rhaegar morreram ainda antes. Nunca

teria aprendido nem sequer os seus nomes se Viserys não estivesse lá

para me ensinar. Foi o único que restou. O único. É tudo o que

tenho.

- Outrora, sim - disse Sor Jorah. - Mas agora não, kh a le e si. Agora

pertence aos dothrakis. Em seu ventre cavalga o garanhão que monta

o mundo - ergueu a taça e uma escrava a encheu de leite de égua

fermentado, de cheiro azedo e espesso de grumos.

Dany mandou a escrava embora com um gesto. Até o cheiro da

bebida a fazia sentir-se agoniada, e não queria correr nenhum risco

de pôr para fora o coração de cavalo que se forçara a comer.

- Que significa isso? - ela perguntou. - O que é este garanhão? Todo

mundo estava gritando isso, mas eu não compreendo.

- O garanhão é o k h a l dos k h al s prometido numa antiga profecia,

menina. Ele vai unir os dothrakis num único k h a l a s a r e cavalgar

até o fim do mundo, ou pelo menos é essa a promessa. Todas as

pessoas do mundo serão a sua manada.

- Ah - disse Dany com voz fraca. A mão alisou o roupão sobre a

barriga inchada. - Chamei-o Rhaego.

- Um nome que congelará o sangue do Usurpador. De repente,

Doreah começou a puxá-la pelo cotovelo.

- Senhora - sussurrou a aia em tom urgente -, vosso irmão...

Dany olhou para a extremidade do longo salão sem teto e ali estava

ele, encaminhando-se a passos largos na sua direção. Pelo

desequilíbrio no andar, compreendeu de imediato que Viserys

encontrara o seu vinho... e algo que se passava por coragem.

Vestia suas sedas escarlates, enodoadas e manchadas pela viagem. A

capa e as luvas eram de veludo negro, desbotado pelo sol. As botas

estavam secas e fendidas, os cabelos prateados, baços e emaranhados.

Uma espada balançava, presa ao cinto, enfiada numa bainha de

couro. Os dothrakis fitavam a espada enquanto ele passava. Dany

ouviu pragas, ameaças e murmúrios zangados que se erguiam de

todos os lados, como uma maré. A música extinguiu-se num gaguejo

nervoso de tambores.

Uma sensação de terror apertou-se em torno de seu coração.

- Vá até ele - ordenou a Sor Jorah. - Pare-o. Traga-o aqui. Diga-lhe

que pode ficar com os ovos de dragão se for isso que deseja - o

cavaleiro pôs-se rapidamente em pé.

- Onde está minha irmã? - gritou Viserys, com a voz espessa de

vinho. - Cheguei para o seu banquete. Como se atrevem a começar

sem mim? Ninguém come antes do rei. Onde está ela? A puta não

pode se esconder do dragão.

Parou ao lado da maior das três fogueiras, olhando os rostos dos

dothrakis em volta. Havia cinco mil homens no salão, mas só um

punhado conhecia o Idioma Comum. No entanto, mesmo que suas

palavras fossem incompreensíveis, bastava olhá-lo para ver que estava

bêbado.

Sor Jorah foi até ele rapidamente, segredou qualquer coisa ao seu

ouvido e o tomou pelo braço, mas Viserys o empurrou.

- Mantenha as mãos longe de mim! Ninguém toca no dragão sem

permissão.

Dany lançou um relance ansioso para o banco elevado. Khal Drogo

dizia qualquer coisa aos outros khals a seu lado. Khal Jommo sorriu e

Khal Ogo rebentou em sonoras gargalhadas. O som do riso fez

Viserys erguer os olhos.

- Khal Drogo - disse em voz pesada, num tom quase educado. - Estou

aqui para o banquete

- afastou-se cambaleando de Sor Jorah para juntar-se aos três khals

no banco elevado.

Khal Drogo ergueu-se, cuspiu uma dúzia de palavras em dothraki,

mais depressa do que Dany conseguiria compreender, e apontou.

- Khal Drogo diz que seu lugar não é no banco elevado - traduziu

Sor Jorah para Viserys.

- Khal Drogo diz que o seu lugar é ali.

Viserys dirigiu os olhos para onde o khal apontava. Ao fundo do

longo salão, num canto junto à parede, mergulhados em profundas

sombras para que homens melhores não os vissem, sentavam-se os

mais baixos dos baixos; rapazes inexperientes que ainda não tinham

feito correr sangue, velhos de olhos enevoados e articulações

entrevadas, os idiotas e os estropiados. Longe da carne, e mais longe

da honra.

- Aquele não é lugar para um rei - Viserys declarou.

- É lugar - respondeu Khal Drogo, no Idioma Comum que Dany lhe

ensinara - para o Rei Pés-Feridos - bateu palmas. - Uma carroça!

Tragam uma carroça para Khal Rhaggat!

Cinco mil dothrakis desataram a rir e a gritar. Sor Jorah estava em

pé ao lado de Viserys, gritando-lhe ao ouvido, mas o ruído na sala

era tão estrondoso que Dany não conseguia ouvir o que ele estava

dizendo. Seu irmão gritou de volta e os dois homens engalfinharam-

se, até que Mormont atirou Viserys ao chão, O irmão de Dany puxou

a espada.

O aço nu brilhou num temível clarão vermelho à luz das fogueiras.

- M a n t e n h a - s e l o n g e d e m i m ! - Viserys sibilou. Sor Jorah

recuou um passo, e Viserys ergueu-se em pés instáveis. Brandiu a

espada por sobre a cabeça, a lâmina emprestada que Magíster Illyrio

lhe dera para que parecesse mais régio. Os dothrakis gritavam com

ele de todos os lados, berrando pesadas pragas.

Dany soltou um grito inarticulado de terror. Sabia o que uma espada

desembainhada significava ali, mesmo que o irmão não soubesse.

Sua voz fez com que o irmão virasse a cabeça e a visse pela primeira

vez.

- Ali está ela - disse, sorrindo. Caminhou na sua direção, golpeando o

ar como que para abrir caminho através de uma muralha de

inimigos, apesar de ninguém tentar barrar-lhe o caminho.

- A lâmina... não deve - suplicou-lhe. - Por favor, Viserys. E proibido.

Largue a espada e venha partilhar minhas almofadas. Há bebida,

comida... são os ovos de dragão que quer? Pode ficar com eles, mas

jogue a espada fora.

- Faça o que ela lhe diz, louco - gritou Sor Jorah -, antes que nos

mate a todos.

Viserys riu.

- Eles não podem nos matar. Não podem derramar sangue aqui na

cidade sagrada..., mas e u posso - encostou a ponta da espada entre

os seios de Daenerys e a deslizou para baixo, sobre a curva da

barriga. - Quero aquilo que vim buscar - disse-lhe. - Quero a coroa

que ele me prometeu. Ela a comprou, mas nunca me pagou. Diz a

ele que quero aquilo que negociei, caso contrário, levo-a de volta.

Você e os ovos. Ele pode ficar com o seu maldito potro. Corto a

barriga, tiro daí o bastardo e o deixo para ele - a ponta da espada fez

pressão através das sedas de Dany e picou-lhe o umbigo. Dany viu

que Viserys chorava; chorava e ria, tudo ao mesmo tempo, este

homem que outrora fora seu irmão.

De forma distante, como que de muito longe, Dany ouviu a aia Jhiqui

soluçar de medo, alegando que não se atrevia a traduzir, porque o

k h a l a amarraria e arrastaria atrás de seu cavalo ao longo de todo o

caminho até o cume da Mãe das Montanhas. Dany pôs o braço em

torno da jovem:

- Não tenha medo. Eu lhe conto.

Não sabia se tinha palavras suficientes, mas, quando terminou, Khal

Drogo proferiu algumas frases bruscas em dothraki, e soube que ele

compreendera. O sol da sua vida desceu do banco elevado.

- Que disse ele? - perguntou-lhe o homem que fora seu irmão,

vacilando.

O salão ficara tão silencioso que se conseguia ouvir os sinos dos

cabelos de Khal Drogo tilintando suavemente a cada passo que dava.

Seus companheiros de sangue o seguiram, como três sombras de

cobre. Daenerys gelara por completo.

- Diz que você terá uma magnífica coroa de ouro, que os homens

tremerão ao contemplá-la.

Viserys sorriu e abaixou a espada. Isso foi o mais triste, aquilo que a

despedaçou mais tarde... o modo como ele sorriu.

- Era tudo o que eu queria - ele disse. - O que foi prometido.

Quando o sol da sua vida a alcançou, Dany pôs o braço em torno de

sua cintura. O k h a l disse uma palavra e seus companheiros de

sangue seguiram na frente. Qotho agarrou pelos braços o homem

que fora seu irmão. Haggo estilhaçou-lhe o pulso com uma única

torção brusca de suas enormes mãos. Cohollo tirou a espada dos

dedos sem força. Mesmo agora, Viserys não compreendia.

- Não - ele gritou -, não podem me tocar, eu sou o dragão, o

d r a g ã o , e vou ser c o r o a d o l Khal Drogo desatou o cinto. Os

medalhões eram de ouro puro, maciços e ornamentados,

todos tão grandes como a mão de um homem. Gritou uma ordem.

Escravos cozinheiros tiraram um pesado caldeirão de ferro da

fogueira, despejaram o guisado no chão e o devolveram às chamas.

Drogo atirou o cinto lá dentro e ficou observando sem expressão os

medalhões que se tornavam vermelhos e começavam a perder a

forma, Dany conseguia ver chamas dançando no ônix de seus olhos.

Uma escrava lhe entregou um par de espessas luvas de pelo de

cavalo, e ele as calçou, sem chegar a deitar um relance que fosse ao

homem.

Viserys começou a gritar o agudo e inarticulado grito do covarde que

enfrenta a morte. Esperneou e retorceu-se, ganiu como um cão e

berrou como uma criança, mas os dothrakis o mantiveram bem

seguro entre eles. Sor Jorah abrira caminho até junto de Dany.

Pousou-lhe a mão no ombro.

- Afaste os olhos, minha princesa. Eu lhe peço.

- Não - Dany dobrou os braços sobre o inchaço na barriga, protetora,

No último momento, Viserys olhou para ela.

- Irmã, por favor... Dany, diz a eles.. faça-os... querida irmã...

Quando o ouro fundiu parcialmente e começou a correr, Drogo

estendeu o braço para as chamas, agarrou o caldeirão.

- Coroa! - rugiu. - Toma. Uma coroa para o Rei Carroça! - e virou o

caldeirão sobre a cabeça do homem que fora irmão da k h a l e e s i

O som que Viserys Targaryen fez quando aquele hediondo capacete

de metal lhe cobriu a cabeça não se assemelhava a nada de humano.

Seus pés martelaram uma batida frenética contra o chão de terra,

abrandaram, pararam. Grossos glóbulos de ouro fundido pingaram

sobre seu peito, pondo a seda escarlate em brasa... mas nenhuma

gota de sangue foi derramada.

E l e n ã o e r a d r a g ã o n e n h u m , pensou Dany, curiosamente

calma. O f o g o n ã o p o d e m a t a r u m d r a g ã o .


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